Sacramentum caritatis PT


INTRODUÇÃO



1 Sacramento da Caridade, (1) a santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste sacramento admirável, manifesta-se o amor « maior »: o amor que leva a « dar a vida pelos amigos » (Jn 15,13). De facto, Jesus « amou-os até ao fim » (Jn 13,1). Com estas palavras, o evangelista introduz o gesto de infinita humildade que Ele realizou: na vigília da sua morte por nós na cruz, pôs uma toalha à cintura e lavou os pés aos seus discípulos. Do mesmo modo, no sacramento eucarístico, Jesus continua a amar-nos « até ao fim », até ao dom do seu corpo e do seu sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do coração dos discípulos à vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico!

1. Cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, III 73,3.


O alimento da verdade


2 No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27), fazendo-Se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-Se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que só a verdade nos pode tornar verdadeiramente livres (Jn 8,36), Cristo faz-Se alimento de Verdade para nós. Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho pôs em evidência como o homem se move espontaneamente, e não constrangido, quando encontra algo que o atrai e nele suscita desejo. Perguntando-se ele, uma vez, sobre o que poderia em última análise mover o homem no seu íntimo, o santo bispo exclama: « Que pode a alma desejar mais ardentemente do que a verdade? » (2) De facto, todo o homem traz dentro de si o desejo insuprimível da verdade última e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, « caminho, verdade e vida » (Jn 14,6), dirige-Se ao coração anelante do homem que se sente peregrino e sedento, ao coração que suspira pela fonte da vida, ao coração mendigo da Verdade. Com efeito, Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que atrai a Si o mundo. « Jesus é a estrela polar da liberdade humana: esta, sem Ele, perde a sua orientação, porque, sem o conhecimento da verdade, a liberdade desvirtua-se, isola-se e reduz-se a estéril arbítrio. Com Ele, a liberdade volta a encontrar-se a si mesma ».(3) No sacramento da Eucaristia, Jesus mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que é a própria essência de Deus. Esta é a verdade evangélica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso a Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital, esforça-se constantemente por anunciar a todos, em tempo propício e fora dele (opportune, importune: cf. 2Tm 4,2), que Deus é amor.(4) Exactamente porque Cristo Se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem convidando-o a acolher livremente o dom de Deus.

2. Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium Tractatus, 26, 5: PL 35, 1609.
3. Bento XVI, Discurso aos participantes na Assembleia Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé (10 de Fevereiro de 2006): AAS 98 (2006), 255.
4. Cf. Bento XVI, Discurso aos membros do Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos (1 de Junho de 2006): L'Osservatore Romano (ed. port. de 8/VI/2006), 237.


O desenvolvimento do rito eucarístico


3 Contemplando a história bimilenária da Igreja de Deus, sapientemente guiada pela acção do Espírito Santo, admiramos cheios de gratidão o desenvolvimento ordenado no tempo das formas rituais em que fazemos memória do acontecimento da nossa salvação. Desde as múltiplas formas dos primeiros séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente, até à difusão do rito romano; desde as indicações claras do Concílio de Trento e do Missal de São Pio V até à renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II: em cada etapa da história da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua vida e missão, resplandece no rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza. A XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005 no Vaticano, elevou um profundo agradecimento a Deus por esta história, reconhecendo nela a guia activa do Espírito Santo. De modo particular, os padres sinodais reconheceram e reafirmaram o benéfico influxo que teve, na vida da Igreja, a reforma litúrgica actuada a partir do Concílio Ecuménico Vaticano II.(5) O Sínodo dos Bispos pôde avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da assembleia conciliar; inúmeros foram os elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados não podem ofuscar a excelência e a validade da referida renovação litúrgica, que contém riquezas ainda não plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as mudanças queridas pelo Concílio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histórico do próprio rito, sem introduzir artificiosas rupturas.(6)

5. Cf. Propositio 2.
6. Aludo aqui à necessidade duma hermenêutica da continuidade mesmo no que diz respeito a uma correcta leitura do desenvolvimento litúrgico depois do Concílio Vaticano II: cf. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 44-45.



O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia


4 Além disso, é necessário sublinhar a relação do recente Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia com o que sucedeu durante os últimos anos na vida da Igreja. Antes de mais, devemos pensar no Grande Jubileu do ano 2000, com o qual meu amado predecessor, o servo de Deus João Paulo II, introduziu a Igreja no terceiro milénio cristão; o Ano Jubilar teve, sem dúvida, uma caracterização intensamente eucarística. Depois, não se pode esquecer que o Sínodo dos Bispos foi precedido e, em certo sentido, preparado também pelo Ano da Eucaristia, estabelecido com grande clarividência por João Paulo II para toda a Igreja; teve início com o Congresso Eucarístico Internacional em Guadalajara no mês de Outubro de 2004 e terminou a 23 de Outubro de 2005, no final da XI Assembleia Sinodal, com a canonização de cinco beatos que se distinguiram, de forma particular, pela sua piedade eucarística: o bispo José Bilczewski, os sacerdotes Caetano Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o religioso capuchinho Félix de Nicósia. Graças aos ensinamentos propostos por João Paulo II na Carta Apostólica Mane nobiscum Domine (7) e às preciosas sugestões da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,(8) numerosas foram as iniciativas que as dioceses e as diversas realidades eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a fé eucarística, para melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística, para encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os necessitados. Por último, é preciso mencionar a importância da última Encíclica do meu venerado predecessor, a Ecclesia de Eucharistia,(9) deixando-nos através dela uma segura referência do Magistério quanto à doutrina eucarística e um derradeiro testemunho do lugar central que este sacramento divino ocupava na sua vida.

7. Tem a data de 7 de Outubro de 2004; veja-se o texto em AAS 97 (2005), 337-352.
8. Cf. Ano da Eucaristia: sugestões e propostas (15 de Outubro de 2004): L'Osservatore Romano (15 de Outubro de 2004), Suplemento.
9. Tem a data de 17 de Abril de 2003; veja-se o texto em AAS 95 (2003), 433-475. Há que recordar também a Instrução da Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004): AAS 96 (2004), 549-601, expressamente desejada por João Paulo II.


Finalidade do documento


5 Esta Exortação Apostólica pós-sinodal tem por objectivo recolher a multiforme riqueza de reflexões e propostas surgidas na recente Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos — a começar dos Lineamenta até às Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, as Relationes ante et post disceptationem, as intervenções dos padres sinodais, auditores e delegados fraternos —, com a intenção de explicitar algumas linhas fundamentais de empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico. Consciente do vasto património doutrinal e disciplinar acumulado no decurso dos séculos à volta da Eucaristia,(10) neste documento desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais,(11) que o povo cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico, a acção litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacramento da caridade. Com esta perspectiva, pretendo colocar esta Exortação na linha da minha primeira Carta Encíclica — a Deus caritas est —, na qual várias vezes falei do sacramento da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o amor cristão, tanto para com Deus como para com o próximo: « O Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que motivo o termo agape se tenha tornado também um nome da Eucaristia; nesta, a agape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua acção em nós e através de nós ».(12)

10. Recordo apenas os principais: Conc. Ecum. de Trento, Doctrina et canones de ss. Missae sacrificio:
DS 1738-1759; Leão XIII, Carta enc. Mirae caritatis (28 de Maio de 1902): ASS (1903), 115-136; Pio XII, Carta enc. (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 521-595; Paulo VI, Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 753-774 MF 1; João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003): AAS 95 (2003), 433-475; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Eucharisticum mysterium (25 de Maio de 1967): AAS 59 (1967), 539-573; Instr. Liturgiam authenticam (28 de Março de 2001): AAS 93 (2001), 685-726.
11. Cf. Propositio 1.
12. N. 14: AAS 98 (2006), 229.


I PARTE


EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO


« A obra de Deus consiste

em acreditar n'Aquele que Ele enviou »


(Jn 6,29)

A fé eucarística da Igreja

A fé eucarística da Igreja


6 « Mistério da fé! »: com esta exclamação pronunciada logo a seguir às palavras da consagração, o sacerdote proclama o mistério celebrado e manifesta o seu enlevo diante da conversão substancial do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor Jesus, realidade esta que ultrapassa toda a compreensão humana. Com efeito, a Eucaristia é por excelência « mistério da fé »: « É o resumo e a súmula da nossa fé ».(13) A fé da Igreja é essencialmente fé eucarística e alimenta-se, de modo particular, à mesa da Eucaristia. A fé e os sacramentos são dois aspectos complementares da vida eclesial. Suscitada pelo anúncio da palavra de Deus, a fé é alimentada e cresce no encontro com a graça do Senhor ressuscitado que se realiza nos sacramentos: « A fé exprime-se no rito e este revigora e fortifica a fé ».(14) Por isso, o sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial; « graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo! » (15) Quanto mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo.

13. Catecismo da Igreja Católica,
CEC 1327.
14. Propositio 16.
15. Bento XVI, Homilia na tomada de posse da Cátedra de Roma (7 de Maio de 2005): AAS 97 (2005), 752.



Santíssima Trindade e Eucaristia


O pão descido do céu


7 O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário. No diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmação esclarecedora a tal respeito: « Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele » (Jn 3,16-17). Estas palavras revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá « alguma coisa », mas dá-Se a Si mesmo; entrega o seu corpo e derrama o seu sangue. Deste modo dá a totalidade da sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho eterno que o Pai entregou por nós. Noutro passo do evangelho, depois de Jesus ter saciado a multidão pela multiplicação dos pães e dos peixes, ouvimo-Lo dizer aos interlocutores que vieram atrás d'Ele até à sinagoga de Cafarnaum: « Meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão que vem do céu. O pão de Deus é o que desce do céu para dar a vida ao mundo » (Jn 6,32-33), acabando por identificar-Se Ele mesmo — a sua própria carne e o seu próprio sangue — com aquele pão: « Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jn 6,51). Assim Jesus manifesta-Se como o pão da vida que o Pai eterno dá aos homens.

Dom gratuito da Santíssima Trindade


8 Na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda a história da salvação (Ep 1,9-10 Ep 3,8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus Trinitas), que em Si mesmo é amor (1Jn 4,7-8), envolve-Se plenamente com a nossa condição humana. No pão e no vinho, sob cujas aparências Cristo Se nos dá na ceia pascal (Lc 22,14-20 1Co 11,23-26), é toda a vida divina que nos alcança e se comunica a nós na forma do sacramento: Deus é comunhão perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Já na criação, o homem fora chamado a partilhar, em certa medida, o sopro vital de Deus (Gn 2,7). Mas, é em Cristo morto e ressuscitado e na efusão do Espírito Santo, dado sem medida (Jn 3,34), que nos tornamos participantes da intimidade divina.(16) Assim Jesus Cristo, que « pelo Espírito eterno Se ofereceu a Deus como vítima sem mancha » (He 9,14), no dom eucarístico comunica-nos a própria vida divina. Trata-se de um dom absolutamente gratuito, devido apenas às promessas de Deus cumpridas para além de toda e qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obediência. O « mistério da fé » é mistério de amor trinitário, no qual, por graça, somos chamados a participar. Por isso, também nós devemos exclamar com Santo Agostinho: « Se vês a caridade, vês a Trindade ».(17)

16. Cf. Propositio 4.
17. De Trinitate, VIII, 8, 12: CCL 50, 287.



Eucaristia: Jesus verdadeiro Cordeiro imolado


A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro


9 A missão, que trouxe Jesus entre nós, atinge o seu cumprimento no mistério pascal. Do alto da cruz, donde atrai todos a Si (Jn 12,32), antes de « entregar o Espírito » Jesus diz: « Tudo está consumado » (Jn 19,30). No mistério da sua obediência até à morte, e morte de cruz (Ph 2,8), cumpriu-se a nova e eterna aliança. Na sua carne crucificada, a liberdade de Deus e a liberdade do homem juntaram-se definitivamente num pacto indissolúvel, válido para sempre. Também o pecado do homem ficou expiado, uma vez por todas, pelo Filho de Deus (He 7,27 1Jn 2,2 1Jn 4,10). Como já tive ocasião de afirmar, « na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo — o amor na sua forma mais radical ».(18) No mistério pascal, realizou-se verdadeiramente a nossa libertação do mal e da morte. Na instituição da Eucaristia, o próprio Jesus falara da « nova e eterna aliança », estipulada no seu sangue derramado (Mt 26,28 Mc 14,24 Lc 22,20). Esta finalidade última da sua missão era bem evidente já no início da sua vida pública; de facto, nas margens do Jordão, quando João Baptista vê Jesus vir ter com ele, exclama: « Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo » (Jn 1,29). É significativo que a mesma expressão apareça, sempre que celebramos a Santa Missa, no convite do sacerdote para nos abeirarmos do altar: « Felizes os convidados para a ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo ». Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, que Se ofereceu espontaneamente a Si mesmo em sacrifício por nós, realizando assim a nova e eterna aliança. A Eucaristia contém nela esta novidade radical, que nos é oferecida em cada celebração.(19)

18. Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005) : AAS 98 (2006), 228.
19. Cf. Propositio 3.


A instituição da Eucaristia


10 Deste modo, a nossa reflexão foi deter-se na instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. O facto teve lugar no âmbito duma ceia ritual, que constituía o memorial do acontecimento fundador do povo de Israel: a libertação da escravidão do Egipto. Esta ceia ritual, associada com a imolação dos cordeiros (Ex 12,1-28 Ex 12,43-51), era memória do passado, mas ao mesmo tempo também memória profética, ou seja, anúncio duma libertação futura; de facto, o povo experimentara que aquela libertação não tinha sido definitiva, pois a sua história ainda estava demasiadamente marcada pela escravidão e pelo pecado. O memorial da antiga libertação abria-se, assim, à súplica e ao anseio por uma salvação mais profunda, radical, universal e definitiva. É neste contexto que Jesus introduz a novidade do seu dom; na oração de louvor — a Berakah —, Ele dá graças ao Pai não só pelos grandes acontecimentos da história passada, mas também pela sua própria « exaltação ». Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica o sacrifício da cruz e a vitória da ressurreição; ao mesmo tempo, revela-Se como o verdadeiro cordeiro imolado, previsto no desígnio do Pai desde a fundação do mundo, como se lê na I Carta de Pedro (1P 1,18-20). Ao colocar o dom de Si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o sentido salvífico da sua morte e ressurreição, mistério este que se torna uma realidade renovadora da história e do mundo inteiro. Com efeito, a instituição da Eucaristia mostra como aquela morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus, acto supremo de amor e libertação definitiva da humanidade do mal.

A figura deu lugar à Verdade


11 Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum) radical no âmbito da antiga ceia sacrificial hebraica. Uma tal ceia, nós, cristãos, já não temos necessidade de a repetir. Como justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que anunciava as realidades futuras cedeu agora o lugar à própria Verdade. O antigo rito consumou-se e ficou definitivamente superado mediante o dom de amor do Filho de Deus encarnado. O alimento da verdade, Cristo imolado por nós, pôs termo às figuras (dat figuris terminum).(20) Com a sua ordem « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22,19 1Co 11,25), pede-nos para corresponder ao seu dom e representá-Lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor manifesta, por assim dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha este dom desenvolvendo, sob a guia do Espírito Santo, a forma litúrgica do sacramento. De facto, o memorial do seu dom perfeito não consiste na simples repetição da Última Ceia, mas propriamente na Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristão. Assim Jesus deixou-nos a missão de entrar na sua « hora »: « A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação ».(21) Ele « arrasta-nos para dentro de Si ».(22) A conversão substancial do pão e do vinho no seu corpo e no seu sangue insere dentro da criação o princípio duma mudança radical, como uma espécie de « fissão nuclear » (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós), verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo de transformação da realidade, cujo termo último é a transfiguração do mundo inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1Co 15,28).

20. Cf. Breviário Romano: Hino do Ofício de Leituras, na solenidade do Corpo de Deus.
21. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005) : AAS 98 (2006), 228.
22. Cf. Bento XVI, Homilia na Esplanada de Marienfeld (21 de Agosto de 2005): AAS 97 (2005), 891-892.



O Espírito Santo e a Eucaristia


Jesus e o Espírito Santo


12 Com a sua palavra e com o pão e o vinho, o próprio Senhor nos ofereceu os elementos essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, é chamada a celebrar o banquete eucarístico dia após dia em memória d'Ele. Deste modo, ela insere o sacrifício redentor do seu Esposo na história dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as culturas. Este grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, desenvolve no tempo e no espaço.(23) A propósito, é necessário despertar em nós a consciência da função decisiva que exerce o Espírito Santo no desenvolvimento da forma litúrgica e no aprofundamento dos mistérios divinos. O Paráclito, primeiro dom concedido aos crentes,(24) activo já na criação (Gn 1,2), está presente em plenitude na vida inteira do Verbo encarnado: com efeito, Jesus Cristo é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (Mt 1,18 Lc 1,35); no início da sua missão pública, nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba (Mt 3,16 e par.); neste mesmo Espírito, age, fala e exulta (Lc 10,21); e é n'Ele que Jesus pode oferecer-Se a Si mesmo (He 9,14). No chamado « discurso de despedida » referido por João, Jesus põe claramente em relação o dom da sua vida no mistério pascal com o dom do Espírito aos Seus (Jn 16,7). Depois de ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixão, pode derramar o Espírito (Jn 20,22), tornando os seus discípulos participantes da mesma missão d'Ele (Jn 20,21). Em seguida, será o Espírito que ensina aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo tinha dito (Jn 14,26), porque compete a Ele, enquanto Espírito da verdade (Jn 15,26), introduzir os discípulos na verdade total (Jn 16,13). Segundo narram os Actos, o Espírito desce sobre os Apóstolos reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes (Ac 2,1-4), e impele-os para a missão de anunciar a boa nova a todos os povos. Portanto, é em virtude da acção do Espírito que o próprio Cristo continua presente e activo na sua Igreja, a partir do seu centro vital que é a Eucaristia.

23. Cf. Propositio 3.
24. Cf. Missal Romano: Oração Eucarística IV.

Espírito Santo e celebração eucarística


13 Neste horizonte, compreende-se a função decisiva que tem o Espírito Santo na celebração eucarística e, de modo particular, no que se refere à transubstanciação. É fácil de comprovar a consciência disto mesmo nos Padres da Igreja; nas suas Catequeses, São Cirilo de Jerusalém recorda que « invocamos Deus misericordioso para que envie o seu Santo Espírito sobre as oblações que apresentamos a fim de Ele transformar o pão em corpo de Cristo e o vinho em sangue de Cristo. O que o Espírito Santo toca, é santificado e transformado totalmente ».(25) Também São João Crisóstomo assinala que o sacerdote invoca o Espírito Santo quando celebra o Sacrifício: (26) à semelhança de Elias, o ministro atrai o Espírito Santo para que, « descendo a graça sobre a vítima, se incendeiem por meio dela as almas de todos ».(27) É extremamente necessária, para a vida espiritual dos fiéis, uma consciência mais clara da riqueza da anáfora: esta, juntamente com as palavras pronunciadas por Cristo na Última Ceia, contém a epiclese, que é invocação ao Pai para que faça descer o dom do Espírito a fim de o pão e o vinho se tornarem o corpo e o sangue de Jesus Cristo, e para que « a comunidade inteira se torne cada vez mais corpo de Cristo ».(28) O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons do pão e do vinho colocados sobre o altar, é o mesmo que reúne os fiéis « num só corpo », tornando-os uma oferta espiritual agradável ao Pai.(29)

25. Catequese 23, 7: PG 33, 1114s.
26. Cf. Sobre o sacerdócio, 6, 4: PG 48, 681.
27. Ibid., 3, 4: o.c., 48, 642.
28. Propositio 22.
29. Cf. Propositio 42: « Este encontro eucarístico realiza-se no Espírito Santo, que nos transforma e santifica. Ele desperta no discípulo a vontade decidida de anunciar aos outros, com desassombro, tudo o que ouviu e viveu, para conduzi-los, também a eles, ao mesmo encontro com Cristo. Deste modo o discípulo, enviado pela Igreja, abre-se a uma missão sem fronteiras ».



Eucaristia e Igreja


Eucaristia, princípio causal da Igreja


14 Através do sacramento eucarístico, Jesus compromete os fiéis na sua própria « hora »; mostra-nos assim a ligação que quis entre Ele mesmo e nós, entre a sua pessoa e a Igreja. De facto, o próprio Cristo, no sacrifício da cruz, gerou a Igreja como sua esposa e seu corpo. Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhança que há entre a origem de Eva do lado de Adão adormecido (Gn 2,21-23) e a da nova Eva, a Igreja, do lado aberto de Cristo mergulhado no sono da morte: do seu lado trespassado — narra João — saiu sangue e água (Jn 19,34), símbolo dos sacramentos.(30) Um olhar contemplativo para « Aquele que trespassaram » (Jn 19,37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia e a Igreja. Com efeito, esta « vive da Eucaristia ».(31) Uma vez que nela se torna presente o sacrifício redentor de Cristo, temos de reconhecer antes de mais que « existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja ».(32) A Eucaristia é Cristo que Se dá a nós, edificando-nos continuamente como seu corpo. Portanto, na sugestiva circularidade entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a Eucaristia,(33) a causalidade primária está expressa na primeira fórmula: a Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia, precisamente porque o próprio Cristo Se deu primeiro a ela no sacrifício da Cruz. A possibilidade que a Igreja tem de « fazer » a Eucaristia está radicada totalmente na doação que Jesus lhe fez de Si mesmo. Também este aspecto nos persuade de quão verdadeira seja a frase de São João: « Ele amou-nos primeiro » (1Jn 4,19). Deste modo, também nós confessamos, em cada celebração, o primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da Igreja, revela em última análise a precedência não só cronológica mas também ontológica do amor de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro.

30. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 3. Veja-se, por exemplo, São João Crisóstomo, Catequeses 3, 13-19: SC 50, 174-177.
31. João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), EE 1: AAS 95 (2003), 433.
32. Ibid., EE 21: o.c., 447.
33. Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), RH 20: AAS 71 (1979), 309-316; Carta enc. Dominicae Cenae (24 de Fevereiro de 1980), 4: AAS 72 (1980), 119-121.



Eucaristia e comunhão eclesial


15 A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras — corpus Christi — o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo.(34) Bem atestado na tradição, este dado faz crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-Se a Si mesmo em sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistério da Igreja. É significativo o modo como a Oração Eucarística II, ao invocar o Paráclito, formula a prece pela unidade da Igreja: « ... participando no corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num só corpo ». Esta passagem ajuda a compreender como a eficácia (res) do sacramento eucarístico seja a unidade dos fiéis na comunhão eclesial. Assim, a Eucaristia aparece na raiz da Igreja como mistério de comunhão.(35)

O servo de Deus João Paulo II, na sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, tinha já chamado a atenção para a relação entre Eucaristia e communio: falou do memorial de Cristo como sendo a « suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja ».(36) A unidade da comunhão eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades cristãs e renova-se no acto eucarístico que as une e diferencia em Igrejas particulares, « in quibus et ex quibus una et unica Ecclesia catholica exsistit – nas quais e pelas quais existe a Igreja Católica, una e única ».(37) É precisamente a realidade da única Eucaristia celebrada em cada diocese ao redor do respectivo Bispo que nos faz compreender como as próprias Igrejas particulares subsistam in e ex Ecclesia. De facto, « a unicidade e indivisibilidade do corpo eucarístico do Senhor implicam a unicidade do seu corpo místico, que é a Igreja una e indivisível. Do centro eucarístico surge a necessária abertura de cada comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos braços abertos do Senhor, consegue-se a inserção no seu corpo, único e indiviso ».(38) Por este motivo, na celebração da Eucaristia, cada fiel encontra-se na sua Igreja, isto é, na Igreja de Cristo. Nesta perspectiva eucarística, adequadamente entendida, a comunhão eclesial revela-se realidade católica por sua natureza.(39) O facto de sublinhar esta raiz eucarística da comunhão eclesial pode contribuir eficazmente também para o diálogo ecuménico com as Igrejas e com as Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Sé de Pedro. Na realidade, a Eucaristia estabelece objectivamente um forte vínculo de unidade entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, que conservaram genuína e integralmente a natureza do mistério da Eucaristia. Ao mesmo tempo, a relevância dada ao carácter eclesial da Eucaristia pode tornar-se elemento privilegiado também no diálogo com as Comunidades nascidas da Reforma.(40)

34. Cf. Propositio 5.
35. Cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologiae,
III 80,4.
36. N. 38: AAS 95 (2003), 458.
37. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 23.
38. Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11: AAS 85 (1993), 844-845.
39. Propositio 5: « O termo ‘‘católico'' exprime a universalidade resultante da unidade que a Eucaristia, celebrada em cada Igreja, fomenta e constrói. Assim, as Igrejas particulares na Igreja universal têm, na Eucaristia, a missão de tornar visível a sua própria unidade e a sua diversidade. Este laço de amor fraterno deixa transparecer a comunhão trinitária. Os concílios e os sínodos exprimem na história este aspecto fraterno da Igreja ».
40. Cf. Ibid., 5.



Eucaristia e Sacramentos


Sacramentalidade da Igreja


16 O Concílio Vaticano II lembrou que « os restantes sacramentos, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo: assim são eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas ».(41) Esta relação íntima da Eucaristia com os demais sacramentos e com a existência cristã compreende-se, na sua raiz, quando se contempla o mistério da própria Igreja como sacramento.(42) A este respeito, o referido Concílio afirmou que « a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(43) Ela, enquanto « povo — como diz São Cipriano — reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo »,(44) é sacramento da comunhão trinitária.

O facto de a Igreja ser « universal sacramento da salvação »(45) mostra que a « economia » sacramental determina, em última análise, o modo como Jesus Cristo único Salvador, por meio do Espírito, alcança a nossa vida na especificidade das suas circunstâncias. A Igreja recebe-se e simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graça de Deus influencia concretamente a existência dos fiéis para que toda a sua vida, redimida por Cristo, se torne culto agradável a Deus. Nesta perspectiva, desejo sublinhar aqui alguns elementos, assinalados pelos padres sinodais, que podem ajudar a identificar a relação dos diversos sacramentos com o mistério eucarístico.

41. Decr. sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum ordinis,
PO 5.
42. Cf. Propositio 14.
43. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 1.
44. De oratione dominica, 23: PL 4, 553.
45. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 48; veja-se também LG 9.




Sacramentum caritatis PT