Spe salvi PT 31


31 Mais ainda: precisamos das esperanças – menores ou maiores – que, dia após dia, nos mantêm a caminho. Mas, sem a grande esperança que deve superar tudo o resto, aquelas não bastam. Esta grande esperança só pode ser Deus, que abraça o universo e nos pode propor e dar aquilo que, sozinhos, não podemos conseguir. Precisamente o ser gratificado com um dom faz parte da esperança. Deus é o fundamento da esperança – não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um rosto humano e que nos amou até ao fim: cada indivíduo e a humanidade no seu conjunto. O seu reino não é um além imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos alcança. Somente o seu amor nos dá a possibilidade de perseverar com toda a sobriedade dia após dia, sem perder o ardor da esperança, num mundo que, por sua natureza, é imperfeito. E, ao mesmo tempo, o seu amor é para nós a garantia de que existe aquilo que intuímos só vagamente e, contudo, no íntimo esperamos: a vida que é « verdadeiramente » vida. Procuremos concretizar ainda mais esta ideia na última parte, dirigindo a nossa atenção para alguns « lugares » de aprendizagem prática e de exercício da esperança.



« Lugares » de aprendizagem e de exercício da esperança


I. A oração como escola da esperança

32 Primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança é a oração. Quando já ninguém me escuta, Deus ainda me ouve. Quando já não posso falar com ninguém, nem invocar mais ninguém, a Deus sempre posso falar. Se não há mais ninguém que me possa ajudar – por tratar-se de uma necessidade ou de uma expectativa que supera a capacidade humana de esperar – Ele pode ajudar-me.[25] Se me encontro confinado numa extrema solidão...o orante jamais está totalmente só. Dos seus 13 anos de prisão, 9 dos quais em isolamento, o inesquecível Cardeal Nguyen Van Thuan deixou-nos um livrinho precioso: Orações de esperança. Durante 13 anos de prisão, numa situação de desespero aparentemente total, a escuta de Deus, o poder falar-Lhe, tornou-se para ele uma força crescente de esperança, que, depois da sua libertação, lhe permitiu ser para os homens em todo o mundo uma testemunha da esperança, daquela grande esperança que não declina, mesmo nas noites da solidão.

[25] Cf. Catecismo da Igreja Católica,
CEC 2657.


33 De forma muito bela Agostinho ilustrou a relação íntima entre oração e esperança, numa homilia sobre a Primeira Carta de João. Ele define a oração como um exercício do desejo. O homem foi criado para uma realidade grande ou seja, para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas, o seu coração é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado. « Assim procede Deus: diferindo a sua promessa, faz aumentar o desejo; e com o desejo, dilata a alma, tornando-a mais apta a receber os seus dons ». Aqui Agostinho pensa em S. Paulo que, de si mesmo, afirma viver inclinado para as coisas que hão-de vir (Ph 3,13). Depois usa uma imagem muito bela para descrever este processo de dilatação e preparação do coração humano. « Supõe que Deus queira encher-te de mel (símbolo da ternura de Deus e da sua bondade). Se tu, porém, estás cheio de vinagre, onde vais pôr o mel? » O vaso, ou seja o coração, deve primeiro ser dilatado e depois limpo: livre do vinagre e do seu sabor. Isto requer trabalho, faz sofrer, mas só assim se realiza o ajustamento àquilo para que somos destinados.[26] Apesar de Agostinho falar directamente só da receptividade para Deus, resulta claro, no entanto, que o homem neste esforço, com que se livra do vinagre e do seu sabor amargo, não se torna livre só para Deus, mas abre-se também para os outros. De facto, só tornando-nos filhos de Deus é que podemos estar com o nosso Pai comum. Orar não significa sair da história e retirar-se para o canto privado da própria felicidade. O modo correcto de rezar é um processo de purificação interior que nos torna aptos para Deus e, precisamente desta forma, aptos também para os homens. Na oração, o homem deve aprender o que verdadeiramente pode pedir a Deus, o que é digno de Deus. Deve aprender que não pode rezar contra o outro. Deve aprender que não pode pedir as coisas superficiais e cómodas que de momento deseja – a pequena esperança equivocada que o leva para longe de Deus. Deve purificar os seus desejos e as suas esperanças. Deve livrar-se das mentiras secretas com que se engana a si próprio: Deus perscruta-as, e o contacto com Deus obriga o homem a reconhecê-las também. « Quem poderá discernir todos os erros? Purificai-me das faltas escondidas », reza o Salmista (Ps 19,13 /18). O não reconhecimento da culpa, a ilusão de inocência não me justifica nem me salva, porque o entorpecimento da consciência, a incapacidade de reconhecer em mim o mal enquanto tal é culpa minha. Se Deus não existe, talvez me deva refugiar em tais mentiras, porque não há ninguém que me possa perdoar, ninguém que seja a medida verdadeira. Pelo contrário, o encontro com Deus desperta a minha consciência, para que deixe de fornecer-me uma autojustificação, cesse de ser um reflexo de mim mesmo e dos contemporâneos que me condicionam, mas se torne capacidade de escuta do mesmo Bem.

[26] Cf. In 1 Joannis 4,6: PL 35, 2008s.


34 Para que a oração desenvolva esta força purificadora, deve, por um lado, ser muito pessoal, um confronto do meu eu com Deus, com o Deus vivo; mas, por outro, deve ser incessantemente guiada e iluminada pelas grandes orações da Igreja e dos santos, pela oração litúrgica, na qual o Senhor nos ensina continuamente a rezar de modo justo. O Cardeal Nyugen Van Thuan, contou no seu livro de Exercícios Espirituais, como na sua vida tinha havido longos períodos de incapacidade para rezar, e como ele se tinha agarrado às palavras de oração da Igreja: ao Pai Nosso, à Ave Maria e às orações da Liturgia.[27] Na oração, deve haver sempre este entrelaçamento de oração pública e oração pessoal. Assim podemos falar a Deus, assim Deus fala a nós. Deste modo, realizam-se em nós as purificações, mediante as quais nos tornamos capazes de Deus e idóneos ao serviço dos homens. Assim tornamo-nos capazes da grande esperança e ministros da esperança para os outros: a esperança em sentido cristão é sempre esperança também para os outros. E é esperança activa, que nos faz lutar para que as coisas não caminhem para o « fim perverso ». É esperança activa precisamente também no sentido de mantermos o mundo aberto a Deus. Somente assim, ela permanece também uma esperança verdadeiramente humana.

[27] Testemunhas da esperança, Città Nuova 2000, 156s.


II. Agir e sofrer como lugares de aprendizagem da esperança

35 Toda a acção séria e recta do homem é esperança em acto. É-o antes de tudo no sentido de que assim procuramos concretizar as nossas esperanças menores ou maiores: resolver este ou aquele assunto que é importante, para prosseguir na caminhada da vida; com o nosso empenho contribuir a fim de que o mundo se torne um pouco mais luminoso e humano, e assim se abram também as portas para o futuro. Mas o esforço quotidiano pela continuação da nossa vida e pelo futuro da comunidade cansa-nos ou transforma-se em fanatismo, se não nos ilumina a luz daquela grande esperança que não pode ser destruída sequer pelos pequenos fracassos e pela falência em vicissitudes de alcance histórico. Se não podemos esperar mais do que é realmente alcançável de cada vez e de quanto nos seja possível oferecerem as autoridades políticas e económicas, a nossa vida arrisca-se a ficar bem depressa sem esperança. É importante saber: eu posso sempre continuar a esperar, ainda que pela minha vida ou pelo momento histórico que estou a viver aparentemente não tenha mais qualquer motivo para esperar. Só a grande esperança-certeza de que, não obstante todos os fracassos, a minha vida pessoal e a história no seu conjunto estão conservadas no poder indestrutível do Amor e, graças a isso e por isso, possuem sentido e importância, só uma tal esperança pode, naquele caso, dar ainda a coragem de agir e de continuar. Certamente, não podemos « construir » o reino de Deus com as nossas forças; o que construímos permanece sempre reino do homem com todos os limites próprios da natureza humana. O reino de Deus é um dom, e por isso mesmo é grande e belo, constituindo a resposta à esperança. Nem podemos – para usar a terminologia clássica – « merecer » o céu com as nossas obras. Este é sempre mais do que aquilo que merecemos, tal como o ser amados nunca é algo « merecido », mas um dom. Porém, com toda a nossa consciência da « mais valia » do céu, permanece igualmente verdade que o nosso agir não é indiferente diante de Deus e, portanto, também não o é para o desenrolar da história. Podemos abrir-nos nós mesmos e o mundo ao ingresso de Deus: da verdade, do amor e do bem. É o que fizeram os santos que, como « colaboradores de Deus » contribuíram para a salvação do mundo (cf. 1Co 3,9 1Th 3,2). Temos a possibilidade de livrar a nossa vida e o mundo dos venenos e contaminações que poderiam destruir o presente e o futuro. Podemos descobrir e manter limpas as fontes da criação e assim, juntamente com a criação que nos precede como dom recebido, fazer o que é justo conforme as suas intrínsecas exigências e a sua finalidade. Isto conserva um sentido, mesmo quando, aparentemente, não temos sucesso ou parecemos impotentes face à hegemonia de forças hostis. Assim, por um lado, da nossa acção nasce esperança para nós e para os outros; mas, ao mesmo tempo, é a grande esperança apoiada nas promessas de Deus que, tanto nos momentos bons como nos maus, nos dá coragem e orienta o nosso agir.


36 Tal como o agir, também o sofrimento faz parte da existência humana. Este deriva, por um lado, da nossa finitude e, por outro, do volume de culpa que se acumulou ao longo da história e, mesmo actualmente, cresce de modo irreprimível. Certamente é preciso fazer tudo o possível para diminuir o sofrimento: impedir, na medida do possível, o sofrimento dos inocentes; amenizar as dores; ajudar a superar os sofrimentos psíquicos. Todos estes são deveres tanto da justiça como da caridade, que se inserem nas exigências fundamentais da existência cristã e de cada vida verdadeiramente humana. Na luta contra a dor física conseguiu-se realizar grandes progressos; mas o sofrimento dos inocentes e inclusive os sofrimentos psíquicos aumentaram durante os últimos decénios. Devemos – é verdade – fazer tudo por superar o sofrimento, mas eliminá-lo completamente do mundo não entra nas nossas possibilidades, simplesmente porque não podemos desfazer-nos da nossa finitude e porque nenhum de nós é capaz de eliminar o poder do mal, da culpa que – como constatámos – é fonte contínua de sofrimento. Isto só Deus o poderia fazer: só um Deus que pessoalmente entra na história fazendo-Se homem e sofre nela. Nós sabemos que este Deus existe e que por isso este poder que « tira os pecados do mundo » (Jn 1,29) está presente no mundo. Com a fé na existência deste poder, surgiu na história a esperança da cura do mundo. Mas, trata-se precisamente de esperança, e não ainda de cumprimento; esperança que nos dá a coragem de nos colocarmos da parte do bem, inclusive onde a realidade parece sem esperança, cientes de que, olhando o desenrolar da história tal como nos aparece exteriormente, o poder da culpa vai continuar uma presença terrível ainda no futuro.


37 Voltemos ao nosso tema. Podemos procurar limitar o sofrimento e lutar contra ele, mas não podemos eliminá-lo. Precisamente onde os homens, na tentativa de evitar qualquer sofrimento, procuram esquivar-se de tudo o que poderia significar padecimento, onde querem evitar a canseira e o sofrimento por causa da verdade, do amor, do bem, descambam numa vida vazia, na qual provavelmente já quase não existe a dor, mas experimenta-se muito mais a obscura sensação da falta de sentido e da solidão. Não é o evitar o sofrimento, a fuga diante da dor, que cura o homem, mas a capacidade de aceitar a tribulação e nela amadurecer, de encontrar o seu sentido através da união com Cristo, que sofreu com infinito amor. Neste contexto, desejo citar algumas frases de uma carta do mártir vietnamita Paulo Le-Bao-Thin († 1857), onde é clara esta transformação do sofrimento mediante a força da esperança que provém da fé. « Eu, Paulo, prisioneiro pelo nome de Cristo, quero falar-vos das tribulações que suporto cada dia, para que, inflamados no amor de Deus, comigo louveis o Senhor, porque é eterna a sua misericórdia (Ps 136/135). Este cárcere é realmente a imagem do inferno eterno: além de suplícios de todo o género, tais como algemas, grilhões, cadeias de ferro, tenho de suportar o ódio, as agressões, calúnias, palavras indecorosas, repreensões, maldades, juramentos falsos, e, além disso, as angústias e a tristeza. Mas Deus, que outrora libertou os três jovens da fornalha ardente, está sempre comigo e libertou-me destas tribulações, convertendo-as em suave doçura, porque é eterna a sua misericórdia. Imerso nestes tormentos, que costumam aterrorizar os outros, pela graça de Deus sinto-me alegre e contente, porque não estou só, mas estou com Cristo. [...] Como posso eu suportar este espectáculo, ao ver todos os dias os imperadores, mandarins e seus guardas blasfemar o vosso santo nome, Senhor, que estais sentado sobre os Querubins (cf. Ps 80,2/79, 2) e os Serafins? Vede como a vossas cruz é calcada aos pés dos pagãos! Onde está a vossa glória? Ao ver tudo isto, sinto inflamar-se o meu coração no vosso amor e prefiro ser dilacerado e morrer em testemunho da vossa infinita bondade. Mostrai, Senhor, o vosso poder, salvai-me e amparai-me, para que na minha fraqueza se manifeste a vossa força e seja glorificada diante dos gentios [...] Ouvindo tudo isto, caríssimos irmãos, tende coragem e alegrai-vos, dai graças eternamente a Deus, de quem procedem todos os bens, bendizei comigo ao Senhor, porque é eterna a sua misericórdia [...] Escrevo todas estas coisas, para que estejam unidas a vossa e a minha fé. No meio da tempestade, lanço a âncora que me permitirá subir até ao trono de Deus: a esperança viva que está no meu coração ».[28] Esta é uma carta do « inferno ». Nela se mostra todo o horror de um campo de concentração, onde aos tormentos infligidos pelos tiranos se vem juntar o desencadeamento do mal nas mesmas vítimas que, deste modo, se tornam novos instrumentos da crueldade dos algozes. É uma carta do inferno, mas nela tem cumprimento a palavra do Salmo: « Se subir aos céus, lá Vos encontro, se descer aos infernos, igualmente. [...] Se eu disser: “ao menos as trevas me cobrirão”, [...] nem sequer as trevas serão bastante escuras para Vós, e a noite será clara como o dia, tanto faz a luz como as trevas » (Ps 139,8-12/138; cf. também Ps 23,4/22). Cristo desceu aos « infernos » ficando assim perto de quem é nele lançado, transformando para ele as trevas em luz. O sofrimento, os tormentos continuam terríveis e quase insuportáveis. Surgiu, porém, a estrela da esperança, a âncora do coração chega até o trono de Deus. Não se desencadeia o mal no homem, mas vence a luz: o sofrimento – sem deixar de o ser – torna-se, apesar de tudo, canto de louvor.

[28] Breviário Romano, Ofício das Leituras, 24 de Novembro.


38 A grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre. Isto vale tanto para o indivíduo como para a sociedade. Uma sociedade que não consegue aceitar os que sofrem e não é capaz de contribuir, mediante a com-paixão, para fazer com que o sofrimento seja compartilhado e assumido mesmo interiormente é uma sociedade cruel e desumana. A sociedade, porém, não pode aceitar os que sofrem e apoiá-los no seu sofrimento, se os próprios indivíduos não são capazes disso mesmo; e, por outro lado, o indivíduo não pode aceitar o sofrimento do outro, se ele pessoalmente não consegue encontrar no sofrimento um sentido, um caminho de purificação e de amadurecimento, um caminho de esperança. Aceitar o outro que sofre significa, de facto, assumir de alguma forma o seu sofrimento, de tal modo que este se torna também meu. Mas, precisamente porque agora se tornou sofrimento compartilhado, no qual há a presença do outro, este sofrimento é penetrado pela luz do amor. A palavra latina con-solatio, consolação, exprime isto mesmo de forma muito bela sugerindo um estar-com na solidão, que então deixa der ser solidão. Mas, a capacidade de aceitar o sofrimento por amor do bem, da verdade e da justiça é também constitutiva da grandeza da humanidade, porque se, em definitiva, o meu bem-estar, a minha incolumidade é mais importante do que a verdade e a justiça, então vigora o domínio do mais forte; então reinam a violência e a mentira. A verdade e a justiça devem estar acima da minha comodidade e incolumidade física, senão a minha própria vida torna-se uma mentira. E, por fim, também o « sim » ao amor é fonte de sofrimento, porque o amor exige sempre expropriações do meu eu, nas quais me deixo podar e ferir. O amor não pode de modo algum existir sem esta renúncia mesmo dolorosa a mim mesmo, senão torna-se puro egoísmo, anulando-se deste modo a si próprio enquanto tal.


39 Sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por amor da verdade e da justiça; sofrer por causa do amor e para se tornar uma pessoa que ama verdadeiramente: estes são elementos fundamentais de humanidade, o seu abandono destruiria o mesmo homem. Entretanto levanta-se uma vez mais a questão: somos capazes disto? O outro é suficientemente importante, para que por ele eu me torne uma pessoa que sofre? Para mim, a verdade é tão importante que compensa o sofrimento? A promessa do amor é assim tão grande que justifique o dom de mim mesmo? Na história da humanidade, cabe à fé cristã precisamente o mérito de ter suscitado no homem, de maneira nova e a uma nova profundidade, a capacidade dos referidos modos de sofrer que são decisivos para a sua humanidade. A fé cristã mostrou-nos que verdade, justiça, amor não são simplesmente ideais, mas realidades de imensa densidade. Com efeito, mostrou-nos que Deus – a Verdade e o Amor em pessoa – quis sofrer por nós e connosco. Bernardo de Claraval cunhou esta frase maravilhosa: Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis [29] – Deus não pode padecer, mas pode-se compadecer. O homem tem para Deus um valor tão grande que Ele mesmo Se fez homem para poder padecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos é demonstrado na narração da Paixão de Jesus. A partir de lá entrou em todo o sofrimento humano alguém que partilha o sofrimento e a sua suportação; a partir de lá se propaga em todo o sofrimento a con-solatio, a consolação do amor solidário de Deus, surgindo assim a estrela da esperança. Certamente, nos nossos inúmeros sofrimentos e provas sempre temos necessidade também das nossas pequenas ou grandes esperanças – de uma visita amiga, da cura das feridas internas e externas, da solução positiva de uma crise, etc. Nas provações menores, estes tipos de esperança podem mesmo ser suficientes. Mas, nas provações verdadeiramente graves, quando tenho de assumir a decisão definitiva de antepor a verdade ao bem-estar, à carreira e à propriedade, a certeza da verdadeira grande esperança, de que falámos, faz-se necessária. Para isto, precisamos também de testemunhas, de mártires, que se entregaram totalmente, para que no-lo manifestem, dia após dia. Temos necessidade deles para preferirmos, mesmo nas pequenas alternativas do dia-a-dia, o bem à comodidade, sabendo que precisamente assim vivemos a vida de verdade. Digamo-lo uma vez mais: a capacidade de sofrer por amor da verdade é medida de humanidade. No entanto, esta capacidade de sofrer depende do género e da grandeza da esperança que trazemos dentro de nós e sobre a qual construímos. Os santos puderam percorrer o grande caminho do ser-homem no modo como Cristo o percorreu antes de nós, porque estavam repletos da grande esperança.

[29] Sermones in Cant., Serm. 26,5: PL 183, 906.


40 Gostaria de acrescentar ainda uma pequena observação, não sem importância para os acontecimentos de todos os dias. Fazia parte duma forma de devoção – talvez menos praticada hoje, mas não vai ainda há muito tempo que era bastante difundida – a ideia de poder « oferecer » as pequenas canseiras da vida quotidiana, que nos ferem com frequência como alfinetadas mais ou menos incómodas, dando-lhes assim um sentido. Nesta devoção, houve sem dúvida coisas exageradas e talvez mesmo estranhas, mas é preciso interrogar-se se não havia de algum modo contido nela algo de essencial que poderia servir de ajuda. O que significa « oferecer »? Estas pessoas estavam convencidas de poderem inserir no grande com-padecer de Cristo as suas pequenas canseiras, que entravam assim, de algum modo, a fazer parte do tesouro de compaixão de que o género humano necessita. Deste modo, também as mesmas pequenas moléstias do dia-a-dia poderiam adquirir um sentido e contribuir para a economia do bem, do amor entre os homens. Deveríamos talvez interrogar-nos se verdadeiramente isto não poderia voltar a ser uma perspectiva sensata também para nós.


III. O Juízo como lugar de aprendizagem e de exercício da esperança

41 No grande Credo da Igreja, a parte central – que trata do mistério de Cristo a partir da sua geração eterna no Pai e do nascimento temporal da Virgem Maria, passando pela cruz e a ressurreição até ao seu retorno – conclui com as palavras: « ... de novo há-de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos ». Já desde os primeiros tempos, a perspectiva do Juízo influenciou os cristãos até na sua própria vida quotidiana enquanto critério segundo o qual ordenar a vida presente, enquanto apelo à sua consciência e, ao mesmo tempo, enquanto esperança na justiça de Deus. A fé em Cristo nunca se limitou a olhar só para trás nem só para o alto, mas olhou sempre também para a frente para a hora da justiça que o Senhor repetidas vezes preanunciara. Este olhar para diante conferiu ao cristianismo a sua importância para o presente. Na configuração dos edifícios sacros cristãos, que queriam tornar visível a vastidão histórica e cósmica da fé em Cristo, tornou-se habitual representar, no lado oriental, o Senhor que volta como rei – a imagem da esperança –, e no lado ocidental, o Juízo final como imagem da responsabilidade pela nossa vida, uma representação que apontava e acompanhava precisamente os fiéis na sua caminhada diária. Na evolução da iconografia, porém, foise dando cada vez mais relevo ao aspecto ameaçador e lúgubre do Juízo, que obviamente fascinava os artistas mais do que o esplendor da esperança que acabava, com frequência, excessivamente escondido por debaixo da ameaça.


42 Na época moderna, o pensamento do Juízo final diluiu-se: a fé cristã é caracterizada e orientada sobretudo para a salvação pessoal da alma; ao contrário, a reflexão sobre a história universal está em grande parte dominada pela ideia do progresso. Todavia, o conteúdo fundamental da expectativa do Juízo não desapareceu pura e simplesmente. Agora, porém, assume uma forma totalmente distinta. O ateísmo dos séculos XIX e XX é, de acordo com as suas raízes e finalidade, um moralismo: um protesto contra as injustiças do mundo e da história universal. Um mundo, onde exista uma tal dimensão de injustiça, de sofrimento dos inocentes e de cinismo do poder, não pode ser a obra de um Deus bom. O Deus que tivesse a responsabilidade de um mundo assim, não seria um Deus justo e menos ainda um Deus bom. É em nome da moral que é preciso contestar este Deus. Visto que não há um Deus que cria justiça, parece que o próprio homem seja agora chamado a estabelecer a justiça. Se diante do sofrimento deste mundo o protesto contra Deus é compreensível, a pretensão de a humanidade poder e dever fazer aquilo que nenhum Deus faz nem é capaz de fazer, é presunçosa e intrinsecamente não verdadeira. Não é por acaso que desta premissa tenham resultado as maiores crueldades e violações da justiça, mas funda-se na falsidade intrínseca desta pretensão. Um mundo que deve criar a justiça por sua conta, é um mundo sem esperança. Nada e ninguém responde pelo sofrimento dos séculos. Nada e ninguém garante que o cinismo do poder – independentemente do revestimento ideológico sedutor com que se apresente – não continue a imperar no mundo. Foi assim que os grandes pensadores da escola de Francoforte, Max Horkheimer e Teodoro W. Adorno, criticaram tanto o ateísmo como o teísmo. Horkheimer excluiu radicalmente que se possa encontrar qualquer substitutivo imanente para Deus, rejeitando porém, ao mesmo tempo, a imagem do Deus bom e justo. Numa radicalização extrema da proibição das imagens no Antigo Testamento, ele fala da « nostalgia do totalmente Outro » que permanece inacessível – um grito do desejo dirigido à história universal. Adorno também se ateve decididamente a esta renúncia de toda a imagem que exclui, precisamente, também a « imagem » do Deus que ama. Mas ele sempre sublinhou esta dialética « negativa », afirmando que a justiça, uma verdadeira justiça, requereria um mundo « onde não só fosse anulado o sofrimento presente, mas também revogado o que passou irrevogavelmente. ».[30] Isto, porém, significaria – expresso em símbolos positivos e, portanto, para ele inadequados – que não pode haver justiça sem ressurreição dos mortos e, concretamente, sem a sua ressurreição corporal. Todavia uma tal perspectiva, comportaria « a ressurreição da carne, um dado que para o idealismo, para o reino do espírito absoluto, é totalmente estranho ».[31]

[30] Negative Dialektik (1966), Terceira parte, III, 11, em: Gesammelte Schriften Vol. VI, Frankfurt/Main 1973, 395.
[31] Ibid., Segunda parte, 207.


43 Da rigorosa renúncia a qualquer imagem, que faz parte do primeiro Mandamento de Deus (cf. Ex 20,4), também o cristão pode e deve aprender sempre de novo. A verdade da teologia negativa foi evidenciada pelo IV Concílio de Latrão, ao declarar explicitamente que, por grande que seja a semelhança verificada entre o Criador e a criatura, sempre maior é a diferença entre ambos.[32] Para o crente, no entanto, a renúncia a qualquer imagem não pode ir até ao ponto em que se devia deter, como gostariam Horkheimer e Adorno, no « não » a ambas as teses: ao teísmo e ao ateísmo. O mesmo Deus fez-Se uma « imagem »: em Cristo que Se fez homem. N'Ele, o Crucificado, a negação de imagens erradas de Deus é levada ao extremo. Agora, Deus revela a sua Face precisamente na figura do servo sofredor que partilha a condição do homem abandonado por Deus, tomando-a sobre si. Este sofredor inocente tornou-se esperança-certeza: Deus existe, e Deus sabe criar a justiça de um modo que nós não somos capazes de conceber mas que, pela fé, podemos intuir. Sim, existe a ressurreição da carne.[33] Existe uma justiça.[34] Existe a « revogação » do sofrimento passado, a reparação que restabelece o direito. Por isso, a fé no Juízo final é, primariamente, e sobretudo esperança – aquela esperança, cuja necessidade se tornou evidente justamente nas convulsões dos últimos séculos. Estou convencido de que a questão da justiça constitui o argumento essencial – em todo o caso o argumento mais forte – a favor da fé na vida eterna. A necessidade meramente individual de uma satisfação – que nos é negada nesta vida – da imortalidade do amor que anelamos, é certamente um motivo importante para crer que o homem seja feito para a eternidade; mas só em conexão com a impossibilidade de a injustiça da história ser a última palavra, é que se torna plenamente convincente a necessidade do retorno de Cristo e da nova vida.

[32] DS 806.
[33] Cf. Catecismo da Igreja Católica, CEC 988-1004.
[34] Cf. ibid., n. CEC 1040.


44 O protesto contra Deus em nome da justiça não basta. Um mundo sem Deus é um mundo sem esperança (cf. Ep 2,12). Só Deus pode criar justiça. E a fé dá-nos a certeza: Ele fá-lo. A imagem do Juízo final não é primariamente uma imagem aterradora, mas de esperança; a nosso ver, talvez mesmo a imagem decisiva da esperança. Mas não é porventura também uma imagem assustadora? Eu diria: é uma imagem que apela à responsabilidade. Portanto, uma imagem daquele susto acerca do qual, como diz Santo Hilário que todo o nosso medo tem lugar no amor.[35] Deus é justiça e cria justiça. Tal é a nossa consolação e a nossa esperança. Mas, na sua justiça, Ele é conjuntamente também graça. Isto podemos sabê-lo fixando o olhar em Cristo crucificado e ressuscitado. Ambas – justiça e graça – devem ser vistas na sua justa ligação interior. A graça não exclui a justiça. Não muda a injustiça em direito. Não é uma esponja que apaga tudo, de modo que tudo quanto se fez na terra termine por ter o mesmo valor. Contra um céu e uma graça deste tipo protestou com razão, por exemplo, Dostoëvskij no seu romance « Os irmãos Karamazov ». No fim, no banquete, eterno, não se sentarão à mesa indistintamente os malvados junto com as vítimas, como se nada tivesse acontecido. Aqui gostaria de citar um texto de Platão que exprime um pressentimento do justo juízo que, em boa parte, permanece verdadeiro e salutar também para o cristão. Embora com imagens mitológicas mas que apresentam com uma evidência inequívoca a verdade, ele diz que, no fim, as almas estarão nuas diante do juíz. Agora já não importa o que eram outrora na história, mas só aquilo que são de verdade. « Agora [o juiz] tem diante de si talvez a alma de um [...] rei ou dominador, e nada vê de são nela. Encontra-a flagelada e cheia de cicatrizes resultantes de perjúrio e injustiça [...] e está tudo torto, cheio de mentira e orgulho, e nada está direito, porque ela cresceu sem verdade. E ele vê como a alma, por causa do arbítrio, exagero, arrogância e leviandade no agir, se encheu de emproamento e infâmia. Diante de um tal espectáculo, ele envia-a imediatamente para a prisão, onde padecerá os castigos merecidos [...]. Às vezes, porém, ele vê diante de si uma alma diferente, uma alma que levou uma vida piedosa e sincera [...], compraz-se com ela e manda-a sem dúvida para as ilhas dos bem-aventurados ».[36] Jesus, na parábola do rico epulão e do pobre Lázaro (cf. Lc 16,19-31), apresentou, para nossa advertência, a imagem de uma tal alma devastada pela arrogância e opulência, que criou, ela mesma, um fosso intransponível entre si e o pobre: o fosso do encerramento dentro dos prazeres materiais; o fosso do esquecimento do outro, da incapacidade de amar, que se transforma agora numa sede ardente e já irremediável. Devemos aqui destacar que Jesus, nesta parábola, não fala do destino definitivo depois do Juízo universal, mas retoma a concepção do judaísmo antigo de uma condição intermédia entre morte e ressurreição, um estado em que falta ainda a última sentença.

[35] Cf.Tractatus super Psalmos, Sal 127, 1-3: CSEL 22, 628-630.
[36] Gorgia, 525a-526c.


45 Esta ideia do judaísmo antigo da condição intermédia inclui a opinião de que as almas não se encontram simplesmente numa espécie de custódia provisória, mas já padecem um castigo, como demonstra a parábola do rico epulão, ou, ao contrário, gozam já de formas provisórias de bem-aventurança. E, por último, não falta a noção de que, neste estado, sejam possíveis também purificações e curas, que tornam a alma madura para a comunhão com Deus. A Igreja primitiva assumiu tais ideias, a partir das quais, se desenvolveu aos poucos na Igreja ocidental a doutrina do purgatório. Não há necessidade de examinar aqui as complicadas vias históricas desta evolução; perguntemo-nos apenas de que se trata realmente. Com a morte, a opção de vida feita pelo homem torna-se definitiva; esta sua vida está diante do Juiz. A sua opção, que tomou forma ao longo de toda a vida, pode ter caracteres diversos. Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora, perfis deste género. Em tais indivíduos, não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é já isto que se indica com a palavra inferno.[37] Por outro lado, podem existir pessoas puríssimas, que se deixaram penetrar inteiramente por Deus e, consequentemente, estão totalmente abertas ao próximo – pessoas em quem a comunhão com Deus orienta desde já todo o seu ser e cuja chegada a Deus apenas leva a cumprimento aquilo que já são.[38]

[37] Cf. Catecismo da Igreja Católica,
CEC 1033-1037.
[38] Cf. ibid., CEC 1023-1029.


Spe salvi PT 31