Sollicitudo rei socialis PT 16


16 Impõe-se verificar que, apesar dos louváveis esforços feitos nos últimos dois decénios, por parte das nações mais desenvolvidas ou em vias de desenvolvimen to e das Organizações internacionais, com o objectivo de encontrar as vias para sair da situação, ou pelo menos para remediar algum dos seus sintomas, as condições se agravaram consideravelmente.

As responsabilidades deste agravamento promanam de causas diversas. Há que apontar as reais e graves omissões da parte das próprias nações em vias de desenvolvimento e, de modo especial, da parte daqueles que nas mesmas detêm o poder económico e político. Por outro lado, não se pode fingir, de modo algum, que não se vêem as responsabilidades das nações desenvolvidas, que nem sempre, ou pelo menos não suficientemente, sentiram o dever de prestar ajuda aos países afastados do mundo do bem-estar, ao qual pertencem.

Todavia, é necessário denunciar a existência de mecanismos económicos, financeiros e sociais que, embora conduzidos pela vontade dos homens, funcionam muitas vezes de maneira quase automática, tornando mais rígidas as situações de riqueza de uns e de pobreza dos outros. Estes mecanismos, manobrados - de maneira directa ou indirecta - pelos países mais desenvolvidos, com o seu próprio funcionamento favorecem os interesses de quem os manobra, mas acabam por sufocar ou condicionar as economias dos países menos desenvolvidos. Apresenta-se como necessário submeter mais adiante estes mecanismos a uma análise atenta, sob o aspecto ético-moral.

Já a Populorum Progressio previa que com tais sistemas podia aumentar a riqueza dos ricos, mantendo perdurável a miséria dos pobres. 33 Houve algo a comprovar esta previsão, com o aparecimento do chamado Quarto Mundo.

33. Cf. Carta Enc. Populorum Progressio,
PP 33: l.c., p. 273.



17 Embora a sociedade mundial ofereça aspectos de fragmentação, o que se exprime com os nomes convencionais de Primeiro, Segundo, Terceiro e mesmo Quarto Mundo, a interdependência das suas diversas partes permanece sempre muito estreita; e, quando acontece esta ser dissociada das exigências éticas, isso leva a consequências funestas para os mais fracos.

Mais ainda, esta interdependência, por uma espécie de dinâmica interna e sob o impulso de mecanismos que não se pode deixar de qualificar como perversos, provoca efeitos negativos até nos países ricos. Mesmo no interior destes países se verificam, embora em menor escala, as manifestações características do subdesenvolvimento. Sendo assim, deveria aparecer óbvio que o desenvolvimento ou se torna comum a todas as partes do mundo, ou então sofre um processo de regressão mesmo nas zonas caracterizadas por um constante progresso. Este fenómeno é particularmente indicativo da natureza do desenvolvimento autêntico: ou nele participam todas as nações do mundo, ou não será na verdade desenvolvimento.

Entre os sintomas específicos do subdesenvolvimento, que atingem de maneira crescente também os povos desenvolvidos, há dois particularmente reveladores de uma situação dramática. Em primeiro lugar, a crise de habitações (alojamento). Neste Ano Internacional das pessoas sem-tecto, proclamado pela Organização das Nações Unidas, a atenção volta-se para os milhões de seres humanos privados de uma habitação conveniente, ou até mesmo sem qualquer habitação, a fim de despertar a consciência de todos e encontrar uma solução para este grave problema, que tem consequências negativas no plano individual, familiar e social. 34

A falta de habitações verifica-se em plano universal e é devida, em grande parte, ao fenómeno sempre crescente da urbanização. 35 Até os povos mais desenvolvidos oferecem o triste espectáculo de indivíduos e de famílias que literalmente lutam para sobreviver, sem um tecto, ou com um abrigo tão precário que é como se não existisse.

A falta de habitações, que é um problema de per si muito grave, deve ser considerada como a sinal e a síntese de uma série de insuficiências económicas, sociais, culturais ou simplesmente humanas; e, tendo em conta a extensão do fenómeno, não deveria ser difícil convencermo-nos de quanto estamos longe do autêntico desenvolvimento dos povos.

34. Como é sabido, a Santa Sé associou-se à celebração deste Ano Internacional, com um especial documento da Pontifícia Comissão «Iustitia et Pax»: Que fizeste do teu irmão sem-tecto? - A Igreja perante a falta de habitações (27 de Dezembro de 1987).
35. Cf. PAULO VI, Carta Apost. Octogesima Adveniens ( 14 de Maio de 1971), 8-9: AAS 63 (1971), pp. 406-408.




18 Outro índice, comum à grande maioria das nações, é o fenómeno do desemprego e do subemprego.

Não há ninguém que não se dê conta da actualidade e da gravidade crescente de tal fenómeno nos países industrializados. 36 Se ele parece ser alarmante nos países em vias de desenvolvimento, com o seu alto índice de crescimento demográfico e com grande número de jovens na sua população, nos países de grande desenvolvimento económico parece que as fontes de trabalho se contraem; e assim, as possibilidades de emprego, em vez de aumentarem, diminuem.

Também este fenómeno, com a série de efeitos negativos que comporta, a nível individual e social, desde a degradação até à perda do respeito que cada pessoa, homem ou mulher, deve a si mesmo, nos convida a interrogar-nos seriamente acerca do tipo de desenvolvimento levado por diante no decurso destes últimos vinte anos. A este propósito, apresenta- se mais do que nunca oportuna a consideração feita na Encíclica Laborem Exercens: «É necessário acentuar bem que o elemento constitutivo e ao mesmo tempo a verificação mais adequada de tal progresso no espírito de justiça e de paz, que a Igreja proclama e pelo qual não cessa de orar (...) é exactamente a revalorização contínua do trabalho humano, quer sob o aspecto da sua finalidade objectiva, quer sob o aspecto da dignidade do sujeito de todo o trabalho, que é o homem». E, ao contrário, «não é possível ficar sem ser impressionado por um facto desconcertante de imensas proporções», ou seja, que «há massas imensas de desempregados e subempregados (...): um facto que está a demonstrar, sem dúvida alguma, que, tanto no interior de cada comunidade política, como nas relações entre elas a nível continental e mundial - pelo que diz respeito à organização do trabalho e do emprego - existe alguma coisa que não está bem; e isto precisamente nos pontos mais críticos e mais importantes sob o aspecto social». 37

Como o precedente, também este outro fenómeno, em virtude do seu carácter universal e, em certo sentido, multiplicador, constitui, dada a sua incidência negativa, um sinal maximamente indicativo do estado e da qualidade do desenvolvimento dos povos, na presença do qual nos encontramos hoje.

36. O recente Etude sur l'économie mondiale 1987, publicado pelas Nações Unidas, contém os últimos dados a este respeito (cf. pp. 8-9). A percentagem dos desempregados nos países desenvolvidos, em economia de mercado, passou de 3 por cento da força de trabalho em 1970 para 8 por cento em 1986. Actualmente, o número dos desempregados eleva-se a 29 milhões.
37. Carta Enc. Laborem Exercens ( 14 de Setembro de 1981 )
LE 18: AAS 73 (1981), pp. 624-625.



19outro fenómeno, também ele típico do período mais recente - embora não se encontre em toda a parte - que é sem dúvida igualmente indicativo da interdependência existente entre os países desenvolvidos e os menos desenvolvidos. É a questão da dívida internacional, a que a Pontifícia Comissão Iustitia et Pax, há pouco, consagrou um documento. 38

Não se poderia aqui deixar em silêncio a estreita relação entre este problema, cuja gravidade crescente já tinha sido prevista pela Populorum Progressio, 39 e a questão do desenvolvimento dos povos.

A razão que levou os povos em vias de desenvolvimento a aceitarem a oferta de abundantes capitais disponíveis foi a esperança de os poderem empregar em actividades de desenvolvimento. Por conseguinte, a disponibilidade dos capitais e o facto de os aceitar a título de empréstimo podem considerar-se uma contribuição para o próprio desenvolvimento, o que é desejável e legítimo em si, embora talvez imprudente e, nalguns casos, precipitado.

Tendo mudado as circunstâncias, tanto nos países endividados como no mercado flnanceiro internacional, o instrumento escolhido para dar uma ajuda ao desenvolvimento transformou-se num mecanismo contraproducente. E isto, quer porque os países devedores, para satisfazerem os compromissos da dívida, se vêem obrigados a exportar os capitais que seriam necessários para aumentar ou pelo menos para manter o seu nível de vida, quer porque, pela mesma razão, eles não podem obter novos financiamentos igualmente indispensáveis.

Por força deste mecanismo, o meio destinado ao desenvolvimento dos povos tornou-se um travão e, em certos casos, até mesmo uma acentuação do subdesenvolvimento.

Estas verificações devem levar a reflectir — como diz o recente Documento da Pontifícia Comissão Iustitia et Pax 40 — sobre o carácter ético da interdependência dos povos; e, para permanecer na linha das presentes considerações, também sobre as exigências e as condições da cooperação para o desenvolvimento, inspiradas igualmente em princípios éticos.

38. Ao serviço da comunidade humana: uma consideração ética da dívida internacional (27 de Dezembro de 1986).
39.Carta Enc. Populorum Progressio,
PP 54: l.c., pp. 283-284: «Os países em vias de desenvolvimento já não correrão o risco de ficarem sobrecarregados de dívidas, cuja amortização e juros absorvem o melhor dos seus lucros. Os juros e a duração dos empréstimos podem ser organizados de maneira suportável para uns e para outros, equilibrando os donativos gratuitos e os empréstimos sem juros ou a taxa mínima, com a duração das amortizações».
40. Cf. a «Apresentação» do Documento: Ao serviço da comunidade humana: uma consideração ética da dívida internacional (27 de Dezembro de 1986).



20 Se, chegados a este ponto, examinarmos as causas deste grave atraso no processo do desenvolvimento, que se deu em sentido oposto às indicações da Encíclica Populorum Progressio, a qual tinha despertado tantas esperanças, a nossa atenção detém-se, de modo particular, sobre as causas políticas da situação actual.

Perante um conjunto de factores, inegavelmente complexos, que se nos apresentam, não é possível fazer aqui a sua análise completa. Mas não se pode deixar em silêncio um facto marcante no contexto político, que caracterizou o período histórico que se seguiu à segunda guerra mundial, e é um factor não transcurável na evolução do desenvolvimento dos povos.

Referimo-nos à existência de dois blocos contrapostos, designados comummente com os nomes convencionais de Este e Oeste, ou de Oriente e Ocidente. O motivo desta conotação não é puramente politico, mas também, como se diz, geopolítico.Cada um dos dois blocos tende a assimilar ou a agregar à sua volta, com diversos graus de adesão ou participação, outros países ou grupos de países.

A contraposição é primeiro que tudo política, no sentido de que cada bloco encontra a própria identidade num sistema de organização da sociedade e de gestão do poder, que pretende ser alternativo do outro; por sua vez, a contraposição política tem origem numa contraposição mais profunda, que é de ordem ideológica.

No Ocidente, existe de facto um sistema que se inspira fundamentalmente nos princípios do capitalismo liberalista, tal como este se desenvolveu no século passado, com a industrialização; no Oriente, há um sistema inspirado pelo colectivismo marxista, que nasceu da interpretação da condição das classes proletárias feita à luz de uma leitura peculiar da história. Cada uma das duas ideologias, referindo-se a duas visões tão diferentes do homem, da sua liberdade e do seu papel social, propôs e promoveu, no plano económico, formas antitéticas de organização do trabalho e de estruturas da propriedade, especialmente pelo que se refere aos chamados meios de produção.

Era inevitável que a contraposição ideológica, desenvolvendo sistemas e centros antagonistas de poder, com as suas formas próprias de propaganda e de doutrinação, evoluísse no sentido de uma crescente contraposição militar, dando origem a dois blocos de potências armadas, cada um deles desconfiado e receoso da prevalência do outro.

As relações internacionais, por sua vez, não podiam deixar de sentir os efeitos desta «lógica dos blocos» e das respectivas «esferas de influência». Nascida logo após a conclusão da segunda guerra mundial, a tensão entre os dois blocos dominou os quarenta anos que se seguiram, assumindo quer carácter de «guerra fria», quer o de «guerra por procuração», mediante a instrumentalização de conflitos locais, quer mantendo os espíritos na incerteza e na ansiedade, com a ameaça de uma guerra aberta e total.

Se no presente este perigo parece ter-se tornado mais remoto, se bem que não tenha desaparecido completamente, e se já se chegou a um primeiro acordo sobre a destruição de certo tipo de armamentos nucleares, a existência e a contraposição dos blocos nem por isso deixam de ser ainda um facto real e preocupante, que continua a condicionar o cenário mundial.




21 Isto pode observar-se, com um efeito particularmente negativo, nas relações internacionais que dizem respeito aos países em vias de desenvolvimento. De facto, como é sabido, a tensão entre o Oriente e o Ocidente não provêm, de per si, de uma oposição entre dois graus diversos de desenvolvimento; mas sobretudo entre duas concepções do próprio desenvolvimento dos homens e dos povos, ambas elas imperfeitas e a exigirem uma correcção radical. Esta oposição é transferida para o interior desses países, contribuindo assim para alargar o fosso que já existe, no plano económico, entre Norte e Sul, o qual é uma consequência da distância entre os dois mundos: o dos mais desenvolvidos e o dos menos desenvolvidos.

Está nisto uma das razões por que a doutrina social da Igreja adopta uma atitude crítica, quer em relação ao capitalismo liberalista, quer em relação ao colectivismo marxista. Com efeito, sob o ponto de vista do desenvolvimento surge espontaneamente a pergunta: de que maneira ou em que medida estes dois sistemas são susceptíveis de transformações e de actualizações, de molde a favorecerem ou promoverem um verdadeiro e integral desenvolvimento do homem e dos povos, na sociedade contemporânea? Estas transformações e estas actualizações, de facto, são urgentes e indispensáveis para a causa de um desenvolvimento comum a todos.

Os países de independência recente, que se esforçam por adquirir uma própria identidade cultural e política e que teriam necessidade da contribuição eficaz e desinteressada dos países mais ricos e desenvolvidos, encontram-se implicados - algumas vezes mesmo compelidos - nos conflitos ideológicos, que geram inevitáveis divisões no seu seio, até ao a ponto de, nalguns casos, provocarem verdadeiras guerras civis. E isto, também porque os investimentos e os auxílios para o desenvolvimento são com frequência desviados do próprio fim e instrumentalizados para alimentar os contrastes, extra e contra os interesses dos mesmos países que deveriam beneficiar de tais auxílios. Muitos destes tornam-se cada vez mais conscientes do perigo de vir a ser vítimas de um neocolonialismo e tentam subtrair-se a ele. Foi esta tomada de consciência que deu origem, embora entre dificuldades, oscilações e por vezes contradições, ao Movimento internacional dos Países não Alinhados. No seu aspecto positivo, este movimento quereria efectivamente afirmar o direito de cada povo à própria identidade, à independência e à segurança, como também à participação, na base da igualdade e da solidariedade, e à fruição dos bens destinados a todos os homens.




22 Feitas estas considerações, conseguir-se-á, sem grandes dificuldades, chegar a uma visão mais clara do quadro dos últimos vinte anos e compreender melhor os contrastes existentes na parte Norte do mundo, isto é, entre Oriente e Ocidente, como causa não última do atraso ou da estagnação do Sul.

Os países em vias de desenvolvimento, em vez de se transformarem em nações autónomas, preocupadas com a própria caminhada para a justa participação nos bens e nos serviços destinados a todos, tornam-se peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigantesca. Isto verifica-se com frequência também no domínio dos meios de comunicação social, os quais, sendo na sua maior parte geridos por centros situados na parte Norte do mundo, nem sempre têm na devida conta as prioridades e os problemas próprios desses países e não respeitam a sua fisionomia cultural; e não é raro eles imporem, pelo contrário, uma visão deformada da vida e do homem e, assim, não corresponderem às exigências do verdadeiro desenvolvimento.

Cada um dos dois blocos esconde no seu âmago a tendência para o imperialismo, como se diz comummente, ou para formas de neócolonialismo: tentação fácil, na qual não raro se cai, como ensina a história, mesmo a história recente.

É esta situação anormal — consequência de uma guerra e de uma preocupação agigantada, mais do que é lícito, por motivos da própria segurança — que refreia o impulso de cooperação solidária de todos para o bem comum do género humano, em detrimento, sobretudo, de povos pacíficos, que se vêem impedidos no seu direito de acesso aos bens destinados a todos os homens.

Encarada assim, a divisão actual do mundo é um obstáculo directo à verdadeira transformação das condições de subdesenvolvimento nos países em vias de desenvolvimento ou nos menos progredidos. Os povos, porém, nem sempre se resignam com a sua sorte. Além disso, as próprias necessidades de uma economia sufocada pelas despesas militares e, ademais, pela burocracia e pela intrínseca ineficiência, parecem agora favorecer processos que poderiam tornar menos rígida a contraposição e mais fácil o estabelecimento de um diálogo profícuo e de uma vardadeira colaboração para a paz.




23 A afirmação da Encíclica Populorum Progressio segundo a qual os recursos e os fundos destinados à produção das armas devem ser utilizados para aliviar a miséria das populações indigentes 41 torna mais urgente o apelo a superar a contraposição entre os dois blocos.

Hoje, tais recursos servem praticamente para os dois blocos se pôrem em condições de poder prevalecer um sobre o outro e, assim, garantir a própria segurança. Para as nações que os integram, algumas das quais, sob o aspecto histórico, económico e político têm a possibilidade de desempenhar um papel de guias, essa distorção, que é um vício de origem, torna difícil cumprirem livremente o seu dever de solidariedade em favor dos povos que aspiram ao desenvolvimento integral.

E' oportuno afirmar aqui, e não deve parecer exagero, que um papel de guia entre as nações não se pode justificar senão com a possibilidade e a vontade de contribuir, ampla e generosamente, para o bem comum.

Uma nação que cedesse, mais ou menos conscientemente, à tentacão de se fechar em si mesma, faltando às responsabilidades derivantes de uma sua superioridade no concerto das nações, faltaria gravemente a um seu preciso dever ético. E isto pode facilmente ser observado dada a contingência histórica, na qual os que crêem em Deus entrevêem as disposições da sua Providência, pronta a servir-se das nações para a realização dos seus projectos, assim como para tornar «vãos os planos dos povos» (cf.
Ps 33,10 /32, 10).

Quando o Ocidente dá a impressão de se abandonar a formas de isolamento crescente e egoísta, e o Oriente, por sua vez, parece ignorar, por motivos discutíveis, o seu dever de cooperação no empenho por aliviar a miséria dos povos, não nos encontramos apenas perante uma traição das expectativas legítimas da humanidade, premonitória de consequências imprevisíveis, mas perante uma defecção propriamente dita em relação a uma obrigação moral.

41. Cf. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 53: l.c., p. 283.



24 Se a produção das armas é uma grave desordem que reina no mundo actual, pelo que diz respeito às verdadeiras necessidades dos homens e ao emprego dos meios adequados para as satisfazer, não o é menos o comércio das mesmas armas. Ou melhor, é preciso acrescentar que em relação a este, o juízo moral é ainda mais severo. Como é sabido, trata-se de um comércio sem fronteiras, capaz de transpor mesmo as barreiras dos blocos. Ele tem habilidade para superar a divisão entre o Oriente e o Ocidente e, sobretudo, a divisão entre o Norte e o Sul, até se inserir - o que é mais grave - entre as diversas componentes da zona meridional do mundo. Assim, encontramo-nos diante de um fenómeno estranho: enquanto os auxílios económicos e os planos de desenvolvimento se embatem contra o obstáculo de barreiras ideológicas insuperáveis e de barreiras de preços e de mercado, as armas, seja qual for a sua proveniência, circulam com uma liberdade quase absoluta nas várias partes do mundo. E ninguém ignora - como salienta o recente documento da Pontifícia Comissão Iustitia et Pax sobre a dívida internacional 42 que, em certos casos, os capitais emprestados pelo mundo de maior desenvolvimento serviram para adquirir armamentos no mundo não desenvolvido.

Se a tudo isto se acrescentar o perigo tremendo, universalmente conhecido, que representam as armas atómicas acumuladas de maneira incrível, a conclusão lógica parece ser a seguinte: o panorama do mundo actual, incluindo o mundo económico, em vez de manifestar preocupação por um verdadeiro desenvolvimento que proporcione a todos uma vida «mais humana» — como preconizava a Encíclica Populorum Progressio — 43 parece destinado a encaminhar-nos mais rapidamente para a morte.

As consequências de semelhante estado de coisas manifestam-se no agravamento de uma chaga típica e reveladora dos desequilibrios e dos conflitos do mundo contemporâneo: os milhões de refugiados, aos quais as guerras, as calamidades naturais, as perseguições e as discriminações, de todas as espécies, privaram da própria casa, do trabalho, da familia e da pátria. A tragédia destas multidões reflecte-se no rosto arrasado de homens, mulheres e crianças, que, num mundo dividido e que se tornou inospitaleiro, não conseguem mais encontrar um lar.

Nem se podem fechar os olhos perante outra chaga dolorosa do mundo actual: o fenómeno do terrorismo, entendido como propósito de matar e distruir homens e bens, sem distinção, e de criar precisamente um clima de terror e de insegurança, não raro com a captura de reféns. Mesmo quando se aduz como justificação desta prática desumana uma ideologia qualquer ou a criação de uma sociedade melhor, os actos de terrorismo nunca são justificáveis. Mas, são-no ainda menos, quando, como acontece hoje, tais decisões e gestos, que por vezes se tornam verdadeiras chacinas, bem como certos raptos de pessoas inocentes e alheias aos conflitos, têm como fim a propaganda, em favor da própria causa; ou, pior ainda, quando são fim em si mesmos, de modo que se mata apenas por matar. Diante de tanto horror e de tanto sofrimento, as palavras que pronunciei há alguns anos e quereria ainda repetir, mantêm todo o seu valor: «O cristianismo proíbe [...] o recurso aos caminhos do ódio, ao assassínio de pessoas indefesas e aos métodos do terrorismo». 44

42. Ao serviço da comunidade humana: uma consideração ética da dívida internacional (27 de Dezembro de 1986), III.2.1.
43. Cf. Carta Enc. Populorum Progressio,
PP 20-21: l.c., pp. 267-268.
44. Homilia em Drogheda, Irlanda (29 de Setembro de 1979), 5: AAS 71 (1979), II, p. 1079.



25 Chegados a este ponto, impõe-se fazer uma referência ao problema demográfico e à maneira de falar dele hoje, seguindo aquilo que Paulo VI indicou na Encíclica 45 e eu próprio expus amplamente na Exortação Apostólica Familiaris Consortio. 46

Não se pode negar a existência, especialmente na zona Sul do nosso planeta, de um problema demográfico, que é de molde a criar dificuldades ao desenvolvimento. E é bom acrescentar, imediatamente, que na zona Norte este problema se apresenta em termos inversos: aqui, o que é preocupante é a quebra do índice de natalidade, com repercussões sobre o envelhecimento da população, que se torna incapaz mesmo de se renovar biologicamente. Este fenómeno, de per si, é susceptível de constituir um obstáculo para o desenvolvimento. Mas, assim como não é exacto afirmar que dificuldades desta natureza provêm somente do crescimento demográfico, também não está demonstrado, minimamente, que todo o crescimento demográfico é incompatível com um desenvolvimento ordenado.

Por outro lado, parece ser algo muito alarmante verificar em numerosos países a difusão de campanhas sistemáticas contra a natalidade, por iniciativa dos próprios governos, em contraste não só com a identidade cultural e religiosa dos mesmos países, mas também com a natureza do verdadeiro desenvolvimento. Acontece frequentemente que tais campanhas são devidas a pressões e financiadas por capitais provenientes do estrangeiro e, nalguns casos mesmo, são postas como condição a que se subordinam os auxílios e a assistência económico-financeira. Em qualquer hipótese, trata-se de absoluta falta de respeito pela liberdade de decisão das pessoas interessadas, homens e mulheres, não raro submetidas a intoleráveis pressões, incluindo as económicas, a fim de cederem a esta forma nova de opressão. As populações mais pobres é que vêm a sofrer por fim os maus tratos; e isso acaba por gerar, muitas vezes, a tendência para um certo racismo, ou por favorecer a aplicação de certas formas, igualmente racistas, de eugenismo.

Este facto, que reclama a condenação mais enérgica, é também ele sinal de uma concepção errada e perversa do verdadeiro desenvolvimento humano.

45. Cf. Carta Enc. Populorum Progressio,
PP 37: l.c., pp. 275-276.
46. Cf. Exort. Apost. Familiaris Consortio (22 de Novembro de 1981), especialmente o n. FC 30: AAS 74 (1982), pp. 115-117.



26 Semelhante panorama, predominantemente negativo, da real situação do desenvolvimento no mundo contemporâneo, não ficaria completo, se não se anotasse a coexistência de aspectos positivos.

A primeira nota positiva é a da plena consciência, em muitissimos homens e mulheres, da dignidade própria e da dignidade de cada ser humano. Esta tomada de consciência exprime-se, por exemplo: na preocupação, mais vivida por toda a parte, com o respeito dos direitos humanos; e na rejeição mais decidida das suas violações. Sinal revelador disto mesmo é o número das associações privadas, recentemente instituídas, algumas de alcance mundial, e quase todas empenhadas em seguir, com grande cuidado e louvável objectividade, os acontecimentos internacionais num campo tão delicado.

Neste plano há que reconhecer a influência exercida pela Declaração dos Direitos do Homem, promulgada há cerca de quarenta anos pela Organização das Nações Unidas. A própria existência desta e a sua progressiva aceitação por parte da comunidade internacional são já o sinal de uma tomada de consciência que se vai afirmando. O mesmo deve dizer-se, sempre no campo dos direitos humanos, quanto aos outros instrumentos jurídicos da mesma Organização das Nações Unidas ou de outros Organismos internacionais. 47

A tomada de consciência de que falamos não deve ser referida apenas às pessoas individualmente, mas também às nações e aos povos, que, como entidades dotadas de uma determinada identidade cultural, são particularmente sensíveis à conservação, à livre gestão e à promoção do seu precioso património.

Simultaneamente, no mundo dividido e perturbado por todas as espécies de conflitos, vai aumentando a convicção de uma interdependência radical e, por conseguinte, da necessidade de uma solidariedade que a assuma e traduza no plano moral. Hoje, mais talvez do que no passado, os homens dão-se conta de que estão ligados por um destino comum, que há-de ser construído juntamente, se se quiser evitar a catástrofe para todos. Das profundezas da angústia, do medo e dos fenómenos de evasão como a droga, típicos do mundo contemporâneo, emerge progressivamente a ideia de que o bem, ao qual todos somos chamados, e a felicidade, a que aspiramos, não se podem obter sem o esforço e a aplicação de todos, sem excepção, o que implica a renúncia ao próprio egoísmo.

Aqui insere-se também, como sinal do respeito pela vida — apesar de todas as tentações de a destruir, desde o aborto até à eutanásia — a preocupação concomitante pela paz; e, de novo, a tomada de consciência de que esta é indivisível: ou é algo de todos ou não é de ninguém. Uma paz que exige, cada vez mais, o respeito rigoroso da justiça e, por conseguinte, a distribuição equitativa dos frutos do verdadeiro desenvolvimento. 48

Entre os sinais positivos do tempo presente é preciso registar, ainda, uma maior consciência dos limites dos recursos disponíveis e da necessidade de respeitar a integridade e os ritmos da natureza e de os ter em conta na programação do desenvolvimento, em vez de os sacrificar a certas concepções demagógicas do mesmo. E', afinal, aquilo a que se chama hoje preocupação ecológica.

É justo reconhecer, também, da parte de homens de governo, políticos, economistas, sindicalistas, personalidades da ciência e funcionários internacionais — muitos dos quais se inspiram na fé religiosa — o empenho em remediar generosamente, com não poucos sacrifícios pessoais, os males do mundo; e em lançar mão de todos os meios, para que um número cada vez maior de homens e mulheres possa usufruir do benefício da paz e de uma qualidade de vida digna deste nome.

Para isto contribuem, em não pequena medida, as grandes Organizações internacionais e algumas Organizações regionais, cujos esforços conjugados permitem intervenções mais eficazes.

Foi também graças a estas contribuições que alguns países do Terceiro Mundo, não obstante o peso de numerosos condicionamentos negativos, conseguiram alcançar uma certa auto-suficiência alimentar, ou um grau de industrialização que lhes permite sobreviver dignamente e assegurar fontes de trabalho à população activa.

Assim, nem tudo é negativo no mundo contemporâneo; e não poderia ser de outro modo, porque a Providência do Pai celeste vela por nós com amor, que vai até às nossas preocupações quotidianas (cf.
Mt 6,25-32 Mt 10,23-31 Lc 12,6-7 Lc 22,30); e mais, os valores positivos que pusémos em realce indicam uma nova preocupação moral, sobretudo pelo que diz respeito aos grandes problemas humanos, como são o desenvolvimento e a paz.

Esta realidade leva-me o orientar agora a minha reflexão para a verdadeira natureza do desenvolvimento dos povos, na linha da Encíclica de que estamos a celebrar o aniversário e em homenagem aos seus ensinamentos.

47. Cf. Droits de l'homme, Recueil d'instruments internationaux, Nations Unies, New York 1983. JOÃO PAULO II, Carta Enc. Redemptor Hominis (4 de Março de 1979), RH 17: AAS 71 (1979), p. 296
48. Cf. CONC. ECUM. VATICANO II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 78; PAULO VI, Carta Enc. Populorum Progressio, PP 76: l.c., pp. 294-295: «Combater a miséria e lutar contra a injustiça é promover não só o bem-estar, mas também o progresso humano e espiritual de todos e, portanto, o bem comum da humanidade. A paz... constrói-se, dia a dia, na busca de uma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens».




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