Sollicitudo rei socialis PT 27

IV. O DESENVOLVIMENTO HUMANO AUTÊNTICO

27 O relance de olhos, que a Encíclica nos convida a fazer, sobre o mundo contemporâneo leva-nos a verificar, primeiro que tudo, que o desenvolvimento não é um processo rectilíneo, quase automático e de per si ilimitado, como se, com certas condições, o género humano tivesse de caminhar expeditamente para uma espécie de perfeição indefinida. 49

Esta concepção assim, ligada mais a uma noção de «progresso», com conotações filosóficas de tipo iluminista, do que à noção de «desenvolvimento» 50 usada em sentido especificamente económico-social, parece estar agora a ser posta seriamente em dúvida, especialmente depois da trágica experiência das duas guerras mundiais, da destruição planificada e em parte actuada de populações inteiras e, ainda, por causa do impendente perigo atómico. A um optimismo mecanicista ingénuo, veio substituir-se uma inquietude, não sem fundamento, pelo destino da humanidade.

49. Cf. Exort. Apost. Familiaris Consortio (22 de Novembro de 1981),
FC 6: AAS 74 (1982), p. 88: «A história não é simplesmente um progresso necessário para o melhor, mas sim um acontecimento de liberdade e, mais ainda, um combate entre liberdades ...».
50. Foi por este motivo que se julgou preferível usar no texto desta Encíclica a palavra «desenvolvimento» em vez da palavra «progresso», procurando contudo dar à palavra «desenvolvimento» o sentido mais pleno.



28 Ao mesmo tempo, também entrou em crise a própria concepção «económica» ou «economicista», ligada à palavra desenvolvimento. Hoje, de facto, compreende-se melhor que a mera acumulação de bens e de serviços, mesmo em benefício da maioria, não basta para realizar a felicidade humana. E, por conseguinte, também a disponibilidade dos multíplices benefícios reais, trazidos nos últimos tempos pela ciência e pela técnica, incluindo a informática, não comporta a libertação de toda e qualquer forma de escravidão. A experiência dos anos mais recentes demonstra, pelo contrário, que se toda a massa dos recursos e das potencialidades, postos à disposição do homem, não for regida por uma intenção moral e por uma orientação no sentido do verdadeiro bem do género humano, ela volta-se facilmente contra ele para o oprimir.

Deveria ser altamente instrutiva uma desconcertante verificação do período mais recente: ao lado das misérias do subdesenvolvimento, que não podem ser toleradas, encontramo-nos perante uma espécie de superdesenvolvimento, igualmente inadmissível, porque, como o primeiro, é contrário ao bem e à felicidade autêntica. Com efeito, este superdesenvolvimento, que consiste na excessiva disponibilidade de todo o género de bens materiais, em favor de algumas camadas sociais, torna facilmente os homens escravos da «posse» e do gozo imediato, sem outro horizonte que não seja a multiplicação ou a substituição contínua das coisas que já se possuem, por outras ainda mais perfeitas. É o que se chama a civilização do «consumo», ou consumismo, que comporta tantos «desperdícios» e «estragações». Um objecto que se possui, e já está superado por outro mais perfeito, é posto de lado, sem tomar em conta o possível valor permanente que ele tem em si mesmo ou para benefício de outro ser humano mais pobre.

Todos nós experimentamos, quase palpavelmente, os tristes efeitos desta sujeição cega ao mero «consumo»: antes de tudo, uma forma de materialismo crasso; e, ao mesmo tempo, uma insatisfação radical, porque se compreende imediatamente que — se não se está premunido contra a inundação das mensagens publicitárias e da oferta incessante e tentadora dos produtos — quanto mais se tem mais se deseja, enquanto as aspirações mais profundas restam insatisfeitas, e talvez fiquem mesmo sufocadas.

A Encíclica do Papa Paulo VI ilustrou bem a diferença, nos nossos dias frequentemente acentuada, entre o «ter» e o «ser», 51 já precedentemente expressa com palavras precisas pelo Concílio Vaticano II. 52 «Ter» objectos e bens não aperfeiçoa, de per si, o sujeito humano, se não contribuir para a maturação e para o enriquecimento do seu «ser», isto é, para a realização da vocação humana como tal.

Certamente, a diferença entre «ser» e «ter» — perigo inerente a uma pura multiplicação ou mera substituição de coisas possuídas em relação com o valor do «ser» — não deve transformar-se necessariamente numa antinomia. Uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo consiste precisamente nisto: que são relativamente poucos os que possuem muito e muitos os que não possuem quase nada. É a injustiça da má distribuição dos bens e dos serviços originariamente destinados a todos.

E então, eis o quadro: há aqueles — os poucos que possuem muito — que não conseguem verdadeiramente «ser», porque, devido a uma inversão da hierarquia dos valores, estão impedidos pelo culto do «ter»; e há aqueles — os muitos que possuem pouco ou nada — que não conseguem realizar a sua vocação humana fundamental porque estão privados dos bens indispensáveis.

O mal não consiste no «ter» enquanto tal, mas no facto de se possuir sem respeitar a qualidade e a ordenada hierarquia dos bens que se possuem. Qualidade e hierarquia que promanam da subordinação dos bens e das suas disponibilidades ao «ser» do homem e à sua verdadeira vocação.

Com isto fica esclarecido que o desenvolvimento tem necessariamente uma dimensão económica, porque ele deve proporcionar ao maior número possível dos habitantes do mundo a disponibilidade de bens indispensáveis para «ser»; contudo, ele não se limita a tal dimensão. Se for delimitado a esta, volta-se contra aqueles a quem se quereria favorecer.

As características de um desenvolvimento integral, «mais humano», que - sem negar as exigências económicas - esteja em condições de se manter à altura da vocação autêntica do homem e da mulher, foram descritas pelo Papa Paulo VI. 53

51. Carta Enc. Populorum Progressio,
PP 19: l.c., pp. 266-267: «Tanto para os povos como para as pessoas, "ter" mais não é o fim último. Todo e qualquer crescimento é ambivalente... A busca exclusiva do ter torna-se então um obstáculo ao crescimento do ser e opõe-se à sua verdadeira grandeza: tanto para as nações como para as pessoas, a avareza é a forma mais evidente do subdesenvolvimento moral»; cf., também de PAULO VI, Carta Apost. Octogesima Adveniens (14 de Maio de 1971), 9: AAS 63 (1971), pp. 407-408.
52. Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 35; PAULO Vl, Alocução ao Corpo Diplomático (7 de Janeiro de 1965): AAS 57 (1965), p. 232.
53. Cf. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 20-21: l.c., pp 267-268.



29 Um desenvolvimento que não é só económico mede-se e orienta-se segundo a realidade e a vocação do homem visto na sua globalidade; ou seja, segundo um parâmetro interior que lhe é próprio. O homem tem necessidade, sem dúvida, dos bens criados e dos produtos da indústria, continuamente enriquecida pelo progresso científico e tecnológico. E a disponibilidade sempre nova dos bens materiais, na medida em que vem ao encontro das necessidades, abre novos horizontes. O perigo do abuso do consumo e o aparecimento das necessidades artificiais não devem, de modo algum, impedir a estima e a utilização dos novos bens e dos novos recursos postos à nossa disposição; devemos mesmo ver nisso um dom de Deus e uma resposta à vocação do homem, que se realiza plenamente em Cristo.

Mas para alcançar o verdadeiro desenvolvimento é necessário não perder jamais de vista esse parâmetro, que está na natureza específica do homem, criado por Deus à sua imagem e semelhança (cf.
Gn 1,26): natureza corporal e espiritual, simbolizada — no segundo relato da criação — pelos dois elementos, a terra, com que Deus plasma o físico do homem, e o sopro de vida, insuflado nas suas narinas (cf. Gn 2,7).

O homem, deste modo, passa a ter uma linha de afinidade com as outras criaturas: é chamado a utilizá-las, a cuidar delas e, sempre segundo a narração do Génesis (Gn 2,15), é colocado no jardim, com a tarefa de o cultivar e guardar, estando acima de todos os outros seres, postos por Deus sob o seu domínio (cf. ibid. Gn 1,25-26). Mas, ao mesmo tempo, o homem deve permanecer submetido à vontade de Deus, que lhe prescreve limites no uso e no domínio das coisas (cf. ibid. Gn 2,16-17), assim como lhe promete a imortalidade (cf. ibid. Gn 2,9 Sg 2,23). O homem, portanto, sendo imagem de Deus, tem uma verdadeira afinidade também com Ele.

Com base nesta doutrina, vê-se que o desenvolvimento não pode consistir somente no uso, no domínio e na posse indiscriminada das coisas criadas e dos produtos da indústria humana; mas sobretudo em subordinar a posse, o domínio e o uso à semelhança divina do homem e à sua vocação para a imortalidade. É esta a realidade transcendente do ser humano, a qual é transmitida desde a origem a um casal, o homem e a mulher (cf. Gn 1,27), e que, portanto, é fundamentalmente social.



30 Segundo a Sagrada Escritura, pois, a noção de desenvolvimento não é somente «laica» ou «profana»; mas aparece também, muito embora conservando a acentuação do aspecto sócio-económico, como a expressão moderna de uma dimensão essencial da vocação do homem.

O homem, com efeito, não foi criado, por assim dizer, imóvel e estático. A primeira figuração, que a Bíblia dele fornece, apresenta-o claramente como criatura e imagem, definida na sua profunda realidade pela origem e pela afinidade que o constituem. Mas tudo isto insere no ser humano, homem e mulher, o germe e a exigência de uma tarefa original a desempenhar, quer por cada um, individualmente, quer como casal. É a tarefa de «dominar» sobre as outras criaturas e de «cultivar o jardim»; e deve ser desempenhada no quadro da obediência à lei divina; portanto, com o respeito da imagem recebida, fundamento claro do poder de domínio que lhe é reconhecido, em ordem ao seu aperfeiçoamento (cf.
Gn 1,26-30 Gn 2,15-16 Sg 9,2-3).

Quando o homem desobedece a Deus e se recusa a submeter-se ao seu poder, então a natureza rebela-se contra ele e já não o reconhece como «senhor», porque ele ofuscou em si a imagem divina. O apelo à posse e ao uso dos meios criados permanece sempre válido; mas, depois do pecado, o seu exercício torna-se árduo e cheio de sofrimento (cf. Gn 3,17-19).

Com efeito, o capítulo seguinte do Génesis mostra-nos a descendência de Caim, que constrói «uma cidade», se dedica à pastoreação, se consagra às artes (a música) e à técnica (a metalurgia); e, ao mesmo tempo, começa-se «a invocar o nome do Senhor» (cf. Gn 4,17-26).

A história do género humano delineada pela Sagrada Escritura, mesmo depois da queda no pecado, é uma história de realizações contínuas, que, postas sempre de novo em questão e em perigo pelo pecado, se repetem, se enriquecem e se difundem, como uma resposta à vocação divina, consignada desde o princípio ao homem e à mulher (cf. Gn 1,26-28), e impressa na imagem por eles recebida.

É lógico concluir, ao menos por parte de quantos crêem na Palavra de Deus, que o «desenvolvimento» de hoje, deve ser considerado como um momento da história iniciada com a criação e continuamente posta em perigo por motivo da infidelidade à vontade do Criador, sobretudo por causa da tentação da idolatria; mas ele corresponde fundamentalmente às premissas iniciais. Quem quisesse renunciar à tarefa, difícil mas nobilitante, de melhorar a sorte do homem todo e de todos os homens, com o pretexto do peso da luta e do esforço incessante de superação, ou mesmo pela experiência da derrota e do retorno ao ponto de partida, não cumpriria a vontade de Deus criador. Quanto a este ponto, na Encíclica Laborem Exercens fiz referência à vocação do homem para o trabalho, a fim de acentuar o conceito de que é sempre ele o protagonista do desenvolvimento. 54

Mais ainda, o próprio Senhor Jesus, na parábola dos talentos, põe em relevo o tratamento severo reservado a quem ousou esconder o dom recebido: «Servo mau e preguiçoso! Sabias que eu ceifo onde não semeei e recolho donde não espalhei... Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem dez talentos» (Mt 25,26-28). A nós, que recebemos os dons de Deus para os fazer frutificar, compete-nos «semear» e «recolher». Se não o fizermos, ser-nos-á tirado também aquilo que temos.

O aprofundamento destas palavras severas poderá impelir-nos a empenharmo-nos com mais decisão no dever, hoje premente para todos, de colaborar no desenvolvimento integral dos outros: «desenvolvimento do homem todo e de todos os homens». 55

54. Cf. Carta Enc. Laborem Exercens (14 de Setembro de 1981), LE 4: AAS 73 (1981), PP. 584-585; PAULO VI, Carta Enc. Populorum Progressio, PP 15: l.c., p. 265.
55. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 42: l.c., p. 278.



31 A fé-em Cristo Redentor, ao mesmo tempo que ilumina a partir de dentro a natureza do desenvolvimento, orienta também no trabalho de colaboração. Na Carta de São Paulo aos Colossenses lemos que Cristo é «o primogénito de toda a criatura», e que «tudo foi criado por Ele e para Ele» (Col 1,15-16). Com efeito, todas as coisas «subsistem n'Ele», porque «foi do agrado de Deus que residisse n'Ele toda a plenitude e, por seu intermédio, reconciliar consigo todas as coisas» (ibid. Col 1,20).

Neste plano divino, que começa na eternidade em Cristo, «imagem» perfeita do Pai, e culmina n'Ele «primogénito dos redivivos» (ibid. Col 1,15 Col 1,18), insere-se a nossa história, marcada pelo nosso esforço pessoal e colectivo para elevar a condição humana, superar os obstáculos que reaparecem continuamente ao longo do nosso caminho, dispondo-nos assim a participar na plenitude que «reside no Senhor» e que Ele comunica «ao seu Corpo, que é a Igreja» (ibid. Col 1,18; cf. Ep 1,22-23); enquanto que o pecado, o qual sempre nos insidia e compromete as nossas realizações humanas, é vencido e resgatado pela «reconciliação» operada por Cristo (cf. Col 1,20).

Aqui, as perspectivas alargam-se. Reencontra-se o sonho de um «progresso indefinido», transformado radicalmente pela óptica nova aberta pela fé cristã; esta assegura-nos que tal progresso só é possível porque Deus Pai decidiu, desde o princípio, tornar o homem participante da sua glória em Jesus Cristo ressuscitado, no qual «temos a redenção, pelo Seu sangue, a remissão dos pecados» (Ep 1,7); e n'Ele quis vencer o pecado e fazer com que este servisse para o nosso maior bem, 56 que supera infinitamente tudo o que o progresso poderia realizar.

Podemos dizer, então — enquanto nos debatemos no meio das obscuridades e das carências do subdesenvolvimento e do superdesenvolvimento — que um dia «este corpo corruptível se revestirá de incorruptibilidade e este corpo mortal se revestirá de imortalidade» (1Co 15,54), quando o Senhor «entregar o Reino a Deus Pai» (ibid. 1Co 15,24) e todas as obras e acções dignas do homem forem resgatadas.

A concepção da fé esclarece bem, ainda, as razões que impelem a Igreja a preocupar-se com o problema do desenvolvimento, a considerá-lo um dever do seu ministério pastoral e a estimular a reflexão de todos sobre a natureza e as características do desenvolvimento humano autêntico. Com os seus esforços, ela deseja: por um lado, pôr-se ao serviço do plano divino, no sentido de ordenar todas as coisas para a plenitude que reside em Cristo (cf. Col 1,19) e que Ele comunicou ao Seu Corpo; e, por outro lado, corresponder à sua vocação fundamental de «sacramento», ou seja «sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano». 57

Alguns Padres da Igreja inspiraram-se nesta doutrina para elaborar por sua vez, com expressões originais, uma concepção do significado da história e do trabalho humano, considerando-o como tendente para um fim que o supera e definido sempre pela relação com a obra de Cristo. Por outras palavras, é possível encontrar no ensinamento patrístico uma visão optimista da história e do trabalho, ou seja, do valor perene das realizações humanas autênticas, enquanto resgatadas por Cristo e destinadas ao Reino prometido. 58

Assim, faz parte do ensinamento e da prática mais antiga da Igreja a convicção de estar obrigada, por vocação — ela própria, os seus ministros e cada um dos seus membros — a aliviar a miséria dos que sofrem, próximos e distantes, não só com o «supérfluo», mas também com o «necessário». Nos casos de necessidade, não se podem preferir os ornamentos supérfluos das igrejas e os objectos do culto divino preciosos; ao contrário, poderia ser obrigatório alienar estes bens para dar de comer, de beber, de vestir e casa a quem disso está carente. 59 Como já foi notado em precedência, aqui é-nos indicada uma «hierarquia de valores» — no quadro do direito de propriedade — entre o «ter» e o «ser», especialmente quando o «ter» de alguns pode redundar em detrimento do «ser» de muitos outros.

O Papa Paulo VI, na sua Encíclica, está na continuidade deste ensinamento, inspirando-se na Constituição pastoral Gaudium et Spes. 60 Por minha parte, desejaria insistir ainda na sua gravidade e na sua urgência, implorando do Senhor a coragem para todos os cristãos, a fim de poderem passar fielmente à aplicação prática.

56. Cf. Praeconium Paschale, Missale Romanum, ed. typ. altera 1975, p. 272: «Sem dúvida, era necessário o pecado de Adão, que foi destruído pela morte de Cristo. Ditosa culpa, que tal e tão grande Redentor mereceu ter!».
57. CONC. ECUM. VATICANO II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 1.
58. Cf. por exemplo, S. BASÍLIO MAGNO, Regulae fusius tractatae, interrogatio XXXVII, 1-2: PG 31, 1009-1012; TEODORETO DE CIRO, De Providentia, Oratio VII: PG 83, 665-686; SANTO AGOSTINHO, De Civitate Dei, XIX, 17: CCL 48, 683-685.
59. Cf. por exemplo, SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, In Evang. S. Matthaei, hom. 50, 3-4: PG 58, 508-510; SANTO AMBRÓSIO, De Officiis Ministrorum, lib. II, XXVIII, 136-140: PL 16, 139-141; POSSIDIO, Vita S. Augustini Episcopi, XXIV: PL 32, 53-54.
60. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 23: l.c., p. 268: «'Se alguém, gozando dos bens deste mundo, vir o seu irmão em necessidade, mas lhe fechar o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?' (1Jn 3,17). Sabe-se com quanta firmeza os Padres da Igreja determinaram qual deve ser a atitude daqueles que possuem em relação aos que estão em necessidade». No número precedente, o Papa tinha citado o n. GS 69 da Const. past. Gaudium et Spes do Concílio Ecuménico Vaticano II.



32 A obrigação de se empenhar pelo desenvolvimento dos povos não é somente um dever individual, nem menos ainda individualista, como se fosse possível realizá-lo unicamente com os esforços isolados de cada um. É um imperativo para todos e cada um dos homens e das mulheres e também para as sociedades e as nações; em particular, para a Igreja católica e para as outras Igrejas e Comunidades eclesiais, com as quais, neste campo, estamos plenamente dispostos a colaborar. Neste sentido, do mesmo modo que nós católicos convidamos os irmãos cristãos a participarem nas nossas iniciativas, assim também nos declaramos prontos a colaborar nas suas, acolhendo os convites que nos forem feitos. Nesta busca do desenvolvimento integral do homem, podemos fazer muito também com os que crêem em Deus doutras religiões, como de resto já se está a fazer em várias partes.

A colaboração para o desenvolvimento do homem todo e de todos os homens é, efectivamente, um dever de todos para com todos e, ao mesmo tempo, há-de ser comum às quatro partes do mundo: Este e Oeste, Norte e Sul; ou, para usar o termo hoje em voga, aos diversos «mundos». Se, pelo contrário, se procurar realizá-lo numa só parte, ou num só mundo, isso far-se-á à custa dos demais; e onde isso começa, precisamente porque os outros são ignorados, hipertrofia-se e perverte-se.

Os povos ou as nações têm também eles direito ao seu desenvolvimento integral; ora este, se implica — como se disse — os aspectos económicos e sociais, deve compreender igualmente a respectiva identidade cultural e a abertura para o transcendente. Em caso nenhum, a necessidade do desenvolvimento pode ser tomada como pretexto para impor aos outros o próprio modo de viver ou a própria fé religiosa.




33 Não seria verdadeiramente digno do homem um tipo de desenvolvimento que não respeitasse e não promovesse os direitos humanos, pessoais e sociais, económicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos.

Hoje, talvez mais do que no passado, reconhece-se com maior clareza a contradição intrínseca de um desenvolvimento limitado só ao aspecto económico. Este subordina facilmente a pessoa humana e as suas necessidades mais profundas às exigências da planificação económica ou do lucro exclusivo.

A conexão intrínseca entre o desenvolvimento autêntico e o respeito dos direitos do homem revela uma vez mais o seu carácter moral: a verdadeira elevação do homem, conforme com a vocação natural e histórica de cada um, não se alcança com o desfrute da abundância dos bens e dos serviços, ou dispondo de infraestruturas perfeitas.

Enquanto os indivíduos e as comunidades não virem respeitadas rigorosamente as exigências morais, culturais e espirituais, fundadas na dignidade da pessoa e na identidade própria de cada comunidade, a começar pela família e pelas sociedades religiosas, tudo o mais — disponibilidade de bens, abundância de recursos técnicos aplicados à vida quotidiana e um certo nível de bem-estar material — resultará insatisfatório e, com o andar do tempo, desprezível. É o que o Senhor afirma claramente no Evangelho, ao chamar a atenção de todos para a verdadeira hierarquia dos valores: «Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?» (
Mt 16,26).

Um verdadeiro desenvolvimento, segundo as exigências próprias do ser humano, homem ou mulher, criança, adulto ou ancião, implica, sobretudo da parte de quantos intervêm activamente neste processo e são responsáveis por ele, uma viva consciência do valor dos direitos de todos e de cada um, como também da necessidade de respeitar o direito de cada um à plena utilização dos benefícios proporcionados pela ciência e pela técnica.

No plano interno de cada nação, reveste-se de grande importância o respeito de todos os direitos; e, de modo especial: o direito à vida em todos os estádios da existência; os direitos da família, enquanto comunidade social de base ou «célula da sociedade»; a justiça nas relações de trabalho; os direitos inerentes à vida da comunidade política como tal, os direitos fundados na vocação transcendente do ser humano, a começar pelo direito à liberdade de professar e de praticar o próprio credo religioso.

No plano internacional, ou seja, das relações entre os Estados ou, segundo a linguagem corrente, entre os vários «mundos», é necessário que haja o pleno respeito da identidade de cada povo, com as suas características históricas e culturais. E indispensável, igualmente, conforme o voto já expresso na Encíclica Populorum Progressio, reconhecer a cada povo igual direito a «sentar-se à mesa do banquete comum», 61 em vez de ficar de fora, à porta, como Lázaro, enquanto «os cães lhe vinham lamber as chagas» (cf. Lc 16,21). Tanto os povos como as pessoas individualmente devem gozar da igualdade fundamental, 62 sobre que está baseada, por exemplo, a Carta da Organização das Nações Unidas; esta igualdade é o fundamento do direito à participação de todos no processo de desenvolvimento integral.

Para ser integral, o desenvolvimento deve realizar-se no quadro da solidariedade e da liberdade, sem jamais sacrificar uma e outra, com nenhum pretexto. O carácter moral do desenvolvimento e a necessidade da sua promoção são exaltados quando existe o mais rigoroso respeito por todas as exigências derivadas da ordem da verdade e do bem, próprios da criatura humana. O cristão, além disso, educado para ver no homem a imagem de Deus, chamado à participação da verdade e do bem, que é o próprio Deus, não compreende o empenho pelo desenvolvimento e a sua realização fora da observância e do respeito devido à dignidade única dessa «imagem». Por outras palavras, o verdadeiro desenvolvimento deve fundar-se no amor de Deus e do próximo, e contribuir para facilitar as relações entre os indivíduos e as sociedades. Está nisto a «civilização do amor», de que falava com frequência o Papa Paulo VI.

61. Cf. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 47: l.c, p. 280: «... um mundo em que a liberdade não seja uma palavra vã e em que o pobre Lázaro possa sentar-se à mesa do rico».
62. Cf. ibid, PP 47: l.c., p. 280: «Trata-se de construir um mundo em que todos os homens, sem excepção de raça, religião ou nacionalidade, possam viver uma vida plenamente humana livre das servidões que lhes vêm dos homens ...», cf. também CONC. ECUM. VATICANO II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes, GS 29. Esta igualdade fundamental é um dos motivos basilares pelo qual a Igreja sempre se opôs a toda a forma de racismo.



34 O carácter moral do desenvolvimento também não pode prescindir do respeito pelos seres que formam a natureza visível, a que os Gregos, aludindo precisamente à ordem que a distingue, chamavam o «cosmos». Também estas realidades exigem respeito, em virtude de três considerações sobre as quais convém reflectir atentamente.

A primeira refere-se às vantagens de tomar ainda mais consciência de que não pode fazer-se impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados — animais, plantas e elementos naturais — como se quiser, em função das próprias exigências económicas. Pelo contrário, é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado, qual é exactamente o cosmos.

A segunda consideração funda-se, por sua vez, na convicção, dir-se-ia mais premente, da limitação dos recursos naturais, alguns dos quais não são renováveis, como se diz. Usá-los como se fossem inexauríveis, com absoluto domínio, põe em perigo seriamente a sua disponibilidade, não só para a geração presente, mas sobretudo para as gerações futuras.

A terceira consideração relaciona-se directamente com as consequências que tem um certo tipo de desenvolvimento, quanto à qualidade da vida nas zonas industrializadas. Todos sabemos que, como resultado directo ou indirecto da industrialização, se dá, cada vez com maior frequência, a contaminação do ambiente, com graves consequências para a saúde da população.

Torna-se evidente, uma vez mais, que o desenvolvimento e a vontade de planificação que o orienta, assim como o uso dos recursos e a maneira de os utilizar, não podem ser separados do respeito das exigências morais. Uma destas impõe limites, sem dúvida, ao uso da natureza visível. O domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de «usar e abusar», ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de «comer o fruto da árvore» (cf.
Gn 2,16-17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas.

Uma justa concepção do desenvolvimento não pode prescindir destas considerações — relativas ao uso dos elementos da natureza, às possibilidades de renovação dos recursos e às consequências de uma industrialização desordenada — as quais propõem uma vez mais a nossa consciência a dimensão moral, que deve distinguir o desenvolvimento. 63

63. Cf. Homilia em Val Visdende, Itália, (12 de Julho de 1987), 5: L'Osservatore Romano, 13-14 de Julho de 1987; PAULO VI, Carta Apost. Octogesima Adveniens (14 de Maio de 1971), 21: AAS 63 (1971), pp. 416-417.



V. UMA LEITURA TEOLÓGICA DOS PROBLEMAS MODERNOS

35 À luz do mesmo carácter moral, que é essencial ao desenvolvimento, devem ser considerados também os obstáculos que a ele se opõem. Se durante os anos decorridos desde a publicação da Encíclica de Paulo VI o desenvolvimento não se verificou — ou se verificou em medida escassa, irregular, se não mesmo contraditória — as razões não podem ser só de natureza económica. Como já se fez alusão, acima, intervêm nele também móbeis políticos. As decisões que impulsionam ou refreiam o desenvolvimento dos povos, outra coisa não são, efectivamente, senão factores de carácter político. Para superar os mecanismos perversos, já recordados, e substituí-los com outros novos, mais justos e mais conformes ao bem comum da humanidade, é necessária uma vontade política eficaz. Infelizmente, depois de se ter analisado a situação, é forçoso concluir que ela foi insuficiente.

Num documento pastoral, como é este, uma análise que se limitasse exclusivamente às causas económicas e políticas do subdesenvolvimento (e guardadas as devidas proporções, também do chamado superdesenvolvimento) ficaria incompleta. É necessário, pois, individualizar as causas de ordem moral que, no plano do comportamento dos homens considerados como pessoas responsáveis, interferem para refrear o curso do desenvolvimento e impedem que o mesmo seja plenamente alcançado.

Do modo análogo, quando há disponibilidade de recursos científicos e técnicos, que, com as indispensáveis decisões concretas de ordem política, devem contribuir para encaminhar finalmente os povos no sentido de um verdadeiro desenvolvimento, a superação dos obstáculos principais verificar-se-á somente a poder de determinações essencialmente morais; estas, para os que acreditam em Deus, de modo especial se forem cristãos, hão-de inspirar-se nos princípios da fé, com o auxílio da graça divina.




36 Por conseguinte, é preciso acentuar que um mundo dividido em blocos, mantidos por ideologias rígidas, onde, em lugar da interdependência e da solidariedade, dominam diferentes formas de imperialismo, não pode deixar de ser um mundo submetido a «estruturas de pecado». O conjunto dos factores negativos, que agem em sentido contrário a uma verdadeira consciência do bem comum universal e à exigência de o favorecer, dá a impressão de criar, nas pessoas e nas instituições, um obstáculo difícil de superar. 64

Se a situação actual se deve atribuir a dificuldades de índole diversa, não será fora de propósito falar de «estruturas de pecado», as quais, como procurei mostrar na Exortação Apostólica Reconciliatio et Paenitentia, se radicam no pecado pessoal e, por consequência, estão sempre ligadas a actos concretos das pessoas, que as fazem aparecer, as consolidam e tornam difícil removê-las. 65 E assim, elas reforçam-se, expandem-se e tornam-se fontes de outros pecados, condicionando o comportamento dos homens.

«Pecado» e «estruturas de pecado» são categorias que não se vê com frequência aplicar à situação do mundo contemporâneo. E no entanto não se chegará facilmente à compreensão profunda da realidade, conforme ela se apresenta aos nossos olhos, sem dar um nome à raiz dos males que nos afligem.

É certo que se pode falar de «egoísmo» e de «vistas curtas»; pode fazer-se referência a «cálculos políticos errados», a «decisões económicas imprudentes». E em cada uma destas avaliações nota-se que há um eco de natureza ético-moral. A condição do homem é tal que torna difícil uma análise mais profunda das accções e das omissões das pessoas, sem implicar, duma maneira ou doutra, juízos ou referências de ordem ética.

Esta avaliação, de per si, é positiva, sobretudo quando se torna inteiramente coerente e quando se fundamenta na fé em Deus e na sua lei que ordena o bem e proíbe o mal.

É nisto que consiste a diferença entre o tipo de análise sócio-política e a referência formal ao «pecado» e às «estruturas de pecado». Segundo esta última maneira de ver são tidas em consideração: a vontade de Deus três vezes Santo; o seu plano sobre os homens; e a sua justiça e a sua misericórdia. Deus, rico em misericórdia, redentor do homem, Senhor e doador da vida, exige da parte dos homens atitudes precisas, que se exprimem também em acções ou omissões que concernem o próximo. E isto está em relação com a «segunda tábua» dos dez Mandamentos (cf.
Ex 20,12-17 Dt 5,16-21): com a inobservância destes, ofende-se a Deus e prejudica-se o próximo, introduzindo no mundo condicionamentos e obstáculos, que vão muito além das acções de uma pessoa e do breve período da sua vida. Interfere-se igualmente no processo do desenvolvimento dos povos, cujo atraso cuja lentidão devem ser julgados também sob esta luz.

64. Cf. CONC. ECUM. VATICANO II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporôneo Gaudium et Spes, GS 25.
65. Exort. Apost. Reconciliatio et Paenitentia (2 de Dezembro de 1984), RP 16: «Pois bem: a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem suscita ou favorece a iniquidade ou a desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas. Uma situação — e de igual modo uma instituição, uma estrutura, uma sociedade — não é, de per si, sujeito de actos morais; por isso, não pode ser, em si mesma, boa ou má»: AAS 77 (1985), p. 217.



Sollicitudo rei socialis PT 27