Sollicitudo rei socialis PT 37


37 A esta análise genérica de ordem religiosa, podem acrescentar-se algumas considerações particulares para observar que entre as acções e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo e as «estruturas» a que elas induzem, as mais características hoje parecem ser sobretudo duas: por um lado, há a avidez exclusiva do lucro; e, por outro lado, a sede do poder, com o objectivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: «a qualquer preço». Por outras palavras, estamos diante da absolutização dos comportamentos humanos, com todas as consequências possíveís.

Embora as duas atitudes de per si sejam separáveis, de modo que uma poderia apresentar-se sem a outra, ambas se encontram - no panorama que se depara aos nossos olhos - indissoluvelmente unidas, quer predomine uma quer a outra.

Obviamente que não são só os indivíduos a tornarem-se vítimas desta dúplice atitude de pecado; podem sê-lo também as nações e os blocos. E isto favorece ainda mais a introducção das «estruturas de pecado» de que falei. Se certas formas modernas de «imperialismo» se considerassem à luz destes critérios morais, descobrir-se-ia que por detrás de certas decisões, aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia, da classe e da tecnologia.

Quis introduzir aqui este tipo de análise sobretudo para indicar qual é a verdadeira natureza do mal, com a qual nos deparamos na questão do «desenvolvimento dos povos»: trata-se de um mal moral, fruto de muitos pecados, que produzem «estruturas de pecado». Diagnosticar assim o mal leva a identificar exactamente, ao nível do comportamento humano, o caminho a seguir para o superar.




38 É um caminho longo e complexo, e, para mais, encontra-se sob constante ameaça, quer pela intrínseca fragilidade dos desígnios e realizações humanas, quer pela mutabilidade das circunstâncias externas assaz imprevisíveis. Todavia, é preciso ter a coragem de enveredar por ele e, se já tiverem sido dados alguns passos, ou já tiver sido percorrida uma parte do trajecto, ir até ao fim.

No contexto destas reflexões, a decisão de pôr-se a caminho ou de continuar a marcha comporta, antes de tudo, um valor moral que os homens e as mulheres que acreditam em Deus reconhecem como requerido pela vontade divina, único e verdadeiro fundamento de uma ética absolutamente vinculante.

É para desejar que mesmo os homens e as mulheres desprovidos de uma fé explícita venham a convencer-se de que os obstáculos interpostos ao desenvolvimento integral, não são apenas de ordem económica, mas dependem de atitudes mais profundas que, para o ser humano, se configuram em valores absolutos. Por isso, é de esperar que todos aqueles que em relação aos seus semelhantes são responsáveis, duma maneira ou doutra, por uma «vida mais humana», inspirados ou não por uma fé religiosa, se dêem plenamente conta da urgente necessidade de uma mudança das atitudes espirituais, que determinam o comportamento de cada homem naquilo que diz respeito a si mesmo e nas relações com o próximo, com as comunidades humanas, mesmo as mais distantes, e com a natureza; e isto, em virtude de valores superiores, como o bem comum, ou, para repetir a feliz expressão da Encíclica Populorum Progressio, o pleno desenvolvimento «do homem todo e de todos os homens». 66

Para os cristãos, como para todos aqueles que reconhecem o significado teológico preciso dal palavra «pecado», a mudança de comportamento, de mentalidade ou de maneira de ser chama-se, na linguagem bíblica, «conversão» (cf.
Mc 1,15 Lc 13,3 Lc 13,5 Is 30,15). Esta conversão designa especificamente uma relação com Deus, com a culpa cometida e com as suas consequências; e, portanto, relação com o próximo, indivíduo ou comunidade. É Deus em «cujas mãos estão os corações dos poderosos» 67 e os de todos os homens, que pode, segundo a sua própria promessa, transformar por obra do seu Espírito os «corações de pedra» em «corações de carne» (cf. Ez 36,26).

No caminho da desejada conversão, rumo à superação dos obstáculos morais para o desenvolvimento, pode-se já apontar, como valor positivo e moral, a consciência crescente da interdependência entre os homens e as nações. O facto de os homens e as mulheres, em várias partes do mundo, sentirem como próprias as injustiças e as violações dos direitos humanos cometidas em países longínquos, que talvez nunca visitem, é mais um sinal de uma realidade interiorizada na consciência, adquirindo assim uma conotação moral.

Trata-se antes de tudo da interdependência apreendida como sistema determinante de relações no mundo contemporâneo, com as suas componentes - económica, cultural, política e religiosa - e assumida como categoria moral.Quando a interdependência é reconhecida assim, a resposta correlativa, como atitude moral e social e como «virtude», é a solidariedade. Esta, portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos. Esta determinação está fundada na firme convicção de que as causas que entravam o desenvolvimento integral são aquela avidez do lucro e aquela sede do poder de que se falou. Estas atitudes e estas «estruturas de pecado» só poderão ser vencidas — pressupondo o auxílio da graça divina — com uma atitude diametralmente oposta: a aplicacão em prol do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para «perder-se» em benefício do próximo em vez de o explorar, e para «servi-lo» em vez de o oprimir para proveito próprio (cf. Mt 10,40-42 Mt 20,25 Mc 10,42-45 Lc 22,25-27).

66. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 42: l.c., p. 278.
67. Cf. Liturgia Horarum, Feria III Hebdomadae IIIae Temporis per annum, Preces ad Vesperas.



39 A prática da solidariedade no interior de cada sociedade é válida, quando os seus membros se reconhecem uns aos outros como pessoas. Aqueles que contam mais, dispondo de uma parte maior de bens e de serviços comuns, hão-de sentir-se responsáveis pelos mais fracos e estar dispostos a compartilhar com eles o que possuem. Por seu lado, os mais fracos, na mesma linha de solidariedade, não devem adoptar uma atitude meramente passiva ou destrutiva do tecido social; mas, embora defendendo os seus direitos legítimos, fazer o que lhes compete para o bem de todos. Os grupos intermédios, por sua vez, não deveriam insistir egoisticamente nos seus próprios interesses, mas respeitar os interesses dos outros.

Sinais positivos no mundo contemporâneo são, ainda, a maior consciência de solidariedade dos pobres entre si, as suas intervenções de apoio recíproco e as manifestações públicas no cenário social sem fazer recurso à violência, mas fazendo presentes as próprias necessidades e os próprios direitos perante a ineficácia e a corrupção dos poderes públicos. Em virtude do seu peculiar compromisso evangélico, a Igreja sente-se chamada a estar ao lado das multidões pobres, a discernir a justiça das suas solicitações e a contribuir para as satisfazer, sem perder de vista o bem dos grupos no quadro do bem comum.

O mesmo critério aplica-se, por analogia, nas relações internacionais. A interdependência deve transformar-se em solidariedade, fundada sobre o princípio de que os bens da criação são destinados a todos: aquilo que a indústria humana produz, com a transformação das matérias-primas e com a contribuição do trabalho, deve servir igualmente para o bem de todos.

Superando os imperialismos de todo o género e os desígnios de conservar a própria hegemonia, as nações mais fortes e mais dotadas devem sentir-se moralmente responsáveis pelas outras, a fim de ser instaurado um verdadeiro sistema internacional, que se apoie no fundamento da igualdade de todos os povos e seja regido pelo indispensável respeito das suas legítimas diferenças. Os países economicamente mais débeis, ou que se encontram nos limites da sobrevivência, com a assistência dos outros povos e da comunidade internacional, hão-de ser postos em condições de dar também eles uma contribuição para o bem comum, mediante os seus tesouros de humanidade e de cultura que, de outro modo, se perderiam para sempre.

A solidariedade ajuda-nos a ver o «outro» — pessoa, povo ou nação — não como um instrumento qualquer, de que se explora, a baixo preço, a capacidade de trabalho e a resistência física, para o abandonar quando já não serve; mas sim, como um nosso «semelhante», um «auxílio» (cf.
Gn 2,18 Gn 2,20), que se há-de tornar participante, como nós, no banquete da vida, para o qual todos os homens são igualmente convidados por Deus. Daqui a importância de despertar a consciência religiosa dos homens e dos povos.

Assim, a exploração, a opressão e o aniquilamento dos outros são excluídos. Estes factos, na divisão actual do mundo em blocos contrapostos, vão confluir no perigo de guerra e na preocupação excessiva pela própria segurança, muitas vezes à custa da autonomia, da livre decisão e da própria integridade territorial das nações mais débeis, que estão abrangidas nas chamadas «zonas de influência» ou nos «cinturões de segurança».

As «estruturas de pecado» e os pecados que nelas vão convergir opõem-se com igual radicalidade à paz e ao desenvolvimento, porque o desenvolvimento, na conhecida expressão da Encíclica de Paulo VI, é «o novo nome da paz».68

Deste modo, a solidariedade que nós propomos é caminho para a paz e, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento. Com efeito, a paz do mundo é inconcebível se não se chegar, por parte dos responsáveis, ao reconhecimento de que a interdependência exige por si mesma a superação da política dos blocos, a renúncia a todas as formas de imperialismo económico, militar ou político, e a transformação da recíproca desconfiança em colaboração. Esta última, precisamente, é o procedimento próprio da solidariedade entre os indivíduos e entre as nações.

O lema do Pontificado do meu venerável predecessor Pio XII era Opus iustitiae pax: a paz é o fruto da justiça. Hoje poder-se-ia dizer, com a mesma justeza e com a mesma força de inspiração bíblica (cf. Is 32,17 Jc 3,18), Opus solidarietatis pax: a paz é o fruto da solidariedade.

A meta da paz, tão desejada por todos, será certamente alcançada com a realização da justiça social e internacional; mas contar-se-á também com a prática das virtudes que favorecem a convivência e nos ensinam a viver unidos, a fim de, unidos, construirmos dando e recebendo, uma sociedade nova e um mundo melhor.

68. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 87: l.c, p 299.



40 A solidariedade é indubitavelmente uma virtude cristã. Na exposição que precede já foi possível entrever numerosos pontos de contacto entre ela e a caridade, sinal distintivo dos discípulos de Cristo (cf. Jn 13,35).

À luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si mesma, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais; mas torna-se a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objecto da acção permanente do Espírito Santo. Por isso, ele deve ser amado, ainda que seja inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor; e é preciso estarmos dispostos ao sacrifício por ele, mesmo ao sacrifício supremo: «dar a vida pelos próprios irmãos» (cf. 1Jn 3,16).

E então, a consciência da paternidade comum de Deus, da fraternidade de todos os homens em Cristo, «filhos no Filho», e da presença e da acção vivificante do Espírito Santo conferirá ao nosso olhar para o mundo como que um novo critério para o interpretar. Por cima dos vínculos humanos e naturais, já tão fortes e estreitos, delineia-se, à luz da fé, um novo modelo de unidade do género humano, no qual deve inspirar-se em última instância a solidariedade. Este supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, é o que nós cristãos designamos com a palavra «comunhão». Esta comunhão, especificamente cristã, ciosamente preservada, alargada e enriquecida com o auxílio do Senhor, é a alma da vocação da Igreja para ser «sacramento», no sentido já indicado.

A solidariedade, portanto, deve contribuir para a realização deste desígnio divino, tanto no plano individual como no da sociedade nacional e internacional. Os «mecanismos perversos» e as «estruturas de pecado», de que falámos, só poderão ser vencidos mediante a prática daquela solidariedade humana e cristã, a que a Igreja convida e que ela promove incansavelmente. Só desta maneira muitas energias positivas poderão soltar-se inteiramente, em prol do desenvolvimento e da paz.

Muitos Santos canonizados pela Igreja oferecem admiráveis testemunhos desta solidariedade e podem servir de exemplo nas difíceis circunstâncias actuais. Entre todos, quereria recordar: São Pedro Claver, que se pôs ao serviço dos escravos, em Cartagena das Índias; e São Maximiliano Maria Kolbe, que ofereceu a sua vida em favor de um prisioneiro que lhe era desconhecido, no campo de concentração de Auschwitz-Oswiecim.



VI. ALGUMAS ORIENTAÇÕES PARTICULARES

41 A Igreja não tem soluções técnicas que possa oferecer para o problema do subdesenvolvimento enquanto tal, como já afirmou o Papa Paulo VI na sua Encíclica. 69 Com efeito, ela não propõe sistemas ou programas económicos e políticos, nem manifesta preferências por uns ou por outros, contanto que a dignidade do homem seja devidamente respeitada e promovida e a ela própria seja deixado o espaço necessário para desempenhar o seu ministério no mundo.

Mas a Igreja é «perita em humanidade», 70 e isso impele-a necessariamente a alargar a sua missão religiosa aos vários campos em que os homens e as mulheres desenvolvem as suas actividades em busca da felicidade, sempre relativa, que é possível neste mundo, em conformidade com a sua dignidade de pessoas.

A exemplo dos meus Predecessores, devo repetir que não se pode reduzir a um problema «técnico» aquilo que, como é o caso do desenvolvimento autêntico, concerne a dignidade do homem e dos povos. Reduzido a isso, o desenvolvimento ficaria esvaziado do seu verdadeiro conteúdo e cometer-se-ia um acto de traição para com o homem e os povos, ao serviço dos quais ele deve ser posto.

É por isso que a Igreja tem uma palavra a dizer, hoje como há vinte anos e também no futuro, a respeito da natureza, das condições, das exigências e das finalidades do desenvolvimento autêntico e, de igual modo, a respeito dos obstáculos que o entravam. Ao fazê-lo, a Igreja está a cumprir a missão de evangelizar, porque dá a sua primeira contribuição para a solução do urgente problema do desenvolvimento, quando proclama a verdade acerca de Cristo, de si mesma e do homem aplicando-a a uma situação concreta. 71

Como instrumento para alcançar este objectivo, a Igreja utiliza a sua doutrina social.Na difícil conjuntura presente, tanto para favorecer a correcta formulação dos problemas que se apresentam, como para a sua melhor solução, poderá ser de grande ajuda um conhecimento mais exacto e uma difusão mais ampla do «conjunto dos princípios de reflexão, dos critérios de julgamento e das directrizes de acção» propostos pelo seu ensinamento. 72

Notar-se-á assim, imediatamente, que as questões que hão-de ser enfrentadas são, antes de mais nada, morais; e que nem a análise do problema do desenvolvimento enquanto tal, nem os meios para superar as presentes dificuldades podem prescindir desta dimensão essencial.

A doutrina social da Igreja não é uma «terceira via» entre capitalismo liberalista e colectivismo marxista, nem sequer uma possível alternativa a outras soluções menos radicalmente contrapostas: ela constitui por si mesma uma categoria.Não é tampouco uma ideologia, mas a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo tempo transcendente; visa, pois, orientar o comportamento cristão. Ela pertence, por conseguinte, não ao dominio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral.

O ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja. E, tratando-se de uma doutrina destinada a orientar o comportamento das pessoas, há-de levar cada uma delas, como consequência, ao «empenhamento pela justica» segundo o papel, a vocação e as circunstâncias pessoais.

O exercício do ministério da evangelização em campo social, que é um aspecto do múnus profético da Igreja, compreende também a denúncia dos males e das injustiças. Mas convém esclarecer que o anúncio é sempre mais importante do que a denúncia, e esta não pode prescindir daquele, pois é isso que lhe dá a verdadeira solidez e a força da motivação mais alta.

69. Cf. ibid.,
PP 13 PP 81: l.c., pp. 263-264. 296-297.
70. Cf. ibid., PP 13: l.c., p. 263
71. Cf. Discurso de abertura da Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (28 de Janeiro de 1979): AAS 71 (1979) pp. 189-196.
72. CONGR. PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a Liberdade cristã e a Libertação Libertatis Conscientia (22 de Março de 1986), 72: AAS 79 (1987), p. 586; PAULO VI, Carta Apost. Octogesima Adveniens (14 de Maio de 1971), 4: AAS 63 (1971), pp. 403-404.



42 A doutrina social da Igreja hoje, mais do que no passado, tem o dever de se abrir para uma perspectiva internacional na linha do Concílio Vaticano II, 73 das Encíclicas mais recentes 74 e, em particular, daquela que estamos a comemorar. 75 Não será supérfluo, portanto, reexaminar e aprofundar sob esta luz, os temas e as orientações característicos, que foram repetidamente ventilados pelo Magistério nestes últimos anos.

Desejo aqui recordar um deles: a opção ou amor preferencial pelos pobres. Trata-se de uma opção, ou de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela concerne a vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens.

Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, 76 este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-tecto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor: não se pode deixar de ter em conta a existência destas realidades. Ignorá-las significaria tornar-nos como o «rico epulão», que fingia não conhecer o pobre Lázaro, que jazia ao seu portão (
Lc 16,19-31). 77

A nossa vida quotidiana deve ser marcada por estas realidades, como também as nossas decisões em campo político e económico. Os responsáveis das nações e dos próprios Organismos internacionais, igualmente, enquanto lhes incumbe a obrigação de terem sempre presente, como prioritária nos seus planos, a verdadeira dimensão humana, não devem esquecer-se de dar precedência ao fenómeno crescente da pobreza. Os pobres, infelizmente, em vez de diminuírem, multiplicam-se, não só nos países menos desenvolvidos, mas, o que parece não menos escandaloso, também nos que estão mais desenvolvidos.

É necessário recordar mais uma vez o princípio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo são originariamente destinados a todos. 78 O direito à propriedade privada é válido e necessário, mas não anula o valor de tal princípio. Sobre a propriedade, de facto, grava «uma hipoteca social», 79 quer dizer, nela é reconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens. Nem se há-de descurar, neste empenhamento pelos pobres, aquela forma especial de pobreza que é a privação dos direitos fundamentais da pessoa, em particular, do direito à liberdade religiosa e, ainda, do direito à iniciativa económica.

73. Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, II Parte, c. V, secção II: «Edificação da comunidade internacional» (nn. GS 83-90).
74. Cf. JOÃO XXIII, Carta Enc. Mater et Magistra (15 de Maio de 1961): AAS 53 (19GI), p. MM 440 Carta Enc. Pacem in Terris (ll de Abril de 1963), IV parte: AAS 55 (1963) pp. PT 291-296; PAULO VI, Carta Apost. Octogesima Adveniens (14 de Maio de 1971), 2-4: AAS 63 (1971), pp. 402-404.
75. Cf. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 3 PP 9: l.c., pp. 258. 261.
76. Ibid., PP 3: l.c., p. 258.
77. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 47: l.c., p. 280; CONGR. PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a Liberdade cristã e a Libertação Libertatis Conscientia (22 de Março de 1986), 68: AAS 79 (1987), pp. 583-584.
78. Cf. CONC. ECUM. VATICANO II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 69; PAULO VI, Carta Enc. Populorum Progressio, PP 22: l.c., p. 268; CONGR. PARA A DOUTRINA DA FÉ Instrução sobre a Liberdade cristã e a Libertação Libertatis Conscientia (22 de Março de 1986), 90: AAS 79 (1987), p. 594; SÃO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theol. II-II 66,2.
79. Cf. Discurso de abertura da Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (28 de Janeiro de 1979): AAS 71 (1979), pp. 189-196; Discurso a um grupo de Bispos da Polónia em visita «ad Limina Apostolorum» (17 de Dezembro de 1987), 6: L'Osservatore Romano, 18 de Dezembro de 1987.



43 A estimulante preocupação pelos pobres — os quais, segundo a fórmula significativa, são «os pobres do Senhor» 80 — deve traduzir-se, a todos os níveis, em actos concretos até chegar decididamente a uma série de reformas necessárias. Depende de cada uma das situações locais individualizar as mais urgentes e os meios para as realizar. Mas não se hão-de esquecer aquelas que são requeridas pela situação de desequilíbrio internacional, acima descrita.

A este respeito, desejo recordar em particular: a reforma do sistema internacional de comércio, hipotecado pelo proteccionismo e pelo bilateralismo crescente; a reforma do sistema monetário e financeiro mundial, hoje reconhecido insuficiente; a questão dos intercâmbios de tecnologias e do seu uso apropriado; a necessidade de uma revisão da estrutura das Organizações internacionais existentes, no quadro de uma ordem jurídica internacional.

O sistema internacional de comércio hoje discrimina frequentemente os produtos das indústrias incipientes dos países em vias de desenvolvimento, ao mesmo tempo que desencoraja os produtores de matérias-primas. Existe, outrossim, uma espécie de divisão internacional do trabalho, por força da qual os produtos a baixo preço, de alguns países que não dispõem de legislações eficazes sobre o trabalho ou demasiado fracos para as aplicar, são vendidos noutras partes do mundo com lucros consideráveis para as empresas especializadas neste ramo de produção, que não conhece fronteiras.

O sistema monetário e financeiro mundial caracteriza-se pela excessiva flutuação dos métodos de câmbio e de taxas de juros, em detrimento da balança de pagamentos e da situação de endividamento dos países pobres.

As tecnologias e as suas transferencias constituem hoje um dos principais problemas do intercâmbio internacional, com os graves prejuízos que daí resultam. Não são raros os casos de países em vias de desenvolvimento, aos quais se negam as tecnologias necessárias ou se lhes enviam as inúteis.

As Organizações internacionais, segundo a opinião de muitos, parecem encontrar-se num momento da sua existência em que os mecanismos de funcionamento, as despesas administrativas e a sua eficácia requerem um reexame atento e eventuais correcções. Evidentemente, um processo tão delicado não poderá ser levado por diante sem a colaboração de todos. Ora isso pressupõe a superação das rivalidades políticas e a renúncia a toda a pretensão de instrumentalizar as mesmas Organizações, que têm como única razão de ser o bem comum.

As Instituições e as Organizações existentes têm trabalhado bem em favor dos povos. Contudo, a humanidade, ao enfrentar uma fase nova e mais difícil do seu desenvolvimento autêntico, hoje tem necessidade de um grau superior de ordenação a nível internacional, ao serviço das sociedades, das economias e das culturas do mundo inteiro.

80. Porque o Senhor quis identificar-se com eles (
Mt 25,31-46) e os toma especialmente ao seu cuidado (cf. Ps 12,6 [11], 6; Lc 1,52-53).



44 O desenvolvimento requer sobretudo espírito de iniciativa da parte dos próprios países que necessitam dele. 81 Cada um deve agir segundo as próprias responsabilidades, sem estar à espera de tudo dos países mais favorecidos, e trabalhando em colaboração com os outros que se encontram na mesma situação. Cada um deve descobrir e aproveitar, o mais possível, o espaço da própria liberdade.Cada um deverá tornar-se capaz de iniciativas correspondentes às próprias exigências como sociedade. Cada um deverá também dar-se conta das necessidades reais, assim como dos direitos e dos deveres que se lhe impõem de as satisfazer. O desenvolvimento dos povos começa e encontra a actuação mais indicada no esforço de cada povo pelo próprio desenvolvimento em colaboração com os demais.

Neste sentido, é importante que as próprias nações em vias de desenvolvimento favoreçam a auto-afirmação de cada cidadão, mediante o acesso a uma cultura maior e a uma livre circulação das informações. Tudo o que puder favorecer a alfabetização e a educação de base, que a aprofunde e complete, como propunha a Encíclica Populorum Progressio 82 — objectivos ainda longe de serem realidade em muitas regiões do mundo — é uma contribuição directa para o verdadeiro desenvolvimento.

Para enveredarem por este caminho as mesmas nações deverão discernir as próprias prioridades e reconhecer bem as próprias necessidades, em função das condições peculiares da população, do ambiente geográfico e das tradições culturais.

Algumas nações deverão incrementar a produção alimentar, para terem sempre à disposição o necessário ao sustento e à vida. No mundo contemporâneo — onde a fome faz tantas vítimas, especialmente entre a infância — há exemplos de nações que, sem serem particularmente desenvolvidas, mesmo assim conseguiram alcançar o objectivo da auto-suficiência alimentar, até ao ponto de se tornarem exportadoras de géneros alimentícios.

Outras nações precisam de reformar algumas estruturas injustas e, em particular, as próprias instituições políticas, para substituir regimes corruptos, ditatoriais ou autoritários com regimes democráticos, que favoreçam a participação.É um processo que fazemos votos se alargue e se consolide, porque a «saúde» de uma comunidade política — enquanto expressa mediante a livre participação e responsabilidade de todos os cidadãos na coisa pública, a firmeza do direito e o respeito e a promoção dos direitos humanos — é condição necessária e garantia segura de desenvolvimento do «homem todo e de todos os homens».

81. Carta Enc. Populorum Progressio,
PP 55: l.c., p. 284: «É ... a estes homens e a estas mulheres que é preciso ajudar e convencer da necessidade de eles mesmos realizarem o seu próprio desenvolvimento e de adquirirem progressivamente os meios para o atingir»; cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 86.
82. Carta Enc. Populorum Progressio, PP 35: l.c, p 274 «A educação de base é o primeiro objectivo dum plano de desenvolvimento».



45 Tudo isto que acaba de ser dito não poderá realizar-se sem a colaboração de todos, especialmente da comunidade internacional, no quadro de uma solidariedade que abranja a todos, a começar pelos mais marginalizados. Mas as próprias nações em vias de desenvolvimento têm o dever de praticar a solidariedade entre si próprias e com os países mais marginalizados do mundo.

É para desejar, por exemplo, que as nações de uma mesma área geográfica: estabeleçam formas de colaboração que as tornem menos dependentes de produtores mais poderosos; abram as fronteiras aos produtos da mesma zona; examinem as eventuais complementaridades das produções respectivas; se associem para se dotarem dos serviços que cada uma sozinha não está em condições de organizar; e alarguem a sua colaboração ao sector monetário e financeiro.

A interdependência é já uma realidade em muitos destes países. Reconhecê-la, de maneira a torná-la mais activa, representa uma alternativa à excessiva dependência de países mais ricos e poderosos, na linha própria do desenvolvimento desejado, sem se contraporem a ninguém, mas descobrindo e valorizando ao máximo as próprias possibilidades. Os países em vias cle desenvolvimento de uma mesma área geográfica, sobretudo aqueles que estão incluídos sob a designação «Sul», podem e devem constituir — como já se começa a fazer com resultados prometedores — novas organizações regionais, inspiradas em critérios de igualdade, liberdade e participação no concerto das nações.

A solidariedade universal requer, como condição indispensável, a autonomia e a livre disposição de si, também no âmbito interno de associações como as que acabam de ser indicadas. Mas, ao mesmo tempo, requer disponibilidade para aceitar os sacrifícios necessários para o bem da comunidade mundial.




VII. CONCLUSÃO

46 Os povos e os indivíduos aspiram à própria libertação: a busca do desenvolvimento pleno é o sinal do seu desejo de superar os múltiplos obstáculos que os impedem de usufruir de uma «vida mais humana».

Recentemente, no período sucessivo à publicação da Encíclica Populorum Progressio, nalgumas áreas da Igreja católica, em particular na América Latina, difundiu-se umanova maneira de enfrentar os problemas da miséria e do subdesenvolvimento, que faz da libertação a categoria fundamental e o primeiro princípio de acção. Os valores positivos, mas também os desvios e os perigos de desvio, ligados a esta forma de reflexão e de elaboração teológica, foram oportunamente indicados pelo Magistério eclesiástico. 83

É conveniente acrescentar que a aspiração à libertação de toda e qualquer forma de escravatura, relativa ao homem e à sociedade, é algo nobre e válido. E é isso justamente o que tem em vista o desenvolvimento, ou melhor, a libertação e o desenvolvimento, tendo em conta a íntima conexão existente entre estas duas realidades.

Um desenvolvimento somente económico não está em condições de libertar o homem; pelo contrário, acaba até por o escravizar mais. Um desenvolvimento que não abranja as dimensões culturais, transcendentes e religiosas do homem e da sociedade menos ainda contribui para a verdadeira libertação, na medida em que não reconhece a existência de tais dimensões e não orienta para elas as próprias metas e prioridades. O ser humano será totalmente livre só quando for ele mesmo, na plenitude dos seus direitos e deveres; o mesmo se deve dizer da sociedade inteira.

O obstáculo principal a superar para uma verdadeira libertação é o pecado, roborado pelas estruturas que ele suscita, à medida que se multiplica e se expande. 84

A liberdade para a qual «Cristo nos libertou» (cf.
Ga 5,1), estimula-nos a converter-nos em servos de todos. Assim o processo do desenvolvimento e da libertação concretiza-se na prática da solidariedade, ou seja, do amor e do serviço ao próximo, particularmente aos mais pobres: «Onde faltam a verdade e o amor, o processo de libertação leva à morte de uma liberdade que terá perdido toda a base de apoio». 85

83. Cf. CONGR. PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre alguns aspectos da «Teologia da Libertação» Libertatis Nuntius (6 de Agosto de 1984), Introdução: AAS 76 (1984), pp. 876-877.
84. Cf. Exort. Apost Reconciliatio et Paenitentia (2 de Dezembro de 1984), RP 16: AAS 77 (1985), pp. 213-217; CONGR. PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a liberdade cristã e a Libertação Libertatis Conscientia (22 de Março de 1986), 38; 42: AAS 79 (1987), pp. 569. 571.
85. CONGR. PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a Liberdade cristã e a Libertação Libertatis Conscientia (22 de Março de 1986), 24: AAS 79 (1987), p. 564.



Sollicitudo rei socialis PT 37