Verbum Domini PT 56

A sacramentalidade da Palavra


56 Com o apelo ao carácter performativo da Palavra de Deus na acção sacramental e o aprofundamento da relação entre Palavra e Eucaristia, somos introduzidos num tema significativo, referido durante a Assembleia do Sínodo: a sacramentalidade da Palavra.[195] A este respeito é útil recordar que o Papa João Paulo II já aludira «ao horizonte sacramental da Revelação e, de forma particular, ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mistério».[196] Daqui se compreende que, na origem da sacramentalidade da Palavra de Deus, esteja precisamente o mistério da encarnação: «o Verbo fez-Se carne» (Jn 1,14), a realidade do mistério revelado oferece-se a nós na «carne» do Filho. A Palavra de Deus torna-se perceptível à fé através do «sinal» de palavras e gestos humanos. A fé reconhece o Verbo de Deus, acolhendo os gestos e as palavras com que Ele mesmo se nos apresenta. Portanto, o horizonte sacramental da revelação indica a modalidade histórico-salvífica com que o Verbo de Deus entra no tempo e no espaço, tornando-Se interlocutor do homem, chamado a acolher na fé o seu dom.

Assim é possível compreender a sacramentalidade da Palavra através da analogia com a presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados.[197] Aproximando-nos do altar e participando no banquete eucarístico, comungamos realmente o corpo e o sangue de Cristo. A proclamação da Palavra de Deus na celebração comporta reconhecer que é o próprio Cristo que Se faz presente e Se dirige a nós[198] para ser acolhido. Referindo-se à atitude que se deve adoptar tanto em relação à Eucaristia como à Palavra de Deus, São Jerónimo afirma: «Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu ensinamento. E quando Ele fala em “comer a minha carne e beber o meu sangue” (Jn 6,53), embora estas palavras se possam entender do Mistério [eucarístico], todavia também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério [eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?».[199] Realmente presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo está presente, de modo análogo, também na Palavra proclamada na liturgia. Por isso, aprofundar o sentido da sacramentalidade da Palavra de Deus pode favorecer uma maior compreensão unitária do mistério da revelação em «acções e palavras intimamente relacionadas»,[200] sendo de proveito à vida espiritual dos fiéis e à acção pastoral da Igreja.

[195] Cf. Propositio 7.
[196] Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), FR 13: AAS 91 (1999), 16.
[197] Cf. Catecismo da Igreja Católica, CEC 1373-1374.
[198] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 7.
[199] In Psalmum 147: CCL 78, 337-338.
[200] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 2.

A Sagrada Escritura e o Leccionário


57 Ao acentuar o nexo entre Palavra e Eucaristia, o Sínodo quis justamente evocar também alguns aspectos da celebração inerentes ao serviço da Palavra. Quero mencionar, em primeiro lugar, a importância do Leccionário. A reforma desejada pelo Concílio Vaticano II[201] mostrou os seus frutos, tornando mais rico o acesso à Sagrada Escritura que é oferecida abundantemente sobretudo nas liturgias do domingo. A estrutura actual, além de apresentar com frequência os textos mais importantes da Escritura, favorece a compreensão da unidade do plano divino, através da correlação entre as leituras do Antigo e do Novo Testamento, «centrada em Cristo e no seu mistério pascal».[202] Certas dificuldades que se sentem ao querer identificar as relações entre as leituras dos dois Testamentos devem ser consideradas à luz da leitura canónica, ou seja, da unidade intrínseca da Bíblia inteira. Onde se sentir a necessidade, os organismos competentes podem prover à publicação de subsídios que tornem mais fácil compreender o nexo entre as leituras propostas pelo Leccionário, que devem ser todas proclamadas na assembleia litúrgica, como previsto pela liturgia do dia. Eventuais problemas e dificuldades sejam assinalados à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.

Além disso, não devemos esquecer que o Leccionário actual do rito latino tem também um significado ecuménico, visto que é utilizado e apreciado mesmo por confissões em comunhão ainda não plena com a Igreja Católica. De modo diverso se apresenta o problema do Leccionário nas liturgias das Igrejas Católicas Orientais, que o Sínodo pede para ser «examinado com autoridade»[203] segundo a tradição própria e as competências das Igrejas sui iuris e tendo em conta também o contexto ecuménico.

[201] Cf. Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium,
SC 107-108.
[202] Ordenamento das Leituras da Missa, 66.
[203] Propositio 16.

Proclamação da Palavra e ministério do leitorado


58 Na assembleia sinodal sobre a Eucaristia, já se tinha pedido maior cuidado com a proclamação da Palavra de Deus.[204] Como é sabido, enquanto o Evangelho é proclamado pelo sacerdote ou pelo diácono, a primeira e a segunda leitura na tradição latina são proclamadas pelo leitor encarregado, homem ou mulher. Quero aqui fazer-me eco dos Padres sinodais que sublinharam, também naquela circunstância, a necessidade de cuidar, com uma adequada formação,[205] o exercício da função de leitor na celebração litúrgica[206] e de modo particular o ministério do leitorado que enquanto tal, no rito latino, é ministério laical. É necessário que os leitores encarregados de tal serviço, ainda que não tenham recebido a instituição no mesmo, sejam verdadeiramente idóneos e preparados com empenho. Tal preparação deve ser não apenas bíblica e litúrgica mas também técnica: «A formação bíblica deve levar os leitores a saberem enquadrar as leituras no seu contexto e a identificarem o centro do anúncio revelado à luz da fé. A formação litúrgica deve comunicar aos leitores uma certa facilidade em perceber o sentido e a estrutura da liturgia da Palavra e os motivos da relação entre a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A preparação técnica deve tornar os leitores cada vez mais idóneos na arte de lerem em público tanto com a simples voz natural, como com a ajuda dos instrumentos modernos de amplificação sonora».[207]

[204] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 45: AAS 99 (2007), 140-141.
[205] Cf. Propositio 14.
[206] Cf. Código de Direito Canónico, cân.
CIC 230,2 CIC 204,1.
[207] Ordenamento das Leituras da Missa, 55.

A importância da homilia


59 «As tarefas e funções que competem a cada um relativamente à Palavra de Deus são diversas: aos fiéis compete ouvi-la e meditá-la, enquanto a sua exposição cabe somente àqueles que, em virtude da Ordem sacra, receberam a tarefa do magistério, ou àqueles a quem é confiado o exercício deste ministério»,[208] ou seja, bispos, presbíteros e diáconos. Daqui se compreende a atenção particular que, no Sínodo, foi dispensada ao tema da homilia. Já na Exortação apostólica pós-sinodalSacramentum caritatis, recordei como, «pensando na importância da palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a qualidade da homilia; de facto, “esta constitui parte integrante da acção litúrgica”, cuja função é favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da Palavra de Deus na vida dos fiéis».[209] A homilia constitui uma actualização da mensagem da Sagrada Escritura, de tal modo que os fiéis sejam levados a descobrir a presença e a eficácia da Palavra de Deus no momento actual da sua vida. Aquela deve levar à compreensão do mistério que se celebra; convidar para a missão, preparando a assembleia para a profissão de fé, a oração universal e a liturgia eucarística. Consequentemente aqueles que, por ministério específico, estão incumbidos da pregação tenham verdadeiramente a peito esta tarefa. Devem-se evitar tanto homilias genéricas e abstractas que ocultam a simplicidade da Palavra de Deus, como inúteis divagações que ameaçam atrair a atenção mais para o pregador do que para o coração da mensagem evangélica. Deve resultar claramente aos fiéis que aquilo que o pregador tem a peito é mostrar Cristo, que deve estar no centro de cada homilia. Por isso, é preciso que os pregadores tenham familiaridade e contacto assíduo com o texto sagrado;[210] preparem-se para a homilia na meditação e na oração, a fim de pregarem com convicção e paixão. A assembleia sinodal exortou a ter presente as seguintes perguntas: «O que dizem as leituras proclamadas? O que dizem a mim pessoalmente? O que devo dizer à comunidade, tendo em conta a sua situação concreta?».[211] O pregador deve deixar-se «interpelar primeiro pela Palavra de Deus que anuncia»,[212] porque – como diz Santo Agostinho – «seguramente fica sem fruto aquele que prega exteriormente a Palavra de Deus sem a escutar no seu íntimo».[213] Cuide-se, com atenção particular, a homilia dos domingos e solenidades; e mesmo durante a semana nas Missas cum populo, quando possível, não se deixe de oferecer breves reflexões, apropriadas à situação, para ajudar os fiéis a acolherem e tornarem fecunda a Palavra escutada.

[208] Ibid., 8.
[209] N. 46: AAS 99 (2007), 141.
[210] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum,
DV 25.
[211] Propositio 15.
[212] Ibidem.
[213] Sermo 179, 1: PL 38, 966.

Conveniência de um Directório homilético

60 Pregar de modo adequado referindo-se ao Leccionário é verdadeiramente uma arte que deve ser cultivada. Por isso, dando continuidade à solicitação feita no Sínodo anterior,[214] peço às autoridades competentes que, correlativamente ao Compêndio Eucarístico,[215] se pense também em instrumentos e subsídios adequados para ajudar os ministros a desempenhar da melhor forma possível a sua tarefa, como, por exemplo, um Directório sobre a homilia, de modo que os pregadores possam encontrar nele uma ajuda útil a fim de se prepararem no exercício do ministério. E depois, como nos lembra São Jerónimo, a pregação deve ser acompanhada pelo testemunho da própria vida: «Que as tuas acções não desmintam as tuas palavras, para que não aconteça que, quando tu pregares na igreja, alguém comente no seu íntimo: “Então porque é que tu não ages assim?” (…) No sacerdote de Cristo, devem estar de acordo a mente e a palavra».[216]

[214] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 93: AAS 99 (2007), 177.
[215] Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Compendium Eucharisticum(25 de Março de 2009), Cidade do Vaticano 2009.
[216] Epistula 52, 7: CSEL 54, 426-427.

Palavra de Deus, Reconciliação e Unção dos Doentes


61 Embora no centro da relação entre Palavra de Deus e Sacramentos esteja indubitavelmente a Eucaristia, todavia é bom sublinhar a importância da Sagrada Escritura também nos outros Sacramentos, particularmente nos Sacramentos de cura: a Reconciliação ou Penitência e a Unção dos Doentes. Nestes Sacramentos, muitas vezes é negligenciada a referência à Sagrada Escritura, quando, ao contrário, é necessário dar-lhe o espaço que lhe compete. De facto, nunca se deve esquecer que «a Palavra de Deus é palavra de reconciliação, porque nela Deus reconcilia consigo todas as coisas (cf. 2Co 5,18-20 Ep 1,10). O perdão misericordioso de Deus, encarnado em Jesus, reabilita o pecador».[217] Pela Palavra de Deus, «o fiel é iluminado para poder conhecer os seus pecados e é chamado à conversão e à confiança na misericórdia de Deus».[218] Para que se aprofunde a força reconciliadora da Palavra de Deus, recomenda-se que o indivíduo penitente se prepare para a confissão meditando um trecho apropriado da Sagrada Escritura e possa começar a confissão com a leitura ou a escuta de uma advertência bíblica, como aliás está previsto no próprio ritual. Depois, ao manifestar a sua contrição, é bom que o penitente utilize «uma oração composta de palavras da Sagrada Escritura»,[219] prevista pelo ritual. Sempre que possível, seria bom que, em momentos particulares do ano ou quando houver oportunidade, a confissão individual da multidão de penitentes tenha lugar no âmbito de celebrações penitenciais, como previsto pelo ritual, no respeito das várias tradições litúrgicas, para se poder dar amplo espaço à celebração da Palavra com o uso de leituras apropriadas.

Passando ao sacramento da Unção dos Doentes, não se esqueça que «a força salutar da Palavra de Deus é apelo vivo a uma conversão pessoal constante do próprio ouvinte».[220] A Sagrada Escritura contém numerosas páginas de conforto, amparo e cura, que se devem à intervenção de Deus. Em particular, recorde-se a atenção dada por Jesus aos doentes e como Ele mesmo, Verbo de Deus encarnado, carregou as nossas dores e sofreu por amor do homem, dando assim sentido à doença e à morte. É bom que, nas paróquias e sobretudo nos hospitais, se celebre – desde que as circunstâncias o permitam – o Sacramento dos Doentes de forma comunitária. Em tais ocasiões, seja dado amplo espaço à celebração da Palavra e ajudem-se os fiéis doentes a viver com fé a própria condição de sofrimento, em união com o Sacrifício redentor de Cristo que nos liberta do mal.

[217] Propositio 8.
[218] Ritual da Penitência. Preliminares, 17.
[219] Ibid., 19.
[220] Propositio 8.

Palavra de Deus e Liturgia das Horas


62 Entre as formas de oração que exaltam a Sagrada Escritura, conta-se, sem dúvida, a Liturgia das Horas. Os Padres sinodais afirmaram que esta constitui «uma forma privilegiada de escuta da Palavra de Deus, porque põe os fiéis em contacto com a Sagrada Escritura e com a Tradição viva da Igreja».[221] Antes de mais nada, há que lembrar a profunda dignidade teológica e eclesial desta oração. De facto, «na Liturgia das Horas, a Igreja exerce a função sacerdotal da sua Cabeça, “oferecendo ininterruptamente (1Th 5,17) a Deus o sacrifício de louvor, ou seja, o fruto dos lábios que glorificam o seu nome (cf. He 13,15)”. Esta oração é a “voz da Esposa a falar ao Esposo e também a oração que o próprio Cristo, unido ao seu Corpo, eleva ao Pai”».[222] A este propósito, o Concílio Vaticano II afirmara: «Todos os que rezam assim, cumprem, por um lado, a obrigação própria da Igreja, e, por outro, participam na imensa honra da Esposa de Cristo, porque estão em nome da Igreja, diante do trono de Deus, a louvar o Senhor».[223] Na Liturgia das Horas, enquanto oração pública da Igreja, manifesta-se o ideal cristão de santificação do dia inteiro, ritmado pela escuta da Palavra de Deus e pela oração dos Salmos, de modo que toda a actividade encontre o seu ponto de referência no louvor prestado a Deus.

Aqueles que, em virtude do próprio estado de vida, são obrigados a rezar a Liturgia das Horas, vivam fielmente tal compromisso em benefício de toda a Igreja. Os bispos, os sacerdotes e os diáconos aspirantes ao sacerdócio, que receberam da Igreja o mandato de a celebrar, têm a obrigação de rezar diariamente todas as Horas.[224] Relativamente à obrigatoriedade desta liturgia nas Igrejas Orientais Católicas sui iuris, siga-se o que está indicado no direito próprio.[225] Além disso, encorajo as comunidades de vida consagrada a serem exemplares na celebração da Liturgia das Horas, a fim de poderem constituir um ponto de referência e inspiração para a vida espiritual e pastoral de toda a Igreja.

O Sínodo exprimiu o desejo de uma maior difusão no Povo de Deus desta forma de oração, especialmente a recitação de Laudes e Vésperas. Este incremento não deixará de fazer crescer nos fiéis a familiaridade com a Palavra de Deus. Saliente-se também o valor da Liturgia das Horas prevista para as Primeiras Vésperas do domingo e das solenidades, particularmente nas Igrejas Orientais Católicas. Com tal finalidade, recomendo que, onde for possível, as paróquias e as comunidades de vida religiosa favoreçam esta oração com a participação dos fiéis.

[221] Propositio 19.
[222] Princípios e normas para a Liturgia das Horas, III, 15.
[223] Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 85.
[224] Cf. Código de Direito Canónico, cânones CIC 276,3; CIC 1174,1.
[225] Cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cânones CIO 377 CIO 473-§§ 1 e 2/1º; CIO 538-§ 1; CIO 881-§ 1.

Palavra de Deus e Cerimonial das Bênçãos


63 No uso do Cerimonial das Bênçãos, preste-se atenção também ao espaço previsto para a proclamação, a escuta e a explicação da Palavra de Deus, através de breves advertências. Com efeito, o gesto da bênção, nos casos previstos pela Igreja e quando pedido pelos fiéis, não deve aparecer isolado em si mesmo, mas relacionado, no grau que lhe é próprio, com a vida litúrgica do Povo de Deus. Neste sentido, a bênção, como verdadeiro sinal sagrado, «adquire sentido e eficácia da proclamação da Palavra de Deus».[226] Por isso, é importante aproveitar também estas circunstâncias para suscitar nos fiéis fome e sede de toda a palavra que sai da boca de Deus (cf. Mt 4,4).

[226] Ritual Romano, Cerimonial das Bênçãos. Preliminares gerais, 21.

Sugestões e propostas concretas para a animação litúrgica


64 Depois de ter lembrado alguns elementos fundamentais da relação entre Liturgia e Palavra de Deus, quero agora assumir e valorizar algumas propostas e sugestões que os Padres sinodais recomendaram para favorecer, no Povo de Deus, uma crescente familiaridade com a Palavra de Deus no âmbito das acções litúrgicas ou de algum modo relacionadas com elas.

a) Celebrações da Palavra de Deus


65 Os Padres sinodais exortaram todos os Pastores a difundir, nas comunidades a eles confiadas, os momentos de celebração da Palavra:[227] são ocasiões privilegiadas de encontro com o Senhor. Por isso, tal prática não pode deixar de trazer grande proveito aos fiéis, e deve considerar-se um elemento importante da pastoral litúrgica. Estas celebrações assumem particular relevância como preparação para a Eucaristia dominical, de modo que os fiéis tenham possibilidade de penetrar melhor na riqueza do Leccionário para meditar e rezar a Sagrada Escritura, sobretudo nos tempos litúrgicos fortes do Advento e Natal, da Quaresma e Páscoa. Entretanto a celebração da Palavra de Deus é vivamente recomendada nas comunidades onde não é possível, por causa da escassez de sacerdotes, celebrar o Sacrifício Eucarístico nos dias festivos de preceito. Tendo em conta as indicações já expressas na Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis sobre as assembleias dominicais à espera de sacerdote,[228] recomendo que sejam redigidos pelas competentes autoridades directórios rituais, valorizando a experiência das Igrejas Particulares. Assim, em tais situações, hão-de favorecer-se celebrações da Palavra que alimentem a fé dos fiéis, mas evitando que as mesmas sejam confundidas com celebrações eucarísticas; «devem antes tornar-se ocasiões privilegiadas de oração a Deus para que mande sacerdotes santos segundo o seu Coração».[229]

Além disso, os Padres sinodais convidaram a celebrar a Palavra de Deus também por ocasião de peregrinações, festas particulares, missões populares, retiros espirituais e dias especiais de penitência, reparação e perdão. No que se refere às diversas formas de piedade popular, embora não sejam actos litúrgicos nem se devam confundir com as celebrações litúrgicas, todavia é bom que se inspirem nelas e sobretudo que dêem espaço adequado à proclamação e escuta da Palavra de Deus; de facto, «a piedade popular encontrará nas palavras da Bíblia uma fonte inesgotável de inspiração, modelos insuperáveis de oração e fecundas propostas de diversos temas».[230]

[227] Cf. Propositio 18; Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium,
SC 35.
[228] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 75: AAS 99 (2007), 162-163.
[229] Ibid., 75: o.c., 163.
[230] Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e Orientações (17 de Dezembro de 2001), 87: Ench. Vat. 20, n. 2461.

b) A Palavra e o silêncio


66 Várias intervenções dos Padres sinodais insistiram sobre o valor do silêncio para a recepção da Palavra de Deus na vida dos fiéis.[231] De facto, a palavra pode ser pronunciada e ouvida apenas no silêncio, exterior e interior. O nosso tempo não favorece o recolhimento e, às vezes, fica-se com a impressão de ter medo de se separar, por um só momento, dos instrumentos de comunicação de massa. Por isso, hoje é necessário educar o Povo de Deus para o valor do silêncio. Redescobrir a centralidade da Palavra de Deus na vida da Igreja significa também redescobrir o sentido do recolhimento e da tranquilidade interior. A grande tradição patrística ensina-nos que os mistérios de Cristo estão ligados ao silêncio[232] e só nele é que a Palavra pode encontrar morada em nós, como aconteceu em Maria, mulher indivisivelmente da Palavra e do silêncio. As nossas liturgias devem facilitar esta escuta autêntica: Verbo crescente, verba deficiunt.[233]

Que este valor brilhe particularmente na Liturgia da Palavra, que «deve ser celebrada de modo a favorecer a meditação».[234] O silêncio, quando previsto, deve ser considerado «como parte da celebração».[235] Por isso, exorto os Pastores a estimularem os momentos de recolhimento, nos quais, com a ajuda do Espírito Santo, a Palavra de Deus é acolhida no coração.

[231] Cf. Propositio 14.
[232] Cf. Santo Inácio de Antioquia, Ad Ephesios, XV, 2: Patres Apostolici (ed. F. X. Funk, Tubingae 1901), I, 224.
[233] Cf. Santo Agostinho, Sermo 288, 5: PL 38, 1307; Sermo 120, 2: PL 38, 677.
[234] Ordenamento Geral do Missal Romano, 56.
[235] Ibid., 45; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium,
SC 30.

c) Proclamação solene da Palavra de Deus


67 Outra sugestão feita pelo Sínodo foi a de solenizar, sobretudo em ocorrências litúrgicas relevantes, a proclamação da Palavra, especialmente do Evangelho, utilizando o Evangeliário, conduzido processionalmente durante os ritos iniciais e depois levado ao ambão pelo diácono ou por um sacerdote para a proclamação. Deste modo ajuda-se o Povo de Deus a reconhecer que «a leitura do Evangelho constitui o ápice da própria liturgia da Palavra».[236] Seguindo as indicações contidas no Ordenamento das Leituras da Missa, é bom valorizar a proclamação da Palavra de Deus com o canto, particularmente o Evangelho, de modo especial em determinadas solenidades. A saudação, o anúncio inicial: «Evangelho de Nosso Senhor…» e a exclamação final «Palavra da salvação», seria bom proferi-los em canto para evidenciar a importância do que é lido.[237]

[236] Ordenamento das Leituras da Missa, 13.
[237] Cf. ibid., 17.

d) A Palavra de Deus no templo cristão


68 Para favorecer a escuta da Palavra de Deus, não se devem menosprezar os meios que possam ajudar os fiéis a prestar maior atenção. Neste sentido, é necessário que, nos edifícios sagrados, nunca se descuide a acústica, no respeito das normas litúrgicas e arquitectónicas. «Na construção das igrejas, os Bispos, valendo-se da devida ajuda, procurem que sejam locais adequados à proclamação da Palavra, à meditação e à celebração eucarística. Os espaços sagrados, mesmo fora da acção litúrgica, revistam-se de eloquência, apresentando o mistério cristão relacionado com a Palavra de Deus».[238]

Uma atenção especial seja dada ao ambão, enquanto lugar litúrgico donde é proclamada a Palavra de Deus. Deve estar colocado em lugar bem visível, para onde se dirija espontaneamente a atenção dos fiéis durante a liturgia da Palavra. É bom que seja fixo, esculturalmente em harmonia estética com o altar, de modo a representar mesmo visivelmente o sentido teológico da dupla mesa da Palavra e da Eucaristia. A partir do ambão, são proclamadas as leituras, o salmo responsorial e o Precónio pascal; de lá podem ser feitas também a homilia e a leitura da oração dos fiéis.[239]

Além disso, os Padres sinodais sugerem que, nas igrejas, haja um local de honra onde se possa colocar a Sagrada Escritura mesmo fora da celebração.[240] Realmente é bom que o livro onde está contida a Palavra de Deus tenha dentro do templo cristão um lugar visível e de honra, mas sem tirar a centralidade que compete ao Sacrário que contém o Santíssimo Sacramento.[241]

[238] Propositio 40.
[239] Cf. Ordenamento Geral do Missal Romano, 309.
[240] Cf. Propositio 14.
[241] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 69: AAS 99 (2007), 157.

e) Exclusividade dos textos bíblicos na liturgia


69 O Sínodo reafirmou vivamente também aquilo que, aliás, já está estabelecido pela norma litúrgica da Igreja,[242] isto é, que as leituras tiradas da Sagrada Escritura nunca sejam substituídas por outros textos, por mais significativos que estes possam parecer do ponto de vista pastoral ou espiritual: «Nenhum texto de espiritualidade ou de literatura pode atingir o valor e a riqueza contida na Sagrada Escritura que é Palavra de Deus».[243] Trata-se de uma disposição antiga da Igreja que se deve manter.[244] Face a alguns abusos, já o Papa João Paulo II lembrara a importância de nunca se substituir a Sagrada Escritura por outras leituras.[245] Recorde-se que também o Salmo Responsorial é Palavra de Deus, pela qual respondemos à voz do Senhor e por isso não deve ser substituído por outros textos; entretanto é muito oportuno poder proclamá-lo de forma cantada.

[242] Cf. Ordenamento Geral do Missal Romano, 57.
[243] Propositio 14.
[244] Veja-se o cânon 36 do Sínodo de Hipona do ano de 393:
DS 186.
[245] Cf. João Paulo II, Carta ap. Vicesimus quintus annus (4 de Dezembro de 1988), 13: AAS81 (1989), 910; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. sobre alguns aspectos que se devem observar e evitar em relação à Santíssima Eucaristia Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 62: Ench. Vat. 22, n. 2248.

f) Canto litúrgico biblicamente inspirado


70 No âmbito da valorização da Palavra de Deus durante a celebração litúrgica, tenha-se presente também o canto nos momentos previstos pelo próprio rito, favorecendo o canto de clara inspiração bíblica capaz de exprimir a beleza da Palavra divina por meio de um harmonioso acordo entre as palavras e a música. Neste sentido, é bom valorizar aqueles cânticos que a tradição da Igreja nos legou e que respeitam este critério; penso particularmente na importância do canto gregoriano.[246]

[246] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium,
SC 116; Ordenamento Geral do Missal Romano, 41.

g) Particular atenção aos cegos e aos surdos


71 Neste contexto, queria também recordar que o Sínodo recomendou uma atenção particular àqueles que, por causa da própria condição, sentem dificuldade em participar activamente na liturgia, como por exemplo os cegos e os surdos. Na medida do possível, encorajo as comunidades cristãs a providenciarem instrumentos adequados para ir ao encontro da dificuldade que padecem estes irmãos e irmãs, para que lhes seja possível também estabelecer um contacto vivo com a Palavra do Senhor.[247]

[247] Cf. Propositio 14.


A palavra de Deus na vida eclesial

Encontrar a Palavra de Deus na Sagrada Escritura


72 Se é verdade que a liturgia constitui o lugar privilegiado para a proclamação, escuta e celebração da Palavra de Deus, é igualmente verdade que este encontro deve ser preparado nos corações dos fiéis e sobretudo por eles aprofundado e assimilado. De facto, a vida cristã caracteriza-se essencialmente pelo encontro com Jesus Cristo que nos chama a segui-Lo. Por isso, o Sínodo dos Bispos afirmou várias vezes a importância da pastoral nas comunidades cristãs como âmbito apropriado onde percorrer um itinerário pessoal e comunitário relativo à Palavra de Deus, de modo que esta esteja verdadeiramente no fundamento da vida espiritual. Juntamente com os Padres sinodais, expresso o vivo desejo de que floresça «uma nova estação de maior amor pela Sagrada Escritura da parte de todos os membros do Povo de Deus, de modo que, a partir da sua leitura orante e fiel no tempo, se aprofunde a ligação com a própria pessoa de Jesus».[248]

Na história da Igreja, não faltam recomendações dos Santos sobre a necessidade de conhecer a Escritura para crescer no amor de Cristo. Trata-se de um dado particularmente evidente nos Padres da Igreja. São Jerónimo, grande «enamorado» da Palavra de Deus, interrogava-se: «Como seria possível viver sem o conhecimento das Escrituras, se é por elas que se aprende a conhecer o próprio Cristo, que é a vida dos crentes?».[249] Estava bem ciente de que a Bíblia é o instrumento «pelo qual diariamente Deus fala aos crentes».[250] Eis os conselhos que ele dava a Leta, uma matrona romana, para a educação da filha: «Assegura-te de que ela estude diariamente alguma passagem da Escritura. (…) À oração faça seguir a leitura, e à leitura a oração. (…) Que em vez das jóias e dos vestidos de seda, ame os Livros divinos».[251] Permanece válido para nós aquilo que São Jerónimo escrevia ao sacerdote Nepociano: «Lê com muita frequência as Escrituras divinas; mais ainda, que as tuas mãos nunca abandonem o Livro sagrado. Aprende nele o que deves ensinar».[252] Seguindo o exemplo deste grande Santo que dedicou a sua vida ao estudo da Bíblia, tendo dado à Igreja a tradução latina chamada Vulgata, e de todos os Santos que colocaram no centro da sua vida espiritual o encontro com Cristo, renovemos o nosso compromisso de aprofundar a Palavra que Deus deu à Igreja; poderemos assim tender para aquela «medida alta da vida cristã ordinária»,[253] desejada pelo Papa João Paulo II no início do terceiro milénio cristão, que se alimenta constantemente na escuta da Palavra de Deus.

[248] Propositio 9.
[249] Epistula 30, 7: CSEL 54, 246.
[250] Idem, Epistula 133, 13: CSEL 56, 260.
[251] Idem, Epistula 107, 9.12: CSEL 55, 300.302.
[252] Idem, Epistula 52, 7: CSEL 54, 426.
[253] João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001),
NM 31: AAS 93 (2001), 287-288.

A animação bíblica da pastoral

73 Nesta linha, o Sínodo convidou a um esforço pastoral particular para que a Palavra de Deus apareça em lugar central na vida da Igreja, recomendando que «se incremente a “pastoral bíblica”, não em justaposição com outras formas da pastoral mas como animação bíblica da pastoral inteira».[254] Não se trata simplesmente de acrescentar qualquer encontro na paróquia ou na diocese, mas de verificar que, nas actividades habituais das comunidades cristãs, nas paróquias, nas associações e nos movimentos, se tenha realmente a peito o encontro pessoal com Cristo que Se comunica a nós na sua Palavra. Dado que «a ignorância das Escrituras é a ignorância de Cristo»,[255] então podemos esperar que a animação bíblica de toda a pastoral ordinária e extraordinária levará a um maior conhecimento da Pessoa de Cristo, Revelador do Pai e plenitude da Revelação divina.

Por isso exorto os pastores e os fiéis a terem em conta a importância desta animação: será o modo melhor também de enfrentar alguns problemas pastorais referidos durante a assembleia sinodal, ligados por exemplo à proliferação de seitas, que difundem uma leitura deformada e instrumentalizada da Sagrada Escritura. Quando não se formam os fiéis num conhecimento da Bíblia conforme à fé da Igreja no sulco da sua Tradição viva, deixa-se efectivamente um vazio pastoral, onde realidades como as seitas podem encontrar fácil terreno para lançar raízes. Por isso é necessário prover também a uma preparação adequada dos sacerdotes e dos leigos, para poderem instruir o Povo de Deus na genuína abordagem das Escrituras.

Além disso, como foi sublinhado durante os trabalhos sinodais, é bom que, na actividade pastoral, se favoreça também a difusão de pequenas comunidades, «formadas por famílias ou radicadas nas paróquias ou ainda ligadas aos diversos movimentos eclesiais e novas comunidades»,[256] nas quais se promova a formação, a oração e o conhecimento da Bíblia segundo a fé da Igreja.

[254] Propositio 30; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum,
DV 24.
[255] São Jerónimo, Commentariorum in Isaiam libri, Prol.: PL 24, 17B.
[256] Propositio 21.


Verbum Domini PT 56