Verbum Domini PT 74

Dimensão bíblica da catequese


74 Um momento importante da animação pastoral da Igreja, onde se pode sapientemente descobrir a centralidade da Palavra de Deus, é a catequese, que, nas suas diversas formas e fases, sempre deve acompanhar o Povo de Deus. O encontro dos discípulos de Emaús com Jesus, descrito pelo evangelista Lucas (cf. Lc 24,13-35), representa em certo sentido o modelo de uma catequese em cujo centro está a «explicação das Escrituras», que somente Cristo é capaz de dar (cf. Lc 24,27-28), mostrando o seu cumprimento em Si mesmo.[257] Assim, renasce a esperança, mais forte do que qualquer revés, que faz daqueles discípulos testemunhas convictas e credíveis do Ressuscitado.

No Directório Geral da Catequese, encontramos válidas indicações para animar biblicamente a catequese e, para elas, de bom grado remeto.[258] Neste momento, desejo principalmente sublinhar que a catequese «tem de ser impregnada e embebida de pensamento, espírito e atitudes bíblicas e evangélicas, mediante um contacto assíduo com os próprios textos sagrados; e recordar que a catequese será tanto mais rica e eficaz quanto mais ler os textos com a inteligência e o coração da Igreja»[259] e quanto mais se inspirar na reflexão e na vida bimilenária da mesma Igreja. Por isso, deve-se encorajar o conhecimento das figuras, acontecimentos e expressões fundamentais do texto sagrado; com tal finalidade, pode ser útil a memorização inteligente de algumas passagens bíblicas particularmente expressivas dos mistérios cristãos. A actividade catequética implica sempre abeirar-se das Escrituras na fé e na Tradição da Igreja, de modo que aquelas palavras sejam sentidas vivas, como Cristo está vivo hoje onde duas ou três pessoas se reúnem em seu nome (cf. Mt 18,20). A catequese deve comunicar com vitalidade a história da salvação e os conteúdos da fé da Igreja, para que cada fiel reconheça que a sua vida pessoal pertence também àquela história.

Nesta perspectiva, é importante sublinhar a relação entre a Sagrada Escritura e o Catecismo da Igreja Católica, como afirma o Directório Geral da Catequese: «A Sagrada Escritura, como “Palavra de Deus escrita sob a inspiração do Espírito Santo”, e o Catecismo da Igreja Católica, enquanto importante expressão actual da Tradição viva da Igreja e norma segura para o ensino da fé, são chamados a fecundar a catequese na Igreja contemporânea, cada um segundo o seu próprio modo e a sua autoridade específica».[260]

[257] Cf. Propositio 23.
[258] Cf. Congr. para o Clero, Directório Geral da Catequese (15 de Agosto de 1997), 94-96:Ench. Vat. 16, n. 875-878; João Paulo II, Exort. ap. Catechesi tradendae (16 de Outubro de 1979), CTR 27: AAS 71 (1979), 1298-1299.
[259] Congr. para o Clero, Directório Geral da Catequese (15 de Agosto de 1997), 127: Ench. Vat. 16, n. 935; cf. João Paulo II, Exort. ap. Catechesi tradendae (16 de Outubro de 1979), CTR 27:AAS 71 (1979), 1299.
[260] N. 128: Ench. Vat. 16, n. 936.

Formação bíblica dos cristãos


75 Para se alcançar o objectivo desejado pelo Sínodo de conferir maior carácter bíblico a toda a pastoral da Igreja, é necessário que exista uma adequada formação dos cristãos e, em particular, dos catequistas. A este propósito, é preciso prestar atenção ao apostolado bíblico, método muito válido para se atingir tal finalidade, como demonstra a experiência eclesial. Além disso, os Padres sinodais recomendaram que se estabeleçam, possivelmente através da valorização de estruturas académicas já existentes, centros de formação para leigos e missionários, nos quais se aprenda a compreender, viver e anunciar a Palavra de Deus e, onde houver necessidade, constituam-se Institutos especializados em estudos bíblicos a fim de dotarem os exegetas de uma sólida compreensão teológica e uma adequada sensibilidade para os ambientes da sua missão.[261]

[261] Cf. Propositio 33.

A Sagrada Escritura nos grandes encontros eclesiais

76 Entre as múltiplas iniciativas que podem ser tomadas, o Sínodo sugere que nos encontros, tanto a nível diocesano como nacional ou internacional, se ponha em maior evidência a importância da Palavra de Deus, da sua escuta e da leitura crente e orante da Bíblia. Por isso, no âmbito dos Congressos Eucarísticos, nacionais e internacionais, das Jornadas Mundiais da Juventude e de outros encontros poder-se-á louvavelmente reservar maior espaço para celebrações da Palavra e para momentos de formação de carácter bíblico.[262]

[262] Cf. Propositio 45.

Palavra de Deus e vocações


77 O Sínodo, quando sublinhou a exigência intrínseca que tem a fé de aprofundar a relação com Cristo, Palavra de Deus entre nós, quis também evidenciar que esta Palavra chama cada um em termos pessoais, revelando assim que a própria vida é vocação em relação a Deus. Isto significa que quanto mais aprofundarmos a nossa relação pessoal com o Senhor Jesus, tanto mais nos damos conta de que Ele nos chama à santidade, através de opções definitivas, pelas quais a nossa vida responde ao seu amor, assumindo funções e ministérios para edificar a Igreja. É neste horizonte que se entendem os convites feitos pelo Sínodo a todos os cristãos para aprofundarem a relação com a Palavra de Deus, não só como baptizados mas também enquanto chamados a viver segundo os diversos estados de vida. Aqui tocamos um dos pontos fundamentais da doutrina do Concílio Vaticano II, que sublinhou a vocação à santidade de todo o fiel, cada um no seu próprio estado de vida.[263] Na Sagrada Escritura, encontramos revelada a nossa vocação à santidade: «Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo» (cf. Lv 11,44 Lv 19,2 Lv 20,7). Depois São Paulo põe em evidência a sua raiz cristológica: o Pai, em Cristo, «escolheu-nos, antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos» (Ep 1,4). Deste modo podemos tomar como dirigida a cada um de nós a saudação dele aos irmãos e irmãs da comunidade de Roma: «A todos os amados de Deus (…), chamados à santidade: Graça e paz vos sejam dadas da parte de Deus, nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo» (Rm 1,7).

[263] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 39-42.

a) Palavra de Deus e Ministros Ordenados


78 Dirigindo-me em primeiro lugar aos Ministros Ordenados da Igreja, recordo-lhes o que afirmou o Sínodo: «A Palavra de Deus é indispensável para formar o coração de um bom pastor, ministro da Palavra».[264] Bispos, presbíteros e diáconos não podem de forma alguma pensar viver a sua vocação e missão sem um decidido e renovado compromisso de santificação, que tem um dos seus pilares no contacto com a Bíblia.


79 Àqueles que foram chamados ao episcopado e que são os anunciadores primeiros e com maior autoridade da Palavra, desejo reafirmar o que o Papa João Paulo II deixou escrito na Exortação apostólica pós-sinodal Pastores gregis: Para nutrir e fazer crescer a vida espiritual, o Bispo deve colocar sempre em «primeiro lugar a leitura e a meditação da Palavra de Deus. Cada Bispo deverá sempre confiar-se e sentir-se confiado “a Deus e à palavra da sua graça que tem o poder de construir o edifício e de conceder parte na herança com todos os santificados” (Ac 20,32). Por isso, antes de ser transmissor da Palavra, o Bispo, como os seus sacerdotes e como qualquer fiel – mais ainda, como a própria Igreja – deve ser ouvinte da Palavra. Deve de certo modo estar “dentro” da Palavra, para deixar-se guardar e nutrir dela como de um ventre materno».[265] À imitação de Maria, Virgo audiens e Rainha dos Apóstolos, recomendo a todos os irmãos no episcopado a leitura pessoal frequente e o estudo assíduo da Sagrada Escritura.

[264] Propositio 31.
[265] N. : AAS 96 (2004), 846-847.

80 Quanto aos sacerdotes, quero apontar-lhes as palavras do Papa João Paulo II, quando, na Exortação apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis, recordou que, «antes de mais, o sacerdote é ministro da Palavra de Deus, é consagrado e enviado a anunciar a todos o Evangelho do Reino, chamando cada homem à obediência da fé e conduzindo os crentes a um conhecimento e comunhão sempre mais profundos do mistério de Deus, revelado e comunicado a nós em Cristo. Por isso, o próprio sacerdote deve ser o primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com a Palavra de Deus: não basta conhecer o aspecto linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; é preciso abeirar-se da Palavra com coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade – “o pensamento de Cristo” (1Co 2,16)».[266] E consequentemente as suas palavras, as suas opções e atitudes devem ser cada vez mais uma transparência, um anúncio e um testemunho do Evangelho; «só “permanecendo” na Palavra, é que o presbítero se tornará perfeito discípulo do Senhor, conhecerá a verdade e será realmente livre».[267]

Em suma, a vocação ao sacerdócio requer que sejam consagrados «na verdade». O próprio Jesus formula esta exigência referindo-se aos seus discípulos: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os envio ao mundo» (Jn 17,17-18). Os discípulos, de certo modo, «são atraídos para a intimidade de Deus por meio da sua imersão na Palavra divina. Esta é, por assim dizer, o banho que os purifica, o poder criador que os transforma no ser de Deus».[268] E visto que o próprio Cristo é a Palavra de Deus feita carne (cf. Jn 1,14), é «a Verdade» (Jn 14,6), então a oração de Jesus ao Pai «consagra-os na verdade» quer dizer fundamentalmente: «Torna-os um só comigo. Une-os a Mim. Atrai-os para dentro de Mim. E de facto, em última análise, há apenas um único sacerdote da Nova Aliança: o próprio Jesus Cristo».[269] É necessário, pois, que os sacerdotes renovem sempre mais profundamente em si a consciência desta realidade.

[266] N. PDV 26: AAS 84 (1992), 698.
[267] Ibid., PDV 26: o.c., 698.
[268] Bento XVI, Homilia na Missa Crismal (9 de Abril de 2009): AAS 101 (2009), 355.
[269] Ibid.: o.c., 356.

81 Quero referir-me também ao lugar da Palavra de Deus na vida daqueles que são chamados aodiaconado, não só como grau prévio da Ordem do Presbiterado, mas também enquanto serviço permanente. O Directório para o diaconado permanente afirma que «da identidade teológica do diácono derivam com clareza os traços da sua espiritualidade específica, que se apresenta essencialmente como espiritualidade de serviço. O modelo por excelência é Cristo servo, que viveu totalmente ao serviço de Deus, para o bem dos homens».[270] Nesta perspectiva, compreende-se como, nas várias dimensões do ministério diaconal, um «elemento caracterizador da espiritualidade diaconal seja a Palavra de Deus, que o diácono é chamado a anunciar com autoridade, acreditando naquilo que proclama, ensinando aquilo que acredita, vivendo aquilo que ensina».[271] Por isso recomendo aos diáconos que incrementem uma leitura crente da Sagrada Escritura na própria vida com o estudo e a oração. Sejam iniciados na Sagrada Escritura e na sua recta interpretação, na mútua relação entre a Escritura e a Tradição, e particularmente na utilização da Escritura na pregação, na catequese e na actividade pastoral em geral.[272]

[270] Congr. para a Educação Católica, Normas fundamentais para a formação dos diáconos permanentes (22 de Fevereiro de 1998), 11: Ench. Vat. 17, nn. 174-175.
[271] Ibid., 74: o.c., 263.
[272] Cf. ibid., 81: o.c., 271.

b) Palavra de Deus e candidatos às Ordens Sacras


82 O Sínodo deu particular atenção ao papel decisivo da Palavra de Deus na vida espiritual dos candidatos ao sacerdócio ministerial: «Os candidatos ao sacerdócio devem aprender a amar a Palavra de Deus. Por isso, seja a Escritura a alma da sua formação teológica, evidenciando a circularidade indispensável entre exegese, teologia, espiritualidade e missão».[273] Os aspirantes ao sacerdócio ministerial são chamados a uma profunda relação pessoal com a Palavra de Deus, particularmente na lectio divina, porque é de tal relação que se alimenta a sua vocação: é com a luz e a força da Palavra de Deus que pode ser descoberta, compreendida, amada e seguida a respectiva vocação e levada a cabo a própria missão, alimentando no coração os pensamentos de Deus, de modo que a fé, como resposta à Palavra, se torne o novo critério de juízo e avaliação dos homens e das coisas, dos acontecimentos e dos problemas.[274]

Esta atenção à leitura orante da Escritura não deve, de modo algum, alimentar uma dicotomia com o estudo exegético que se requer durante o tempo da formação. O Sínodo recomendou que os seminaristas sejam concretamente ajudados a ver a relação entre o estudo bíblico e a oração com a Escritura. O estudo das Escrituras deve torná-los mais conscientes do mistério da revelação divina e alimentar uma atitude de resposta orante ao Senhor que fala. Por sua vez, uma vida autêntica de oração não poderá deixar de fazer crescer, na alma do candidato, o desejo de conhecer cada vez mais a Deus que Se revelou na sua Palavra como amor infinito. Por isso, dever-se-á procurar com o máximo cuidado que, na vida dos seminaristas, se cultive esta reciprocidade entre estudo e oração. Para tal objectivo, é útil que os candidatos sejam iniciados no estudo da Sagrada Escritura segundo métodos que favoreçam esta abordagem integral.

[273] Propositio 32.
[274] Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992),
PDV 47:AAS 84 (1992), 740-742.

c) Palavra de Deus e vida consagrada


83 Relativamente à vida consagrada, o Sínodo lembrou em primeiro lugar que esta «nasce da escuta da Palavra de Deus e acolhe o Evangelho como sua norma de vida».[275] Deste modo, viver no seguimento de Cristo casto, pobre e obediente é uma «“exegese” viva da Palavra de Deus».[276] O Espírito Santo, por cuja virtude foi escrita a Bíblia, é o mesmo que ilumina «a Palavra de Deus, com nova luz, para os fundadores e fundadoras. Dela brotou cada um dos carismas e dela cada regra quer ser expressão»,[277] dando origem a itinerários de vida cristã marcados pela radicalidade evangélica.

Desejo lembrar que a grande tradição monástica sempre teve como factor constitutivo da própria espiritualidade a meditação da Sagrada Escritura, particularmente na forma da lectio divina. De igual modo, hoje, as realidades antigas e novas de especial consagração são chamadas a ser verdadeiras escolas de vida espiritual onde se há-de ler as Escrituras segundo o Espírito Santo na Igreja, de modo que todo o Povo de Deus disso mesmo possa beneficiar. Por isso, o Sínodo recomenda que nunca falte nas comunidades de vida consagrada uma sólida formação para a leitura crente da Bíblia.[278]

Desejo fazer-me eco da solicitude e gratidão que o Sínodo exprimiu pelas formas de vida contemplativa, que, pelo seu carisma específico, dedicam boa parte das suas jornadas a imitar a Mãe de Deus que meditava assiduamente as palavras e os factos do seu Filho (cf.
Lc 2,19 Lc 2,51) e Maria de Betânia que, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra (cf. Lc 10,38). Penso de modo particular nos monges e monjas de clausura que, sob a forma de separação do mundo, se encontram mais intimamente unidos a Cristo, coração do mundo. A Igreja tem extrema necessidade do testemunho de quem se compromete a «nada antepor ao amor de Cristo».[279] Com frequência, o mundo actual vive demasiadamente absorvido pelas actividades exteriores, onde corre o risco de se perder. As mulheres e os homens contemplativos, com a sua vida de oração, de escuta e meditação da Palavra de Deus lembram-nos que não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (cf. Mt 4,4). Por isso, todos os fiéis tenham bem presente que uma tal forma de vida «indica ao mundo de hoje o que é mais importante e, no fim de contas, a única coisa decisiva: existe uma razão última pela qual vale a pena viver, isto é, Deus e o seu amor imperscrutável».[280]

[275] Propositio 24.
[276] Bento XVI, Homilia no Dia Mundial da Vida Consagrada (2 de Fevereiro de 2008): AAS100 (2008), 133; cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Março de 1996), VC 82: AAS 88 (1996), 458-460.
[277] Congr. para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Instr.Recomeçar a partir de Cristo. Um renovado compromisso da vida consagrada no terceiro milénio (19 de Maio de 2002), 24: Ench. Vat. 21, n. 447.
[278] Cf. Propositio 24.
[279] São Bento, Regra, RB 4,21: SC 181, 456-458.
[280] Bento XVI, Discurso durante a visita à Abadia de «Heiligenkreuz» (9 de Setembro de 2007): AAS 99 (2007), 856.


d) Palavra de Deus e fiéis leigos


84 O Sínodo concentrou muitas vezes a sua atenção nos fiéis leigos, agradecendo-lhes o generoso empenho com que difundem o Evangelho nos vários âmbitos da vida diária: no trabalho, na escola, na família e na educação.[281] Tal obrigação, que deriva do baptismo, deve poder desenrolar-se através de uma vida cristã cada vez mais consciente e capaz de dar «razão da esperança» que vive em nós (cf. 1P 3,15). Jesus, no Evangelho de Mateus, indica que «o campo é o mundo, a boa semente são os filhos do Reino» (Mt 13,38). Estas palavras aplicam-se de modo particular aos leigos cristãos, que realizam a própria vocação à santidade com uma vida segundo o Espírito que se exprime «de forma peculiar na sua inserção nas realidades temporais e na sua participação nas actividades terrenas».[282] Precisam de ser formados a discernir a vontade de Deus por meio de uma familiaridade com a Palavra de Deus, lida e estudada na Igreja, sob a guia dos legítimos Pastores. Possam eles beber esta formação nas escolas das grandes espiritualidades eclesiais, em cuja raiz está sempre a Sagrada Escritura. As próprias dioceses, na medida das suas possibilidades, proporcionem oportunidades de uma tal formação aos leigos com particulares responsabilidades eclesiais.[283]

[281] Cf. Propositio 30.
[282] João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), CL 17:AAS 81 (1989), 418.
[283] Cf. Propositio 33.

e) Palavra de Deus, matrimónio e família


85 O Sínodo sentiu necessidade de sublinhar também a relação entre Palavra de Deus, matrimónio e família cristã. Com efeito, «com o anúncio da Palavra de Deus, a Igreja revela à família cristã a sua verdadeira identidade, o que ela é e deve ser segundo o desígnio do Senhor».[284] Por isso, nunca se perca de vista que a Palavra de Deus está na origem do matrimónio (cf. Gn 2,24) e que o próprio Jesus quis incluir o matrimónio entre as instituições do seu Reino (cf. Mt 19,4-8), elevando a sacramento o que originalmente estava inscrito na natureza humana. «Na celebração sacramental, o homem e a mulher pronunciam uma palavra profética de doação recíproca: ser “uma só carne”, sinal do mistério da união de Cristo e da Igreja (cf. Ep 5,31-32)».[285] A fidelidade à Palavra de Deus leva também a evidenciar que hoje esta instituição encontra-se, em muitos aspectos, sujeita a ataques pela mentalidade corrente. Perante a difundida desordem dos sentimentos e o despontar de modos de pensar que banalizam o corpo humano e a diferença sexual, a Palavra de Deus reafirma a bondade originária do ser humano, criado como homem e mulher e chamado ao amor fiel, recíproco e fecundo.

Do grande mistério nupcial deriva uma imprescindível responsabilidade dos pais em relação aos seus filhos. De facto, pertence à autêntica paternidade e maternidade a comunicação e o testemunho do sentido da vida em Cristo: através da fidelidade e unidade da vida familiar, os esposos são, para os seus filhos, os primeiros anunciadores da Palavra de Deus. A comunidade eclesial deve sustentá-los e ajudá-los a desenvolverem a oração em família, a escuta da Palavra, o conhecimento da Bíblia. Por isso, o Sínodo deseja que cada casa tenha a sua Bíblia e a conserve em lugar digno para poder lê-la e utilizá-la na oração. A ajuda necessária pode ser fornecida por sacerdotes, diáconos e leigos bem preparados. O Sínodo recomendou também a formação de pequenas comunidades entre famílias, onde se cultive a oração e a meditação em comum de trechos apropriados da Sagrada Escritura.[286] Os esposos lembrem-se de que «a Palavra de Deus é um amparo precioso inclusive nas dificuldades da vida conjugal e familiar».[287]

Neste contexto, quero evidenciar as recomendações do Sínodo quanto à função das mulheres relativamente à Palavra de Deus. A contribuição do «génio feminino» – assim lhe chamava o Papa João Paulo II[288] – para o conhecimento da Escritura e para a vida inteira da Igreja é hoje maior do que no passado e tem a ver com o campo dos próprios estudos bíblicos. De modo especial, o Sínodo deteve-se sobre o papel indispensável das mulheres na família, na educação, na catequese e na transmissão dos valores. Com efeito, elas «sabem suscitar a escuta da Palavra, a relação pessoal com Deus e comunicar o sentido do perdão e da partilha evangélica»,[289] como também ser portadoras de amor, mestras de misericórdia e construtoras de paz, comunicadoras de calor e humanidade num mundo que demasiadas vezes se limita a avaliar as pessoas com os critérios frios da exploração e do lucro.

[284] João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), FC 49: AAS 74 (1982), 140-141.
[285] Propositio 20.
[286] Cf. Propositio 21.
[287] Propositio 20.
[288] Cf. Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), MD 31: AAS 80 (1988), 1727-1729.
[289] Propositio 17.

Leitura orante da Sagrada Escritura e «lectio divina»


86 O Sínodo insistiu repetidamente sobre a exigência de uma abordagem orante do texto sagrado como elemento fundamental da vida espiritual de todo o fiel, nos diversos ministérios e estados de vida, com particular referência à lectio divina.[290] Com efeito, a Palavra de Deus está na base de toda a espiritualidade cristã autêntica. Esta posição dos Padres sinodais está em sintonia com o que diz a Constituição dogmática Dei Verbum: Todos os fiéis «debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração».[291] A reflexão conciliar pretendia retomar a grande tradição patrística que sempre recomendou abeirar-se da Escritura em diálogo com Deus. Como diz Santo Agostinho: «A tua oração é a tua palavra dirigida a Deus. Quando lês, é Deus que te fala; quando rezas, és tu que falas a Deus».[292] Orígenes, um dos mestres nesta leitura da Bíblia, defende que a inteligência das Escrituras exige, ainda mais do que o estudo, a intimidade com Cristo e a oração; realmente é sua convicção que o caminho privilegiado para conhecer Deus é o amor e de que não existe uma autêntica scientia Christi sem enamorar-se d’Ele. Na Carta a Gregório, o grande teólogo alexandrino recomenda: «Dedica-te à lectio das divinas Escrituras; aplica-te a isto com perseverança. Empenha-te na lectio com a intenção de crer e agradar a Deus. Se durante a lectio te encontras diante de uma porta fechada, bate e ser-te-á aberta por aquele guardião de que falou Jesus: “O guardião abrir-lha-á”. Aplicando-te assim à lectio divina, procura com lealdade e inabalável confiança em Deus o sentido das Escrituras divinas, que nelas amplamente se encerra. Mas não deves contentar-te com bater e procurar; para compreender as coisas de Deus, tens necessidade absoluta da oratio. Precisamente para nos exortar a ela é que o Salvador não se limitou a dizer: “procurai e encontrareis” e “batei e ser-vos-á aberto”, mas acrescentou: “pedi e recebereis”».[293]

A este propósito, porém, deve-se evitar o risco de uma abordagem individualista, tendo presente que a Palavra de Deus nos é dada precisamente para construir comunhão, para nos unir na Verdade no nosso caminho para Deus. Sendo uma Palavra que se dirige a cada um pessoalmente, é também uma Palavra que constrói comunidade, que constrói a Igreja. Por isso, o texto sagrado deve-se abordar sempre na comunhão eclesial.Com efeito, «é muito importante a leitura comunitária, porque o sujeito vivo da Sagrada Escritura é o Povo de Deus, é a Igreja. (…) A Escritura não pertence ao passado, porque o seu sujeito, o Povo de Deus inspirado pelo próprio Deus, é sempre o mesmo e, portanto, a Palavra está sempre viva no sujeito vivo. Então é importante ler a Sagrada Escritura e ouvi-la na comunhão da Igreja, isto é, com todas as grandes testemunhas desta Palavra, a começar dos primeiros Padres até aos Santos de hoje e ao Magistério actual».[294]

Por isso, na leitura orante da Sagrada Escritura, o lugar privilegiado é a Liturgia, particularmente a Eucaristia, na qual, ao celebrar o Corpo e o Sangue de Cristo no Sacramento, se actualiza no meio de nós a própria Palavra. Em certo sentido, a leitura orante pessoal e comunitária deve ser vivida sempre em relação com a celebração eucarística. Assim como a adoração eucarística prepara, acompanha e prolonga a liturgia eucarística,[295] assim também a leitura orante pessoal e comunitária prepara, acompanha e aprofunda o que a Igreja celebra com a proclamação da Palavra no âmbito litúrgico. Colocando em relação tão estreita lectio e liturgia, podem-se identificar melhor os critérios que devem guiar esta leitura no contexto da pastoral e da vida espiritual do Povo de Deus.

[290] Cf. Propositiones 9 e 22.
[291] N.
DV 25.
[292] Enarrationes in Psalmos, 85, 7: PL 37, 1086.
[293] Orígenes, Epistola ad Gregorium, 3: PG 11, 92.
[294] Bento Xvi, Discurso aos alunos do Seminário Maior Romano (19 de Fevereiro de 2007):AAS 99 (2007), 253-254.
[295] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 66: AAS 99 (2007), 155-156.

87 Nos documentos que prepararam e acompanharam o Sínodo, falou-se dos vários métodos para se abeirar, com fruto e na fé, das Sagradas Escrituras. Todavia prestou-se maior atenção à lectio divina, que «é verdadeiramente capaz não só de desvendar ao fiel o tesouro da Palavra de Deus, mas também de criar o encontro com Cristo, Palavra divina viva».[296] Quero aqui lembrar, brevemente, os seus passos fundamentais: começa com a leitura (lectio) do texto, que suscita a interrogação sobre um autêntico conhecimento do seu conteúdo: o que diz o texto bíblico em si? Sem este momento, corre-se o risco que o texto se torne somente um pretexto para nunca ultrapassar os nossos pensamentos. Segue-se depois a meditação (meditatio), durante a qual nos perguntamos: que nos diz o texto bíblico? Aqui cada um, pessoalmente mas também como realidade comunitária, deve deixar-se sensibilizar e pôr em questão, porque não se trata de considerar palavras pronunciadas no passado, mas no presente. Sucessivamente chega-se ao momento da oração (oratio), que supõe a pergunta: que dizemos ao Senhor, em resposta à sua Palavra? A oração enquanto pedido, intercessão, acção de graças e louvor é o primeiro modo como a Palavra nos transforma. Finalmente, a lectio divina conclui-se com a contemplação (contemplatio), durante a qual assumimos como dom de Deus o seu próprio olhar, ao julgar a realidade, e interrogamo-nos: qual é a conversão da mente, do coração e da vida que o Senhor nos pede? São Paulo, na Carta aos Romanos, afirma: «Não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, a fim de conhecerdes a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito» (Rm 12,2). De facto, a contemplação tende a criar em nós uma visão sapiencial da realidade segundo Deus e a formar em nós «o pensamento de Cristo» (1Co 2,16). Aqui a Palavra de Deus aparece como critério de discernimento: ela é «viva, eficaz e mais penetrante que uma espada de dois gumes; penetra até dividir a alma e o corpo, as junturas e as medulas e discerne os pensamentos e intenções do coração» (He 4,12). Há que recordar ainda que a lectio divina não está concluída, na sua dinâmica, enquanto não chegar à acção (actio), que impele a existência do fiel a doar-se aos outros na caridade.

Estes passos encontramo-los sintetizados e resumidos, de forma sublime, na figura da Mãe de Deus. Modelo para todo o fiel de acolhimento dócil da Palavra divina, Ela «conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração» (Lc 2,19; cf. Lc 2,51), e sabia encontrar o nexo profundo que une os acontecimentos, os actos e as realidades, aparentemente desconexos, no grande desígnio divino.[297]

Além disso, quero lembrar a recomendação feita durante o Sínodo relativa à importância da leitura pessoal da Escritura como prática que prevê a possibilidade também de obter, segundo as disposições habituais da Igreja, a indulgência para si próprio ou para os defuntos.[298] A prática da indulgência[299] implica a doutrina dos méritos infinitos de Cristo – que a Igreja, como ministra da redenção, concede e aplica –, mas supõe também a doutrina da Comunhão dos Santos, que nos mostra «como é íntima a nossa união em Cristo e quanto a vida sobrenatural de cada um pode auxiliar os outros».[300] Nesta perspectiva, a leitura da Palavra de Deus apoia-nos no caminho de penitência e conversão, permite-nos aprofundar o sentido de pertença eclesial e conserva-nos numa familiaridade mais profunda com Deus. Como afirmava Santo Ambrósio, quando tomamos nas mãos, com fé, as Sagradas Escrituras e as lemos com a Igreja, a pessoa humana volta a passear com Deus no paraíso.[301]

[296] Mensagem final, III, 9.
[297] Cf. ibidem.
[298] «Plenaria indulgentia conceditur christifideli qui Sacram Scripturam, iuxta textum a competenti auctoritate adprobatum, cum veneratione divino eloquio debita et ad modum lectionis spiritalis, per dimidiam saltem horam legerit; si per minus tempus id egerit indulgentia erit partialis – Concede-se a indulgência plenária ao fiel que ler a Sagrada Escritura, num texto aprovado pela autoridade competente, com a devoção devida à palavra divina e a modo de leitura espiritual, pelo menos meia hora; se a leitura durar menos tempo, a indulgência é parcial»: Paenitentiaria Apostolica, Enchiridion Indulgentiarum. Normae et concessiones (16 de Julho de 1999), concessão n. 30-§ 1.
[299] Cf. Catecismo da Igreja Católica, CEC 1471-1479.
[300] Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina (1 de Janeiro de 1967), 9: AAS 59 (1967), 18-19.
[301] Cf. Epistula 49, 3: PL 16, 1204A.

Palavra de Deus e oração mariana


88 Pensando na relação indivisível entre a Palavra de Deus e Maria de Nazaré, convido, juntamente com os Padres sinodais, a promover entre os fiéis, sobretudo na vida familiar, as orações marianas que constituem uma ajuda para meditar os santos mistérios narrados pela Sagrada Escritura. Um meio muito útil é, por exemplo, a recitação pessoal ou comunitária do Rosário,[302] que repercorre juntamente com Maria os mistérios da vida de Cristo[303] e que o Papa João Paulo II quis enriquecer com os mistérios de luz.[304] É conveniente que o anúncio dos diversos mistérios seja acompanhado por breves trechos da Bíblia sobre o mistério enunciado, para assim favorecer a memorização de algumas expressões significativas da Escritura relativas aos mistérios da vida de Cristo.

Além disso, o Sínodo recomendou que se promova entre os fiéis a recitação da oração do Angelus Domini. Trata-se de uma oração simples e profunda que nos permite «recordar diariamente o Verbo Encarnado».[305] É oportuno que o Povo de Deus, as famílias e as comunidades de pessoas consagradas sejam fiéis a esta oração mariana, que a tradição nos convida a rezar ao alvorecer, ao meio-dia e ao entardecer. Na oração do Angelus Domini, pedimos a Deus que, pela intercessão de Maria, nos seja concedido também cumprir a vontade de Deus como Ela e acolher em nós a sua Palavra. Esta prática pode ajudar-nos a intensificar um amor autêntico ao mistério da Encarnação.

Merecem ser conhecidas, apreciadas e difundidas também algumas antigas orações do Oriente cristão que, através de uma referência à Theotokos, à Mãe de Deus, percorrem toda a história da salvação. Referimo-nos particularmente ao Akathistos e à Paraklesis.São hinos de louvor cantados em forma de litania, impregnados de fé eclesial e de alusões bíblicas, que ajudam os fiéis a meditar juntamente com Maria os mistérios de Cristo. De modo especial, o venerável hino à Mãe de Deus denominado Akathistos – quer dizer: cantado permanecendo de pé –, representa uma das mais altas expressões de piedade mariana da tradição bizantina.[306] Rezar com estas palavras dilata a alma e dispõe-na para a paz que vem do Alto, de Deus – a paz que é o próprio Cristo, nascido de Maria para a nossa salvação.

[302] Cf. Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e Orientações (17 de Dezembro de 2001), 197-202: Ench. Vat.20, nn. 2638-2643.
[303] Cf. Propositio 55.
[304] Cf. João Paulo II, Carta ap. Rosarium Virginis Mariae (16 de Outubro de 2002)
RVM 1: AAS 95 (2003), 5-36.
[305] Propositio 55.
[306] Cf. Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e Orientações (17 de Dezembro de 2001), 207: Ench. Vat. 20, nn. 2656-2657.


Verbum Domini PT 74