Verbum Domini PT 89

Palavra de Deus e Terra Santa


89 Recordando o Verbo de Deus que Se faz carne no seio de Maria de Nazaré, o nosso coração volta-se agora para aquela Terra onde se cumpriu o mistério da nossa redenção e donde a Palavra de Deus se difundiu até aos confins do mundo. De facto, por obra do Espírito Santo, o Verbo encarnou num momento concreto e num lugar determinado, numa orla de terra situada nos confins do Império Romano. Por isso, quanto mais contemplamos a universalidade e a unicidade da pessoa de Cristo, tanto mais olhamos agradecidos para aquela Terra onde Jesus nasceu, viveu e Se entregou a Si mesmo por todos nós. As pedras sobre as quais caminhou o nosso Redentor permanecem para nós carregadas de recordações e continuam a «gritar» a Boa Nova. Por isso, os Padres sinodais lembraram a expressão feliz dada à Terra Santa: «o quinto Evangelho».[307] Como é importante a existência de comunidades cristãs naqueles lugares, apesar das inúmeras dificuldades! O Sínodo dos Bispos exprime profunda solidariedade a todos os cristãos que vivem na Terra de Jesus, dando testemunho da fé no Ressuscitado. Lá os cristãos são chamados a servir como «um farol de fé para a Igreja universal e também como fermento de harmonia, sabedoria e equilíbrio na vida duma sociedade que tradicionalmente foi e continua a ser pluralista, multiétnica e multirreligiosa».[308]

A Terra Santa continua ainda hoje a ser meta de peregrinação do povo cristão, vivida como gesto de oração e de penitência, como o era já na antiguidade segundo o testemunho de autores como São Jerónimo.[309] Quanto mais voltamos o olhar e o coração para a Jerusalém terrena, tanto mais se inflama em nós o desejo da Jerusalém celeste, verdadeira meta de toda a peregrinação, e a paixão de que o nome de Jesus – o único em que se encontra a salvação – seja reconhecido por todos (cf.
Ac 4,12).

[307] Cf. Propositio 51.
[308] Bento XVI, Homilia na Santa Missa junto do Vale de Josafat, em Jerusalém (12 de Maio de 2009): AAS 101 (2009), 473.
[309] Cf. Epistula 108, 14: CSEL 55, 324-325.


III PARTE


VERBUM MUNDO

«Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer»

(Jn 1,18)

A missão da Igreja: anunciar a palavra de Deus ao mundo

A Palavra que sai do Pai e volta para o Pai


90 São João sublinha fortemente o paradoxo fundamental da fé cristã. Por um lado, afirma que «ninguém jamais viu a Deus» (Jn 1,18 cf. 1Jn 4,12): de modo nenhum podem as nossas imagens, conceitos ou palavras definir ou calcular a realidade infinita do Altíssimo; permanece o Deus semper maior. Por outro lado, diz que realmente o Verbo «Se fez carne» (Jn 1,14). O Filho unigénito, que está voltado para o seio do Pai, revelou o Deus que «ninguém jamais viu» (Jn 1,18). Jesus Cristo vem a nós «cheio de graça e de verdade» (Jn 1,14), que nos são dadas por meio d’Ele (cf. Jn 1,17); de facto, «da sua plenitude é que todos nós recebemos, graça sobre graça» (Jn 1,16). E assim, no Prólogo, o evangelista João contempla o Verbo desde o seu estar junto de Deus passando pelo fazer-Se carne, até ao regresso ao seio do Pai, levando consigo a nossa própria humanidade que assumiu para sempre. Neste sair do Pai e voltar ao Pai (cf. Jn 13,3 Jn 16,28 Jn 17,8 Jn 17,10), Ele apresenta-Se-nos como o «Narrador» de Deus (cf. Jn 1,18). De facto, o Filho – afirma Santo Ireneu de Lião – «é o Revelador do Pai».[310] Jesus de Nazaré é, por assim dizer, o «exegeta» de Deus que «ninguém jamais viu»; «Ele é a imagem do Deus invisível» (Col 1,15). Cumpre-se aqui a profecia de Isaías relativa à eficácia da Palavra do Senhor: assim como a chuva e a neve descem do céu para regar e fazer germinar a terra, assim também a Palavra de Deus «não volta sem ter produzido o seu efeito, sem ter executado a minha vontade e cumprido a sua missão» (Is 55,10-11). Jesus Cristo é esta Palavra definitiva e eficaz que saiu do Pai e voltou a Ele, realizando perfeitamente no mundo a sua vontade.

[310] Adversus haereses, IV, 20, 7: PG 7, 1037.

Anunciar ao mundo o «Logos» da Esperanç\b\ia


91 O Verbo de Deus comunicou-nos a vida divina que transfigura a face da terra, fazendo novas todas as coisas (cf. Ap 21,5). A sua Palavra envolve-nos não só como destinatários da revelação divina, mas também como seus arautos.Ele, o enviado do Pai para cumprir a sua vontade (cf. Jn 5,36-38 Jn 6,38-40 Jn 7,16-18), atrai-nos a Si e envolve-nos na sua vida e missão. Assim o Espírito do Ressuscitado habilita a nossa vida para o anúncio eficaz da Palavra em todo o mundo. É a experiência da primeira comunidade cristã, que via difundir-se a Palavra por meio da pregação e do testemunho (cf. Ac 6,7). Quero citar aqui particularmente a vida do Apóstolo Paulo, um homem arrebatado completamente pelo Senhor (cf. Ph 3,12) – «já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Ga 2,20) – e pela sua missão: «Ai de mim se não evangelizar!» (1Co 9,16), ciente de que em Cristo se revela realmente a salvação de todas as nações, a libertação da escravidão do pecado para entrar na liberdade dos filhos de Deus.

Com efeito, o que a Igreja anuncia ao mundo é o Logos da Esperança (cf. 1P 3,15); o homem precisa da «grande Esperança» para poder viver o seu próprio presente – a grande esperança que é «aquele Deus que possui um rosto humano e que nos “amou até ao fim” (Jn 13,1)».[311] Por isso, na sua essência, a Igreja é missionária. Não podemos guardar para nós as palavras de vida eterna, que recebemos no encontro com Jesus Cristo: são para todos, para cada homem. Cada pessoa do nosso tempo – quer o saiba quer não – tem necessidade deste anúncio. Oxalá o Senhor suscite entre os homens, como nos tempos do profeta Amós, nova fome e nova sede das palavras do Senhor (cf. Am 8,11). A nós cabe a responsabilidade de transmitir aquilo que por nossa vez tínhamos, por graça, recebido.

[311] Bento XVI, Carta enc. Spe salvi (30 de Novembro de 2007), : AAS 99 (2007), 1010.

Da Palavra de Deus deriva a missão da Igreja


92 O Sínodo dos Bispos reafirmou com veemência a necessidade de revigorar na Igreja a consciência missionária, presente no Povo de Deus desde a sua origem. Os primeiros cristãos consideraram o seu anúncio missionário como uma necessidade derivada da própria natureza da fé: o Deus em quem acreditavam era o Deus de todos, o Deus único e verdadeiro que Se manifestara na história de Israel e, por fim, no seu Filho, oferecendo assim a resposta que todos os homens, no seu íntimo, aguardam. As primeiras comunidades cristãs sentiram que a sua fé não pertencia a um costume cultural particular, que diverge de povo para povo, mas ao âmbito da verdade, que diz respeito igualmente a todos os homens.

Também aqui São Paulo nos ilustra, com a sua vida, o sentido da missão cristã e a sua originária universalidade. Pensemos no episódio do Areópago de Atenas, narrado pelos Actos dos Apóstolos(cf.
Ac 17,16-34). O Apóstolo das Nações entra em diálogo com homens de culturas diversas, na certeza de que o mistério de Deus, Conhecido-Desconhecido, do qual todo o homem tem uma certa percepção embora confusa, revelou-Se realmente na história: «O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio» (Ac 17,23). De facto, a novidade do anúncio cristão é a possibilidade de dizer a todos os povos: «Ele mostrou-Se. Ele em pessoa. E agora está aberto o caminho para Ele. A novidade do anúncio cristão não consiste num pensamento mas num facto: Ele revelou-Se».[312]

[312] Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 730.

A Palavra e o Reino de Deus


93 Por conseguinte, a missão da Igreja não pode ser considerada como realidade facultativa ou suplementar da vida eclesial. Trata-se de deixar que o Espírito Santo nos assimile a Cristo, participando assim na sua própria missão: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós» (Jn 20,21), de modo a comunicar a Palavra com a vida inteira. É a própria Palavra que nos impele para os irmãos: é a Palavra que ilumina, purifica, converte; nós somos apenas servidores.

Por isso, é necessário descobrir cada vez mais a urgência e a beleza de anunciar a Palavra para a vinda do Reino de Deus, que o próprio Cristo pregou. Neste sentido, renovamos a consciência – tão familiar aos Padres da Igreja – de que o anúncio da Palavra tem como conteúdo o Reino de Deus (cf. Mc 1,14-15), sendo este a própria pessoa de Jesus (o Autobasileia), como sugestivamente lembra Orígenes.[313] O Senhor oferece a salvação aos homens de cada época. Todos nos damos conta de quão necessário é que a luz de Cristo ilumine cada âmbito da humanidade: a família, a escola, a cultura, o trabalho, o tempo livre e os outros sectores da vida social.[314] Não se trata de anunciar uma palavra anestesiante, mas desinstaladora, que chama à conversão, que torna acessível o encontro com Ele, através do qual floresce uma humanidade nova.

[313] Cf. In Evangelium secundum Matthaeum 17, 7: PG 13, 1197B; S. Jerónimo, Translatio homiliarum Origenis in Lucam 36: PL 26, 324-325.
[314] Cf. Bento XVI, Homilia por ocasião da abertura da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (5 de Outubro de 2008): AAS 100 (2008), 757.

Todos os baptizados responsáveis do anúncio


94 Uma vez que todo o Povo de Deus é um povo «enviado», o Sínodo reafirmou que «a missão de anunciar a Palavra de Deus é dever de todos os discípulos de Jesus Cristo, em consequência do seu baptismo».[315] Nenhuma pessoa que crê em Cristo pode sentir-se alheia a esta responsabilidade que deriva do facto de ela pertencer sacramentalmente ao Corpo de Cristo. Esta consciência deve ser despertada em cada família, paróquia, comunidade, associação e movimento eclesial. Portanto toda a Igreja, enquanto mistério de comunhão, é missionária e cada um, no seu próprio estado de vida, é chamado a dar uma contribuição incisiva para o anúncio cristão.

Bispos e sacerdotes, segundo a missão própria de cada um, são os primeiros chamados a uma vida cativada pelo serviço da Palavra, para anunciar o Evangelho, celebrar os Sacramentos e formar os fiéis no conhecimento autêntico das Escrituras. Sintam-se também os diáconos chamados a colaborar, segundo a própria missão, para este compromisso de evangelização.

A vida consagrada resplandece, em toda a história da Igreja, pela sua capacidade de assumir explicitamente o dever do anúncio e da pregação da Palavra de Deus na missio ad gentes e nas situações mais difíceis, mostrando-se disponível também para as novas condições de evangelização, empreendendo com coragem e audácia novos percursos e novos desafios para o anúncio eficaz da Palavra de Deus.[316]

Os fiéis leigos são chamados a exercer a sua missão profética, que deriva directamente do baptismo, e testemunhar o Evangelho na vida diária onde quer que se encontrem. A este respeito, os Padres sinodais exprimiram «a mais viva estima e gratidão bem como encorajamento pelo serviço à evangelização que muitos leigos, e particularmente as mulheres, prestam com generosidade e diligência nas comunidades espalhadas pelo mundo, a exemplo de Maria de Magdala, primeira testemunha da alegria pascal».[317] Além disso, o Sínodo reconhece, com gratidão, que os movimentos eclesiais e as novas comunidades constituem, na Igreja, uma grande força para a evangelização neste tempo, impelindo a desenvolver novas formas de anúncio do Evangelho.[318]

[315] Propositio 38.
[316] Cf. Congr. para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Instr.Recomeçar a partir de Cristo. Um renovado compromisso da vida consagrada no terceiro milénio (19 de Maio de 2002), 36: Ench. Vat. 21, nn. 488-491.
[317] Propositio 30.
[318] Cf. Propositio 38.

A necessidade da «missio ad gentes»


95 Ao exortar todos os fiéis para o anúncio da Palavra divina, os Padres sinodais reafirmaram a necessidade, no nosso tempo também, de um decidido empenho na missio ad gentes. A Igreja não pode de modo algum limitar-se a uma pastoral de «manutenção» para aqueles que já conhecem o Evangelho de Cristo. O ardor missionário é um sinal claro da maturidade de uma comunidade eclesial. Além disso, os Padres exprimiram vivamente a consciência de que a Palavra de Deus é a verdade salvífica da qual tem necessidade cada homem em todo o tempo. Por isso, o anúncio deve ser explícito. A Igreja deve ir ao encontro de todos com a força do Espírito (cf. 1Co 2,5) e continuar profeticamente a defender o direito e a liberdade das pessoas escutarem a Palavra de Deus, procurando os meios mais eficazes para a proclamar, mesmo sob risco de perseguição.[319]A todos a Igreja se sente devedora de anunciar a Palavra que salva (cf. Rm 1,14).

[319] Cf. Propositio 49.

Anúncio e nova evangelização


96 O Papa João Paulo II, na esteira de quanto já expressara o Papa Paulo VI na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, tinha de muitos modos lembrado aos fiéis a necessidade de uma nova estação missionária para todo o Povo de Deus.[320] Na alvorada do terceiro milénio, não só existem muitos povos que ainda não conheceram a Boa Nova, mas há também muitos cristãos que têm necessidade que lhes seja anunciada novamente, de modo persuasivo, a Palavra de Deus, para poderem assim experimentar concretamente a força do Evangelho. Há muitos irmãos que são «baptizados mas não suficientemente evangelizados».[321] É frequente ver nações, outrora ricas de fé e de vocações, que vão perdendo a própria identidade, sob a influência de uma cultura secularizada.[322] A exigência de uma nova evangelização, tão sentida pelo meu venerado Predecessor, deve-se reafirmar sem medo, na certeza da eficácia da Palavra divina. A Igreja, segura da fidelidade do seu Senhor, não se cansa de anunciar a boa nova do Evangelho e convida todos os cristãos a redescobrirem o fascínio de seguir Cristo.

[320] Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990)
RMi 1: AAS 83 (1991), 294-340; Idem, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), NM 40: AAS 93 (2001), 294-295.
[321] Propositio 38.
[322] Cf. Bento XVI, Homilia por ocasião da abertura da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (5 de Outubro de 2008): AAS 100 (2008), 753-757.

Palavra de Deus e testemunho cristão


97 Os horizontes imensos da missão eclesial e a complexidade da situação presente requerem hoje modalidades renovadas para se poder comunicar eficazmente a Palavra de Deus. O Espírito Santo, agente primário de toda a evangelização, nunca deixará de guiar a Igreja de Cristo nesta actividade. Antes de mais nada, é importante que cada modalidade de anúncio tenha presente a relação intrínseca entre comunicação da Palavra de Deus e testemunho cristão; disso depende a própria credibilidade do anúncio. Por um lado, é necessária a Palavra que comunique aquilo que o próprio Senhor nos disse; por outro, é indispensável dar, com o testemunho, credibilidade a esta Palavra, para que não apareça como uma bela filosofia ou utopia, mas antes como uma realidade que se pode viver e que faz viver. Esta reciprocidade entre Palavra e testemunho recorda o modo como o próprio Deus Se comunicou por meio da encarnação do seu Verbo. A Palavra de Deus alcança os homens «através do encontro com testemunhas que a tornam presente e viva».[323] Particularmente as novas gerações têm necessidade de ser introduzidas na Palavra de Deus «através do encontro e do testemunho autêntico do adulto, da influência positiva dos amigos e da grande companhia que é a comunidade eclesial».[324]

Há uma relação estreita entre o testemunho da Escritura, como atestado que a Palavra de Deus dá de si mesma, e o testemunho de vida dos crentes. Um implica e conduz ao outro. O testemunho cristão comunica a Palavra atestada nas Escrituras. Por sua vez, as Escrituras explicam o testemunho que os cristãos são chamados a dar com a própria vida. Deste modo, aqueles que encontram testemunhas credíveis do Evangelho são levados a constatar a eficácia da Palavra de Deus naqueles que a acolhem.

Nesta circularidade entre testemunho e Palavra, compreendem-se as afirmações do Papa Paulo VI na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi. A nossa responsabilidade não se limita a sugerir ao mundo valores que compartilhamos; mas é preciso chegar ao anúncio explícito da Palavra de Deus. Só assim seremos fiéis ao mandato de Cristo: «Por conseguinte a Boa Nova proclamada pelo testemunho de vida deverá, mais cedo ou mais tarde, ser anunciada pela palavra de vida. Não há verdadeira evangelização, se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, não forem proclamados».[325]

O facto do anúncio da Palavra de Deus requerer o testemunho da própria vida é um dado bem presente na consciência cristã desde as suas origens. O próprio Cristo é a testemunha fiel e verdadeira (cf.
Ap 1,5 Ap 3,14), testemunha da Verdade (cf. Jn 18,37). A este propósito, desejo recordar os inumeráveis testemunhos que tivemos a graça de ouvir durante a assembleia sinodal. Ficámos profundamente impressionados com o relato daqueles que souberam viver a fé e dar luminosos testemunhos do Evangelho mesmo sob regimes contrários ao cristianismo ou em situações de perseguição.

Tudo isto não nos deve meter medo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Um servo não é maior que o seu senhor. Se a Mim Me perseguiram também vos perseguirão a vós» (Jn 15,20). Por isso desejo elevar a Deus, com toda a Igreja, um hino de louvor pelo testemunho de muitos irmãos e irmãs que, mesmo neste nosso tempo, deram a vida para comunicar a verdade do amor de Deus que nos foi revelado em Cristo crucificado e ressuscitado. Além disso, exprimo a gratidão da Igreja inteira aos cristãos que não se rendem perante os obstáculos e as perseguições por causa do Evangelho. Ao mesmo tempo unimo-nos, com profunda e solidária estima, aos fiéis de todas as comunidades cristãs, particularmente na Ásia e na África, que neste tempo arriscam a vida ou a marginalização social por causa da fé. Vemos realizar-se aqui o espírito das bem-aventuranças do Evangelho para aqueles que são perseguidos por causa do Senhor Jesus (cf. Mt 5,11). Ao mesmo tempo não cessamos de erguer a nossa voz para que os governos das nações garantam a todos liberdade de consciência e de religião, inclusive para poder testemunhar publicamente a própria fé.[326]

[323] Propositio 38.
[324] Mensagem final, IV, 12.
[325] Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), EN 22: AAS 68 (1976), 20.
[326] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae, DH 2 DH 7.


Palavra de Deus e compromisso no mundo

Servir Jesus nos seus «irmãos mais pequeninos»

(Mt 25,40)


99 A Palavra divina ilumina a existência humana e leva as consciências a reverem em profundidade a própria vida, porque toda a história da humanidade está sob o juízo de Deus: «Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, sentar-Se-á, então, no seu trono de glória. Perante Ele reunir-se-ão todas as nações» (Mt 25,31-32). No nosso tempo, detemo-nos muitas vezes superficialmente no valor do instante que passa, como se fosse irrelevante para o futuro. Diversamente, o Evangelho recorda-nos que cada momento da nossa existência é importante e deve ser vivido intensamente, sabendo que cada um deverá prestar contas da própria vida. No capítulo vinte e cinco do Evangelho de Mateus, o Filho do Homem considera como feito ou não feito a Si aquilo que tivermos feito ou deixado de fazer a um só dos seus «irmãos mais pequeninos» (Mt 25,40 Mt 25,45): «Tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e recolhestes-Me; estava nu e destes-Me de vestir; adoeci e visitastes-Me; estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25,35-36). Deste modo, é a própria Palavra de Deus que nos recorda a necessidade do nosso compromisso no mundo e a nossa responsabilidade diante de Cristo, Senhor da História. Quando anunciamos o Evangelho, exortamo-nos reciprocamente a cumprir o bem e a empenhar-nos pela justiça, pela reconciliação e pela paz.

Palavra de Deus e compromisso na sociedade pela justiça


100 A Palavra de Deus impele o homem para relações animadas pela rectidão e pela justiça, confirma o valor precioso aos olhos de Deus de todas as fadigas do homem para tornar o mundo mais justo e mais habitável.[327] A própria Palavra de Deus denuncia, sem ambiguidade, as injustiças e promove a solidariedade e a igualdade.[328] À luz das palavras do Senhor, reconheçamos pois os «sinais dos tempos» presentes na história, não nos furtemos ao compromisso em favor de quantos sofrem e são vítimas do egoísmo. O Sínodo lembrou que o compromisso pela justiça e a transformação do mundo é constitutivo da evangelização. Como dizia o Papa Paulo VI, trata-se de «chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação».[329]

Com este objectivo, os Padres sinodais dirigiram um pensamento particular a quantos estão empenhados na vida política e social. A evangelização e a difusão da Palavra de Deus devem inspirar a sua acção no mundo à procura do verdadeiro bem de todos, no respeito e promoção da dignidade de toda a pessoa. Certamente não é tarefa directa da Igreja criar uma sociedade mais justa, embora lhe caiba o direito e o dever de intervir sobre as questões éticas e morais que dizem respeito ao bem das pessoas e dos povos. Compete sobretudo aos fiéis leigos formados na escola do Evangelho intervir directamente na acção social e política. Por isso o Sínodo recomenda uma adequada educação segundo os princípios da doutrina social da Igreja.[330]

[327] Cf. Propositio 39.
[328] Cf. Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2009 (8 de Dezembro de 2008): Insegnamenti IV/2 (2008), 792-802.
[329] Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975),
EN 19: AAS 68 (1976), 18.
[330] Cf. Propositio 39.

101 Além disso, quero chamar a atenção geral para a importância de defender e promover osdireitos humanos de toda a pessoa, que, como tais, são «universais, invioláveis e inalienáveis».[331] A Igreja aproveita a ocasião extraordinária oferecida pelo nosso tempo para que a dignidade humana, através da afirmação de tais direitos, seja mais eficazmente reconhecida e promovida universalmente,[332] como característica impressa por Deus criador na sua criatura, assumida e redimida por Jesus Cristo através da sua encarnação, morte e ressurreição. Por isso a difusão da Palavra de Deus não pode deixar de reforçar a consolidação e o respeito dos direitos humanos de cada pessoa.[333]

[331] João XXIII, Carta enc. Pacem in terris (11 de Abril de 1963),
PT 1 I: AAS 55 (1963), 259.
[332] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), CA 47: AAS 83 (1991), 851-852; Idem, Discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas (2 de Outubro de 1979), 13:AAS 71 (1979), 1152-1153.
[333] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 152-159.

Anúncio da Palavra de Deus, reconciliação e paz entre os povos


102 Dentre os numerosos âmbitos de compromisso, o Sínodo recomendou vivamente a promoção da reconciliação e da paz. No contexto actual, é grande a necessidade de descobrir a Palavra de Deus como fonte de reconciliação e de paz, porque nela Deus reconcilia em Si todas as coisas (cf. 2Co 5,18-20 Ep 1,10): Cristo «é a nossa paz» (Ep 2,14), Aquele que derruba os muros de divisão. Muitos testemunhos no Sínodo comprovaram os graves e sangrentos conflitos e as tensões presentes no nosso planeta. Às vezes tais hostilidades parecem assumir o aspecto de conflito inter-religioso. Quero uma vez mais reafirmar que a religião nunca pode justificar a intolerância ou as guerras. Não se pode usar a violência em nome de Deus![334] Toda a religião devia impelir para um uso correcto da razão e promover valores éticos que edifiquem a convivência civil.

Fiéis à obra de reconciliação realizada por Deus em Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, os católicos e todos os homens de boa vontade empenhem-se por dar exemplos de reconciliação para se construir uma sociedade justa e pacífica.[335] Nunca esqueçamos que «onde as palavras humanas se tornam impotentes, porque prevalece o trágico clamor da violência e das armas, a força profética da Palavra de Deus não esmorece e repete-nos que a paz é possível e que devemos, nós mesmos, ser instrumentos de reconciliação e de paz».[336]

[334] Cf. Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007 (8 de Dezembro de 2006):Insegnamenti, II/2 (2006), 780.
[335] Cf. Propositio 8.
[336] Bento XVI, Homilia (25 de Janeiro de 2009): Insegnamenti V/1 (2009), 141.

A Palavra de Deus e a caridade activa


103 O compromisso pela justiça, a reconciliação e a paz encontra a sua raiz última e perfeição no amor que nos foi revelado em Cristo. Ouvindo os testemunhos proferidos no Sínodo, tornámo-
-nos mais atentos à ligação que há entre a escuta amorosa da Palavra de Deus e o serviço desinteressado aos irmãos; que todos os fiéis compreendam «a necessidade de traduzir em gestos de amor a palavra escutada, porque só assim se torna credível o anúncio do Evangelho, apesar das fragilidades humanas que marcam as pessoas».[337] Jesus passou por este mundo fazendo o bem (cf.
Ac 10,38). Escutando com ânimo disponível a Palavra de Deus na Igreja, desperta-se «a caridade e a justiça para com todos, sobretudo para com os pobres».[338] É preciso nunca esquecer que «o amor – caritas – será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. (…) Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem».[339]Por isso, exorto todos os fiéis a meditarem com frequência o hino à caridade escrito pelo Apóstolo Paulo, deixando-se inspirar por ele: «A caridade é paciente, a caridade é benigna, não é invejosa; a caridade não se ufana, não se ensoberbece, não é inconveniente, não procura o seu interesse, não se irrita, não suspeita mal, não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca acabará» (1Co 13,4-8).

Deste modo o amor do próximo, radicado no amor de Deus, deve ser o nosso compromisso constante como indivíduos e como comunidade eclesial local e universal. Diz Santo Agostinho: «É fundamental compreender que a plenitude da Lei, bem como de todas as Escrituras divinas, é o amor (…). Por isso quem julga ter compreendido as Escrituras, ou pelo menos uma parte qualquer delas, mas não se empenha a construir, através da sua inteligência, este duplo amor de Deus e do próximo, demonstra que ainda não as compreendeu».[340]

[337] Bento XVI, Homilia por ocasião do encerramento da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (26 de Outubro de 2008): AAS 100 (2008), 779.
[338] Propositio 11.
[339] Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), : AAS 98 (2006), 240.
[340] De doctrina christiana, I, 35, 39 – 36, 40: PL 34, 34.

Anúncio da Palavra de Deus e os jovens


104 O Sínodo reservou uma atenção particular ao anúncio da Palavra divina feito às novas gerações. Os jovens já são membros activos da Igreja e representam o seu futuro. Muitas vezes encontramos neles uma abertura espontânea à escuta da Palavra de Deus e um desejo sincero de conhecer Jesus. De facto, na idade da juventude, surgem de modo irreprimível e sincero asquestões sobre o sentido da própria vida e sobre a direcção que se deve dar à própria existência. A estas questões só Deus sabe dar verdadeira resposta. Esta solicitude pelo mundo juvenil implica a coragem de um anúncio claro; devemos ajudar os jovens a ganharem confidência e familiaridade com a Sagrada Escritura, para que seja como uma bússola que indica a estrada a seguir.[341] Para isso, precisam de testemunhas e mestres, que caminhem com eles e os orientem para amarem e por sua vez comunicarem o Evangelho sobretudo aos da sua idade, tornando-se eles mesmos arautos autênticos e credíveis.[342]

É preciso que a Palavra divina seja apresentada também nas suas implicações vocacionais de modo a ajudar e orientar os jovens nas suas opções de vida, incluindo a consagração total.[343] Autênticas vocações para a vida consagrada e para o sacerdócio encontram o seu terreno propício no contacto fiel com a Palavra de Deus. Repito aqui o convite que fiz no início do meu pontificado para abrir de par em par as portas a Cristo: «Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada – absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. (…) Queridos jovens, não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, e dá tudo. Quem se entrega a Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo, e encontrareis a vida verdadeira».[344]

[341] Cf. Bento XVI, Mensagem para a XXI Jornada Mundial da Juventude em 2006 (22 de Fevereiro de 2006): AAS 98 (2006), 282-286.
[342] Cf. Propositio 34.
[343] Cf. ibidem.
[344] Homilia (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 712.

Anúncio da Palavra de Deus e os migrantes


105 A Palavra de Deus torna-nos atentos à história e a tudo o que de novo germina nela. Por isso o Sínodo quis, a propósito da missão evangelizadora da Igreja, fixar a atenção também no fenómeno complexo dos movimentos migratórios, que tem assumido nestes anos proporções inéditas. Aqui levantam-se questões bastante delicadas relativas à segurança das nações e ao acolhimento que se deve oferecer a quantos buscam refúgio, melhores condições de vida, saúde, trabalho. Um grande número de pessoas, que não conhece Cristo ou possui uma imagem imperfeita d’Ele, estabelece-se em países de tradição cristã. Ao mesmo tempo pessoas que pertencem a povos marcados profundamente pela fé cristã emigram para países onde há necessidade de levar o anúncio de Cristo e de uma nova evangelização. Estas novas situações oferecem novas possibilidades para a difusão da Palavra de Deus. A este propósito, os Padres sinodais afirmaram que os migrantes têm o direito de ouvir o kerygma, que lhes é proposto, não imposto. Se forem cristãos, necessitam de uma assistência pastoral adequada para fortalecer a fé e serem eles mesmos portadores do anúncio evangélico. Conscientes da complexidade do fenómeno, é necessário que todas as dioceses interessadas se mobilizem para que os movimentos migratórios sejam considerados também como ocasião para descobrir novas modalidades de presença e de anúncio e se proveja, segundo as próprias possibilidades, a um condigno acolhimento e animação destes nossos irmãos para que, tocados pela Boa Nova, se façam eles mesmos anunciadores da Palavra de Deus e testemunhas do Senhor Ressuscitado, esperança do mundo.[345]

[345] Cf. Propositio 38.

Anúncio da Palavra de Deus e os doentes


106 Ao longo dos trabalhos sinodais, a atenção dos Padres deteve-se também na necessidade de anunciar a Palavra de Deus a todos aqueles que estão em condições de sofrimento físico, psíquico ou espiritual. De facto, é na hora do sofrimento que se levantam mais acutilantes no coração do homemas questões últimas sobre o sentido da própria vida. Se a palavra do homem parece emudecer diante do mistério do mal e da dor e a nossa sociedade parece dar valor à vida apenas se corresponde a certos níveis de eficiência e bem-estar, a Palavra de Deus revela-nos que mesmo estas circunstâncias são misteriosamente «abraçadas» pela ternura divina. A fé que nasce do encontro com a Palavra divina ajuda-nos a considerar a vida humana digna de ser vivida plenamente, mesmo quando está debilitada pelo mal. Deus criou o homem para a felicidade e a vida, enquanto a doença e a morte entraram no mundo em consequência do pecado (cf. Sg 2,23-24). Mas o Pai da vida é o médico por excelência do homem e não cessa de inclinar-
-Se amorosamente sobre a humanidade que sofre. Contemplamos o apogeu da proximidade de Deus ao sofrimento do homem, no próprio Jesus que é «Palavra encarnada. Sofreu connosco, morreu. Com a sua paixão e morte, assumiu e transformou profundamente a nossa debilidade».[346]

A proximidade de Jesus aos doentes não se interrompeu: prolonga-se no tempo graças à acção do Espírito Santo na missão da Igreja, na Palavra e nos Sacramentos, nos homens de boa vontade, nas actividades de assistência que as comunidades promovem com caridade fraterna, mostrando assim o verdadeiro rosto de Deus e o seu amor. O Sínodo dá graças a Deus pelo testemunho esplêndido, frequentemente escondido, de muitos cristãos – sacerdotes, religiosos e leigos – que emprestaram e continuam a emprestar as suas mãos, os seus olhos e os seus corações a Cristo, verdadeiro médico dos corpos e das almas. Depois exorta para que se continue a cuidar das pessoas doentes, levando-lhes a presença vivificadora do Senhor Jesus na Palavra e na Eucaristia. Sejam ajudadas a ler a Escritura e a descobrir que podem, precisamente na sua condição, participar de um modo particular no sofrimento redentor de Cristo pela salvação do mundo (cf. 2Co 4,8-11 2Co 4,14).[347]

[346] Bento XVI, Homilia por ocasião da XVII Jornada Mundial do Doente (11 de Fevereiro de 2009): Insegnamenti V/1 (2009), 232.
[347] Cf. Propositio 35.


Verbum Domini PT 89