Verbum Domini PT 107

Anúncio da Palavra de Deus e os pobres


107 A Sagrada Escritura manifesta a predilecção de Deus pelos pobres e necessitados (cf. Mt 25,31-46). Com frequência, os Padres sinodais lembraram a necessidade de que o anúncio evangélico e o empenho dos pastores e das comunidades se dirijam a estes nossos irmãos. Com efeito, «os primeiros que têm direito ao anúncio do Evangelho são precisamente os pobres, necessitados não só de pão mas também de palavras de vida».[348] A diaconia da caridade, que nunca deve faltar nas nossas Igrejas, tem de estar sempre ligada ao anúncio da Palavra e à celebração dos santos mistérios.[349] Ao mesmo tempo é preciso reconhecer e valorizar o facto de que os próprios pobres são também agentes de evangelização. Na Bíblia, o verdadeiro pobre é aquele que se confia totalmente a Deus e, no Evangelho, o próprio Jesus chama-os bem-aventurados, «porque deles é o reino dos céus» (Mt 5,3 cf. Lc 6,20). O Senhor exalta a simplicidade de coração de quem reconhece em Deus a verdadeira riqueza, coloca n’Ele a sua esperança e não nos bens deste mundo. A Igreja não pode desiludir os pobres: «Os pastores são chamados a ouvi-los, a aprender deles, a guiá-los na sua fé e a motivá-los para serem construtores da própria história».[350]

A Igreja está ciente também de que existe uma pobreza que é virtude a cultivar e a abraçar livremente, como fizeram muitos Santos, e há a miséria, muitas vezes resultante de injustiças e provocada pelo egoísmo, que produz indigência e fome e alimenta os conflitos. Quando a Igreja anuncia a Palavra de Deus sabe que é preciso favorecer um «círculo virtuoso» entre a pobreza «que se deve escolher» e a pobreza «que se deve combater», redescobrindo «a sobriedade e a solidariedade como valores simultaneamente evangélicos e universais. (…) Isto obriga a opções de justiça e de sobriedade».[351]

[348] Propositio 11.
[349] Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), : AAS 98 (2006), 236-237.
[350] Propositio 11.
[351] Bento XVI, Homilia (1 de Janeiro de 2009): Insegnamenti V/1 (2009), 5.

Palavra de Deus e defesa da criação


108 O compromiso no mundo requerido pela Palavra divina impele-nos a ver com olhos novos todo o universo criado por Deus e que traz já em si os vestígios do Verbo, por Quem tudo foi feito (cf. Jn 1,2). Com efeito, há uma responsabilidade que nos compete como fiéis e anunciadores do Evangelho também a respeito da criação. A revelação, ao mesmo tempo que nos dá a conhecer o desígnio de Deus sobre o universo, leva-nos também a denunciar os comportamentos errados do homem, quando não reconhece todas as coisas como reflexo do Criador, mas mera matéria que se pode manipular sem escrúpulos. Deste modo, falta ao homem aquela humildade essencial que lhe permite reconhecer a criação como dom de Deus que se deve acolher e usar segundo o seu desígnio. Ao contrário, a arrogância do homem que vive como se Deus não existisse, leva a explorar e deturpar a natureza, não a reconhecendo como uma obra da Palavra criadora. Neste quadro teológico, desejo lembrar as afirmações dos Padres sinodais ao recordarem que o facto de «acolher a Palavra de Deus atestada na Sagrada Escritura e na Tradição viva da Igreja gera um novo modo de ver as coisas, promovendo um ecologia autêntica, que tem a sua raiz mais profunda na obediência da fé, (…) e desenvolvendo una renovada sensibilidade teológica sobre a bondade de todas as coisas, criadas em Cristo».[352] O homem precisa de ser novamente educado para se maravilhar, reconhecendo a verdadeira beleza que se manifesta nas coisas criadas.[353]

[352] Propositio 54.
[353] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 92: AAS 99 (2007), 176-177.


Palavra de Deus e culturas

O valor da cultura para a vida do homem


109 O anúncio joanino referente à encarnação do Verbo revela o vínculo indissolúvel que existe entre a Palavra divina e as palavras humanas, através das quais Se nos comunica. Foi no âmbito desta reflexão que o Sínodo dos Bispos se deteve sobre a relação entre Palavra de Deus e cultura. De facto, Deus não Se revela ao homem abstractamente, mas assumindo linguagens, imagens e expressões ligadas às diversas culturas. Trata-se de uma relação fecunda, largamente testemunhada na história da Igreja. Hoje tal relação entra também numa nova fase, devido à propagação e enraizamento da evangelização dentro das diversas culturas e nas mais recentes evoluções da cultura ocidental. Isto implica, antes de mais nada, reconhecer a importância da cultura como tal para a vida de cada homem. De facto, o fenómeno da cultura, nos seus múltiplos aspectos, apresenta-se como um dado constitutivo da experiência humana: «O homem vive sempre segundo uma cultura que lhe é própria e por sua vez cria entre os homens um laço, que lhes é próprio também, determinando o carácter inter-humano e social da existência humana».[354]

A Palavra de Deus inspirou, ao longo dos séculos, as diversas culturas, gerando valores morais fundamentais, expressões artísticas magníficas e estilos de vida exemplares.[355] Assim, na esperança de um renovado encontro entre Bíblia e culturas, quero reafirmar a todos os agentes culturais que nada têm a temer da sua abertura à Palavra de Deus, que nunca destrói a verdadeira cultura, mas constitui um estímulo constante para a busca de expressões humanas cada vez mais apropriadas e significativas. Para servir verdadeiramente o homem, cada cultura autêntica deve estar aberta à transcendência e, em última análise, a Deus.

[354] João Paulo II, Discurso à UNESCO (2 de Junho de 1980), 6: AAS 72 (1980), 738.
[355] Cf. Propositio 41.

A Bíblia como grande código para as culturas


110 Os Padres sinodais sublinharam a importância de favorecer um adequado conhecimento da Bíblia entre os agentes culturais, mesmo nos ambientes secularizados e entre os não crentes;[356] na Sagrada Escritura, estão contidos valores antropológicos e filosóficos que influíram positivamente sobre toda a humanidade.[357] Deve-se recuperar plenamente o sentido da Bíblia como grande código para as culturas.

[356] Cf. ibidem.
[357] Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998),
FR 80: AAS 91 (1999), 67-68.

O conhecimento da Bíblia nas escolas e universidades


111 Um âmbito particular do encontro entre Palavra de Deus e culturas é o da escola e dauniversidade.Os Pastores tenham um cuidado especial por estes ambientes, promovendo um conhecimento profundo da Bíblia para se poder individuar, também hoje, as suas fecundas implicações culturais. Os centros de estudo promovidos pelas realidades católicas oferecem uma contribuição original – que deve ser reconhecida – para a promoção da cultura e da instrução. Além disso, não se deve descuidar o ensino da religião, formando cuidadosamente os professores. Em muitos casos, isto representa para os estudantes uma ocasião única de contacto com a mensagem da fé. É bom que se promova, neste ensino, o conhecimento da Sagrada Escritura, superando antigos e novos preconceitos e procurando dar a conhecer a sua verdade.[358]

[358] Cf. Lineamenta 23.

A Sagrada Escritura nas diversas expressões artísticas


112 A relação entre Palavra de Deus e cultura encontrou expressão em obras de âmbitos diversos, particularmente no mundo da arte. Por isso a grande tradição do Oriente e do Ocidente sempre estimou as manifestações artísticas inspiradas na Sagrada Escritura, como, por exemplo, as artes figurativas e a arquitectura, a literatura e a música. Penso também na antiga linguagem expressa pelosícones que, partindo da tradição oriental, aos poucos se foi espalhando por todo o mundo. Com os Padres sinodais, a Igreja inteira exprime apreço, estima e admiração pelos artistas «enamorados da beleza», que se deixaram inspirar pelos textos sagrados; contribuíram para a decoração das nossas igrejas, a celebração da nossa fé, o enriquecimento da nossa liturgia, e muitos deles ajudaram ao mesmo tempo a tornar de algum modo perceptível no tempo e no espaço as realidades invisíveis e eternas.[359] Exorto os organismos competentes a promoverem na Igreja uma sólida formação dos artistas sobre a Sagrada Escritura à luz da Tradição viva da Igreja e do Magistério.

[359] Cf. Propositio 40.

Palavra de Deus e meios de comunicação social


113 Ligada à relação entre Palavra de Deus e culturas está também a importância da utilização cuidadosa e inteligente dos meios, antigos e novos, de comunicação social. Os Padres sinodais recomendaram um conhecimento apropriado destes instrumentos, estando atentos ao seu rápido desenvolvimento e aos diversos níveis de interacção e investindo maiores energias para adquirir competência nos vários sectores, particularmente nos novos meios de comunuicação, como por exemplo a internet.Por parte da Igreja, já existe uma si-gnificativa presença no mundo da comunicação de massa, e o próprio Magistério eclesial exprimiu-se várias vezes sobre este tema a partir do Concílio Vaticano II.[360] A aquisição de novos métodos para transmitir a mensagem evangélica faz parte da constante tensão evangelizadora dos fiéis, e hoje a rede de comunicação envolve o mundo inteiro, tendo adquirido um novo significado o apelo de Cristo: «O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia, e o que escutais ao ouvido, proclamai-o sobre os terraços» (Mt 10,27). Para além da forma escrita, a Palavra divina deve ressoar também através das outras formas de comunicação.[361] Por isso, juntamente com os Padres sinodais, desejo agradecer aos católicos que lutam com competência por uma presença significativa no mundo dos mass media, solicitando um empenhamento ainda mais amplo e qualificado.[362]

Entre as novas formas de comunicação de massa, há que reconhecer hoje um papel crescente àinternet, que constitui um novo fórum onde fazer ressoar o Evangelho, na certeza, porém, de que o mundo virtual nunca poderá substituir o mundo real e que a evangelização só poderá usufruir davirtualidade oferecida pelos novos meios de comunicação para instaurar relações significativas, se se chegar ao encontro pessoal que permanece insubstituível. No mundo da internet, que permite que bilhões de imagens apareçam sobre milhões de monitores em todo o mundo, deverá sobressair o rosto de Cristo e ouvir-se a sua voz, porque, «se não há espaço para Cristo, não há espaço para o homem».[363]

[360] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre os instrumentos de comunicação social Inter mirifica; Pont. Cons. para as Comunicações Sociais, Instr. past. Communio et progressio sobre os instrumentos da comunicação social, publicada por disposição do Concílio Ecuménico Vaticano II (23 de Maio de 1971): AAS 63 (1971) 593-656; João Paulo II, Carta ap. O rápido desenvolvimento (24 de Janeiro de 2005): AAS 97 (2005) 265-274; Pont. Cons. para as Comunicações Sociais, Instr. past. sobre as comunicações sociais no XX aniversário da «Communio et progressio» Aetatis novae (22 de Fevereiro de 1992): AAS 84 (1992) 447-468; Idem, A Igreja e internet (22 de Fevereiro de 2002): Ench. Vat. 21, nn. 66-95; Idem, Ética na internet (22 de Fevereiro de 2002): Ench. Vat. 21, nn. 96-127.
[361] Cf. Mensagem final IV, 11; Bento XVI, Mensagem para o XLIII Dia Mundial das Comunicações Sociais (24 de Janeiro de 2009): Insegnamenti V/1 (2009), 123-127.
[362] Cf. Propositio 44.
[363] João Paulo II, Mensagem para o XXXVI Dia Mundial das Comunicações Sociais (24 de Janeiro de 2002), 6: Insegnamenti XXV/1 (2002), 94-95.

Bíblia e inculturação


114 O mistério da encarnação mostra-nos que Deus, por um lado, comunica-Se sempre numa história concreta, assumindo os códigos culturais nela inscritos, mas, por outro, a própria Palavra pode e deve transmitir-se em culturas diferentes, transfigurando-as a partir de dentro através daquilo que Paulo VI chamava a evangelização das culturas.[364] Deste modo a Palavra de Deus, como aliás a fé cristã, manifesta um carácter profundamente intercultural, capaz de encontrar e fazer encontrar culturas diversas.[365]

Neste contexto, compreende-se também o valor da inculturação do Evangelho.[366] A Igreja está firmemente persuadida da capacidade intrínseca que tem a Palavra de Deus de atingir todas as pessoas humanas no contexto cultural onde vivem: «Esta convicção deriva da própria Bíblia, que, desde o livro do Génesis, assume uma orientação universal (cf.
Gn 1,27-28), mantém-na depois na bênção prometida a todos os povos graças a Abraão e à sua descendência (cf. Gn 12,3 Gn 18,18) e confirma-a definitivamente quando estende a “todas as nações” a evangelização».[367] Por isso, a inculturação não deve ser confundida com processos de adaptação superficial, nem mesmo com a amálgama sincretista que dilui a originalidade do Evangelho para o tornar mais facilmente aceitável.[368] O autêntico paradigma da inculturação é a própria encarnação do Verbo: «A “aculturação” ou “inculturação” será realmente um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura, transformada e regenerada pelo Evangelho produzir na sua própria tradição expressões originais de vida, de celebração, de pensamento cristão»,[369] levedando como o fermento dentro da cultura local, valorizando as semina Verbi e tudo o que de positivo haja nela, abrindo-a aos valores evangélicos.[370]

[364] Cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), EN 20: AAS 68 (1976), 18-19.
[365] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 78: AAS 99 (2007), 165.
[366] Cf. Propositio 48.
[367] Pont. Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), IV, B:Ench. Vat. 13, nn. 3112.
[368] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 22; Pont. Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), IV, B: Ench. Vat.13, nn. 3111-3117.
[369] João Paulo II, Discurso aos Bispos do Quénia (7 de Maio de 1980), 6: AAS 72 (1980), 497.
[370] Cf. Instrumentum laboris, 56.

Traduções e difusão da Bíblia


115 Se a inculturação da Palavra de Deus é parte imprescindível da missão da Igreja no mundo, um momento decisivo deste processo é a difusão da Bíblia por meio do valioso trabalho de tradução nas diversas línguas. A este propósito, nunca se deve esquecer que a obra de tradução das Escrituras «teve início desde os tempos do Antigo Testamento quando o texto hebraico da Bíblia foi traduzido oralmente para aramaico (Ne 8,8 Ne 8,12) e, mais tarde, traduzido de forma escrita para grego. De facto, uma tradução é sempre algo mais do que uma simples transcrição do texto original. A passagem de uma língua para outra comporta necessariamente uma mudança de contexto cultural: os conceitos não são idênticos e o alcance dos símbolos é diferente, porque põem em relação com outras tradições de pensamento e outros modos de viver».[371]

Durante os trabalhos sinodais, pôde-se constatar que várias Igrejas locais ainda não dispõem de uma tradução integral da Bíblia nas suas próprias línguas. Actualmente quantos povos têm fome e sede da Palavra de Deus, mas infelizmente não podem ainda ter um «acesso patente à Sagrada Escritura»,[372] como desejara o Concílio Vaticano II. Por isso, o Sínodo considera importante, antes de mais nada, a formação de especialistas que se dediquem a traduzir a Bíblia nas diversas línguas.[373] Encorajo a que se invistam recursos neste âmbito. De modo particular, quero recomendar que seja apoiado o empenho da Federação Bíblica Católica para um incremento ainda maior do número das traduções da Sagrada Escritura e da sua minuciosa difusão.[374] Bom será que tal trabalho, pela sua própria natureza, seja feito na medida do possível em colaboração com as diversas Sociedades Bíblicas.

[371] Pont. Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), IV, B:Ench. Vat. 13, n. 3113.
[372] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 22.
[373] Cf. Propositio 42.
[374] Cf. Propositio 43.

A Palavra de Deus supera os limites das culturas


116 No debate sobre a relação entre Palavra de Deus e culturas, a assembleia sinodal sentiu necessidade de reafirmar aquilo que os primeiros cristãos puderam experimentar desde o dia de Pentecostes (cf. Ac 2,1-13). A Palavra divina é capaz de penetrar e exprimir-se em culturas e línguas diferentes, mas a própria Palavra transfigura os limites de cada uma das culturas criando comunhão entre povos diversos. A Palavra do Senhor convida-nos a avançar para uma comunhão mais vasta. «Saímos da estreiteza das nossas experiências e entramos na realidade que é verdadeiramente universal. Entrando na comunhão com a Palavra de Deus, entramos na comunhão da Igreja que vive a Palavra de Deus. (…) É sair dos limites de cada uma das culturas para a universalidade que nos vincula a todos, a todos nos une e faz irmãos».[375] Portanto, anunciar a Palavra de Deus começa sempre por nos pedir a nós mesmos um renovado êxodo, deixando as nossas medidas e as nossas imaginações limitadas para abrir espaço em nós à presença de Cristo.

[375] Bento XVI, Homilia durante a Hora Tércia, no início da I Congregação Geral do Sínodo dos Bispos (6 de Outubro de 2008): AAS 100 (2008), 760.


Palavra de Deus e diálogo inter-religioso

O valor do diálogo inter-religioso


117 A Igreja reconhece como parte essencial do anúncio da Palavra o encontro, o diálogo e a colaboração com todos os homens de boa vontade, particularmente com as pessoas pertencentes às diversas tradições religiosas da humanidade, evitando formas de sincretismo e de relativismo e seguindo as linhas indicadas pela Declaração do Concílio Vaticano II Nostra aetate e desenvolvidas pelo Magistério sucessivo dos Sumos Pontífices.[376] O processo veloz de globalização, característico da nossa época, permite viver em contacto mais estreito com pessoas de culturas e religiões diferentes. Trata-se de uma oportunidade providencial para manifestar como o autêntico sentido religioso pode promover entre os homens relações de fraternidade universal. É muito importante que as religiões possam favorecer, nas nossas sociedades frequentemente secularizadas, uma mentalidade que veja em Deus Omnipotente o fundamento de todo o bem, a fonte inexaurível da vida moral, o sustentáculo de um profundo sentido de fraternidade universal.

Na tradição judaico-cristã, por exemplo, encontra-se sugestivamente confirmado o amor de Deus por todos os povos, que Ele, já na Aliança estabelecida com Noé, reúne num único e grande abraço simbolizado pelo «arco nas nuvens» (
Gn 9,13 Gn 9,14 Gn 9,16) e que, segundo as palavras dos profetas, pretende congregar numa única família universal (cf. Is 2,2ss; Is 42,6 Is 66,18-21 Jr 4,2 Ps 47). Na realidade aparecem, em muitas das grandes tradições religiosas, testemunhos da ligação íntima que existe entre a relação com Deus e a ética do amor por todo o homem.

[376] De entre as numerosas e diversificadas intervenções, recorde-se: João Paulo II, Carta enc.Dominum et vivificantem (18 de Maio de 1986): AAS 78 (1986), 809-900; Idem, Carta enc.Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990): AAS 83 (1991), 249-340; Idem, Discursos e homilias em Assis, por ocasião do Dia de Oração pela Paz em 27 de Outubro de 1986:Insegnamenti, IX/2 (1986), 1249-1273; Idem, Dia de Oração pela Paz no Mundo (24 de Janeiro de 2002): Insegnamenti XXV/1 (2002), 97-108; Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja Dominus Iesus (6 de Agosto de 2000): AAS 92 (2000), 742-765.

Diálogo entre cristãos e muçulmanos


118 De entre as diversas religiões, a Igreja olha com estima os muçulmanos, que reconhecem a existência de um único Deus;[377] fazem referimento a Abraão e prestam culto a Deus sobretudo com a oração, a esmola e o jejum. Reconhecemos que, na tradição do Islão, há muitas figuras, símbolos e temas bíblicos. Em continuidade com a importante acção empreendida pelo Venerável João Paulo II, desejo que as relações baseadas na confiança, que estão instauradas desde há diversos anos entre cristãos e muçulmanos, continuem e se desenvolvam num espírito de diálogo sincero e respeitoso.[378] Neste diálogo, o Sínodo fez votos de que se possam aprofundar o respeito da vida como valor fundamental, os direitos inalienáveis do homem e da mulher e a sua igual dignidade. Tendo em conta a distinção entre a ordem sociopolítica e a ordem religiosa, as religiões devem dar a sua contribuição para o bem comum. O Sínodo pede às Conferências Episcopais que se favoreçam, onde for oportuno e profícuo, encontros para um conhecimento recíproco entre cristãos e muçulmanos a fim de se promoverem os valores de que a sociedade tem necessidade para uma convivência pacífica e positiva.[379]

[377] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãsNostra aetate,
NAE 3.
[378] Cf. Bento XVI, Discurso a Embaixadores dos países maioritariamente muçulmanos acreditados junto da Santa Sé (25 de Setembro de 2006): AAS 98 (2006), 704-706.
[379] Cf. Propositio 53.

Diálogo com as outras religiões


119 Além disso, desejo aqui manifestar o respeito da Igreja pelas antigas religiões e tradições espirituais dos vários Continentes; contêm valores que podem favorecer imenso a compreensão entre as pessoas e os povos.[380] Muitas vezes constatamos sintonias com valores expressos também nos seus livros religiosos, como, por exemplo, o respeito pela vida, a contemplação, o silêncio e a simplicidade, no Budismo; o sentido da sacralidade, do sacrifício e do jejum, no Hinduísmo; e ainda os valores familiares e sociais no Confucionismo. Vemos, ainda noutras experiências religiosas, uma sincera atenção à transcendência de Deus, reconhecido como Criador, e também ao respeito da vida, do matrimónio e da família e ainda um forte sentido da solidariedade.

[380] Cf. Propositio 50.

Diálogo e liberdade religiosa


120 Todavia o diálogo não seria fecundo, se não incluísse também um verdadeiro respeito por toda a pessoa para que possa aderir livremente à sua própria religião. Por isso o Sínodo, ao mesmo tempo que promove a colaboração entre os expoentes das diversas religiões, recorda igualmente «a necessidade de que seja efectivamente assegurada a todos os crentes a liberdade de professar, privada e publicamente a sua própria religião, e também a liberdade de consciência»;[381] de facto «o respeito e o diálogo exigem a reciprocidade em todos os campos, sobretudo no que diz respeito às liberdades fundamentais e, de modo muito particular, à liberdade religiosa. Tal respeito e diálogo favorecem a paz e a harmonia entre os povos».[382]

[381] Ibidem.
[382] João Paulo II, Discurso no encontro com os jovens muçulmanos em Casablanca(Marrocos, 19 de Agosto de 1985), 5: AAS 78 (1986), 99.


CONCLUSÃO


A palavra definitiva de Deus


121 No termo destas reflexões, em que reuni e aprofundei a riqueza da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, desejo uma vez mais exortar todo o Povo de Deus, os Pastores, as pessoas consagradas e os fiéis leigos a empenharem-se para que as Sagradas Escrituras se lhes tornem cada vez mais familiares. Nunca devemos esquecer que, na base de toda a espiritualidade cristã autêntica e viva, está a Palavra de Deus anunciada, acolhida, celebrada e meditada na Igreja. A intensificação do relacionamento com a Palavra divina acontecerá com tanto maior decisão quanto mais cientes estivermos de nos encontrar, quer na Escritura quer na Tradição viva da Igreja, em presença da Palavra definitiva de Deus sobre o universo e a história.

Como nos leva a contemplar o Prólogo do Evangelho de João, todo o ser está sob o signo da Palavra. O Verbo sai do Pai e vem habitar entre os Seus e regressa ao seio do Pai para levar consigo toda a criação que n’Ele e para Ele fora criada. Agora a Igreja vive a sua missão na veemente expectativa da manifestação escatológica do Esposo: «O Espírito e a Esposa dizem: “Vem!”» (
Ap 22,17). Esta expectativa nunca é passiva, mas tensão missionária de anúncio da Palavra de Deus que cura e redime todo o homem; ainda hoje Jesus ressuscitado nos diz: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura» (Mc 16,15).

Nova evangelização e nova escuta


122 Por isso, o nosso deve ser cada vez mais o tempo de uma nova escuta da Palavra de Deus e de uma nova evangelização. É que descobrir a centralidade da Palavra de Deus na vida cristã faz-nos encontrar o sentido mais profundo daquilo que João Paulo II incansavelmente lembrou: continuar amissio ad gentes e empreender com todas as forças a nova evangelização, sobretudo naquelas nações onde o Evangelho foi esquecido ou é vítima da indiferença da maioria por causa de um difundido secularismo. O Espírito Santo desperte nos homens fome e sede da Palavra de Deus e os torne zelosos anunciadores e testemunhas do Evangelho.

À imitação do grande Apóstolo das Nações, que ficou transformado depois de ter ouvido a voz do Senhor (cf.
Ac 9,1-30), escutemos também nós a Palavra divina que não cessa de nos interpelar pessoalmente aqui e agora. O Espírito Santo reservou para Si – narram os Actos dos Apóstolos – Paulo e Barnabé para a pregação e a difusão da Boa Nova (cf. Ac 13,2). Também hoje de igual modo o Espírito Santo não cessa de chamar ouvintes e anunciadores convictos e persuasivos da Palavra do Senhor.

A Palavra e a alegria


123 Quanto mais soubermos colocar-nos à disposição da Palavra divina, tanto mais poderemos constatar como o mistério do Pentecostes se está a realizar ainda hoje na Igreja de Deus. O Espírito do Senhor continua a derramar os seus dons sobre a Igreja, para que sejamos guiados para a verdade total, desvendando-nos o sentido das Escrituras e tornando-nos anunciadores credíveis da Palavra de salvação. E assim regressamos à Primeira Carta de São João. Na Palavra de Deus, também nós escutámos, vimos e tocámos o Verbo da vida. Por graça, acolhemos o anúncio de que a vida eterna se manifestou, de modo que agora reconhecemos que estamos em comunhão uns com os outros, com quem nos precedeu no sinal da fé e com todos aqueles que, espalhados pelo mundo, escutam a Palavra, celebram a Eucaristia, vivem o testemunho da caridade. Recebemos a comunicação deste anúncio – recorda-nos o apóstolo João – para que «a nossa alegria seja completa» (cf. 1Jn 1,4).

A Assembleia sinodal permitiu-nos experimentar tudo isto que está contido na mensagem joanina: o anúncio da Palavra cria comunhão e gera a alegria. Trata-se de uma alegria profunda que brota do próprio coração da vida trinitária e é-nos comunicada no Filho. Trata-se da alegria como dom inefável que o mundo não pode dar. Podem-se organizar festas, mas não a alegria. Segundo a Escritura, a alegria é fruto do Espírito Santo (cf. Ga 5,22), que nos permite entrar na Palavra e fazer com que a Palavra divina entre em nós e frutifique para a vida eterna. Anunciando a Palavra de Deus na força do Espírito Santo, queremos comunicar também a fonte da verdadeira alegria, não uma alegria superficial e efémera, mas aquela que brota da certeza de que só o Senhor Jesus tem palavras de vida eterna (cf. Jn 6,68).

«Mater Verbi et Mater laetitiae»


124 Esta relação íntima entre a Palavra de Deus e a alegria aparece em evidência precisamente na Mãe de Deus. Recordemos as palavras de Santa Isabel: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1,45). Maria é feliz porque tem fé, porque acreditou, e, nesta fé, acolheu no seu ventre o Verbo de Deus para O dar ao mundo. A alegria recebida da Palavra pode agora estender-se a todos aqueles que na fé se deixam transformar pela Palavra de Deus. O Evangelho de Lucas apresenta-nos este mistério de escuta e de alegria, em dois textos. Jesus afirma: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 8,21). E, em resposta à exclamação duma mulher que, do meio da multidão, pretende exaltar o ventre que O trouxe e o seio que O amamentou, Jesus revela o segredo da verdadeira alegria: «Diz antes: Felizes os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 11,28). Jesus manifesta a verdadeira grandeza de Maria, abrindo assim também a cada um de nós a possibilidade daquela bem-aventurança que nasce da Palavra acolhida e posta em prática. Por isso, recordo a todos os cristãos que o nosso relacionamento pessoal e comunitário com Deus depende do incremento da nossa familiaridade com a Palavra divina. Por fim, dirijo-me a todos os homens, mesmo a quantos se afastaram da Igreja, que abandonaram a fé ou que nunca ouviram o anúncio de salvação. O Senhor diz a cada um: «Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo» (Ap 3,20).

Por isso, cada um dos nossos dias seja plasmado pelo encontro renovado com Cristo, Verbo do Pai feito carne: Ele está no início e no fim de tudo, e n’Ele todas as coisas subsistem (cf. Col 1,17). Façamos silêncio para ouvir a Palavra do Senhor e meditá-la, a fim de que a mesma, através da acção eficaz do Espírito Santo, continue a habitar e a viver em nós e a falar-nos ao longo de todos os dias da nossa vida. Desta forma, a Igreja sempre se renova e rejuvenesce graças à Palavra do Senhor, que permanece eternamente (cf. 1P 1,25 Is 40,8). Assim também nós poderemos entrar no esplêndido diálogo nupcial com que se encerra a Sagrada Escritura: «O Espírito e a Esposa dizem: “Vem”! E, aquele que ouve, diga: “Vem”! (…) O que dá testemunho destas coisas diz. “Sim, Eu venho em breve”! Amen. Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22,17 Ap 22,20).

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 30 de Setembro – memória de São Jerónimo – de 2010, sexto ano de Pontificado.

BENEDICTUS PP. XVI




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