Ut unum sint PT


Ioannes Paulus PP. II

Ut unum sint

sobre o Empenho Ecuménico


1995.05.25








INTRODUÇÃO

1 Ut unum sint! O apelo à unidade dos cristãos, que o Concílio Ecuménico Vaticano II repropôs com tão ardoroso empenho, ressoa com vigor cada vez maior no coração dos crentes, especialmente quando já se aproxima o ano Dois Mil que será para eles Jubileu sagrado, comemoração da Encarnação do Filho de Deus, que Se fez homem para salvar o homem.

O testemunho corajoso de tantos mártires do nosso século, incluindo também membros de outras Igrejas e Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, dá nova força ao apelo conciliar, lembrando-nos a obrigação de acolher e pôr em prática a sua exortação. Estes nossos irmãos e irmãs, irmanados na generosa oferta das suas vidas pelo Reino de Deus, são a prova mais significativa de que todo o elemento de divisão pode ser vencido e superado com o dom total de si próprio à causa do Evangelho.

Cristo chama todos os seus discípulos à unidade.O ardente desejo que me move, é o de renovar hoje este convite e repropô-lo com determinação, recordando aquilo que fiz ressaltar no Coliseu de Roma, em Sexta-Feira Santa de 1994, ao concluir a meditação da Via-Sacra, cujo texto fora proposto pelo venerável Irmão Bartolomeu, Patriarca ecuménico de Constantinopla. Afirmei então que, unidos na esteira dos mártires, os crentes em Cristo não podem permanecer divididos. Se querem verdadeira e eficazmente fazer frente à tendência do mundo a tornar vão o Mistério da Redenção, os cristãos devem professar juntos a mesma verdade sobre a Cruz. 1 A Cruz! A corrente anticristã propõe-se dissipar o seu valor, esvaziá-la do seu si- gnificado, negando que o homem possa encontrar nela as raízes da sua nova vida e alegando que a Cruz não consegue nutrir perspectivas nem esperanças: o homem — dizem — é um ser meramente terreno, que deve viver como se Deus não existisse.

(1) Cf. Palabras la final del Vía Crucis del Viernes Santo (1 abril 1994), 3: AAS 87 (1995), 88.




2 A ninguém passa despercebido o desafio que tudo isso coloca aos crentes. E estes não podem deixar de o enfrentar. Poderão eles, portanto, recusar-se a fazer todo o possível para, com a ajuda de Deus, abater muros de divisão e desconfiança, superar obstáculos e preconceitos que impedem o anúncio do Evangelho da Salvação através da Cruz de Jesus, único Redentor do homem, de todo o homem?

Agradeço ao Senhor por nos ter inspirado a prosseguir pelo caminho difícil, mas tão rico de alegria, como é o caminho da unidade e comunhão entre os cristãos. Os diálogos interconfessionais a nível teológico deram frutos positivos e palpáveis: e isso encoraja-nos a continuar para diante.

Mas, além das divergências doutrinais a resolver, os cristãos não podem ignorar o peso das atávicas incompreensões que herdaram do passado, dos equívocos e preconceitos de uns relativamente aos outros. Não raro, depois, a inércia, a indiferença e um conhecimento recíproco insuficiente agravam tal situação. Por este motivo, o empenho ecuménico deve fundar-se na conversão dos corações e na oração, ambas induzindo depois à necessária purificação da memória histórica. Os discípulos do Senhor, animados pelo amor, pela coragem da verdade e pela vontade sincera de se perdoarem mutuamente e reconciliarem, são chamados, com a graça do Espírito Santo, a reconsiderarem juntos o seu doloroso passado e aquelas feridas que este, infelizmente, continua ainda hoje a provocar. São convidados pela força sempre jovem do Evangelho a reconhecerem juntos, com sincera e total objectividade, os erros cometidos e os factores contingentes que estiveram na origem das suas deploráveis separações. Ocorre umolhar de verdade sereno e límpido, vivificado pela misericórdia divina, capaz de libertar os ânimos e de suscitar em cada pessoa uma renovada disponibilidade em ordem ao anúncio mesmo do Evangelho aos homens de todos os povos e nações.




3 Com o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica empenhou-se,de modo irreversível, a percorrer o caminho da busca ecuménica, colocando-se assim à escuta do Espírito do Senhor, que ensina a ler com atenção os « sinais dos tempos ». As experiências que viveu nestes anos, e continua a viver, iluminam ainda mais profundamente a sua identidade e missão na história. A Igreja Católica reconhece e confessa as fraquezas dos seus filhos, consciente de que os seus pecados constituem igualmente traições e obstáculos à realização dos desígnios do Salvador. Sentindo-se constantemente chamada à renovação evangélica, ela não cessa de fazer penitência. Mas, ao mesmo tempo e mais vigorosamente, reconhece e exalta a força do Senhor que, tendo-a cumulado com o dom da santidade, a atrai e conforma à sua paixão e ressurreição.

Prevenida pelas múltiplas vicissitudes da sua história, a Igreja está empenhada em libertar-se de todo o apoio puramente humano, para viver profundamente a lei evangélica das Bem-aventuranças. Ciente de que a verdade não se impõe senão « pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte », 2 nada procura para si própria senão a liberdade de anunciar o Evangelho. De facto, a sua autoridade exerce-se no serviço da verdade e da caridade.

Eu mesmo tenciono promover todo e qualquer passo útil a fim de que o testemunho da Comunidade Católica inteira possa ser compreendido em toda a sua pureza e coerência, sobretudo na perspectiva daquele encontro que espera a Igreja no limiar do novo Milénio, hora excepcional em vista da qual ela pede ao Senhor que a unidade entre todos os cristãos cresça até chegar à plena comunhão. 3 É também para este nobilíssimo objectivo que aponta a presente Encíclica que, na sua índole essencialmente pastoral, quer ser um contributo e apoio para o esforço de todos os que trabalham pela causa da unidade.

(2) Vaticano II,
DH 1.
(3) Cf. Carta TMA 16: AAS 87 (1995), 15.



4 Este é um preciso compromisso do Bispo de Roma enquanto sucessor do apóstolo Pedro. Desempenho-o com a profunda convicção de obedecer ao Senhor e com a plena consciência da minha fragilidade humana. De facto, quando o próprio Cristo confiou a Pedro esta missão especial na Igreja e lhe recomendou de confirmar os irmãos, deu-lhe ao mesmo tempo a conhecer a sua debilidade humana e uma particular necessidade de conversão: « E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos » (Lc 22,32). É na própria debilidade humana de Pedro que se manifesta plenamente como o Papa, para cumprir este especial ministério na Igreja, depende totalmente da graça e da oração do Senhor: « Eu roguei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça » (Lc 22,32). A conversão de Pedro e dos seus sucessores apoia-se na oração mesma do Redentor, e a Igreja participa constantemente nesta súplica. Na nossa época ecuménica, caracterizada pelo Concílio Vaticano II, a missão do Bispo de Roma visa particularmente lembrar a exigência da plena comunhão dos discípulos de Cristo.

O Bispo de Roma há-de ser o primeiro a fazer sua, com fervor, a prece de Cristo pela conversão que é indispensável a « Pedro » para poder servir os irmãos. Com todo o coração, peço que se associem a esta súplica os fiéis da Igreja Católica e todos os cristãos. Rezem todos juntamente comigo por esta conversão.

Sabemos que a Igreja na sua peregrinação terrena sofreu e continuará a sofrer oposições e perseguições. Mas a esperança que a sustém, é inabalável, como indestrutível é a alegria que dimana dessa esperança. Na verdade, a rocha firme e perene sobre a qual a Igreja se funda, é Jesus Cristo seu Senhor.






I. O EMPENHO ECUMÉNICO DA IGREJA CATÓLICA


O desígnio de Deus e a comunhão

5 Juntamente com todos os discípulos de Cristo, a Igreja Católica funda, sobre o desígnio de Deus, o seu empenho ecuménico de reunir a todos na unidade. De facto, « a Igreja não é uma realidade voltada sobre si mesma, mas aberta permanentemente à dinâmica missionária e ecuménica, porque enviada ao mundo para anunciar e testemunhar, actualizar e expandir o mistério de comunhão que a constitui: a fim de reunir a todos e tudo em Cristo; ser para todos "sacramento inseparável de unidade" ». 4

Já no Antigo Testamento, referindo-se à situação do povo de Deus de então, o profeta Ezequiel, recorrendo ao símbolo simples de duas varas, primeiro separadas e depois juntas uma à outra, exprimia a vontade divina de « reunir de toda a parte » os membros do seu povo dividido: « Serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Então as nações reconhecerão que Eu sou o Senhor que santifica Israel » (cf. 37, 16-28). Por sua vez, o Evangelho de S. João, pensando na situação do povo de Deus daquele tempo, vê na morte de Jesus a razão da unidade dos filhos de Deus: « Devia morrer pela Nação. E não somente pela Nação, mas também para trazer à unidade os filhos de Deus que andavam dispersos » (11, 51-52). De facto, como explicará a Carta aos Efésios, « destruindo o muro de inimizade que os separava (...), pela Cruz levando em Si próprio a morte à inimizade », Ele fez a unidade entre o que estava dividido (cf. 2, 14.16).



6 A vontade de Deus é a unidade de toda a humanidade dispersa. Por este motivo, enviou o seu Filho a fim de que, morrendo e ressuscitando por nós, nos desse o seu Espírito de amor. Na véspera do sacrifício da Cruz, Jesus mesmo pede ao Pai pelos seus discípulos e por todos os que acreditarem n'Ele, para que sejam um só, uma comunhão viva. Daqui deriva o dever e a responsabilidade que incumbe, diante de Deus e do seu desígnio, sobre aqueles e aquelas que, através do Baptismo, se tornam o Corpo de Cristo: Corpo no qual se deve realizar em plenitude a reconciliação e a comunhão. Como é possível permanecer divididos, se, pelo Baptismo, fomos « imersos » na morte do Senhor, ou seja, naquele mesmo acto pelo qual Deus, através do seu Filho, abateu os muros da divisão? A « divisão contradiz abertamente a vontade de Cristo, e é escândalo para o mundo, como também prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura ». 5

(5) Vaticano II,
UR 1.


O caminho ecuménico: caminho da Igreja

7 « O Senhor dos séculos, porém, prossegue sábia e pacientemente o plano da sua graça a favor de nós pecadores. Começou ultimamente a infundir de modo mais abundante nos cristãos separados entre si a compunção de coração e o desejo de união. Por toda a parte, muitos homens sentiram o impulso desta graça. Também surgiu entre os nossos irmãos separados, por moção da graça do Espírito Santo, um movimento cada vez mais intenso em ordem à restauração da unidade de todos os cristãos. Este movimento de unidade é chamado ecuménico. Participam dele os que invocam Deus Trino e confessam a Cristo como Senhor e Salvador, não só individualmente, mas também reunidos em assembleias. Cada qual afirma que o grupo onde ouviu o Evangelho é Igreja sua e de Deus. Quase todos, se bem que de modo diverso, aspiram a uma Igreja de Deus una e visível, que seja verdadeiramente universal e enviada ao mundo inteiro, a fim de que o mundo se converta ao Evangelho e assim seja salvo, para glória de Deus ». 6

(6) Vaticano II,
UR 1.



8 Esta asserção do Decreto Unitatis redintegratio há-de ser lida no contexto de todo o magistério conciliar. O Concílio Vaticano II exprime a decisão da Igreja de assumir a tarefa ecuménica em prol da unidade dos cristãos e de a propor convicta e vigorosamente: « Este sagrado Concílio exorta todos os fiéis a que, reconhecendo os sinais dos tempos, solicitamente participem do trabalho ecuménico ». 7

Ao indicar os princípios católicos do ecumenismo, o citado Decreto retoma primariamente o ensinamento sobre a Igreja presente na Constituição Lumen gentium, no capítulo que trata do povo de Deus. 8 E ao mesmo tempo, tem em conta o que se afirma na Declaração conciliar Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa. 9

Cheia de esperança, a Igreja Católica assume o empenho ecuménico como um imperativo da consciência cristã, iluminada pela fé e guiada pela caridade. Também aqui se podem aplicar as palavras de S. Paulo aos primeiros cristãos de Roma: « O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi concedido »; assim a nossa « esperança não nos deixa confundidos » (
Rm 5,5). Esta é a esperança da unidade dos cristãos, que encontra a sua fonte divina na unidade trinitária do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

(7) UR 4.
(8) Cf. Vaticano II, LG 14.
(9) Cf. Vaticano II, DH 1-2.



9 O próprio Jesus, na hora da sua Paixão, pediu « que todos sejam um » (Jn 17,21). Esta unidade, que o Senhor deu à sua Igreja e na qual Ele quer abraçar a todos, não é um elemento acessório, mas situa-se no centro mesmo da sua obra. Nem se reduz a um atributo secundário da Comunidade dos seus discípulos. Pelo contrário, pertence à própria essência desta Comunidade. Deus quer a Igreja, porque Ele quer a unidade, e na unidade exprime-se toda a profundidade da sua ágape.

De facto, esta unidade dada pelo Espírito Santo não consiste simplesmente na confluência unitária de pessoas que se aglomeram umas às outras. Mas trata-se de uma unidade constituída pelos vínculos da profissão de fé, dos sacramentos e da comunhão hierárquica. 10 Os fiéis são um, porque, no Espírito, eles estão em comunhão com o Filho, e, n'Ele, em comunhão com o Pai: « A nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo » (1Jn 1,3). Para a Igreja Católica, portanto, a comunhão dos cristãos não é senão a manifestação neles daquela graça, pela qual Deus os torna participantes da sua própria comunhão, que é a vida eterna. Por isso, as palavras de Cristo — « que todos sejam um » — são a oração dirigida ao Pai para que se cumpra plenamente o seu desígnio, de tal modo que a todos fique claro « qual seja a economia do mistério escondido desde tempos antigos em Deus, que tudo criou » (Ep 3,9). Acreditar em Cristo significa querer a unidade; querer a unidade significa querer a Igreja; querer a Igreja significa querer a comunhão de graça que corresponde ao desígnio do Pai desde toda a eternidade. Este é o significado da oração de Cristo: « Ut unum sint ».

(10) Cf. Vaticano II, LG 14.



10 Na actual situação de divisão entre os cristãos e de procura respeitosa da plena comunhão, os fiéis católicos sentem-se profundamente interpelados pelo Senhor da Igreja. O Concílio Vaticano II reforçou o seu empenho com uma visão eclesiológica clara e aberta a todos os valores eclesiais presentes nos outros cristãos. Os fiéis católicos enfrentam a problemática ecuménica com espírito de fé.

O Concílio diz que « a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele », e contemporaneamente reconhece que « fora da sua comunidade visível, se encontram muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica ». 11

« Por isso, as Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham defeitos, de forma alguma estão despojadas de sentido e de significação no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como de meios de salvação cuja virtude deriva da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Católica ». 12

(11)
LG 8.
(12) Vaticano II, UR 3.



11 Deste modo, a Igreja Católica afirma que, ao longo dos dois mil anos da sua história, foi conservada na unidade com todos os bens que Deus quer dotar a sua Igreja, e isto apesar das crises, por vezes graves, que a abalaram, as faltas de fidelidade de alguns dos seus ministros, e os erros que diariamente investem os seus membros. A Igreja Católica sabe que, graças ao apoio que lhe vem do Espírito Santo, as fraquezas, as mediocridades, os pecados, e às vezes as traições de alguns dos seus filhos, não podem destruir aquilo que Deus nela infundiu tendo em vista o seu desígnio de graça. E até « as portas do inferno nada poderão contra ela » (Mt 16,18). Contudo, a Igreja Católica não esquece que, no seu seio, muitos eclipsam o desígnio de Deus. Ao evocar a divisão dos cristãos, o Decreto sobre o ecumenismo não ignora « a culpa dos homens dum e doutro lado », 13 reconhecendo que a responsabilidade não pode ser atribuída somente aos « outros ». Por graça de Deus, porém, não foi destruído o que pertence à estrutura da Igreja de Cristo e nem mesmo aquela comunhão que permanece com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais.

Com efeito, os elementos de santificação e de verdade presentes nas outras Comunidades cristãs, em grau variável duma para outra, constituem a base objectiva da comunhão, ainda imperfeita, que existe entre elas e a Igreja Católica.

Na medida em que tais elementos se encontram nas outras Comunidades cristãs, a única Igreja de Cristo tem nelas uma presença operante. Por este motivo, o Concílio Vaticano II fala de uma certa comunhão, embora imperfeita. A Constituição Lumen gentium ressalta que a Igreja Católica « vê-se unida por muitos títulos » 14 a estas Comunidades, por uma certa união verdadeira no Espírito Santo.

(13) Vaticano II, UR 3.
(14) UR 15.



12 A mesma Constituição explicitou amplamente « os elementos de santificação e de verdade » que, de modo distinto, se encontram e actuam para além das fronteiras visíveis da Igreja Católica: « Muitos há, com efeito, que têm e prezam a Sagrada Escritura como norma de fé e de vida, manifestam sincero zelo religioso, crêem de coração em Deus Pai omnipotente e em Cristo, Filho de Deus Salvador, são marcados pelo Baptismo que os une a Cristo e reconhecem e recebem mesmo outros sacramentos nas suas próprias igrejas ou comunidades eclesiásticas. Muitos de entre eles têm mesmo um episcopado, celebram a sagrada Eucaristia e cultivam a devoção para com a Virgem Mãe de Deus. Acrescenta-se a isto a comunhão de orações e outros bens espirituais; mais ainda, existe uma certa união verdadeira no Espírito Santo, o qual neles actua com os dons e graças do seu poder santificador, chegando a fortalecer alguns deles até ao martírio. Deste modo, o Espírito suscita em todos os discípulos de Cristo o desejo e a prática efectiva em vista de que todos, segundo o modo estabelecido por Cristo, se unam pacificamente num só rebanho sob um só pastor ». 15

O Decreto conciliar sobre o ecumenismo, referindo-se às Igrejas Ortodoxas, chega mesmo a declarar que, « pela celebração da Eucaristia do Senhor, em cada uma dessas Igrejas, a Igreja de Deus é edificada e cresce ». 16 Reconhecer tudo isto é uma questão de verdade.

(15)
UR 15.
(16) Vaticano II, UR 15.



13 Este último documento enumera brevemente as implicações doutrinais desta situação. A propósito dos membros dessas Comunidades, declara: « Justificados no Baptismo pela fé, são incorporados a Cristo, e, por isso, com direito se honram com o nome de cristãos e justamente são reconhecidos pelos filhos da Igreja Católica como irmãos no Senhor ». 17

Pensando nos múltiplos bens presentes nas outras Igrejas e Comunidades eclesiais, o Decreto acrescenta: « Tudo isso, que de Cristo provém e a Cristo conduz, pertence por direito à única Igreja de Cristo. Também não poucas acções sagradas da religião cristã são celebradas entre os nossos irmãos separados. Por vários modos, conforme a condição de cada Igreja ou Comunidade, estas acções podem realmente produzir a vida da graça. Devem mesmo ser tidas como aptas para abrir a porta à comunhão da salvação ». 18

Trata-se de textos ecuménicos da maior importância. Para além dos limites da Comunidade Católica, não existe o vazio eclesial. Muitos elementos de grande valor (eximia), que estão integrados na Igreja Católica na plenitude dos meios de salvação e dos dons de graça que a edificam, acham-se também nas outras Comunidades cristãs.

(17)
UR 3.
(18) Ibid. UR 3



14 Todos estes elementos trazem consigo o apelo à unidade, para nela encontrarem a sua plenitude. Não se trata de aglomerar todas as riquezas dispersas nas Comunidades cristãs, com o fim de se chegar a uma Igreja que Deus teria em vista para o futuro. Segundo a grande Tradição atestada pelos Padres do Oriente e do Ocidente, a Igreja Católica crê que, no acontecimento do Pentecostes, Deus já manifestou a Igreja na sua realidade escatológica, que Ele preparava « desde o tempo de Abel, o justo ». 19 Ela já está presente. Por este motivo, já nos encontramos no fim dos tempos. Os elementos desta Igreja, já presente, existem, incorporados na sua plenitude, na Igreja Católica e, sem tal plenitude, nas outras Comunidades, 20 onde certos aspectos do mistério cristão foram, por vezes, mais eficazmente manifestados. O ecumenismo busca precisamente fazer crescer a comunhão parcial existente entre os cristãos até à plena comunhão na verdade e na caridade.

(19) Cf. S. Gregorio Magno, Homiliae in Evangelia 19,1: PL 76, 1154 citado en Vaticano II,
LG 2.
(20) Cf. Vaticano II, UR 4.


Renovação e conversão

15 Passando dos princípios, do imperativo da consciência cristã à realização do caminho ecuménico rumo à unidade, o Concílio Vaticano II põe em relevo sobretudo a necessidade da conversão do coração. O anúncio messiânico — « completou-se o tempo e o Reino de Deus está perto » —, e o consequente apelo — « convertei-vos e crede no Evangelho » (Mc 1,15) —, com os quais Jesus inaugura a sua missão, indicam o elemento essencial que deve caracterizar qualquer novo início: a exigência fundamental da evangelização em cada etapa do caminho salvífico da Igreja. Mas isso aplica-se de modo particular ao processo desencadeado pelo Concílio Vaticano II que incluiu, no âmbito da renovação, a tarefa ecuménica de unir os cristãos divididos entre si: « Não existe verdadeiro ecumenismo sem conversão interior ». 21

O Concílio apela tanto à conversão pessoal, como à conversão comunitária. O anseio de cada Comunidade cristã pela unidade cresce ao ritmo da sua fidelidade ao Evangelho. Ao referir-se às pessoas que vivem a sua vocação cristã, o Concílio fala de conversão interior, de renovação da mente. 22

Assim, cada um tem que se converter mais radicalmente ao Evangelho e, sem nunca perder de vista o desígnio de Deus, deve rectificar o seu olhar. Com o ecumenismo, a contemplação das « maravilhas de Deus » (mirabilia Dei) enriqueceu-se de novos espaços onde o Deus Trino suscita a acção de graças: a percepção de que o Espírito age nas outras Comunidades cristãs, a descoberta de exemplos de santidade, a experiência das infindáveis riquezas da comunhão dos santos, o contacto com aspectos surpreendentes do compromisso cristão. E correlativamente estendeu-se também a necessidade de penitência: a consciência de certas exclusões que ferem a caridade fraterna, de certas recusas em perdoar, de um certo orgulho, daquele entrincheiramento anti-evangélico na condenação dos « outros », de um desprezo que deriva de falsa presunção. Assim, toda a vida dos cristãos está marcada pela solicitude ecuménica e, de certo modo, eles são chamados a deixarem-se plasmar por ela.

(21) UR 7.
(22) Cf. ibid. UR 7



16 No magistério conciliar, há um nexo claro entre renovação, conversão e reforma. Afirma: « A Igreja peregrina é chamada por Cristo a essa reforma perene. Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta reforma. Assim, se em vista das circunstâncias das coisas e dos tempos houve deficiências (...), tudo seja recta e devidamente restaurado no momento oportuno ». 23 Nenhuma Comunidade cristã pode furtar-se a este apelo.

Dialogando com franqueza, as Comunidades ajudam-se a olhar-se conjuntamente à luz da Tradição Apostólica. Isto leva-as a perguntar-se se realmente exprimem adequadamente tudo aquilo que o Espírito transmitiu através dos Apóstolos. 24 Pelo que diz respeito à Igreja Católica, várias vezes, como, por exemplo, por ocasião do aniversário do Baptismo da Rus', 25 ou da comemoração, ao cumprirem-se onze séculos, da acção evangelizadora dos Santos Cirilo e Metódio, 26 chamei a atenção para tais exigências e perspectivas. Mais recentemente, o Directório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo, publicado com a minha aprovação pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, aplicou-as no campo pastoral. 27

(23)
UR 6.
(24) Cf. Vaticano II, DV 7.
(25) Cf. Carta ap. Euntes in mundum (25 enero 1988): AAS 80 (1988), 935-956.
(26) Cf. Carta enc. Slavorum apostoli (2 junio 1985). AAS 77 (1985), 779-813.
(27) Cf. Directoire pour l'application des principes et des normes sur l'oecuménisme (25 marzo 1993): AAS 85 (1993) 1039-1119.



17 Relativamente aos outros cristãos, os documentos principais da Comissão Fé e Constituição 28 e as declarações de numerosos diálogos bilaterais forneceram já às Comunidades cristãs úteis instrumentos para discernir o que é necessário ao movimento ecuménico e à conversão que este deve suscitar. Tais estudos são importantes sob dois aspectos: mostram os notáveis progressos já alcançados e infundem esperança por constituirem uma base segura para a busca da unidade que se há-de continuar e aprofundar.

A progressiva comunhão numa contínua reforma, realizada à luz da Tradição Apostólica, é, sem dúvida, um dos traços típicos e mais importantes do ecumenismo, na actual situação do povo cristão. Por outro lado, aquela é também uma garantia essencial para o seu futuro. Os fiéis da Igreja Católica não podem ignorar que o ímpeto ecuménico do Concílio Vaticano II é um dos resultados do grande empenhamento da Igreja de então em perscrutar-se à luz do Evangelho e da grande Tradição. Bem o compreendera o meu predecessor, Papa João XXIII, que, ao convocar o Concílio, se recusou a separar a actualização da abertura ecuménica. 29 No final da Assembleia Conciliar, o Papa Paulo VI consagrou a vocação ecuménica do Concílio ao retomar o diálogo da caridade com as Igrejas em comunhão com o Patriarca de Constantinopla, realizando com ele aquele gesto concreto e altamente significativo que « relegou para o esquecimento » — e « tirou da memória e do meio das Igrejas » — as excomunhões do passado. Há que lembrar que a criação de um organismo especial para o ecumenismo coincidiu com o próprio início da preparação do Concílio Vaticano II, 30 e que, através de tal organismo, os pareceres e avaliações das outras Comunidades cristãs tiveram a sua parte nos grandes debates sobre a Revelação, a Igreja, a natureza do ecumenismo, e a liberdade religiosa.

(28) Cf. en particular el Documento llamado de Lima: Bautismo, Eucaristía, Ministerio (enero 1982): Ench. Oecum. 1,1392-1446, y el Documento n. 153 de «Fe y Constitución» Confessing the «One» Faith, Ginebra 1991.
(29) Cf. Discurso de apertura del Concilio Ecuménico Vaticano II (11 octubre 1962): AAS 54 (1962), 793.
(30. Se trata del Secretariado para la Promoción de la Unidad de los Cristianos, creado por el Papa Juan XXIII Con el Motu proprio Superno Dei nutu (5 junio 1960), 9: AAS 52 (1960), 436 y confirmado por los documentos sucesivos: Motu proprio Appropinquante Concilio (6 agosto 1962), c. III, a, 7, § 2, I: AAS 54 (1962), 614; cf. Pablo VI, Const. ap. Regimini ecclesiae universae (15 agosto 1967), 92-94: AAS 59 (1967), 918-919. Este Dicasterio se denomina actualmente Pontificio Consejo para la Promoción de la Unidad de los Cristianos: cf. Const. ap. Pastor Bonus (28 junio 1988), V, art. : AAS 80 (1988), 895-896.



Importância fundamental da doutrina

18 Retomando uma ideia que o próprio Papa João XXIII tinha expresso na abertura do Concílio, 31 o Decreto sobre o ecumenismo menciona a forma de expor a doutrina, entre os elementos de reforma contínua. 32 Não se trata, neste contexto, de modificar o depósito da fé, de mudar o significado dos dogmas, de banir deles palavras essenciais, de adaptar a verdade aos gostos de uma época, de eliminar certos artigos do Credo com o falso pretexto de que hoje já não se compreendem. A unidade querida por Deus só se pode realizar na adesão comum ao conteúdo integral da fé revelada. Em matéria de fé, a cedência está em contradição com Deus, que é a Verdade. No Corpo de Cristo — Ele que é « Caminho, Verdade e Vida » (Jn 14,6) —, quem poderia considerar legítima uma reconciliação levada a cabo à custa da verdade? A Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa atribui à dignidade humana a procura da verdade, « sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja », 33 e a adesão às suas exigências. Portanto um « estar juntos » que traísse a verdade, estaria em oposição com a natureza de Deus, que oferece a sua comunhão, e com a exigência de verdade que vive no mais profundo de todo o coração humano.

(31) Discurso de apertura del Concilio Ecuménico Vaticano II (11 octubre 1962): AAS 54 11962), 792.
(32) Cf. Vaticano II, UR 6.
(33) Vaticano II, DH 1.



19 Contudo, a doutrina deve ser apresentada de modo que se torne compreensível àqueles para quem o próprio Deus a destina. Na Epístola encíclica Slavorum apostoli, lembrava como, por tal motivo, Cirilo e Metódio se esforçaram em traduzir as noções da Bíblia e os conceitos da teologia grega num contexto de experiências históricas e de pensamento muito diverso. Queriam que a única palavra de Deus fosse assim « tornada acessível pela adopção dos meios de se exprimir próprios de cada civilização ». 34 Compreenderam que não podiam « impor aos povos aos quais deviam pregar nem sequer a indiscutível superioridade da língua grega e da cultura bizantina, ou os costumes e modos de comportar-se da sociedade mais desenvolvida, em que eles próprios haviam sido educados ». 35 Desta forma, praticavam aquela « perfeita comunhão no amor 1 preserva a Igreja de qualquer forma de particularismo, exclusivismo étnico ou preconceito racial, bem como de qualquer sobrançaria nacionalista ». 36 No mesmo espírito, não hesitei em dizer aos aborígenes da Austrália: « Não deveis ser um povo dividido em duas partes (...). Jesus exorta-vos a acolher as suas palavras e os seus valores na vossa própria cultura ». 37 Já que, por sua própria natureza, o dado de fé se destina à humanidade inteira, isso requer que ele seja traduzido em todas as culturas. De facto, o elemento que decide a comunhão na verdade é o significado da verdade. A expressão da verdade pode ser multiforme. E a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável. 38

« Esta renovação tem, por isso, grande importância ecuménica ». 39 E não só uma renovação no modo de exprimir a fé, mas da própria vida de fé. Poder-se-ia então perguntar: quem deve actuá-la? O Concílio responde com clareza a esta pergunta: tal solicitude « vale para toda a Igreja, tanto para os fiéis como para os pastores. Afecta a cada um em particular, de acordo com a sua capacidade, quer na vida cristã quotidiana, quer nas investigações teológicas e históricas ». 40

(34) Carta enc. Slavorum apostoli (2 junio 1985), 11: AAS 77 (1985), 792.
(35) Ibid., 13, l.c., 794.
(36) Ibid., 11, l.c., 792.
(37. Discurso a los aborígenes (29 noviembre 1986), 12: AAS 79 (1987), 977.
(38) Cf. S. Vicente de Lerins, Commonitorium primum, 23: PL 50, 667-668.
(39) Vaticano II,
UR 6.
(40) UR 5.



20 Tudo isto é extremamente importante e de significado fundamental para a actividade ecuménica. Vê-se, de modo inequívoco, que o ecumenismo, o movimento a favor da unidade dos cristãos, não é só uma espécie de « apêndice », que se vem juntar à actividade tradicional da Igreja. Pelo contrário, pertence organicamente à sua vida e acção, devendo, por conseguinte, permeá-la no seu todo e ser como que o fruto de uma árvore que cresce sadia e viçosa até alcançar o seu pleno desenvolvimento.

Assim acreditava na unidade da Igreja o Papa João XXIII, e desse modo contemplava ele a unidade de todos os cristãos. Ao referir-se aos outros cristãos, à grande família cristã, constatava: « É muito mais forte aquilo que nos une do que quanto nos divide ». E o Concílio Vaticano II, por seu lado, exorta: « Lembrem-se todos os cristãos de que tanto melhor promoverão a união dos cristãos quanto mais se esforçarem por levar uma vida mais pura, de acordo com o Evangelho. Porque, quanto mais unidos estiverem em comunhão estreita com o Pai, o Verbo e o Espírito, tanto mais íntima e facilmente conseguirão aumentar a fraternidade mútua ». 41

(41)
UR 7.



Ut unum sint PT