Ut unum sint PT 21

Primado da oração

21 « Esta conversão do coração e esta santidade de vida, juntamente com as orações particulares e públicas pela unidade dos cristãos, devem ser tidas como a alma de todo o movimento ecuménico, e com razão podem ser chamadas ecumenismo espiritual ». 42

Avança-se pelo caminho que conduz à conversão dos corações ao ritmo do amor que se dedica a Deus e, ao mesmo tempo, aos irmãos: a todos os irmãos, inclusive àqueles que não estão em plena comunhão connosco. Do amor nasce o desejo de unidade, mesmo naqueles que sempre ignoraram tal exigência. O amor é artífice de comunhão entre as pessoas e entre as Comunidades. Se nos amamos, tendemos a aprofundar a nossa comunhão, a orientá-la para a perfeição. O amor é dedicado a Deus como fonte perfeita de comunhão — a unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo —, para dela haurir a força de suscitar a comunhão entre as pessoas e as Comunidades, ou de a restabelecer entre os cristãos ainda divididos. O amor é a corrente mais profunda que dá vida e infunde vigor ao processo que leva à unidade.

Este amor encontra a sua expressão mais acabada na oração em comum. Quando os irmãos que não estão em perfeita comunhão entre si, se reunem em comum para rezar, esta sua oração é definida pelo Concílio Vaticano II como alma de todo o movimento ecuménico. Essa oração comum é « um meio muito eficaz para impetrar a unidade », « uma genuína manifestação dos vínculos pelos quais ainda estão unidos os católicos com os irmãos separados ». 43 Mesmo quando não se reza formalmente pela unidade dos cristãos, mas por outros motivos como, por exemplo, pela paz, a oração torna-se, por si própria, expressão e confirmação da unidade. A oração comum dos cristãos convida o próprio Cristo a visitar a comunidade dos que Lhe rezam: « Pois onde estiverem reunidos, em meu nome, dois ou três, Eu estou no meio deles » (
Mt 18,20).

(42) UR 8.
(43) Ibid.



22 Quando os cristãos rezam juntos, a meta da unidade fica mais próxima. A longa história dos cristãos, marcada por múltiplas fragmentações, parece recompor-se tendendo para a Fonte da sua unidade que é Jesus Cristo. Ele « é sempre o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade » (He 13,8). Na comunhão de oração, Cristo está realmente presente; reza « em nós », « connosco » e « por nós ». É Ele que guia a nossa oração no Espírito Consolador, que prometeu e deu à sua Igreja no Cenáculo de Jerusalém, quando a constituiu na sua unidade original.

No caminho ecuménico para a unidade, a primazia pertence, sem dúvida, à oração comum, à união orante daqueles que se congregam à volta do próprio Cristo. Se os cristãos, apesar das suas divisões, souberem unir-se cada vez mais em oração comum ao redor de Cristo, crescerá a sua consciência de como é reduzido o que os divide em comparação com aquilo que os une. Se se encontrarem sempre mais assiduamente diante de Cristo na oração, os cristãos poderão ganhar coragem para enfrentar toda a dolorosa realidade humana das divisões, e reencontrar-se-ão juntos naquela comunidade da Igreja, que Cristo forma incessantemente no Espírito Santo, apesar de todas as debilidades e limitações humanas.



23 Enfim, a comunhão na oração induz a ver com olhos novos a Igreja e o cristianismo. Com efeito, não se deve esquecer que o Senhor implorou do Pai a unidade dos seus discípulos, para que servisse de testemunho à sua missão e o mundo pudesse acreditar que o Pai O tinha enviado (cf. Jo Jn 17,21). Pode-se afirmar que o movimento ecuménico teve início, em determinado sentido, da experiência negativa daqueles que, anunciando o único Evangelho, se apelavam cada qual à própria Igreja ou Comunidade eclesial: uma contradição que não podia passar despercebida a quem escutava a mensagem de salvação e que nisso via um obstáculo para acolher o anúncio evangélico. Infelizmente, este grave impedimento não está superado. É verdade! Não estamos ainda em plena comunhão. E todavia, não obstante as nossas divisões, estamos percorrendo o caminho para a plena unidade — aquela unidade que caracterizava a Igreja Apostólica nos seus inícios e que nós procuramos sinceramente: prova-o a nossa oração comum, guiada pela fé. Nela, reunimo-nos no nome de Cristo que é Um. Ele é a nossa unidade.

A oração « ecuménica » está ao serviço da missão cristã e da sua credibilidade. Por isso, deve estar especialmente presente na vida da Igreja e em cada actividade que tenha a finalidade de favorecer a unidade dos cristãos. É como se tivéssemos sempre de voltar a reunir-nos no Cenáculo de Quinta-Feira Santa, embora a nossa presença juntos, em tal lugar, aguarde ainda a sua completa realização até quando, superados os obstáculos que se interpõem à perfeita comunhão eclesial, todos os cristãos possam reunir-se na única celebração da Eucaristia. 44

(44) UR 4.



24 É motivo de alegria constatar como os vários encontros ecuménicos incluem, quase sempre, a oração, antes, culminam nela. A Semana de Oração pela unidade dos cristãos, que se celebra no mês de Janeiro ou, em alguns países, por volta do Pentecostes, tornou-se uma tradição difusa e consolidada. Mas, mesmo fora dela, muitas são as ocasiões, ao longo do ano, que induzem os cristãos a rezarem juntos. Neste contexto, desejo mencionar aquela experiência particular que é o peregrinar do Papa pelas Igrejas, nos diversos continentes e nos vários países daoikoumene contemporânea. Estou ciente de que foi o Concílio Vaticano II que encaminhou o Papa para este especial exercício do seu ministério apostólico. Mais: o Concílio fez deste peregrinar do Papa um preciso dever no cumprimento do papel do Bispo de Roma ao serviço da comunhão. 45 Estas minhas visitas comportaram, quase sempre, um encontro ecuménico e a oração comum de irmãos que procuram a unidade em Cristo e na sua Igreja. Recordo, com particular emoção, a oração em comum com o Primaz da Comunhão Anglicana na Catedral de Cantuária, em 29 de Maio de 1982, quando, naquele templo admirável, reconhecia uma « demonstração eloquente dos nossos longos anos de herança comum e dos tristes anos de separação que se lhes seguiram »; 46 nem posso esquecer os encontros ecuménicos nos Países Escandinavos e Nórdicos (1-10 de Junho de 1989), nas Américas e na África, ou aqueloutro na sede do Conselho Ecuménico das Igrejas (12 de Junho de 1984), o organismo que se propõe como objectivo chamar as Igrejas e as Comunidades eclesiais, que dele fazem parte, « à meta da unidade visível numa só fé e numa única comunidade eucarística, expressa no culto e na vida comum em Cristo ». 47 E como poderei esquecer a minha participação na liturgia eucarística na igreja de S. Jorge, no Patriarcado Ecuménico (30 de Novembro de 1979), e a celebração na Basílica de S. Pedro, durante a visita a Roma do meu venerável Irmão, o Patriarca Dimítrios I (6 de Dezembro de 1987)? Naquela circunstância, junto do altar da Confissão, nós professamos juntos o Símbolo Niceno-Constantinopolitano, conforme o texto original grego. É impossível descrever em poucas palavras os traços específicos que caracterizaram cada um destes encontros de oração. Pelos condicionalismos do passado que, de modo variável, pesavam sobre cada um deles, todos se revestem de uma própria e singular expressividade; todos estão esculpidos na memória da Igreja, que é guiada pelo Espírito Paráclito na procura da unidade de todos os crentes em Cristo.

(45) Cf.
TMA 24: AAS 87 (1995), 19-20.
(46). Discurso en la catedral de Canterbury (29 mayo 1982), 5: AAS 74 (1982), 922.
(47) Consejo Ecuménico de las Iglesias, Reglamento, III,1 Citado en Ench. Oecum. 1, 1392.



25 Não foi só o Papa que se fez peregrino. Durante estes anos, numerosos dignos representantes de outras Igrejas e Comunidades eclesiais me visitaram em Roma, e pude rezar com eles em ocasiões públicas e privadas. Aludi já à presença do Patriarca ecuménico Dimítrios I. Gostaria agora de lembrar também aquele encontro de oração que congregou, na Basílica de S. Pedro, para a celebração das Vésperas, a minha pessoa e os Arcebispos luteranos, primazes da Suécia e da Finlândia, por ocasião do VIo centenário da canonização de Santa Brígida (5 de Outubro de 1991). Trata-se só de um exemplo, já que a consciência do dever de orar pela unidade se tornou parte integrante da vida da Igreja. Não existe acontecimento importante, significativo, que não goze da presença recíproca e da oração dos cristãos. É-me impossível enumerar todos estes encontros, embora cada um merecesse ser nomeado. Verdadeiramente o Senhor tomou-nos pela mão e guia-nos. Estes encontros, estas orações escreveram já páginas e páginas do nosso « Livro da unidade », um « Livro » que devemos sempre folhear e reler para dele obter inspiração e esperança.



26 A oração, a comunhão de oração permite-nos voltar à verdade evangélica das palavras: « Um só é o vosso Pai » (Mt 23,9) — aquele Pai, Abbà, que o próprio Cristo invoca, Ele que é seu Filho unigénito e consubstancial. E o mesmo se diga quanto à afirmação: « Um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos » (Mt 23,8). A oração « ecuménica » descobre esta dimensão fundamental da fraternidade em Cristo, que morreu para reunir na unidade todos os filhos de Deus que estavam dispersos, morreu para que, tornando-nos « filhos no Filho » (cf. Ef Ep 1,5), reflectíssemos mais plenamente a insondável realidade da paternidade de Deus e, ao mesmo tempo, a verdade sobre a humanidade própria de cada um e de todos.

A oração « ecuménica », a oração dos irmãos e irmãs exprime tudo isso. Precisamente por estarem separados entre si, eles, com esperança ainda maior, unem-se em Cristo, confiando-Lhe o futuro da sua unidade e da sua comunhão. Aqui poder-se-ia aplicar, uma vez mais e muito a propósito, o ensinamento do Concílio: « Quando o Senhor Jesus pede ao Pai « que todos sejam um (...), como nós somos um » (Jn 17,21-22), sugere — abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana — que há uma certa analogia entre a união das pessoas divinas entre Si e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade ». 48

A própria conversão interior do coração, condição essencial de toda a autêntica procura da unidade, deriva da oração e por ela é orientada para a sua perfeição: « Os anseios de unidade nascem e amadurecem a partir da renovação da mente, da abnegação de si mesmo e da libérrima efusão da caridade. Por isso, devemos implorar do Espírito divino a graça da sincera abnegação, humildade e mansidão em servir, e da fraterna generosidade para com os outros ». 49

(48) Vaticano II, GS 24.
(49) Vaticano II, UR 7.



27 No entanto, rezar pela unidade não está só reservado a quem vive num contexto de divisão entre os cristãos. Naquele diálogo íntimo e pessoal, que cada um de nós deve estabelecer com o Senhor na oração, a preocupação pela unidade não pode ficar de fora. Pois só assim é que tal preocupação fará parte plenamente da realidade da nossa vida e dos compromissos que assumimos na Igreja. Para confirmar esta exigência, eu quis propor aos fiéis da Igreja Católica um modelo, que me parece exemplar, o de uma freira trapista, Maria Gabriela da Unidade, que proclamei beata no dia 25 de Janeiro de 1983. 50 A Irmã Maria Gabriela, chamada pela sua vocação a estar fora do mundo, dedicou a existência à meditação e à oração, centradas no capítulo 17 do Evangelho de S. João, oferecendo-as pela unidade dos cristãos. Está aqui o fulcro de toda a oração: a oferta total e sem reservas da própria vida ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. O exemplo da Irmã Maria Gabriela ensina e faz-nos compreender como não haja tempos, situações ou lugares particulares para rezar pela unidade. A oração de Cristo ao Pai é modelo para todos, sempre e em qualquer lugar.



Diálogo ecuménico

28 Se a oração é a « alma » da renovação ecuménica e do anseio pela unidade, sobre ela se baseia e dela recebe apoio tudo aquilo que o Concílio define « diálogo » . Essa definição não é certamente independente do pensamento personalista actual. A atitude de « diálogo » situa-se ao nível da natureza da pessoa e da sua dignidade. Do ponto de vista filosófico, uma tal posição une-se à verdade cristã sobre o homem expressa pelo Concílio: ele « é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma »; por isso, o homem não pode « encontrar-se plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo ». 51 O diálogo é passagem obrigatória do caminho a percorrer para a auto-realização do homem, tanto do indivíduo como de cada comunidade humana.Embora do conceito de « diálogo » pareça emergir em primeiro plano o aspecto cognoscitivo (dia-logos), todo o diálogo contém em si uma dimensão global, existencial. Por isso, ele compromete o indivíduo humano na sua totalidade; o diálogo entre as comunidades empenha, de modo particular, a subjectividade de cada uma delas.

Esta verdade sobre o diálogo, expressa com tanta profundidade pelo Papa Paulo VI na Encíclica Ecclesiam suam, 52 foi também assumida pela doutrina e pela prática ecuménica do Concílio. O diálogo não é apenas uma troca de ideias; de algum modo, é sempre um « intercâmbio de dons ». 53

(51) Vaticano II,
GS 24.
(52) Cf. AAS 56 (1964), 609-659.
(53) Cf. Vaticano II, LG 13.



29 Por este motivo, também o Decreto conciliar sobre o ecumenismo põe em primeiro plano « todos os esforços para eliminar palavras, juízos e acções que, segundo a equidade e a verdade, não correspondem à condição dos irmãos separados e, por isso, tornam mais difíceis as relações com eles ». 54 Tal documento enfrenta a questão do ponto de vista da Igreja Católica, referindo-se ao critério que ela deve aplicar em relação aos outros cristãos. Em tudo isso, porém, há uma exigência de reciprocidade. Ater-se a tal critério é compromisso de cada uma das partes que quer dialogar, e é condição prévia para o iniciar. É preciso passar de uma posição de antagonismo e de conflito para um nível onde um e outro se reconheçam reciprocamente como partner. Quando se começa a dialogar, cada uma das partes deve pressupor uma vontade de reconciliação no seu interlocutor, de unidade na verdade. Para realizar tudo isso, devem desaparecer as manifestações de confrontação recíproca. Somente assim o diálogo ajudará a superar a divisão e poderá aproximar da unidade.

(54) Vaticano II,
UR 4.



30 Pode-se afirmar, com viva gratidão ao Espírito de verdade, que o Concílio Vaticano II foi um acontecimento abençoado, durante o qual se estabeleceram as condições basilares para a participação da Igreja Católica no diálogo ecuménico. Por outro lado, a presença de numerosos observadores de várias Igrejas e Comunidades eclesiais, a sua profunda participação no evento conciliar, os inúmeros encontros e as orações comuns que o Concílio tornou possível, contribuíram para criar as condições para dialogar juntos. Durante o Concílio, os representantes das outras Igrejas e Comunidades cristãs experimentaram a disponibilidade para o diálogo por parte do episcopado católico de todo o mundo e, em particular, da Sé Apostólica.



Estruturas locais de diálogo

31 O empenhamento no diálogo ecuménico, tal como ficou patente desde os tempos do Concílio, longe de ser prerrogativa da Sé Apostólica, incumbe também sobre cada uma das Igrejas locais ou particulares. Especiais comissões para a promoção do espírito e da acção ecuménica foram instituídas pelas Conferências Episcopais e pelos Sínodos das Igrejas Orientais Católicas. Análogas e oportunas estruturas operam ao nível de cada diocese. Tais iniciativas comprovam o envolvimento concreto e geral da Igreja Católica na aplicação das orientações conciliares sobre o ecumenismo: este é um aspecto essencial do movimento ecuménico. 55 O diálogo não só foi iniciado, mas tornou-se uma expressa necessidade, uma das prioridades da Igreja; em consequência, foi aprimorada a « técnica » de dialogar, favorecendo, contemporaneamente, o crescimento do espírito de diálogo. Neste contexto, pretende-se aludir, antes de mais, ao diálogo entre os cristãos das diversas Igrejas ou Comunidades, « estabelecido entre peritos competentes, (...) em que cada qual explica mais profundamente a doutrina da sua Comunidade, e apresenta com clareza as suas características ». 56 No entanto, é útil a cada fiel conhecer o método que permite o diálogo.

(55) Cf.
CIC 755 CIO 902-904.
(56) Vaticano II, UR 4.



32 Como afirma a Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, « a verdade deve ser buscada pelo modo que convém à dignidade da pessoa humana e da sua natureza social, isto é, por meio de uma busca livre, com a ajuda do magistério ou ensino, da comunicação e do diálogo, com os quais os homens dão a conhecer uns aos outros a verdade que encontraram ou julgam ter encontrado, a fim de se ajudarem mutuamente na inquirição da verdade; uma vez conhecida esta, deve-se aderir a ela com um firme assentimento pessoal ». 57

O diálogo ecuménico tem uma importância essencial. « Com este diálogo, todos adquirem um conhecimento mais verdadeiro e um apreço mais justo da doutrina e da vida de cada Comunhão. Então estas Comunhões conseguem também uma mais ampla colaboração em certas obrigações que a consciência cristã exige em vista do bem comum. E onde for possível, reunem-se em oração unânime. Enfim, todos examinam a sua fidelidade à vontade de Cristo acerca da Igreja e, na medida da necessidade, levam vigorosamente por diante o trabalho de renovação e de reforma ». 58

(57) Vaticano II,
DH 3.
(58) Vaticano II, UR 4.



Diálogo como exame de consciência

33 Segundo o Concílio, o diálogo ecuménico tem o carácter de uma procura comum da verdade, em particular sobre a Igreja. De facto, a verdade forma as consciências e orienta-as na sua acção a favor da unidade. Ao mesmo tempo, exige que a consciência dos cristãos, irmãos divididos entre si, e as suas obras sejam submetidas à oração de Cristo pela unidade. Há sinergia entre oração e diálogo. Uma oração mais profunda e consciente torna o diálogo mais rico de frutos. Se, por um lado, a oração é a condição para o diálogo, por outro, ela torna-se, de forma cada vez mais matura, o seu fruto.



34 Graças ao diálogo ecuménico, podemos falar de uma maior maturidade da nossa recíproca oração comum. Isto é possível na medida em que o diálogo exerce também, e contemporaneamente, a função de um exame de consciência. Como não lembrar, neste contexto, as palavras da Primeira Carta de João? « Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e não há verdade em nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele (Deus) é fiel e justo para nos perdoar os pecados e purificar-nos de toda a iniquidade » (1, 8-9). E João impele-nos a ir ainda mais longe, quando afirma: « Se dissermos que não pecamos, fazemo- -Lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós » (1, 10). Uma exortação tão radical a reconhecer a nossa condição de pecadores, deve ser também uma característica do espírito com que se encara o diálogo ecuménico. Se este não se tornar um exame de consciência, como que um « diálogo das consciências », poderemos nós contar com aquela certeza que a mesma Carta nos transmite? « Filhinhos meus, escrevo-vos estas coisas para que não pequeis; mas, se alguém pecar, temos um advogado junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo. Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo » (2, 1-2). Todos os pecados do mundo foram incluídos no sacrifício salvífico de Cristo, e, portanto, também os cometidos contra a unidade da Igreja: os pecados dos cristãos, tanto dos pastores como dos fiéis. Mesmo depois dos inúmeros pecados que contribuíram para as históricas divisões, a unidade dos cristãos é possível com a condição de estarmos humildemente conscientes de ter pecado contra a unidade, e convencidos da necessidade da nossa conversão. Não só os pecados pessoais devem ser perdoados e vencidos, mas também os sociais, quer dizer, as próprias « estruturas » do pecado, que contribuíram e podem contribuir para a divisão e sua consolidação.



35 Mais uma vez, o Concílio Vaticano II vem em nossa ajuda. Pode-se afirmar que todo o Decreto sobre o ecumenismo está permeado pelo espírito de conversão. 59 O diálogo ecuménico adquire neste documento um carácter próprio: transforma-se em « diálogo da conversão » e, portanto, segundo a expressão do Papa Paulo VI, em autêntico « diálogo da salvação ». 60 O diálogo não pode actuar-se seguindo uma direcção exclusivamente horizontal, limitando-se ao encontro, à troca de pontos de vista, ou mesmo dos dons próprios de cada Comunidade. Mas tende também e sobretudo a uma dimensão vertical, que o orienta para Aquele que, como Redentor do mundo e Senhor da história, é a nossa reconciliação. A dimensão vertical do diálogo está no comum e recíproco reconhecimento da nossa condição de homens e mulheres que pecaram. É precisamente isto que abrirá nos irmãos, que vivem em Comunidades não plenamente em comunhão entre si, aquele espaço interior, onde Cristo, fonte da unidade da Igreja, pode agir eficazmente, com toda a força do seu Espírito Paráclito.

(59) Cf.
UR 4.
(60) Carta enc. Ecclesiam suam (6 agosto 1964), III: AAS 56 (1964), 642.



Diálogo para resolver as divergências

36 O diálogo é também instrumento natural para confrontar os diversos pontos de vista e, sobretudo, examinar aquelas divergências que são obstáculo à plena comunhão dos cristãos entre si. O Decreto sobre o ecumenismo detém-se, em primeiro lugar, a descrever as disposições morais com que se hão-de enfrentar os colóquios doutrinais: « No diálogo ecuménico, os teólogos católicos, sempre fiéis à doutrina da Igreja, quando investigarem juntamente com os irmãos separados os divinos mistérios, devem proceder com amor pela verdade, com caridade e humildade ». 61

O amor à verdade é a dimensão mais profunda de uma autêntica procura da plena comunhão entre os cristãos. Sem esse amor, seria impossível enfrentar as reais dificuldades teológicas, culturais, psicológicas e sociais que se encontram ao examinar as divergências. A esta dimensão interior e pessoal, está inseparavelmente associado o espírito de caridade e de humildade: caridade para com o interlocutor, humildade para com a verdade que se descobre e que poderia exigir revisão de afirmações e de atitudes.

Em relação ao estudo das divergências, o Concílio requer que toda a doutrina seja exposta com clareza. Ao mesmo tempo, pede que o modo e o método de formular a doutrina católica não seja obstáculo para o diálogo com os irmãos. 62 É certamente possível testemunhar a própria fé e explicar a sua doutrina de um modo que seja correcto, leal e compreensível, e simultaneamente tenha presente tanto as categorias mentais, como a experiência histórica concreta do outro.

Obviamente, a plena comunhão deverá realizar-se mediante a aceitação completa da verdade, na qual o Espírito Santo introduz os discípulos de Cristo. Há-de ser, portanto, evitada absolutamente toda a forma de reducionismo ou de fácil « concordismo ». As questões sérias têm de ser resolvidas, porque, caso contrário, ressurgirão noutro momento, com idêntica configuração ou sob outra roupagem.

(61) Vaticano II,
UR 11.
(62) Cf. Ibid. UR 11



37 O Decreto Unitatis redintegratio indica também um critério a seguir quando se trata de os católicos apresentarem ou confrontarem as doutrinas: « Lembrem-se que existe uma ordem ou "hierarquia" das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente. Assim se abre o caminho pelo qual, mediante esta fraterna emulação, todos se sintam incitados a um conhecimento mais profundo e a uma exposição mais clara das insondáveis riquezas de Cristo ». 63

(63) Ibid.; Cf. Congregación para la Doctrina de la Fe, Decl. Mysterium Ecclesiae, sobre la doctrina católica acerca de la Iglesia (24 junio 1973), 4: AAS 65 (1973), 402.



38 No diálogo, embate-se inevitavelmente com o problema das diferentes formulações, mediante as quais se exprime a doutrina nas várias Igrejas e Comunidades eclesiais, facto esse que tem as suas consequências na tarefa ecuménica.

Em primeiro lugar, diante de formulações doutrinais que se afastem das habituais à comunidade a que se pertence, convém, sem dúvida, averiguar se as palavras não subentenderão um idêntico conteúdo, como, por exemplo, se constatou em recentes declarações comuns, assinadas pelos meus Predecessores e por mim juntamente com os Patriarcas de Igrejas com as quais existia, há séculos, um contencioso cristológico. No que diz respeito à formulação das verdades reveladas, a Declaração Mysterium Ecclesiae afirma: « As verdades que a Igreja intenta realmente ensinar com as suas fórmulas dogmáticas, embora se distingam das concepções mutáveis próprias de uma época particular e possam ser expressas prescindindo delas, pode acontecer, todavia, que essas mesmas verdades sejam de facto enunciadas numa terminologia que se ressente do influxo de tais concepções. Feitas estas considerações preliminares, deve-se dizer que as fórmulas dogmáticas do Magistério da Igreja foram, desde os inícios, aptas para comunicar a verdade revelada, e que permanecem sempre aptas a comunicá-la a todos aqueles que rectamente as compreenderem ». 64 A este propósito, o diálogo ecuménico que estimula as partes nele envolvidas a interrogarem-se, compreenderem-se e explicarem-se reciprocamente, permite surpreendentes descobertas. As polémicas e as controvérsias intolerantes transformaram em afirmações incompatíveis aquilo que, de facto, era o resultado de dois olhares ocupados a perscrutar a mesma realidade, mas de dois ângulos distintos. É necessário hoje encontrar a fórmula que, recolhendo a realidade em toda a sua integridade, permita superar leituras parciais e eliminar falsas interpretações.

Uma das vantagens do ecumenismo é que, por seu intermédio, as Comunidades cristãs são ajudadas a descobrir a insondável riqueza da verdade. Também neste contexto, tudo aquilo que o Espírito opera nos « outros » pode contribuir para a edificação de cada comunidade, 65 e, de certo modo, para a instruir acerca do mistério de Cristo. O ecumenismo autêntico é uma graça de verdade.

(64) Congregación para la Doctrina de la Fe, Decl. Mysterium Ecclesiae, sobre la doctrina católica acerca de la Iglesia (24 junio 1973), 5: AAS 65 (1973), 403.
(65) Cf. Vaticano II,
UR 4.



39 Por último, o diálogo põe os interlocutores diante de verdadeiras e precisas divergências que tocam a fé. Estas divergências hão-de ser encaradas, sobretudo, com sincero espírito de caridade fraterna, de respeito das exigências da própria consciência e da consciência do próximo, com profunda humildade e amor à verdade. Nesta matéria, o confronto tem dois pontos de referência essenciais: a Sagrada Escritura e a grande Tradição da Igreja. Serve de ajuda aos católicos o Magistério sempre vivo da Igreja.



A colaboração prática

40 As relações entre os cristãos não tendem somente ao recíproco conhecimento, à oração comum e ao diálogo. Prevêem e exigem, desde já, toda a colaboração prática possível aos diversos níveis: pastoral, cultural, social, e ainda no testemunho da mensagem do Evangelho. 66

« A cooperação de todos os cristãos exprime vivamente aquelas relações pelas quais já estão unidos entre si, e apresenta o rosto de Cristo Servo numa luz mais radiante ». 67 Tal cooperação baseada na fé comum não só aparece densa de comunhão fraterna, mas é uma epifania do próprio Cristo.

Além disso, a cooperação ecuménica é uma verdadeira escola de ecumenismo, um dinâmico caminho em direcção à unidade. A unidade de acção conduz à plena unidade de fé: « Por essa cooperação, todos os que crêem em Cristo podem mais facilmente aprender como devem entender- -se melhor e estimar-se mais uns aos outros, e assim se abre o caminho que leva à unidade dos cristãos ». 68

Aos olhos do mundo, a cooperação entre os cristãos assume as dimensões de um testemunho cristão comum, tornando-se instrumento de evangelização proveitoso a uns e a outros.

(66) Cf. Declaración cristológica común entre la Iglesia católica y la Iglesia asiria de Oriente: L'Osservatore Romano, ed. semanal en lengua española (18 noviembre 1994), 5.
(67) Vaticano II,
UR 12.
(68) Ibid. UR 12



II. OS FRUTOS DO DIÁLOGO


A fraternidade reencontrada

41 Tudo o que atrás foi dito a propósito do diálogo ecuménico, desde a conclusão do Concílio para diante, leva a dar graças ao Espírito de verdade, prometido por Jesus Cristo aos Apóstolos e à Igreja (cf. Jo Jn 14,26). Foi a primeira vez na história, que a acção em prol da unidade dos cristãos assumiu proporções tão amplas e se estendeu num âmbito tão vasto. Isto já é um dom imenso que Deus concedeu, e que merece toda a nossa gratidão. Da plenitude de Cristo, recebemos « graça sobre graça » (Jn 1,16). Reconhecer o que Deus já concedeu, é a condição que nos predispõe a receber os dons ainda indispensáveis para levar a cabo a obra ecuménica da unidade.

Uma visão de conjunto dos últimos trinta anos ajuda-nos a compreender melhor muitos frutos desta conversão comum ao Evangelho, cujo instrumento usado pelo Espírito de Deus foi o movimento ecuménico.



42 Acontece, por exemplo, que — segundo o espírito mesmo do Sermão da Montanha — os cristãos pertencentes a uma confissão já não consideram os outros cristãos como inimigos ou estranhos, mas vêem neles irmãos e irmãs. Por outro lado, mesmo a expressão irmãos separados, o uso tende hoje a substituí-la por vocábulos mais orientados a ressaltar a profundidade da comunhão — ligada ao carácter baptismal — que o Espírito alimenta, não obstante as rupturas históricas e canónicas. Fala-se dos « outros cristãos », dos « outros baptizados », dos « cristãos das outras Comunidades ». O Directório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo designa as Comunidades a que pertencem estes cristãos como « Igrejas e Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica ». 69

Tal ampliação do léxico traduz uma notável evolução das mentalidades. A consciência da comum pertença a Cristo ganha profundidade. Pude constatá-lo muitas vezes, pessoalmente, durante as celebrações ecuménicas, que são um dos acontecimentos importantes das minhas viagens apostólicas nas diversas partes do mundo, ou nos encontros e nas celebrações ecuménicas que tiveram lugar em Roma. A « fraternidade universal » dos cristãos tornou-se uma firme convicção ecuménica. Deixando para trás as excomunhões do passado, as Comunidades antes rivais hoje, em muitos casos, ajudam-se mutuamente; às vezes os edifícios para o culto são emprestados, oferecem-se bolsas de estudo para a formação dos ministros das Comunidades mais desprovidas de meios, intervém-se junto das autoridades civis em defesa de outros cristãos injustamente incriminados, demonstra-se a falta de fundamento das calúnias de que são vítimas certos grupos.

Numa palavra, os cristãos converteram-se a uma caridade fraterna que abraça todos os discípulos de Cristo. Se, por causa de violentos tumultos políticos, acontece surgir, em situações concretas, certa agressividade ou um espírito de retaliação, as autoridades das partes envolvidas procuram geralmente fazer prevalecer a « Lei nova » do espírito de caridade. Infelizmente, tal espírito não conseguiu transformar todas as situações de conflito sangrento. O empenho ecuménico nestas circunstâncias, não raro, requer a quem o exerce opções de autêntico heroísmo.

Impõe-se reafirmar a este propósito, que o reconhecimento da fraternidade não é a consequência de um filantropismo liberal ou de um vago espírito de família; mas está enraizado no reconhecimento do único Baptismo e na consequente exigência de que Deus seja glorificado na sua obra. O Directório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo almeja um reconhecimento recíproco e oficial dos Baptismos. 70 Isto está muito para além de um simples acto de cortesia ecuménica e constitui uma afirmação básica de eclesiologia.

É oportuno lembrar aqui que o carácter fundamental do Baptismo na obra de edificação da Igreja foi posto claramente em relevo, também graças ao diálogo plurilateral. 71

(69) Pontificio Consejo para la Promoción de la Unidad de los Cristianos, Directoire pour l'application des principes et des normes sur l'oecuménisme (25 marzo 1993), 5: AAS 85 (1993). 1040.
(70) Ibid., 94, l. c., 1078.
(71) Cf. Comisión "Fe y Constitución" del Consejo Ecuménico de las Iglesias. Bautismo, Eucaristía, Ministerio (enero 1982): Ench.Oecum. 1, 1391-1447, en particular 1398-1408.





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