Ut unum sint PT 62

Relações com as antigas Igrejas do Oriente

62 Desde o Concílio Vaticano II em diante, a Igreja Católica, com modalidades e ritmos diversos, estreitou relações fraternas também com aquelas antigas Igrejas do Oriente, que contestaram as fórmulas dogmáticas dos Concílios de Éfeso e de Calcedónia. Todas estas Igrejas enviaram observadores como delegados ao Concílio Vaticano II; os seus Patriarcas honraram-nos com a sua visita, e o Bispo de Roma pôde falar com eles como a irmãos que, após longo tempo, felizes se reencontram.

O restabelecimento das relações fraternas com as antigas Igrejas do Oriente, testemunhas da fé cristã muitas vezes em situações hostis e trágicas, é um sinal concreto de quanto Cristo nos una, não obstante as barreiras históricas, políticas, sociais e culturais. E precisamente a propósito do tema cristológico, pudemos, juntamente com os Patriarcas de algumas destas Igrejas, declarar a nossa fé comum em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O Papa Paulo VI, de veneranda memória, tinha assinado declarações neste sentido com Sua Santidade Shenouda III, Papa e Patriarca copto ortodoxo, 103 e com o Patriarca siro ortodoxo de Antioquia, Sua Santidade Jacoub III. 104 Eu mesmo pude confirmar esse acordo cristológico e tirar as suas consequências: para o desenvolvimento do diálogo, com o Papa Shenouda, 105 e para a colaboração pastoral, com o Patriarca siro de Antioquia Mar Ignazio Zakka I Iwas. 106

Com o venerável Patriarca da Igreja da Etiópia, Abuna Paulos, que me veio visitar a Roma no dia 11 de Junho de 1993, sublinhámos a profunda comunhão existente entre as nossas duas Igrejas: « Compartilhamos a fé transmitida pelos Apóstolos, bem como os mesmos sacramentos e o mesmo ministério, radicados na sucessão apostólica (...). Hoje, aliás, podemos afirmar que temos uma só fé em Cristo, apesar de por longo tempo isto ter sido uma fonte de divisão entre nós ». 107

Mais recentemente, o Senhor deu-me a alegria imensa de subscrever uma declaração cristológica comum com o Patriarca Assírio do Oriente, Sua Santidade Mar Dinkha IV, que, por este motivo, quis visitar-me em Roma, no mês de Novembro de 1994. Tendo em conta certas formulações teológicas diferenciadas, pudemos assim professar juntos a verdadeira fé em Cristo. 108 Quero exprimir o meu júbilo por tudo isto, com as palavras da Virgem: « A minha alma glorifica ao Senhor » (
Lc 1,46).

(103) Cf. Declaración común del Sumo Pontífice Pablo VI y de Su Santidad Shenouda III, Papa de Alejandría y Patriarca de la sede de S. Marcos de Alejandría (10 mayo 1973): AAS 65 (1973), 299-301.
(104) Cf. Declaración común del Sumo Pontífice Pablo VI y de Su Santidad Mar Ignacio Jacoub III, Patriarca de la Iglesia de Antioquía de los sirios y de todo el Oriente (27 octubre 1971): AAS 63 (1971), 814-815.
(105) Cf. Discurso a los enviados de la Iglesia copta ortodoxa (2 junio 1979): AAS 71 (1979), 1000-1001.
(106) Cf. Declaración común del Papa Juan Pablo II y de Su Santidad Moran Mar Ignacio Zakka I Iwas, Patriarca siro-ortodoxo de Antioquía y de todo el Oriente (23 junio 1984): Insegnamenti VII, 1 (1984), 1902-1906.
(107. Discurso dirigido a Su Santidad Abuna Paulos, Patriarca de la Iglesia ortodoxa de Etiopía (11 junio 1993): L'Osservatore Romano, ed. semanal en lengua española (16 junio 1993), 3.
(108) Cf. Declaración cristológica común entre la Iglesia católica y la Iglesia asiría de Oriente: L'Osservatore Romano, ed. semanal en lengua española (18 noviembre 1994), 5.



63 Para as tradicionais controvérsias sobre a cristologia, os contactos ecuménicos tornaram, assim, possíveis alguns esclarecimentos essenciais, a ponto de nos permitir confessar juntos a fé que nos é comum. Uma vez mais, há que constatar que uma aquisição tão importante é seguramente fruto da pesquisa teológica e do diálogo fraterno. E mais. Ela serve-nos de encorajamento: mostra- -nos, de facto, que o caminho percorrido é justo e que razoavelmente se pode esperar encontrar juntos a solução para as outras questões controversas.


Diálogo com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais no Ocidente

64 No amplo plano traçado para a restauração da unidade entre todos os cristãos, o Decreto sobre o ecumenismo toma igualmente em consideração as relações com as Igrejas e Comunidades eclesiais do Ocidente. Com o intuito de instaurar um clima de fraternidade cristã e de diálogo, o Concílio situa as suas indicações no âmbito de duas considerações de ordem geral: uma de carácter histórico-psicológico, e outra de carácter teológico-doutrinal. Por um lado, o citado documento ressalta: « As Igrejas e Comunidades eclesiais, que se separaram da Sé Apostólica Romana naquela grave perturbação iniciada no Ocidente já pelos fins da Idade Média, ou em tempos posteriores, continuam, contudo, ligadas à Igreja Católica pelos laços de uma peculiar afinidade devida à longa convivência do povo cristão na comunidade eclesiástica durante os séculos passados ». 109 Por outro lado e com igual realismo, constata-se: « É preciso, contudo, reconhecer que entre estas Igrejas e Comunidades e a Igreja Católica há discrepâncias consideráveis, não só de índole histórica, sociológica, psicológica, cultural, mas sobretudo de interpretação da verdade revelada ». 110

(109) Vaticano II,
UR 19.
(110) Ibid.



65 Comuns são as raízes, tal como semelhantes, apesar das diferenças, são as orientações que guiaram no Ocidente o desenvolvimento da Igreja Católica e das Igrejas e Comunidades saídas da Reforma. Consequentemente elas possuem uma característica ocidental comum. As « discrepâncias » acima acenadas, ainda que importantes, não excluem, portanto, influências e complementariedade recíproca.

O movimento ecuménico teve início precisamente no âmbito das Igrejas e Comunidades da Reforma. Contemporaneamente, estava-se em Janeiro de 1920, o Patriarca Ecuménico tinha formulado votos de que se organizasse uma colaboração entre as Comunhões cristãs. Este facto demonstra que a incidência do contexto cultural não é decisiva. Essencial é, pelo contrário, a questão da fé. A oração de Cristo, nosso único Senhor, Redentor e Mestre, interpela a todos do mesmo modo, tanto no Oriente como no Ocidente. Torna-se um imperativo que obriga a abandonar as divisões para buscar e reencontrar a unidade, impelidos inclusivamente pelas próprias amargas experiências da divisão.



66 O Concílio Vaticano II não tenta fazer a « descrição » do cristianismo saído da Reforma, já que as « Igrejas e Comunidades eclesiais (...) não só diferem de nós mas também diferem consideravelmente entre si », e isto « por causa da diversidade de origem, doutrina e vida espiritual ». 111 Além disso, o mesmo Decreto observa que o movimento ecuménico e o desejo de paz com a Igreja Católica ainda não alastrou por toda a parte. 112 Mas, independentemente destas circunstâncias, o Concílio propõe o diálogo.

O Decreto conciliar procura, depois, « expor (...) alguns pontos que podem e devem ser o fundamento e o incentivo deste diálogo ». 113

« Consideramos (...) aqueles cristãos que, para glória de Deus único, Pai e Filho e Espírito Santo, abertamente confessam Jesus Cristo como Deus e Senhor e único mediador entre Deus e os homens ». 114

Estes irmãos promovem o amor e a veneração pela Sagrada Escritura: « Invocando o Espírito Santo, na própria Sagrada Escritura, procuram a Deus que lhes fala em Cristo anunciado pelos profetas, Verbo de Deus por nós encarnado. Nela contemplam a vida de Cristo e aquilo que o divino Mestre ensinou e realizou para a salvação dos homens, sobretudo os mistérios da sua morte e ressurreição. (...) Afirmam a autoridade divina da Sagrada Escritura ». 115

Ao mesmo tempo, contudo, pensam « diferentemente de nós (...) sobre a relação entre a Escritura e a Igreja. Na Igreja, segundo a fé católica, o magistério autêntico tem lugar peculiar na exposição e pregação da palavra de Deus escrita ». 116 Apesar disso, « no (...) diálogo 1, a Sagrada Escritura é um exímio instrumento na poderosa mão de Deus para a consecução daquela unidade que o Salvador oferece a todos os homens ». 117

Além disso, o sacramento do Baptismo, que temos em comum, representa « o vínculo sacramental da unidade que liga todos os que foram regenerados por ele ». 118 As implicações teológicas, pastorais e ecuménicas do Baptismo comum são muitas e importantes. Embora de per si constitua apenas « o início e o exórdio », este sacramento « ordena-se à completa profissão da fé, à íntegra incorporação na obra da salvação, tal como o próprio Cristo o quis, e finalmente à total inserção na comunhão eucarística ». 119

(111)
UR 19.
(112) Cf. Ibid. UR 19
(113) Ibid. UR 19
(114) UR 20.
(115) UR 21.
(116) Ibid. UR 21
(117) Ibid. UR 21
(118) UR 22.
(119) Ibid. UR 22



67 Apareceram divergências doutrinais e históricas do tempo da Reforma, a propósito da Igreja, dos sacramentos e do Ministério ordenado. Por isso, o Concílio requer que « se tome como objecto do diálogo a doutrina sobre a Ceia do Senhor, sobre os outros sacramentos, sobre o culto e sobre os ministérios da Igreja ». 120

Ao assinalar que às Comunidades saídas da Reforma falta « a unidade plena connosco proveniente do baptismo », o Decreto Unitatis redintegratio observa que elas não conservaram « a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, sobretudo por causa da falta do sacramento da Ordem », mas « quando na santa Ceia comemoram a morte e a ressurreição do Senhor, elas confessam ser significada a vida na comunhão de Cristo e esperam o seu glorioso advento ». 121

(120)
UR 22; cf. UR 20.
(121) UR 22.



68 O Decreto não esquece a vida espiritual e as consequências morais: « A vida cristã destes irmãos alimenta-se da fé em Cristo e é fortalecida pela graça do baptismo e pela escuta da palavra de Deus. Manifesta-se na oração privada, na meditação bíblica, na vida familiar cristã, no culto da comunidade congregada para o louvor de Deus. Aliás, o culto deles contém por vezes notáveis elementos da antiga Liturgia comum ». 122

O documento conciliar, aliás, não se limita a estes aspectos espirituais, morais e culturais, mas regista com apreço também o sentimento vivo da justiça e da sincera caridade para com o próximo, que estão presentes nestes irmãos; não esquece, além disso, as suas iniciativas para tornar mais humanas as condições sociais da vida e para restabelecer a paz. Tudo isto, com a sincera vontade de aderir à palavra de Cristo enquanto fonte da vida cristã.

Deste modo, o texto põe em destaque uma problemática, no campo ético-moral, que se torna cada vez mais urgente no nosso tempo: « Muitos dentre os cristãos nem sempre entendem o Evangelho do mesmo modo que os católicos ». 123 Nesta vasta matéria, há grande espaço de diálogo acerca dos princípios morais do Evangelho e das suas aplicações.

(122)
UR 23.
(123) Ibid.



69 Os votos e o convite do Concílio Vaticano II foram actuados, tendo-se iniciado progressivamente o diálogo teológico bilateral com as várias Igrejas e Comunidades cristãs mundiais do Ocidente.

Quanto ao diálogo plurilateral, já em 1964 tinha início o processo da constituição de um « Grupo Misto de Trabalho » com o Conselho Ecuménico das Igrejas e, desde 1968, teólogos católicos começaram a tomar parte, como membros de pleno direito, no Departamento teológico do referido Conselho, a Comissão « Fé e Constituição ».

O diálogo foi fecundo e rico de promessas, e continua a sê-lo. Os temas sugeridos pelo Decreto conciliar como matéria de diálogo, foram já enfrentados ou sê-lo-ão brevemente. A reflexão ao nível dos vários diálogos bilaterais, com uma dedicação que merece o elogio de toda a comunidade ecuménica, concentrou-se sobre muitas questões controversas, como o Baptismo, a Eucaristia, o Ministério ordenado, a sacramentalidade e a autoridade da Igreja, a sucessão apostólica. Foram-se delineando assim perspectivas de soluções inesperadas, mas, ao mesmo tempo, compreendeu-se como era necessário investigar mais profundamente alguns argumentos.




70 Esta busca difícil e delicada, que implica problemas de fé e respeito da consciência própria e alheia, foi acompanhada e sustentada pela oração da Igreja Católica e das outras Igrejas e Comunidades eclesiais. A oração pela unidade, já tão radicada e difundida no tecido conectivo eclesial, mostra que a importância da questão ecuménica não passa despercebida aos cristãos. Exactamente porque a busca da plena unidade exige um confronto de fé entre crentes que se apelam ao único Senhor, a oração é a fonte de iluminação acerca da verdade que se há-de acolher em toda a sua integridade.

Além disso, através da oração, a busca da unidade, longe de ficar circunscrita ao âmbito de especialistas, estende-se a todo o baptizado. Todos podem, independentemente do seu papel na Igreja e da sua formação cultural, dar um contributo activo, numa dimensão misteriosa e profunda.




Relações eclesiais

71 É preciso também dar graças à Providência divina por todos os acontecimentos que testemunham o progresso no caminho da busca da unidade. A par do diálogo teológico, há que mencionar oportunamente as outras formas de encontro, a oração em comum e a colaboração prática. O Papa Paulo VI deu um forte impulso a este processo com a sua visita à sede do Conselho Ecuménico das Igrejas, em Genebra, que teve lugar a 10 de Junho de 1969, e encontrando muitas vezes os representantes de várias Igrejas e Comunidades eclesiais. Estes contactos contribuem eficazmente para melhorar o conhecimento recíproco e fazer crescer a fraternidade cristã.

O Papa João Paulo I, durante o seu pontificado tão breve, exprimiu a vontade de continuar o caminho. 124 O Senhor concedeu-me trabalhar nesta direcção. Para além dos importantes encontros ecuménicos havidos em Roma, uma parte significativa das minhas visitas pastorais é habitualmente dedicada ao testemunho a favor da unidade dos cristãos. Algumas das minhas viagens apresentam mesmo uma « prioridade » ecuménica, especialmente em países onde as comunidades católicas estão em minoria, relativamente às Comunhões saídas da Reforma; ou em lugares onde estas últimas representam uma porção considerável dos crentes em Cristo de determinada sociedade.

(124) Cf. Radiomensaje Urbi et Orbi (27 agosto 1978): AAS 70 (1978), 695-696,



72 Isto vale sobretudo para os países europeus, onde tiveram início estas divisões, e para a América do Norte. Neste contexto, e sem querer diminuir as demais visitas, merecem especial relevo, no continente europeu, as duas feitas à Alemanha, em Novembro de 1980 e em Abril-Maio de 1987 respectivamente; a visita à Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales), em Maio-Junho de 1982; à Suíça, no mês de Junho de 1984; aos Países Escandinavos e Nórdicos (Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca e Islândia), onde me desloquei em Junho de 1989. Na alegria, no respeito recíproco, na solidariedade cristã e na oração, encontrei tantos e tantos irmãos, todos eles comprometidos na busca da fidelidade ao Evangelho. A constatação de tudo isto foi para mim fonte de grande encorajamento. Experimentámos a presença do Senhor entre nós.

A este propósito, queria lembrar um gesto, ditado pela caridade fraterna e repassado de profunda lucidez de fé, que vivi com intensa emoção. Passou-se nas celebrações eucarísticas, que presidi na Finlândia e na Suécia, durante a minha viagem aos Países Escandinavos e Nórdicos. No momento da comunhão, os Bispos luteranos apresentaram-se ao celebrante. Com um gesto de antemão acordado, eles quiseram demonstrar o desejo de chegar ao momento em que nós, católicos e luteranos, teremos a possibilidade de partilhar a mesma Eucaristia, e quiseram receber a bênção do celebrante. Com amor, os abençoei. O mesmo gesto, muito rico de significado, foi repetido em Roma, durante a missa que presidi, na Praça Farnese, por ocasião do VIo centenário da canonização de Santa Brígida, a 6 de Outubro de 1991.

Encontrei análogos sentimentos do outro lado do oceano, no Canadá, em Setembro de 1984; e especialmente, no mês de Setembro de 1987, nos Estados Unidos, onde se nota uma grande abertura ecuménica. É o caso — para dar um exemplo — do encontro ecuménico em Colúmbia, na Carolina do Sul, a 11 de Setembro de 1987. Já de per si é importante o facto de que se verifiquem com regularidade estes encontros entre os irmãos do « pós-Reforma » e o Papa. Estou-lhes profundamente grato, porque eles me aceitaram de boa vontade, tanto os responsáveis das várias Comunidades, como as Comunidades no seu todo. Deste ponto de vista, julgo significativa a celebração ecuménica da Palavra, realizada em Colúmbia e que teve por tema a família.



73 Motivo de grande alegria é, ainda, a constatação de como, no período pós-conciliar, abundam, nas diversas Igrejas locais, as iniciativas e acções a favor da unidade dos cristãos, as quais estendem sucessivamente a sua incidência ao nível das Conferências episcopais, de cada uma das dioceses e comunidades paroquiais, como também dos diversos ambientes e movimentos eclesiais.



Colaborações realizadas

74 « Nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus » (Mt 7,21). A coerência e a honestidade das intenções e afirmações de princípio verificam-se pela sua aplicação à vida concreta. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo assinala que, nos outros cristãos, « a sua fé em Cristo produz frutos de louvor e acção de graças pelos benefícios recebidos de Deus. Há também, entre eles, um vivo sentido da justiça e uma sincera caridade para com o próximo ». 125

O terreno, agora delineado, é fértil não apenas para o diálogo, mas também para uma activa colaboração: a « fé operosa produziu não poucas instituições para aliviar a miséria espiritual e corporal, promover a educação da juventude, tornar mais humanas as condições sociais da vida e estabelecer por toda a parte a paz ». 126

A vida social e cultural oferece amplos espaços de colaboração ecuménica. Com uma frequência sempre maior, os cristãos aparecem juntos a defender a dignidade humana, a promover o bem da paz, a aplicação social do Evangelho, a tornar presente o espírito cristão nas ciências e nas artes. Eles encontram-se cada vez mais unidos, quando se trata de ir ao encontro das carências e misérias do nosso tempo: a fome, as calamidades, a injustiça social.

(125) Vaticano II, UR 23.
(126) Ibid. UR 23



75 Esta cooperação, que recebe inspiração do próprio Evangelho, deixa de ser uma mera acção humanitária, para os cristãos. Mas tem a sua razão de ser na palavra do Senhor: « Tive fome e destes-Me de comer » (Mt 25,35). Como já sublinhei, a cooperação de todos os cristãos manifesta claramente aquele grau de comunhão que existe já entre eles. 127

Assim aos olhos do mundo, a acção concorde dos cristãos na sociedade reveste o valor transparente de um testemunho prestado unanimemente ao nome do Senhor. Aquela assume também as dimensões de um anúncio, porque revela o rosto de Cristo.

As divergências doutrinais que restam, exercem uma influência negativa e põem limites também à colaboração. Porém, a comunhão de fé já existente entre os cristãos oferece uma base sólida para a sua acção conjunta não apenas no campo social, mas também no âmbito religioso.

Esta cooperação facilitará a procura da unidade. O Decreto sobre o ecumenismo observa que, por ela, « todos os que crêem em Cristo podem mais facilmente aprender como devem entender-se melhor e estimar-se mais uns aos outros, e assim se abre o caminho que leva à unidade dos cristãos ». 128

(127) Cf. UR 12.
(128) Ibid.



76 Neste contexto, como não recordar o interesse ecuménico pela paz, que se exprime na oração e na acção com uma participação crescente dos cristãos e uma motivação teológica que pouco a pouco se vai tornando mais profunda? Nem poderia ser de outro modo. Porventura não acreditamos nós em Jesus Cristo, Príncipe da paz? Os cristãos estão cada vez mais unidos na rejeição da violência, qualquer tipo de violência, desde as guerras à injustiça social.

Somos chamados a um compromisso cada vez mais activo, a fim de se manifestar ainda mais claramente que as motivações religiosas não são a verdadeira causa dos conflitos em curso, embora infelizmente, não esteja esconjurado o risco de instrumentalizações para fins políticos e polémicos.

No ano 1986, durante a Jornada Mundial de Oração pela Paz, em Assis, os cristãos das várias Igrejas e Comunidades eclesiais invocaram, a uma só voz, o Senhor da história pela paz no mundo. Naquele dia, de modo distinto mas paralelo, rezaram pela paz também os hebreus e os representantes das religiões não cristãs, numa sintonia de sentimentos que fizeram vibrar as cordas mais profundas do espírito humano.

E não quero esquecer a Jornada de Oração pela Paz na Europa especialmente nos Balcãs, que me levou de novo como peregrino à cidade de S. Francisco, nos dias 9 e 10 de Janeiro de 1993, bem como a Missa pela Paz nos Balcãs e de modo particular na Bósnia-Herzegovina, que presidi a 23 de Janeiro de 1994 na Basílica de S. Pedro, no contexto da Semana de oração pela unidade dos cristãos.

Quando o nosso olhar percorre o mundo, a alegria invade o nosso espírito. Constatamos, de facto, que os cristãos se sentem cada vez mais interpelados pela questão da paz. Consideram-na estritamente conexa com o anúncio do Evangelho e com o advento do Reino de Deus.





III. QUANTA EST NOBIS VIA?


Continuar e intensificar o diálogo

77 Agora podemos interrogar-nos sobre quanta estrada nos separa ainda daquele dia abençoado, em que será alcançada a plena unidade na fé e poderemos então na concórdia concelebrar a santa Eucaristia do Senhor. O melhor conhecimento recíproco já conseguido entre nós, as convergências doutrinais alcançadas e que tiveram como consequência um crescimento afectivo e efectivo de comunhão, não podem bastar para a consciência dos cristãos que professam a Igreja una, santa, católica e apostólica. A finalidade última do movimento ecuménico é o restabelecimento da plena unidade visível de todos os baptizados.

Na perspectiva desta meta, todos os resultados conseguidos até agora não passam de uma etapa, embora prometedora e positiva.




78 No movimento ecuménico, não são apenas a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas que possuem esta noção exigente da unidade querida por Deus. A tendência para tal unidade é expressa também por outros. 129

O ecumenismo implica que as Comunidades cristãs se ajudem mutuamente, para que esteja verdadeiramente presente nelas todo o conteúdo e todas as exigências « da herança deixada pelos Apóstolos ». 130 Sem isso, a plena comunhão nunca será possível. Esta ajuda recíproca na busca da verdade é uma forma suprema da caridade evangélica.

A busca da unidade está expressa nos vários documentos das numerosas Comissões mistas internacionais de diálogo. Nesses textos, trata-se do Baptismo, da Eucaristia, do Ministério e da Autoridade, partindo de uma certa unidade fundamental de doutrina.

Desta unidade fundamental, mas ainda parcial, deve-se agora passar àquela unidade visível, necessária e suficiente, que se inscreva na realidade concreta, para que as Igrejas realizem verdadeiramente o sinal daquela comunhão plena na Igreja una, santa, católica e apostólica, que se há-de exprimir na concelebração eucarística.

Este caminho para a unidade visível necessária e suficiente, na comunhão da única Igreja querida por Cristo, exige ainda um trabalho paciente e corajoso. Ao fazê-lo, é preciso não impor outras obrigações fora das indispensáveis (cf. Act
Ac 15,28).

(129) El paciente trabajo de la Comisión "Fe y Constitución" llegó a una visión análoga, que la VII Asamblea del Consejo Ecuménico de las Iglesias hizo suya en la declaración llamada de Canberra (7-20 febrero 1991, cf. Signs of the Spirit, Official report, Seventh Assembly, WCC, Ginebra 1991, 235-258) y que ha sido reafirmada por la Conferencia mundial de "Fe y Constitución" en Santiago de Compostela (3-14 agosto 1993, cf. Service d'information 85 119941, 18-38).
(130) Vaticano II, UR 14.



79 Já desde agora, é possível individuar os argumentos que ocorre aprofundar para se alcançar um verdadeiro consenso de fé: 1) as relações entre Sagrada Escritura, suprema autoridade em matéria de fé, e a Sagrada Tradição, indispensável interpretação da palavra de Deus; 2) a Eucaristia, sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, oferta de louvor ao Pai, memória sacrifical e presença real de Cristo, efusão santificadora do Espírito Santo; 3) a Ordem, como sacramento, para o tríplice ministério do episcopado, do presbiterado e do diaconado; 4) o Magistério da Igreja, confiado ao Papa e aos Bispos em comunhão com ele, concebido como responsabilidade e autoridade em nome de Cristo para o ensino e preservação da fé; 5) a Virgem Maria, Mãe de Deus e Ícone da Igreja, Mãe espiritual que intercede pelos discípulos de Cristo e pela humanidade inteira.

Neste corajoso caminho para a unidade, a lucidez e a prudência da fé impõem-nos evitar o falso irenismo e a negligência pelas normas da Igreja. 131 Mas, a mesma lucidez e prudência recomendam-nos fugir do desleixo no empenhamento pela unidade e, mais ainda, da oposição preconcebida ou do derrotismo que tende a ver tudo pelo negativo.

Manter uma visão da unidade que tenha em conta todas as exigências da verdade revelada, não significa pôr um freio ao movimento ecuménico. 132 Pelo contrário, significa evitar que ele se acomode a soluções aparentes, que não chegariam a nada de estável e sólido. 133 A exigência da verdade deve ser completamente respeitada. E não é, porventura, esta a lei do Evangelho?

(131) Cf.
UR 4 UR 11.
(132. Discurso a los Cardenales y a la Curia Romana (28 junio 1985), 6; AAS 77 (1985), 1153.
(133) Cf. Ibid.



Recepção dos resultados conseguidos

80 Enquanto prossegue o diálogo sobre novas temáticas ou se desenvolve a níveis mais profundos, temos uma tarefa nova a realizar: como receber os resultados conseguidos até agora. Estes não podem permanecer como simples afirmações das Comissões bilaterais, mas devem tornar-se património comum. Para que isto se verifique, reforçando assim os laços de comunhão, é preciso um sério exame que, segundo modos, formas e competências diversas, há-de envolver todo o povo de Deus. De facto, trata-se de questões que, frequentemente, dizem respeito à fé e, como tais, requerem o consenso universal, que se estende dos Bispos aos fiéis leigos, pois todos receberam a unção do Espírito Santo. 134 É o mesmo Espírito que assiste o Magistério e suscita o sensus fidei.

Para receber os resultados do diálogo impõe- -se, portanto, um amplo e cuidadoso processo crítico que analise e verifique com rigor a sua coerência com a Tradição de fé, recebida dos Apóstolos e vivida na comunidade dos crentes reunida ao redor do Bispo, seu legítimo Pastor.

(134) Cf. Vaticano II,
LG 12.



81 Este processo, que se há-de efectuar com prudência e em atitude de fé, terá a assistência do Espírito Santo. Para que tenha êxito favorável, é necessário que os seus resultados sejam oportunamente divulgados por pessoas competentes. Para semelhante objectivo, é de grande importância o contributo que os teólogos e Faculdades de Teologia estão chamados a oferecer, no cumprimento do seu carisma na Igreja. Claro está que as comissões ecuménicas têm, a este respeito, responsabilidades e funções totalmente singulares.

Todo o processo é seguido e ajudado pelos Bispos e pela Santa Sé. A autoridade docente tem a responsabilidade de exprimir o juízo definitivo.

Em tudo isto, será de grande ajuda ater-se metodologicamente à distinção entre o depósito da fé e a formulação em que ele é expresso, como recomendava o Papa João XXIII no discurso pronunciado na abertura do Concílio Vaticano II. 135

(135) Cf. AAS 54 (1962), 792.


Continuar o ecumenismo espiritual e testemunhar a santidade

82 Compreende-se como a gravidade do compromisso ecuménico interpele profundamente os fiéis católicos. O Espírito convida-os a um sério exame de consciência. A Igreja Católica deve entrar naquilo que se poderia chamar « diálogo da conversão », no qual está posto o fundamento interior do diálogo ecuménico. Em tal diálogo, que se realiza diante de Deus, cada um deve procurar os próprios erros, confessar as suas culpas, e colocar-se nas mãos d'Aquele que é o Intercessor junto do Pai, Jesus Cristo.

Certamente, é nesta relação de conversão à vontade do Pai e, ao mesmo tempo, de penitência e de absoluta confiança no poder reconciliador da verdade que é Cristo, que se acha a força para levar a bom termo a longa e árdua peregrinação ecuménica. O « diálogo da conversão » de cada comunidade com o Pai, sem indulgência por si própria, é o fundamento de relações fraternas que sejam algo diverso de mero entendimento cordial ou de uma convivência simplesmente exterior. Os laços da koinônia fraterna hão-de ser tecidos diante de Deus e em Cristo Jesus.

Somente o colocar-se diante de Deus pode oferecer uma base sólida para aquela conversão dos indivíduos cristãos e para aquela contínua reforma da Igreja, enquanto instituição também humana e terrena, 136 que constituem as condições preliminares de todo o empenho ecuménico. Um dos procedimentos fundamentais do diálogo ecuménico é o esforço de envolver as Comunidades cristãs neste espaço espiritual, completamente interior, onde Cristo, pelo poder do Espírito, as induz a todas, sem excepção, a examinarem-se diante do Pai e a interrogarem-se se foram fiéis ao seu desígnio sobre a Igreja.

(136) Vaticano II,
UR 6.



83 Falei da vontade do Pai, do espaço espiritual onde cada comunidade escuta o apelo a superar os obstáculos à unidade. Pois bem, todas as Comunidades cristãs sabem que semelhante exigência e um tal superamento, graças à força que o Espírito dá, não estão fora do seu alcance. Com efeito, todas têm mártires da fé cristã. 137 Não obstante o drama da divisão, estes irmãos conservaram em si mesmos uma união a Cristo e a seu Pai tão radical que pôde chegar até ao derramamento do sangue. Mas não é, porventura, essa mesma união que é chamada em causa naquilo que classifiquei como « diálogo da conversão »? Não é, por acaso, este diálogo que sublinha a necessidade de seguir em toda a sua profundidade a experiência da verdade para a plena comunhão?

(137) Cf.
UR 4; Pablo VI, Homilía para la canonización de los mártires ugandeses (18 octubre 1964): AAS 56 (1964), 906.



84 Numa visão teocêntrica, nós, cristãos, já temos um Martirológio comum. Este inclui também os mártires do nosso século, mais numerosos do que se pensa, e mostra como, a um nível profundo, Deus manteve entre os baptizados a comunhão na exigência suprema da fé, manifestada com o sacrifício da vida. 138 Se se pode morrer pela fé, isso demonstra que se pode alcançar a meta, quando se trata de outras formas da mesma exigência. Já constatei, e com alegria, como a comunhão, imperfeita mas real, é mantida e cresce a muitos níveis da vida eclesial. Considero agora que ela seja já perfeita naquilo que todos nós consideramos o ápice da vida de graça, o martyria até à morte, a comunhão mais verdadeira que possa existir com Cristo que derrama o seu Sangue e, neste sacrifício, aproxima aqueles que outrora estavam longe (cf. Ef Ep 2,13).

Se para todas as Comunidades cristãs os mártires são a prova do poder da graça, estes contudo não são os únicos que testemunham tal poder. Embora de modo invisível, a comunhão ainda não plena das nossas comunidades está, na verdade, solidamente cimentada na plena comunhão dos santos, isto é, daqueles que, no termo de uma existência fiel à graça, estão na comunhão de Cristo glorioso. Estes santos provêm de todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, que lhes abriram a entrada na comunhão da salvação.

Quando se fala de um património comum, devem-se inserir nele não só as instituições, os ritos, os meios de salvação, as tradições que todas as Comunidades conservaram e pelas quais elas estão plasmadas, mas também, e em primeiro lugar, esta realidade da santidade. 139

Na irradiação que dimana do « património dos santos » pertencentes a todas as Comunidades, o « diálogo da conversão » para a unidade plena e visível apresenta-se, então, sob uma luz de esperança. Esta presença universal dos santos dá, de facto, a prova da transcendência do poder do Espírito. Ela é sinal e prova da vitória de Deus sobre as forças do mal que dividem a humanidade. Justamente canta a liturgia essa intervenção vitoriosa de Deus nos santos: « ao coroar os seus méritos, coroais os vossos próprios dons ». 140

Onde existe a vontade sincera de seguir Cristo, muitas vezes o Espírito consegue derramar a sua graça por sendas diversas daquelas ordinárias. A experiência ecuménica permitiu-nos compreendê-lo melhor. Se, no espaço espiritual interior que descrevi, as Comunidades souberem « converter-se » verdadeiramente à busca da comunhão plena e visível, Deus fará por elas aquilo que fez pelos seus santos. Ele saberá superar os obstáculos herdados do passado e conduzi-las-á, pelos seus caminhos, onde Ele quer: à koinônia visível que é, simultaneamente, louvor da sua glória e serviço ao seu desígnio de salvação.

(138) Cf. TMA 37: AAS 87 (1995), 29-30; VS 93: AAS 85 (1993), 1207.
(139) Cf. Pablo VI, Discurso pronunciado en el insigne santuario de Namugongo, Uganda (2 agosto 1969): AAS 61 (1969), 590-591.
(140) Cf. Missale Romanum, Praefatium de Sanctis I. Sanctorum "coronando merita tua dona coronans".



Ut unum sint PT 62