Ut unum sint PT 85


85 Visto que, na sua infinita misericórdia, Deus pode tirar o bem até mesmo das situações que ofendem o seu desígnio, podemos então descobrir que o Espírito fez com que as oposições servissem, em algumas circunstâncias, para explicitar aspectos da vocação cristã, como sucede na vida dos santos. Apesar da divisão, que é um mal de que nos devemos curar, todavia realizou-se como que uma comunicação da riqueza da graça, que está destinada a embelezar a koinônia: a graça de Deus estará com todos aqueles que, seguindo o exemplo dos santos, se esforçam por favorecer as suas exigências. Como podemos nós hesitar em converter-nos aos anseios do Pai? Ele está connosco.



Contributo da Igreja Católica na busca da unidade dos cristãos

86 A Constituição Lumen gentium, numa afirmação fundamental que ressoa depois no Decreto Unitatis redintegratio, 141 escreve que a única Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica. 142 O Decreto sobre o ecumenismo sublinha a presença nela da plenitude (plenitudo) dos instrumentos de salvação. 143 A plena unidade realizar-se-á quando todos participarem da plenitude dos meios de salvação que Cristo confiou à sua Igreja.

(141) Cf. Vaticano II,
UR 4.
(142) Cf. Vaticano II, LG 8.
(143) Vaticano II, UR 3.



87 Ao longo do caminho que leva à plena unidade, o diálogo ecuménico esforça-se por suscitar uma recíproca ajuda fraterna, por meio da qual as Comunidades se dedicam a dar mutuamente aquilo de que cada uma tem necessidade para crescer segundo o desígnio de Deus que leva à plenitude definitiva (cf. Ef Ep 4,11-13). Como disse, nós, enquanto Igreja Católica, estamos conscientes de ter recebido muito do testemunho, da procura e mesmo até da maneira como foram sublinhados e vividos pelas outras Igrejas e Comunidades eclesiais certos bens cristãos comuns. Entre os progressos realizados durante os últimos trinta anos, há que atribuir um lugar de destaque a essa recíproca influência fraterna. Na etapa a que chegámos, 144 tal dinamismo de mútuo enriquecimento deve ser tomado seriamente em consideração. Baseado sobre a comunhão que já existe, graças aos elementos eclesiais presentes nas Comunidades cristãs, tal dinamismo não deixará de impelir para a comunhão plena e visível, meta suspirada do caminho que estamos realizando. É a forma ecuménica da lei evangélica da partilha. Isto me incita a repetir: « É preciso em tudo demonstrar o cuidado de ir ao encontro daquilo que os nossos irmãos cristãos, legitimamente, desejam e esperam de nós, conhecendo o seu modo de pensar e a sua sensibilidade (...). É necessário que os dons de cada um se desenvolvam para a utilidade e proveito de todos ». 145

(144) Después del Documento llamado de Lima de la Comisión "Fe y Constitución" sobre Bautismo, Eucaristía, Ministerio (enero 1982): Ench. Oecum. 1, 1392-1446, y en el espíritu de la Declaración de la VII asamblea general del Consejo Ecuménico de las Iglesias sobre La unidad de la Iglestá como koinonia: don y exigencia (Canberra 7-20 febrero 1991): cf. Istina 36 (1991), 389-391.
(145) Discurso a los Cardenales y a la Curia Romana (28 junio 1985), 4: AAS 77 (1985), 1151-1152.



O ministério de unidade do Bispo de Roma

88 Entre todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, a Igreja Católica está consciente de ter conservado o ministério do Sucessor do apóstolo Pedro, o Bispo de Roma, que Deus constituiu como « perpétuo e visível fundamento da unidade », 146 e que o Espírito ampara para que torne participantes deste bem essencial todos os outros. Segundo a feliz expressão do Papa Gregório Magno, o meu ministério é o de servus servorum Dei. Esta definição preserva o melhor possível do risco de separar a potestade (e particularmente o primado) do ministério, o que estaria em contradição com o significado de potestade dado pelo Evangelho: « Eu estou no meio de vós como aquele que serve » (Lc 22,27), diz o Senhor nosso Jesus Cristo, Chefe da Igreja. Por outra parte, como pude afirmar por ocasião do encontro no Conselho Ecuménico das Igrejas, em Genebra, a 12 de Junho de 1984, a convicção da Igreja Católica de, na fidelidade à Tradição apostólica e à fé dos Padres, ter conservado, no ministério do Bispo de Roma, o sinal visível e o garante da unidade, constitui uma dificuldade para a maior parte dos outros cristãos, cuja memória está marcada por certas recordações dolorosas. Por quanto sejamos disso responsáveis, com o meu Predecessor Paulo VI imploro perdão. 147

(146) Vaticano II, LG 23.
(147) Cf. Discurso al Consejo Ecuménico de las Iglesias (12 junio 1984), 2: Insegnamenti VII, 1 (1984), 1686.



89 Todavia, é significativo e encorajador que a questão do primado do Bispo de Roma se tenha tornado actualmente objecto de estudo, imediato ou em perspectiva, e igualmente significativo e encorajador é que uma tal questão esteja presente como tema essencial não apenas nos diálogos teológicos que a Igreja Católica mantém com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais, mas também de um modo mais genérico no conjunto do movimento ecuménico. Recentemente, os participantes na Va Assembleia Mundial da Comissão « Fé e Constituição » do Conselho Ecuménico das Igrejas, realizada em Santiago de Compostela, recomendaram que ela « desse início a um novo estudo sobre a questão de um ministério universal da unidade cristã ». 148 Após séculos de duras polémicas, as outras Igrejas e Comunidades eclesiais cada vez mais perscrutam com um novo olhar tal ministério de unidade. 149

(148) Conferencia Mundial DE "FE Y CONSTITUCIÓN", Relación de la II Sección, Santiago de Compostela (14 agosto 1993): Confessing the one faith to God's glory, 31, 2, Faith and Order Paper, 166, WCC, Ginebra 1994, 243.
(149) Por citar algunos ejemplos: la Relación final de la Anglican-Roman Catholic International Commission - ARCIC I (septiembre 1981): Ench. Oecum. 1, 3-88; la Comisión mixta internacional para el diálogo entre la Iglesia católica y los discípulos de Cristo, Relación 1981: Ench. Oecum. 1, 529-547; la Comisión mixta nacional conjunta católico-luterana, Documento El ministerio pastoral en la Iglesia (13 marzo 1981): Ench. Oecum. 1, 703-742; el problema se señala, en una clara perspectiva, en el estudio dirigido por la Comisión mixta internacional para el diálogo teológico entre la Iglesia católica y la Iglesia ortodoxa en su conjunto.




90 O Bispo de Roma é o Bispo da Igreja que conserva o testemunho do martírio de Pedro e de Paulo: « Por um misterioso desígnio da Providência, é em Roma que ele 1 conclui o seu caminho de seguimento de Jesus, como é em Roma que dá esta máxima prova de amor e de fidelidade. Em Roma, Paulo, o Apóstolo dos Gentios, dá também o seu testemunho supremo. A Igreja de Roma tornava-se assim a Igreja de Pedro e de Paulo ». 150

No Novo Testamento, a pessoa de Pedro ocupa um lugar proeminente. Na primeira parte dos Actos dos Apóstolos, aparece como chefe e porta-voz do colégio apostólico, designado como « Pedro (...) com os Onze » (2, 14; cf. também 2, 37; 5, 29). O lugar atribuído a Pedro está fundado sobre as próprias palavras de Cristo, tal como são recordadas nas tradições evangélicas.

(150) Discurso a los Cardenales y a la Curia Romana (28 junio 1985), 3: AAS 77 (1985), 1150.




91 O Evangelho de Mateus traça e especifica a missão pastoral de Pedro na Igreja: « És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue quem t'o revelou, mas o meu Pai que está nos céus. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus, e tudo quanto ligares na terra ficará ligado nos Céus, e tudo quanto desligares na terra será desligado nos Céus » (16, 17-19). Lucas põe em evidência que Cristo recomenda a Pedro de confirmar os irmãos, mas, ao mesmo tempo, faz-lhe conhecer a sua fraqueza humana e necessidade de conversão (cf. 22, 31-32). É como se, sobre o horizonte da fraqueza humana de Pedro, se manifestasse plenamente que o seu particular ministério na Igreja provém totalmente da graça; é como se o Mestre se dedicasse de modo especial à sua conversão, a fim de o preparar para a tarefa que está para lhe confiar na sua Igreja, e fosse muito exigente com ele. A mesma função de Pedro, sempre ligada a uma realista afirmação da sua fraqueza, encontra-se no quarto Evangelho: « Simão, filho de João, tu amas-Me mais do que estes? (...) Apascenta as minhas ovelhas » (cf. 21, 15-19). Significativo é ainda que, segundo a primeira Carta de Paulo aos Coríntios, Cristo ressuscitado tenha aparecido a Cefas e em seguida aos doze (cf. 15, 5).

É importante destacar como a fraqueza de Pedro e de Paulo manifeste que a Igreja se funda sobre o poder infinito da graça (cf. Mt
Mt 16,17 2Co 12,7-10). Pedro, logo a seguir à sua investidura, é repreendido, com rara severidade, por Cristo que lhe diz: « Tu és para Mim um estorvo » (Mt 16,23). Como não ver na misericórdia de que Pedro tem necessidade, uma relação com o ministério daquela misericórdia que ele primeiro entre todos experimentou? Igualmente, por três vezes ele negará Jesus. Também o Evangelho de João sublinha que Pedro recebe o encargo de apascentar o rebanho com uma tríplice profissão de amor (cf. 21, 15-17), que corresponde à sua tríplice negação (cf. 13, 38). Lucas, por sua vez, na palavra de Cristo já citada e à qual aderirá a primeira tradição com o intuito de delinear a missão de Pedro, insiste sobre o facto de que este deverá « confirmar os seus irmãos, uma vez convertido » (cf. Lc Lc 22,31).



92 Quanto a Paulo, ele conclui a descrição do seu ministério com a surpreendente afirmação que lhe foi concedido ouvir dos lábios do Senhor: « Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha força se revela totalmente », podendo em seguida exclamar: « Quando me sinto fraco, então é que sou forte » (2Co 12,9-10). Esta é uma característica fundamental da experiência cristã.

Herdeiro da missão de Pedro, na Igreja fecundada pelo sangue dos Príncipes dos Apóstolos, o Bispo de Roma exerce um ministério que tem a sua origem na misericórdia multiforme de Deus, a qual converte os corações e infunde a força da graça onde o discípulo sente o sabor amargo da sua fraqueza e miséria. A autoridade própria deste ministério está posta totalmente ao serviço do desígnio misericordioso de Deus e há-de ser vista sempre nesta perspectiva. É que nela se explica o seu poder.



93 Ligado como está à tríplice profissão de amor de Pedro que corresponde à tríplice negação, o seu sucessor sabe que deve ser sinal de misericórdia. O seu ministério é um ministério de misericórdia, nascido de um acto de misericórdia de Cristo. Toda esta lição do Evangelho deve ser constantemente relida, para que o exercício do ministério petrino nada perca da sua autenticidade e transparência.

A Igreja de Deus é chamada por Cristo a manifestar a um mundo fechado no emaranhado das suas culpas e dos seus sinistros propósitos, que, apesar de tudo, Deus, na sua misericórdia, pode converter os corações à unidade, fazendo-os aceder à sua própria comunhão.




94 Este serviço da unidade, radicado na obra da misericórdia divina, está confiado, no seio mesmo do colégio dos Bispos, a um daqueles que receberam do Espírito o encargo, não de exercer o poder sobre o povo — como fazem os chefes das nações e os grandes (cf. Mt Mt 20,25 Mc 10,42) —, mas de o guiar para que possa encontrar-se em pastagens tranquilas. Tal encargo pode exigir a oferta da própria vida (cf. Jo Jn 10,11-18). Depois de ter mostrado como Cristo é « o único Pastor, na unidade do qual todos são um só », Santo Agostinho exorta: « Estejam todos os pastores no único Pastor e proclamem a voz única do Pastor; oiçam as ovelhas esta voz e sigam o seu Pastor: não este ou aquele, mas o único Pastor. Apregoem todos com Ele uma só voz e não haja vozes diversas. (...) Oiçam as ovelhas esta voz, purificada de toda a divisão, livre de toda a heresia ». 151 A missão do Bispo de Roma no grupo de todos os Pastores consiste precisamente em « vigiar » (episkopein)como uma sentinela, de modo que, graças aos Pastores, se ouça em todas as Igrejas particulares a verdadeira voz de Cristo-Pastor. Assim, em cada uma das Igrejas particulares a eles confiadas, realiza-se a una, sancta, catholica et apostolica Ecclesia. Todas as Igrejas estão em comunhão plena e visível, porque todos os Pastores estão em comunhão com Pedro, e, desse modo, na unidade de Cristo.

Com o poder e autoridade sem os quais tal função seria ilusória, o Bispo de Roma deve assegurar a comunhão de todas as Igrejas. Por este título, ele é o primeiro entre os servidores da unidade. Tal primado é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, a celebração sacramental e litúrgica, a missão, a disciplina, e a vida cristã. Compete ao Sucessor de Pedro recordar as exigências do bem comum da Igreja, se alguém for tentado a esquecê-lo em função dos próprios interesses. Tem o dever de advertir, premunir e, às vezes, declarar inconciliável com a unidade da fé esta ou aquela opinião que se difunde. Quando as circunstâncias o exigirem, fala em nome de todos os Pastores em comunhão com ele. Pode ainda — em condições bem precisas, esclarecidas pelo Concílio Vaticano I — declarar ex cathedra que uma doutrina pertence ao depósito da fé. 152 Ao prestar este testemunho à verdade, ele serve a unidade.

(151) Sermo XLVI, 30: CCL 41, 557.



95 Mas tudo isto deve realizar-se sempre na comunhão. Quando a Igreja Católica afirma que a função do Bispo de Roma corresponde à vontade de Cristo, ela não separa esta função da missão confiada ao conjunto dos Bispos, também eles « vicários e legados de Cristo ». 153 O Bispo de Roma pertence ao seu « colégio », e eles são os seus irmãos no ministério.

Aquilo que diz respeito à unidade de todas as Comunidades cristãs, entra obviamente no âmbito das preocupações do primado. Como Bispo de Roma, sei bem — e confirmei-o na presente Carta encíclica — que a comunhão plena e visível de todas as Comunidades, nas quais em virtude da fidelidade de Deus habita o seu Espírito, é o desejo ardente de Cristo. Estou convicto de ter a este propósito uma responsabilidade particular, sobretudo quando constato a aspiração ecuménica da maior parte das Comunidades cristãs, e quando ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova. Durante um milénio, os cristãos estiveram unidos pela « fraterna comunhão da fé e da vida sacramental. Quando entre eles surgiam dissensões acerca da fé ou da disciplina, era a Sé de Roma quem, de comum acordo, as resolvia ». 154

Desse modo, o primado exercia a sua função de unidade. Dirigindo-me ao Patriarca Ecuménico, Sua Santidade Dimítrios I, disse estar consciente de que, « por razões muito diferentes, e contra a vontade de uns e outros, o que era um serviço pôde manifestar-se sob uma luz bastante diversa. Mas (...) é com o desejo de obedecer verdadeiramente à vontade de Cristo que eu me reconheço chamado, como Bispo de Roma, a exercer este ministério (...). O Espírito Santo nos dê a sua luz, e ilumine todos os pastores e os teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros ». 155

(152) Cf. Vaticano I, Const. dogm. Pastor aeternus, sobre la Iglesia de Cristo:
DS 3074.
(153) Vaticano II, LG 27.
(154) Cf. Vaticano II, UR 14
(155) Homilía en la Basílica de San Pedro en presencia de Dimitrios I, Arzobispo de Constantinopla y Patriarca ecuménico (6 diciembre 1987), 3: AAS 80 (1988), 714.



96 Tarefa imensa, que não podemos recusar, mas que sozinho não posso levar a bom termo. A comunhão real, embora imperfeita, que existe entre todos nós, não poderia induzir os responsáveis eclesiais e os teólogos a instaurarem comigo, sobre este argumento, um diálogo fraterno, paciente, no qual nos pudéssemos ouvir, pondo de lado estéreis polémicas, tendo em mente apenas a vontade de Cristo para a sua Igreja, deixando-nos penetrar do seu grito: « Que todos sejam um (...), para que o mundo creia que Tu Me enviaste » (Jn 17,21)?



A comunhão de todas as Igrejas particulares com a Igreja de Roma: condição necessária para a unidade

97 A Igreja Católica, tanto na sua praxis como nos textos oficiais, sustenta que a comunhão das Igrejas particulares com a Igreja de Roma, e dos seus Bispos com o Bispo de Roma, é um requisito essencial — no desígnio de Deus — para a comunhão plena e visível. De facto, é necessário que a plena comunhão, de que a Eucaristia é a suprema manifestação sacramental, tenha a sua expressão visível num ministério em que todos os Bispos se reconheçam unidos em Cristo, e todos os fiéis encontrem a confirmação da própria fé. A primeira parte dos Actos dos Apóstolos apresenta Pedro como aquele que fala em nome do grupo apostólico e serve a unidade da comunidade — e isto no respeito da autoridade de Tiago, chefe da Igreja de Jerusalém. Esta função de Pedro deve permanecer na Igreja para que, sob o seu único Chefe que é Cristo Jesus, ela seja no mundo, visivelmente, a comunhão de todos os seus discípulos.

Porventura não é um ministério deste género que muitos dos que estão empenhados no ecumenismo exprimem hoje a necessidade? Presidir na verdade e no amor, para que a barca — belo símbolo que o Conselho Ecuménico das Igrejas escolheu como seu emblema — não seja despedaçada pelas tempestades e possa chegar um dia ao porto desejado.



Plena unidade e evangelização

98 O movimento ecuménico do nosso século, mais do que as iniciativas ecuménicas dos séculos passados de que importa, contudo, não subestimar a importância, foi caracterizado por uma perspectiva missionária. No versículo joanino que serve de inspiração e motivo condutor — « que todos sejam um (...), para que o mundo creia que Tu Me enviaste (Jn 17,21) » — foi sublinhada a frase para que o mundo creia com tal vigor que se corre o risco de esquecer, às vezes, que, no pensamento do evangelista, a unidade é sobretudo para a glória do Pai. De qualquer modo, é claro que a divisão dos cristãos está em contradição com a Verdade que têm a missão de difundir, comprometendo gravemente o seu testemunho. Bem o compreendera e afirmara o meu Predecessor, o Papa Paulo VI, na sua Exortação apostólica Evangelii nuntiandi: « Como evangelizadores, nós devemos apresentar aos fiéis de Cristo, não já a imagem de homens divididos e separados por litígios que nada edificam, mas sim a imagem de pessoas amadurecidas na fé, capazes de se encontrar para além de tensões que se verifiquem, graças à procura comum, sincera e desinteressada da verdade. Sim, a sorte da evangelização anda sem dúvida ligada ao testemunho de unidade dado pela Igreja (...). Nisto há-de ser vista uma fonte de responsabilidade, como também de conforto. Quanto a este ponto, nós quereríamos insistir sobre o sinal da unidade entre todos os cristãos, como caminho e instrumento da evangelização. A divisão dos cristãos entre si é um estado de facto grave, que chega a afectar a própria obra de Cristo ». 156

Na verdade, como anunciar o Evangelho da reconciliação, sem contemporaneamente se empenhar a agir pela reconciliação dos cristãos? Se é certo que a Igreja, pelo impulso do Espírito Santo e com a promessa da indefectibilidade, pregou e prega o Evangelho a todas as nações, é verdade também que ela tem de enfrentar as dificuldades provenientes das divisões. Perante missionários que estão em desacordo entre si, embora todos façam apelo a Cristo, saberão os incrédulos acolher a verdadeira mensagem? Não pensarão que o Evangelho é factor de divisão, ainda que seja apresentado como a lei fundamental da caridade?

(156) EN 77: AAS 68 (1976), 69; cf. Vaticano II, UR 1; Pontificio Consejo para la Promoción de la Unidad de los Cristianos, Directoire pour l'application des principes et des normes sur l'oecuménisme (25 marzo 1993), 205-209: AAS 85 (1993), 1112-1114.



99 Quando afirmo que para mim, Bispo de Roma, o empenhamento ecuménico constitui « uma das prioridades pastorais » do meu pontificado, 157 é por ter no pensamento o grave obstáculo que a divisão representa para o anúncio do Evangelho. Uma Comunidade cristã que crê em Cristo e deseja, com o ardor do Evangelho, a salvação da humanidade, não pode de forma alguma fechar-se ao apelo do Espírito que orienta todos os cristãos para a unidade plena e visível. Trata-se de um dos imperativos da caridade que deve ser acolhido sem hesitações. O ecumenismo não é apenas uma questão interna das Comunidades cristãs, mas diz respeito ao amor que Deus, em Cristo Jesus, destina ao conjunto da humanidade; e obstaculizar este amor é uma ofensa a Ele e ao seu desígnio de reunir todos em Cristo. O Papa Paulo VI escrevia ao Patriarca Ecuménico Atenágoras I: « Possa o Espírito Santo guiar-nos no caminho da reconciliação, para que a unidade das nossas Igrejas se torne um sinal cada vez mais luminoso de esperança e de conforto para toda a humanidade ». 158

(157) Discurso a los Cardenales y a la Curia Romana (28 junio 1985), 4: AAS 77 (1985), 1151.
(158) Carta del 13 de enero de 1970: Tomos agapis, Vatican-Phanar (1958-1970), Roma-Estambul 1971, 610-611,




EXORTAÇÃO

100 Tendo-me dirigido recentemente aos Bispos, ao clero e aos fiéis da Igreja Católica para indicar o caminho a seguir na celebração do Grande Jubileu do Ano Dois Mil, afirmei, entre outras coisas, que « a melhor preparação para a passagem bimilenária não poderá exprimir-se senão pelo renovado empenho na aplicação, fiel quanto possível, do ensinamento do Vaticano II à vida de cada um e da Igreja inteira ». 159 O Concílio é o grande início — como que o Advento — daquele itinerário que nos conduz ao limiar do Terceiro Milénio. Considerando a importância que a Assembleia Conciliar atribuiu à obra de restauração da unidade dos cristãos, nesta nossa época de graça ecuménica, pareceu-me necessário corroborar as convicções fundamentais que o Concílio esculpiu na consciência da Igreja Católica, recordando-as à luz dos progressos entretanto realizados para a plena comunhão de todos os baptizados.

Não há dúvida que o Espírito Santo está em acção nesta obra, conduzindo a Igreja para a plena realização do desígnio do Pai, em conformidade com a vontade de Cristo, expressa com vigor tão veemente na oração que, segundo o quarto Evangelho, os seus lábios pronunciam no momento em que Ele se encaminha para o drama salvífico da sua Páscoa. Tal como então, também hoje Cristo pede que um ímpeto novo reanime o empenho de cada um em ordem à comunhão plena e visível.

(159)
TMA 20: AAS 87 (1995), 17.



101 Exorto, portanto, os meus Irmãos no episcopado a darem toda a atenção a tal empenho. Os dois Códigos de Direito Canónico incluem entre as responsabilidades do Bispo a de promover a unidade de todos os cristãos, apoiando toda a acção ou iniciativa, tendente a promovê-la, na certeza de que a Igreja a isso está obrigada por expressa vontade de Cristo. 160 Isto faz parte da missão episcopal e é uma obrigação que deriva directamente da fidelidade a Cristo, Pastor da Igreja. Todos os fiéis, porém, são convidados pelo Espírito de Deus a fazer o possível, para que se recomponham os laços de união entre todos os cristãos e cresça a colaboração entre os discípulos de Cristo: « A solicitude na restauração da união vale para toda a Igreja, tanto para os fiéis como para os pastores. Afecta a cada um em particular, de acordo com a sua capacidade ». 161

(160) Cf.
CIC 755 CIO 902.
(161) Vaticano II, UR 5.



102 O poder do Espírito de Deus faz crescer e edifica a Igreja através dos séculos. Com o olhar voltado para o novo milénio, a Igreja pede ao Espírito a graça de reforçar a sua própria unidade e de a fazer crescer até à plena comunhão com os outros cristãos.

Como consegui-lo? Em primeiro lugar, com a oração. A oração sempre deveria incluir aquela inquietação que é anelo pela unidade, e portanto uma das formas necessárias do amor que nutrimos por Cristo e pelo Pai, rico de misericórdia. A oração deve ter a prioridade neste caminho que empreendemos com os outros cristãos rumo ao novo milénio.

Como consegui-lo? Com a acção de graças, porque não nos apresentamos a esse encontro de mãos vazias: « Mas o próprio Espírito vem em ajuda da nossa fraqueza (...) e intercede por nós com gemidos inefáveis » (
Rm 8,26), para nos dispor a pedir a Deus aquilo de que temos necessidade.

Como consegui-lo? Com a esperança no Espírito, que sabe afastar de nós os espectros do passado e as recordações dolorosas da separação; Ele sabe conceder-nos lucidez, força e coragem para empreender os passos necessários, de modo que o nosso empenho seja cada vez mais autêntico.

E se nos viesse a vontade de perguntar se tudo isto é possível, a resposta seria sempre: sim. A mesma resposta ouvida por Maria de Nazaré, porque a Deus nada é impossível.

Voltam-me ao pensamento as palavras com que S. Cipriano comenta o Pai Nosso, a oração de todos os cristãos: « Deus não aceita o sacrifício do que vive em discórdia, e manda-o retirar-se do altar para ir primeiro reconciliar-se com seu irmão, porque só as orações de um coração pacífico poderão obter a reconciliação com Deus. O sacrifício mais agradável a Deus é a nossa paz e a concórdia fraterna, e um povo cuja união seja um reflexo da unidade que existe entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo ». 162

Ao alvorecer do novo milénio, como não solicitar ao Senhor, com renovado ímpeto e consciência mais amadurecida, a graça de nos predispormos, todos, para este sacrifício da unidade?

(162) De Dominica oratione, 23: CSEL 3, 284-285.



103 Eu, João Paulo, humilde servus servorum Dei, fazendo minhas as palavras do apóstolo Paulo — cujo martírio, unido ao do apóstolo Pedro, conferiu a esta Sé de Roma o esplendor do seu testemunho —, digo a vós, fiéis da Igreja Católica, e a vós, irmãos e irmãs das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, « trabalhai na vossa perfeição, confortai-vos mutuamente, tende um mesmo sentir, vivei em paz. E o Deus do amor e da paz estará convosco (...). A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós » (2Co 13,11 2Co 13,13).



Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Maio — solenidade da Ascensão do Senhor — do ano 1995, décimo sétimo de Pontificado.










Ut unum sint PT 85