Vita consecrata PT 16


I. EM LOUVOR DA TRINDADE


A Patre ad Patrem: a iniciativa de Deus

17 A contemplação da glória do Senhor Jesus no ícone da Transfiguração revela às pessoas consagradas, antes de mais, o Pai, criador e dador de todo o bem, que atrai a Si (cf. Jn 6,44) uma criatura sua, por um amor de predilecção e em ordem a uma missão especial. « Este é o meu Filho muito amado: escutai-O! » (Mt 17,5). Correspondendo a este apelo acompanhado por uma atracção interior, a pessoa chamada entrega-se ao amor de Deus, que a quer exclusivamente ao seu serviço, e consagra-se totalmente a Ele e ao seu desígnio de salvação (cf. 1Co 7,32-34).

Está aqui o sentido da vocação à vida consagrada: uma iniciativa total do Pai (cf. Jn 15,16), que requer daqueles que escolhe uma resposta de dedicação plena e exclusiva (28). A experiência deste amor gratuito de Deus é tão íntima e forte que a pessoa sente que deve responder com a dedicação incondicional da sua vida, consagrando tudo, presente e futuro, nas suas mãos. Por isso mesmo, como ensina S. Tomás, a identidade da pessoa consagrada pode-se compreender a partir da totalidade da sua oferta, comparável a um autêntico holocausto (29).

(28) Cf. Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares, Instr. « Elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre a vida religiosa aplicados aos Institutos consagrados ao apostolado » (31 de Maio de 1983), 5: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 14 de Agosto de 1983), 4.
(29) Cf. Summa Theologiae, II-II 186,1.


Per Filium: seguindo os passos de Cristo

18 O Filho, caminho que conduz ao Pai (cf. Jn 14,6), chama todos aqueles que o Pai Lhe deu (cf. Jn 17,9) a um seguimento que dá orientação à sua existência. A alguns porém — concretamente às pessoas de vida consagrada —, Cristo pede uma adesão total, que implica o abandono de tudo (cf. Mt 19,27) para viver na intimidade com Ele (30) e segui-Lo para onde quer que vá (cf. Ap 14,4).

No olhar de Jesus (cf. Mc 10,21), « imagem do Deus invisível » (Col 1,15), resplendor da glória do Pai (cf. He 1,3), constata-se a profundidade de um amor eterno e infinito que atinge as raízes do ser(31). A pessoa que se deixa seduzir, não pode deixar de abandonar tudo e segui-Lo (cf. Mc 1,16-20 Mc 2,14 Mc 10,21 Mc 10,28). A semelhança de Paulo, considera tudo o resto como « perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus », não hesitando em reputar tudo o mais como « lixo, a fim de ganhar Cristo » (cf. Ph 3,8). A sua aspiração é identificar-se com Ele, assumindo os seus sentimentos e forma de vida. O deixar tudo e seguir o Senhor (cf. Lc 18,28) constitui um programa válido para todas as pessoas chamadas e para todos os tempos.

Os conselhos evangélicos, pelos quais Cristo convida alguns a partilharem a sua experiência de pessoa virgem, pobre e obediente, requerem e manifestam, em quem acolhe o convite, o desejo explícito de conformação total com Ele. Vivendo « na obediência, sem nada de seu e na castidade » (32),os consagrados confessam que Jesus é o Modelo no qual toda a virtude alcança a perfeição. Na verdade, a sua forma de vida casta, pobre e obediente apresenta-se como a maneira mais radical de viver o Evangelho sobre esta terra, um modo — pode-se dizer — divino, porque abraçado por Ele, Homem-Deus, como expressão da sua relação de Filho Unigénito com o Pai e com o Espírito Santo. Este é o motivo por que, na tradição cristã, sempre se falou da objectiva excelência da vida consagrada.

Inegável é, ainda, que a prática dos conselhos constitui também uma forma particularmente íntima e fecunda de tomar parte na missão de Cristo seguindo o exemplo de Maria de Nazaré, primeira discípula, que aceitou colocar-se ao serviço do desígnio divino com o dom total de si mesma. Toda a missão inicia com a mesma atitude expressa por Maria, na Anunciação: « Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra » (Lc 1,38).

(30) Cf. propositio 16.
(31) Cf. João Paulo II, Exort. ap. Redemptionis donum (25 de Março de 1984), 3: AAS 76 (1984), 515-517.
(32) S. Francisco de Assis, Regula bullata, I, 1.


In Spiritu: consagrados pelo Espírito Santo

19 « Uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra » (Mt 17,5). Uma significativa interpretação espiritual da Transfiguração vê nesta nuvem a imagem do Espírito Santo (33).

Como toda a existência cristã, também a vocação à vida consagrada está intimamente relacionada com a obra do Espírito Santo. É Ele que, pelos milénios fora, sempre induz novas pessoas a sentirem atracção por uma opção tão comprometedora. Sob a sua acção, elas revivem, de certo modo, a experiência do profeta Jeremias: « Vós me seduzistes, Senhor, e eu deixei-me seduzir » (Jr 20,7). É o Espírito que suscita o desejo de uma resposta cabal; é Ele que guia o crescimento desse anseio, fazendo amadurecer a resposta positiva e sustentando, depois, a sua fiel realização; é Ele que forma e plasma o espírito dos que são chamados, configurando-os a Cristo casto, pobre e obediente, e impelindo-os a assumirem a sua missão. Deixando-se guiar pelo Espírito num caminho ininterrupto de purificação, tornam-se, dia após dia, pessoas cristiformes, prolongamento na história de uma especial presença do Senhor ressuscitado.

Com profunda intuição, os Padres da Igreja qualificaram este caminho espiritual como filocalia, ou seja, amor pela beleza divina, que é irradiação da bondade de Deus. A pessoa que é progressivamente conduzida pelo poder do Espírito Santo até à plena configuração com Cristo, reflecte em si mesma um raio da luz inacessível, e na sua peregrinação terrena caminha até à Fonte inexaurível da luz. Deste modo, a vida consagrada torna-se uma expressão particularmente profunda da Igreja Esposa que, movida pelo Espírito a reproduzir em si mesma os traços do Esposo, aparece na presença d'Ele « gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada » (Ep 5,27).

E o Espírito, longe de afastar da história dos homens as pessoas que o Pai chamou, coloca-as ao serviço dos irmãos, segundo as modalidades próprias do seu estado de vida, e encaminha-as para a realização de tarefas específicas, de acordo com as necessidades da Igreja e do mundo, através dos carismas próprios dos vários Institutos. Daí a aparição de múltiplas formas de vida consagrada, através das quais a Igreja é « embelezada com a variedade dos dons dos seus filhos, (...) como esposa adornada para o seu esposo (cf. Ap 21,2) » (34), e fica enriquecida de todos os meios para cumprir a sua missão no mundo.

(33) « Tota Trinitas apparuit: Pater in voce; Filius in homine, Spiritus in nube clara »: S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, III 45,4, ad 2um.
(34) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, PC 1.


Os conselhos evangélicos, dom da Trindade

20 Assim os conselhos evangélicos são, primariamente, um dom da Santíssima Trindade. A vida consagrada é anúncio daquilo que o Pai, pelo Filho no Espírito, realiza com o seu amor, a sua bondade, a sua beleza. De facto, « o estado religioso patenteia (...) a elevação do Reino de Deus sobre tudo o que é terreno e as suas relações transcendentes; e revela aos homens a grandeza do poder de Cristo Rei e a potência infinita com que o Espírito Santo maravilhosamente actua na Igreja » (35).

A primeira tarefa da vida consagrada é tornar visíveis as maravilhas que Deus realiza na frágil humanidade das pessoas chamadas. Mais do que com as palavras, elas testemunham essas maravilhas com a linguagem eloquente de uma existência transfigurada, capaz de suscitar a admiração do mundo. À admiração dos homens respondem com o anúncio dos prodígios da graça que o Senhor realiza naqueles que ama. Na medida em que a pessoa consagrada se deixa conduzir pelo Espírito até aos cumes da perfeição, pode exclamar: « Contemplo a beleza da vossa graça, vejo seu brilho, irradio sua luz; fico cativado pelo seu inefável esplendor; acabo arrebatado longe de mim, sempre que penso ao meu próprio ser; vejo como era e no que me tornei. Ó maravilha! Presto toda a minha atenção, fico cheio de respeito por mim mesmo, de reverência e de temor como se estivesse diante de Vós mesmo; não sei o que fazer, porque a timidez se apoderou de mim; não sei onde sentar-me, donde me aproximar, onde repousar estes membros que Vos pertencem; em que iniciativa, em que obra empregá-las, estas encantadoras maravilhas divinas » (36). Deste modo, a vida consagrada torna-se um dos rastos concretos que a Trindade deixa na história, para que os homens possam sentir o encanto e a saudade da beleza divina.

(35) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium,
LG 44.
(36) Simeão, o novo teólogo. Hinos, II, 19-27: Sch 156, 178-179.


Nos conselhos, o reflexo da vida trinitária

21 A relação dos conselhos evangélicos com a Trindade santa e santificadora revela o sentido mais profundo deles. Na verdade, são expressão do amor que o Filho nutre pelo Pai na unidade do Espírito Santo. Praticando-os, a pessoa consagrada vive, com particular intensidade, o carácter trinitário e cristológico que caracteriza toda a vida cristã.

A castidade dos celibatários e das virgens, enquanto manifestação da entrega a Deus com umcoração indiviso (cf.
1Co 7,32-34), constitui um reflexo do amor infinito que une as três Pessoas divinas na profundidade misteriosa da vida trinitária; amor testemunhado pelo Verbo encarnado até ao dom da própria vida; amor « derramado em nossos corações pelo Espírito Santo » (Rm 5,5), que incita a uma resposta de amor total a Deus e aos irmãos.

A pobreza confessa que Deus é a única verdadeira riqueza do homem. Vivida segundo o exemplo de Cristo que, « sendo rico, Se fez pobre » (2Co 8,9), torna-se expressão do dom total de Si que as três Pessoas divinas reciprocamente se fazem. É dom que transborda para a criação e se manifesta plenamente na Encarnação do Verbo e na sua morte redentora.

A obediência, praticada à imitação de Cristo cujo alimento era fazer a vontade do Pai (cf. Jn 4,34), manifesta a graça libertadora de uma dependência filial e não servil, rica de sentido de responsabilidade e animada pela confiança recíproca, que é reflexo, na história, da amorosa correspondência das três Pessoas divinas.

Assim, a vida consagrada é chamada a aprofundar continuamente o dom dos conselhos evangélicos com um amor cada vez mais sincero e forte na sua dimensão trinitária: amor a Cristo, que chama à sua intimidade; ao Espírito Santo, que predispõe o espírito para acolher as suas inspirações; ao Pai, origem primeira e fim supremo da vida consagrada (37). Esta torna-se, assim, confissão e sinal da Trindade, cujo mistério é indicado à Igreja como modelo e fonte de toda a forma de vida cristã.

Também a vida fraterna, em virtude da qual as pessoas consagradas se esforçam por viver em Cristo com « um só coração e uma só alma » (Ac 4,32), se apresenta como uma eloquente confissão trinitária. Confessa o Pai, que quer fazer de todos os homens uma só família; confessa o Filho encarnado, que congrega os redimidos na unidade, apontando o caminho com o seu exemplo, a sua oração, as suas palavras e, sobretudo, com a sua morte, fonte de reconciliação para os homens divididos e dispersos; confessa o Espírito Santo, como princípio de unidade na Igreja, onde não cessa de suscitar famílias espirituais e comunidades fraternas.

(37) Cf. João Paulo II, Discurso na Audiência Geral (9 de Novembro de 1994), 4: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 12 de Novembro de 1994), 24.


Consagrados, como Cristo, para o Reino de Deus

22 Sob o impulso do Espírito Santo, a vida consagrada « imita mais de perto, e perpetuamente representa na Igreja » (38) a forma de vida que Jesus, supremo consagrado e missionário do Pai para o seu Reino, abraçou e propôs aos discípulos que O seguiam (cf. Mt 4,18-22 Mc 1,16-20 Lc 5,10-11 Jn 15,16). À luz da consagração de Jesus, é possível descobrir na iniciativa do Pai, fonte de toda a santidade, a nascente originária da vida consagrada. Na verdade, Jesus é aquele que « Deus ungiu com o Espírito Santo e com poder » (Ac 10,38), « aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo » (Jn 10,36). Recebendo a consagração do Pai, o Filho consagra-Se por sua vez ao Pai pela humanidade (cf. Jn 17,19): a sua vida de virgindade, obediência e pobreza exprime a adesão filial e plena ao desígnio do Pai (cf. Jn 10,30 Jn 14,11). A sua oblação perfeita confere um sentido de consagração a todos os acontecimentos da sua existência terrena.

Jesus é o obediente por excelência, descido do céu não para fazer a sua vontade, mas a d'Aquele que O enviou (cf. Jn 6,38 He 10,5 He 10,7). Entrega o seu modo de ser e de agir nas mãos do Pai (cf. Lc 2,49). Por obediência filial, assume a forma de servo: « Despojou-Se a Si mesmo tomando a condição de servo (...), feito obediente até à morte e morte de cruz » (Ph 2,7-8). É também nesta atitude de docilidade ao Pai que Cristo, embora aprovando e defendendo a dignidade e a santidade da vida matrimonial, assume a forma de vida virginal, e revela assim o valor sublime e a misteriosa fecundidade espiritual da virgindade . A sua plena adesão ao desígnio do Pai manifesta-se ainda no desapego dos bens terrenos: « Sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela sua pobreza » (2Co 8,9). A profundidade da sua pobreza revela-se na perfeita oblação de tudo o que é seu ao Pai.

Verdadeiramente a vida consagrada constitui memória viva da forma de existir e actuar de Jesus, como Verbo encarnado face ao Pai e aos irmãos. Aquela é tradição vivente da vida e da mensagem do Salvador.

(38) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium LG 44


II. DA PÁSCOA AO CUMPRIMENTO DEFINITIVO


Do Tabor ao Calvário

23 O acontecimento deslumbrante da Transfiguração prepara um outro, trágico mas não menos glorioso, que é o do Calvário. Pedro, Tiago e João contemplam o Senhor Jesus, acompanhado por Moisés e Elias, com os quais — segundo o evangelista Lucas — Ele fala « da sua partida que iria consumar-se em Jerusalém » (Lc 9,31). Assim os olhos dos apóstolos fixam-se em Jesus, que pensa na Cruz (cf. Lc 9,43-45). Nesta, o seu amor virginal pelo Pai e por todos os homens atingirá a máxima expressão; a sua pobreza chegará ao despojamento total; a sua obediência irá até ao dom da vida.

Os discípulos e discípulas são convidados a contemplar Jesus exaltado na Cruz, a partir da qual « o Verbo saído do silêncio » (39), no seu silêncio e solidão, proclama profeticamente a transcendência absoluta de Deus sobre todos os bens criados, vence na sua carne o nosso pecado, e atrai a Si todo o homem e mulher, dando a cada um a nova vida da ressurreição (cf. Jn 12,32 Jn 19,34 Jn 19,37). Da contemplação de Cristo crucificado, recebem inspiração todas as vocações; da Cruz, com o dom fundamental do Espírito têm origem todos os dons, e em particular o dom da vida consagrada.

Depois de Maria, Mãe de Jesus, recebe este dom o discípulo que Jesus amava, João, a testemunha que se encontrava, com Maria, aos pés da Cruz (cf. Jn 19,26-27). A sua decisão de consagração total é fruto do amor divino que o envolve, sustenta e lhe enche o coração. João, ao lado de Maria, conta-se entre os primeiros dessa longa série de homens e mulheres que, desde o início da Igreja até ao fim, tocados pelo amor de Deus, se sentem chamados a seguir o Cordeiro imolado e redivivo, para onde quer que Ele vá (cf. Ap 14,1-5) (40).

(39) S. Inácio de Antioquia, Carta aos Magnesianos, 8,2: Patres Apostolici (ed. F.X. Funk), II, 237.
(40) Cf. propositio 3.


Dimensão pascal da vida consagrada

24 A pessoa consagrada, nas várias formas de vida suscitadas pelo Espírito ao longo da história, experimenta a verdade de Deus-Amor de modo tanto mais imediato e profundo quanto mais se aproxima da Cruz de Cristo. Na verdade, Aquele que, na sua morte, aparece aos olhos humanos desfigurado e sem beleza, a ponto de obrigar os espectadores a desviar o rosto (cf. Is 53,2-3), manifesta plenamente a beleza e a força do amor de Deus, precisamente na Cruz. Assim o contempla S. Agostinho: « Admirável é Deus, o Verbo junto de Deus. [...] É admirável no céu, admirável na terra; admirável no seio, admirável nos braços dos pais, admirável nos milagres, admirável nos suplícios; admirável quando convida à vida, admirável quando não se preocupa com a morte, admirável ao deixar a vida e admirável ao retomá-la; admirável na Cruz, admirável no sepulcro, admirável no céu. Escutai o cântico com a inteligência, e que a fragilidade da carne não afaste os vossos olhos do esplendor da sua beleza » (41).

A vida consagrada reflecte este esplendor do amor, porque confessa, com a sua fidelidade ao mistério da Cruz, que crê e vive do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Deste modo, ela contribui para manter viva na Igreja a consciência de que a Cruz é a superabundância do amor de Deus que transborda sobre este mundo, ela é o grande sinal da presença salvífica de Cristo. E isto, especialmente nas dificuldades e nas provações. É o que testemunha, continuamente e com uma coragem digna de profunda admiração, um grande número de pessoas consagradas que vivem em situações difíceis, por vezes mesmo de perseguição e martírio. A sua fidelidade ao único Amor revela-se e aperfeiçoa-se na humildade de uma vida escondida, na aceitação dos sofrimentos para « completar na própria carne o que falta aos sofrimentos de Cristo » (cf. Col 1,24), no sacrifício silencioso, no abandono à vontade santa de Deus, na serena fidelidade mesmo face ao declínio das próprias forças e importância. Da fidelidade a Deus, brota também a dedicação ao próximo, que as pessoas consagradas vivem, não sem sacrifício, na constante intercessão pelas necessidades dos irmãos, no generoso serviço aos pobres e aos enfermos, na partilha das dificuldades alheias, na solícita participação das preocupações e provas da Igreja.

(41) Enarr. in Psal., 44, 3: PL 36, 495-496.


Testemunhas de Cristo no mundo

25 Do mistério pascal, brota também a missionariedade, que é dimensão qualificativa de toda a vida eclesial; mas encontra uma realização específica na vida consagrada. Para não falar já nos carismas próprios daqueles Institutos que se consagram à missão ad gentes ou se empenham em actividades justamente de tipo apostólico, há que afirmar que a missionariedade está inscrita no coração mesmo de toda a forma de vida consagrada. Na medida em que o consagrado vive uma vida dedicada exclusivamente ao Pai (cf. Lc 2,49 Jn 4,34), cativada por Cristo (cf. Jn 15,16 Ga 1,15-16), animada pelo Espírito Santo (cf. Lc 24,49 Ac 1,8 Ac 2,4), ele coopera eficazmente para a missão do Senhor Jesus (cf. Jn 20,21), contribuindo de modo particularmente profundo para a renovação do mundo.

O dever missionário das pessoas consagradas tem a ver primeiro com elas próprias, e cumprem-no abrindo o seu coração à acção do Espírito de Cristo. O seu testemunho ajuda a Igreja inteira a lembrar-se de que em primeiro lugar está o serviço gratuito de Deus, tornado possível pela graça de Cristo, comunicada ao crente pelo dom do Espírito. Deste modo, é anunciada ao mundo a paz que desce do Pai, a dedicação que é testemunhada pelo Filho, a alegria que é fruto do Espírito Santo.

As pessoas consagradas serão missionárias, antes de mais, aprofundando continuamente a consciência de terem sido chamadas e escolhidas por Deus, para quem devem, por isso mesmo, orientar toda a sua vida e oferecer tudo o que são e possuem, libertando-se dos obstáculos que poderiam retardar a resposta total de amor. Desta forma, poderão tornar-se um verdadeiro sinal de Cristo no mundo. Também o seu estilo de vida deve fazer transparecer o ideal que professam, propondo-se como sinal vivo de Deus e como persuasiva pregação, ainda que muitas vezes silenciosa, do Evangelho.

Sempre, mas especialmente na cultura contemporânea muitas vezes tão secularizada e apesar disso sensível à linguagem dos sinais, a Igreja deve-se preocupar por tornar visível a sua presença na vida quotidiana. Uma contribuição significativa neste sentido, ela tem direito de esperá-la das pessoas consagradas, chamadas a prestar, em cada situação, um testemunho concreto da sua pertença a Cristo.

Visto que o hábito é sinal de consagração, de pobreza e de pertença a uma determinada família religiosa, unindo-me aos Padres do Sínodo recomendo vivamente aos religiosos e religiosas que usem o seu hábito, adaptado convenientemente às circunstâncias dos tempos e lugares (42). Onde válidas exigências apostólicas o aconselharem, poderão, em conformidade com as normas do próprio Instituto, usar um vestuário simples mas digno, com um símbolo apropriado, de modo que seja reconhecível a sua consagração.

Os Institutos que, já desde a origem ou por disposição das suas constituições, não prevêem um hábito próprio, cuidem de que o vestuário dos seus membros corresponda, em dignidade e simplicidade, à natureza da sua vocação (43).

(42) Cf. propositio 25; Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, PC 17.
(43) Cf. propositio 25.


Dimensão escatológica da vida consagrada

26 Dado que hoje as preocupações apostólicas se fazem sentir sempre com maior urgência e o empenhamento nas coisas deste mundo corre o risco de ser cada vez mais absorvente, torna-se particularmente oportuno chamar a atenção para a natureza escatológica da vida consagrada.

« Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração » (
Mt 6,21): esse tesouro único, que é o Reino, suscita desejo, expectativa, compromisso e testemunho. Na Igreja primitiva, a expectativa da vinda do Senhor era vivida de modo particularmente intenso. A Igreja não cessou de alimentar esta atitude de esperança, ao longo dos séculos: continuou a convidar os fiéis a levantarem os seus olhos para a salvação pronta a revelar-se, « porque a figura deste mundo passa » (1Co 7,31 cf. 1P 1,3-6) (44).

É neste horizonte que melhor se compreende a função de sinal escatológico, própria da vida consagrada. De facto, é constante a doutrina que a apresenta como antecipação do Reino futuro. O Concílio Vaticano II reitera este ensinamento, quando afirma que a consagração « preanuncia a ressurreição futura e a glória do Reino celeste » (45). Fá-lo, antes de mais, pela opção virginal, concebida sempre pela tradição como uma antecipação do mundo definitivo, que já desde agora actua e transforma o homem na sua globalidade.

As pessoas que dedicaram a sua vida a Cristo, não podem deixar de viver no desejo de O encontrar, para estarem finalmente e para sempre com Ele. Daí a esperança ardente, daí o desejo de « entrarem na Fornalha de amor que nelas arde, e que outra coisa não é que o Espírito Santo » (46): esperança e desejo amparados pelos dons que o Senhor livremente concede a quantos aspiram às coisas do alto (cf. Col 3,1).

Com o olhar fixo nas coisas do Senhor, a pessoa consagrada lembra que « não temos aqui cidade permanente » (He 13,14), porque « somos cidadãos do Céu » (Ph 3,20). A única coisa necessária é buscar « o Reino de Deus e a sua justiça » (Mt 6,33), implorando sem cessar a vinda do Senhor.

(44) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 42.
(45) Ibid., LG 44.
(46) B. Isabel da Trindade, Le ciel dans la foi. Traité spirituel, I, 14: OEuvres complètes (Paris 1991), 106.


Uma esperança activa: compromisso e vigilância

27 « Vem, Senhor Jesus! » (Ap 22,20). Esta esperança está bem longe de ser passiva: apesar de apontar para o Reino futuro, ela exprime-se em trabalho e missão, para que o Reino se torne presente já desde agora, através da instauração do espírito das bem-aventuranças, capaz de suscitar anseios eficazes de justiça, paz, solidariedade e perdão, mesmo na sociedade humana.

Isto está amplamente demonstrado na história da vida consagrada, que sempre produziu frutos abundantes mesmo em favor da sociedade. Pelos seus carismas, as pessoas consagradas tornam-se um sinal do Espírito em ordem a um futuro novo, iluminado pela fé e pela esperança cristã. A tensão escatológica transforma-se em missão, para que o Reino se afirme de modo crescente, aqui e agora. À súplica « Vem, Senhor Jesus! », une-se a outra invocação: « Venha a nós o teu Reino! » (cf. Mt 6,10).

Aquele que espera, vigilante, o cumprimento das promessas de Cristo, é capaz de infundir também esperança nos seus irmãos e irmãs, frequentemente desanimados e pessimistas relativamente ao futuro. A sua esperança está fundada na promessa de Deus, contida na Palavra revelada: a história dos homens caminha para o novo céu e a nova terra (cf. Ap 21,1), onde o Senhor « enxugará as lágrimas dos seus olhos; não haverá mais morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, porque as primeiras coisas passaram » (Ap 21,4).

A vida consagrada está ao serviço desta irradiação definitiva da glória divina, quando toda a criatura vir a salvação de Deus (cf. Lc 3,6 Is 40,5). O Oriente cristão sublinha esta dimensão, ao considerar os monges como anjos de Deus sobre a terra, que anunciam a renovação do mundo em Cristo. No Ocidente, o monaquismo é celebração feita de memória e vigília: memória das maravilhas realizadas por Deus, vigília do cumprimento definitivo da esperança. A mensagem do monaquismo e da vida contemplativa repete, sem cessar, que o primado de Deus é plenitude de sentido e de alegria para a vida humana, pois o homem está feito para Deus e vive inquieto até encontrar n'Ele a paz (47).

(47) Cf. S. Agostinho, Confessiones, I, 1: PL 32, 661.


A Virgem Maria, modelo de consagração e seguimento

28 Maria é aquela que, desde a sua imaculada conceição, reflecte mais perfeitamente a beleza divina. « Toda sois formosa »: com estas palavras, A invoca a Igreja. « A relação com Maria Santíssima, que todo o fiel tem em consequência da sua união com Cristo, resulta ainda mais acentuada na vida das pessoas consagradas. (...) Em todos [os Institutos de vida consagrada], existe a convicção de que a presença de Maria tem uma importância fundamental, quer para a vida espiritual de cada uma das almas consagradas, quer para a consistência, unidade e progresso da inteira comunidade » (48).

Maria é, de facto, exemplo sublime de perfeita consagração, pela sua pertença plena e dedicação total a Deus. Escolhida pelo Senhor, que n'Ela quis cumprir o mistério da Encarnação, lembra aos consagrados o primado da iniciativa de Deus. Ao mesmo tempo, dando o seu consentimento à Palavra divina que n'Ela Se fez carne, Maria aparece como modelo de acolhimento da graça por parte da criatura humana.

Unida a Cristo, juntamente com José, na vida escondida de Nazaré, presente junto do Filho em momentos cruciais da sua vida pública, a Virgem é mestra de seguimento incondicional e de assíduo serviço. Assim n'Ela, « templo do Espírito Santo » (49), brilha todo o esplendor da nova criatura. A vida consagrada contempla-A como modelo sublime de consagração ao Pai, de união com o Filho e de docilidade ao Espírito, na certeza de que aderir « ao género de vida virginal e pobre » (50) de Cristo significa assumir também o género de vida de Maria.

Mas na Virgem, a pessoa consagrada encontra ainda uma Mãe por um título absolutamente especial. De facto, se a nova maternidade conferida a Maria no Calvário é um dom feito a todos os cristãos, tem um valor específico para quem consagrou plenamente a própria vida a Cristo. « Eis aí a tua Mãe » (
Jn 19,27): estas palavras de Jesus, dirigidas ao discípulo « que Ele amava » (Jn 19,26), assumem uma profundidade particular na vida da pessoa consagrada. De facto, esta é chamada, como João, a tomar consigo Maria Santíssima (cf. Jn 19,27), amando-A e imitando-A com a radicalidade própria da sua vocação, e experimentando da parte d'Ela, em contrapartida, uma especial ternura materna. A Virgem comunica-lhe aquele amor que lhe permite oferecer todos os dias a vida por Cristo, cooperando com Ele na salvação do mundo. Por isso, a relação filial com Maria constitui o caminho privilegiado para a fidelidade à vocação recebida e uma ajuda muito eficaz para nela progredir e vivê-la em plenitude (51).

(48) João Paulo II, Discurso na Audiência Geral (29 de Março de 1995), 1: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 1 de Abril de 1995), 24.
(49) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 53.
(50) Ibid., LG 46.
(51) Cf propositio 55.


III. NA IGREJA E PARA A IGREJA


« É bom estarmos aqui »: a vida consagrada no mistério da Igreja

29 Na cena da Transfiguração, Pedro fala em nome dos outros apóstolos: « É bom [nós] estarmos aqui » (Mt 17,4). A experiência da glória de Cristo, apesar de lhe inebriar a mente e o coração, não o isola, antes pelo contrário liga-o mais profundamente ao « nós » que são os discípulos.

Esta dimensão do « nós » leva-nos a considerar o lugar que a vida consagrada ocupa no mistério da Igreja.Nestes anos, a reflexão teológica acerca da natureza da vida consagrada aprofundou as novas perspectivas derivadas da doutrina do Concílio Vaticano II. À sua luz, constatou-se que a profissão dos conselhos evangélicos pertence indiscutivelmente à vida e à santidade da Igreja(52). Isto significa que a vida consagrada, presente na Igreja desde os primeiros tempos, nunca poderá faltar nela, enquanto seu elemento imprescindível e qualificativo, expressão da sua própria natureza.

Isto resulta evidente do facto de a profissão dos conselhos evangélicos estar intimamente ligada com o mistério de Cristo, já que tem a função de tornar de algum modo presente a forma de vida que Ele escolheu, apontando-a como valor absoluto e escatológico. O próprio Jesus, ao chamar algumas pessoas a deixarem tudo para O seguirem, inaugurou este género de vida que, sob a acção do Espírito, se desenvolverá gradualmente, ao longo dos séculos, nas várias formas de vida consagrada. Portanto, a concepção de uma Igreja composta unicamente por ministros sagrados e por leigos não corresponde às intenções do seu divino Fundador, tais como no-las apresentam os Evangelhos e outros escritos neo-testamentários.

(52) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 44.


A nova e especial consagração

30 Na tradição da Igreja, a profissão religiosa é considerada como um singular e fecundo aprofundamento da consagração baptismal, visto que nela a união íntima com Cristo, já inaugurada no Baptismo, evolui para o dom de uma conformação expressa e realizada mais perfeitamente, através da profissão dos conselhos evangélicos (53).

Todavia esta nova consagração reveste uma sua peculiaridade relativamente à primeira, da qual não é uma consequência necessária (54). Na verdade, todo aquele que foi regenerado em Cristo é chamado a viver, pela força que lhe vem do dom do Espírito, a castidade própria do seu estado de vida, a obediência a Deus e à Igreja, e um razoável desapego dos bens materiais, porque todos são chamados à santidade, que consiste na perfeição da caridade (55). Mas o Baptismo, por si mesmo, não comporta o chamamento ao celibato ou à virgindade, a renúncia à posse dos bens, e a obediência a um superior, na forma exigida pelos conselhos evangélicos. Portanto, a profissão destes últimos supõe um dom particular de Deus não concedido a todos, como Jesus mesmo sublinha no caso do celibato voluntário (cf.
Mt 19,10-12).

A este chamamento especial corresponde, de resto, um dom específico do Espírito Santo, para que a pessoa consagrada possa responder à sua vocação e missão. Por isso, como testemunham as liturgias do Oriente e do Ocidente no rito da profissão monástica ou religiosa e na consagração das virgens, a Igreja invoca sobre as pessoas escolhidas o dom do Espírito Santo, e associa a sua oblação ao sacrifício de Cristo (56).

A profissão dos conselhos evangélicos é um desenvolvimento também da graça do sacramento da Confirmação, mas ultrapassa as exigências normais da consagração crismal em virtude de um dom particular do Espírito, que predispõe para novas possibilidades e novos frutos de santidade e de apostolado, como demonstra a história da vida consagrada.

Quanto aos sacerdotes que fazem a profissão dos conselhos evangélicos, a experiência demonstra que o sacramento da Ordem encontra uma fecundidade peculiar em tal consagração, visto que esta requer e favorece a exigência de uma pertença mais íntima ao Senhor. O sacerdote que faz a profissão dos conselhos evangélicos fica particularmente habilitado para reviver em si próprio a plenitude do mistério de Cristo, graças inclusivamente à espiritualidade peculiar do próprio Instituto e à dimensão apostólica do respectivo carisma. No presbítero, com efeito, a vocação ao sacerdócio e à vida consagrada convergem numa unidade profunda e dinâmica.

Valor incalculável tem também a contribuição dada à vida da Igreja pelos religiosos sacerdotes, dedicados integralmente à contemplação. Especialmente na Celebração Eucarística, eles cumprem um acto da Igreja e para a Igreja, ao qual unem a oferta de si próprios, em comunhão com Cristo que Se oferece ao Pai pela salvação de todo o mundo (57).

(53) Cf. João Paulo II, Exort. ap. Redemptions donum (25 de Março de 1984), 7: AAS 76 (1984), 522-524.
(54) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 44; João Paulo II, Discurso na Audiência Geral (26 de Outubro de 1994), 5: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 29 de Outubro de 1994), 24.
(55) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 42.
(56) Cf. Ritual Romano, Rito da Profissão Religiosa: bênção solene ou consagração dos professos (n. 67) e das professas (n. 72); Pontifical Romano, Rito da Consagração das Virgens, n. 38: oração solene de consagração; Eucologion Sive Rituale Graecorum, , Officium parvi habitum id est Mandiae, 384-385; Pontificale Iuxta Ritum Ecclesiae Syrorum Occidentalium id est antio criae,Ordo rituum monasticorum (Tipografia Poliglota Vaticana 1942), 307-309.
(57) Cf. S. Pedro Damião, Liber qui appellatur « Dominus vobiscum » ad Leonem eremitam:PL 145, 231-252.



Vita consecrata PT 16