Vita consecrata PT 43

A função da autoridade

43 Na vida consagrada, a função dos Superiores e Superioras, mesmo locais, teve sempre uma grande importância quer para a vida espiritual quer para a missão. Nestes anos de experiências e mudanças, sentiu-se por vezes a necessidade de uma revisão de tal múnus. Contudo importa reconhecer que quem exerce a autoridade não pode abdicar da sua missão de primeiro responsável da comunidade, qual guia dos irmãos e irmãs no caminho espiritual e apostólico.

Não é fácil, em ambientes fortemente marcados pelo individualismo, fazer compreender e aceitar a função que a autoridade desempenha em proveito de todos. Mas deve-se confirmar a importância desta tarefa, que se revela necessária exactamente para consolidar a comunhão fraterna e não tornar vã a obediência professada. Se a autoridade deve ser, em primeiro lugar, fraterna e espiritual e, por conseguinte, quem dela está revestido há-de saber associar, pelo diálogo, os irmãos e as irmãs ao processo decisório, convém todavia recordar que cabe à autoridade a última palavra, como lhe compete depois fazer respeitar as decisões tomadas (92).

(92) Cf. Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Intr. sobre a vida fraterna em comunidade Congregavit nos in unum Christi amor (2 de Fevereiro de 1994), 47-53: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 12 de Março de 1994), 15-17; Código de Direito Canónico, can.
CIC 618; propositio 19.


O papel das pessoas idosas

44 O cuidado dos idosos e dos doentes tem uma parte relevante na vida fraterna, especialmente num tempo como o nosso em que aumenta, nalgumas regiões do mundo, o número de pessoas consagradas em idade avançada. A atenção carinhosa que elas merecem não resulta só de um preciso dever de caridade e gratidão, mas é também expressão da consciência de que o seu testemunho é de grande proveito para a Igreja e para os Institutos, e de que a sua missão permanece válida e meritória, mesmo quando, por motivos de idade ou de enfermidade, tiveram de abandonar a sua actividade específica. Elas têm certamente muito que dar em sabedoria e experiência à comunidade, se esta souber estar a seu lado com atenção e capacidade de escuta.

Na realidade, mais do que na acção, a missão apostólica consiste no testemunho da própria dedicação plena à vontade salvífica do Senhor, dedicação essa que se alimenta nas fontes da oração e da penitência. Muitos são, por isso, os modos pelos quais os idosos são chamados a viver a sua vocação: a oração assídua, a paciente aceitação da própria condição, a disponibilidade para o serviço de director espiritual, de confessor, de guia na oração (93).

(93) Cf. Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Intr. sobre a vida fraterna em comunidade Congregavit nos in unum Christi amor (2 de Fevereiro de 1994), 68: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 12 de Março de 1994), 17-18; propositio21.



À imagem da comunidade apostólica

45 A vida fraterna desempenha um papel fundamental no caminho espiritual das pessoas consagradas, tanto para a sua constante renovação como para o pleno cumprimento da sua missão no mundo: conclui-se isso das motivações teológicas que estão na sua base, e recebe larga confirmação da própria experiência. Exorto, por isso, os consagrados e consagradas a cultivá-la com ardor, seguindo o exemplo dos primeiros cristãos de Jerusalém, que eram assíduos na escuta do ensinamento dos Apóstolos, na oração comum, na participação da Eucaristia, na partilha dos bens materiais e espirituais (cf. Ac 2,42-47). Exorto sobretudo os religiosos, as religiosas e os membros das Sociedades de Vida Apostólica a viverem sem reservas o amor recíproco, exprimindo-o nas modalidades mais apropriadas à natureza de cada Instituto, para que cada comunidade se manifeste como sinal luminoso da nova Jerusalém, « morada de Deus com os homens » (Ap 21,3).

Com efeito, toda a Igreja espera muito do testemunho de comunidades ricas « de alegria e de Espírito Santo » (Ac 13,52). Ela deseja oferecer ao mundo o exemplo de comunidades onde a recíproca atenção ajuda a superar a solidão, e a comunicação impele a todos a sentirem-se corresponsáveis, o perdão cicatriza as feridas, reforçando em cada um o propósito da comunhão. Numa comunidade deste tipo, a natureza do carisma dirige as energias, sustenta a fidelidade e orienta o trabalho apostólico de todos para a única missão. Para apresentar à humanidade de hoje o seu verdadeiro rosto, a Igreja tem urgente necessidade de tais comunidades fraternas, cuja própria existência já constitui uma contribuição para a nova evangelização, porque mostram de modo concreto os frutos do « mandamento novo ».


Sentire cum Ecclesia

46 À vida consagrada está confiada outra grande tarefa, à luz da doutrina sobre a Igreja-comunhão proposta com grande vigor pelo Concílio Vaticano II: pede-se às pessoas consagradas para serem verdadeiramente peritas em comunhão e praticarem a sua espiritualidade (94), como « testemunhas e artífices daquele “projecto de comunhão” que está no vértice da história do homem segundo Deus »(95).O sentido da comunhão eclesial, desabrochando em espiritualidade de comunhão , promove um modo de pensar, falar e agir que faz crescer em profundidade e extensão a Igreja. Na realidade, a vida de comunhão « torna-se um sinal para o mundo e uma força de atracção que leva à fé em Cristo. (...) Dessa maneira, a comunhão abre-se para a missão e converte-se ela própria em missão », melhor, « a comunhão gera comunhão e reveste essencialmente a forma de comunhão missionária » (96).

Nos fundadores e fundadoras, aparece sempre vivo o sentido da Igreja, que se manifesta na sua participação plena da vida eclesial em todas as suas dimensões e na pronta obediência aos Pastores, especialmente ao Romano Pontífice. Neste horizonte de amor pela Santa Igreja, « coluna e sustentáculo da verdade » (
1Tm 3,15), compreende-se bem a veneração de Francisco de Assis pelo « senhor Papa » (97) a ousadia filial de Catarina de Sena para com aquele que ela chama « doce Cristo na terra » (98), a obediência apostólica e o sentire cum Ecclesia (99) de Inácio de Loiola, a jubilosa profissão de fé de Teresa de Jesus: « Sou filha da Igreja » (100). Compreende-se também o anseio de Teresa de Lisieux: « No coração da Igreja, minha mãe, eu serei o amor »(101). Tais testemunhos são representativos da plena comunhão eclesial, que santos e santas, fundadores e fundadoras compartilharam entre si, em épocas e circunstâncias diversas e frequentemente muito difíceis. São exemplos a que as pessoas consagradas devem constantemente fazer referência, para resistirem aos impulsos centrífugos e desagregadores, hoje particularmente activos.

Um aspecto qualificativo desta comunhão eclesial é a adesão da mente e do coração ao magistério dos Bispos, que há-de ser vivida com lealdade e testemunhada claramente diante do Povo de Deus por todas as pessoas consagradas, e de modo especial pelas que estão empenhadas na investigação teológica e no ensino, nas publicações, na catequese, no uso dos meios de comunicação social (102). Visto que as pessoas consagradas ocupam um lugar especial na Igreja, o seu comportamento a tal respeito tem grande importância para todo o Povo de Deus. Do seu testemunho de amor filial recebe força e incidência a sua acção apostólica, que, no quadro da missão profética de todos os baptizados, se caracteriza geralmente por tarefas de especial colaboração com a ordem hierárquica(103). Desta forma, com a riqueza dos seus carismas, dão uma contribuição específica, para a Igreja realizar cada vez mais profundamente a sua natureza de sacramento da « íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano » (104).

(94) Cf. propositio 28.
(95) Congregação para os Religiosos e os Institutos seculares, Doc. Vida e missão dos Religiosos na Igreja: I. Religiosos e promoção humana (12 de Agosto de 1980), II, 24: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 18 de Janeiro de 1981), 7.
(96) João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), CL 31-32:AAS 81 (1989), 451-452.
(97) Regula bullata, I, 1.
(98) Cartas 109, 171, 196.
(99) Cf. as Regras « para aquele recto sentir que devemos ter na Igreja militante », colocadas no final do livro Exercícios Espirituais, de modo particular a regra 13.
(100) Ditos, n. 217.
(101) Manuscrits autobiographiques, MSB 3vs.
(102) Cf. propositio 30, A.
(103) Cf. João Paulo II, Exort. ap. Redemptionis donum (25 de Março de 1984), 15: AAS 76 (1984), 541-542.
(104) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 1.


A fraternidade na Igreja universal

47 As pessoas consagradas estão chamadas a ser fermento de comunhão missionária na Igreja universal, pelo facto mesmo de os múltiplos carismas dos respectivos Institutos serem concedidos pelo Espírito Santo para o bem de todo o Corpo Místico, a cuja edificação devem servir (cf. 1Co 12,4-11). Significativamente « o caminho melhor » (1Co 12,31), a « maior de todas » as virtudes (1Co 13,13), segundo a palavra do Apóstolo, é a caridade, que harmoniza as várias diferenças e a todos comunica a força da mútua ajuda no ímpeto apostólico. Isto mesmo tem em vista o peculiar vínculo de comunhão, que as várias formas de vida consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica têm com o Sucessor de Pedro em seu ministério de unidade e de universalidade missionária. A história da espiritualidade ilustra amplamente este vínculo, mostrando a sua função providencial de garantia tanto da identidade própria da vida consagrada como da expansão missionária do Evangelho. A vigorosa difusão do anúncio evangélico, a salda radicação da Igreja em muitas regiões do mundo, e a primavera cristã que hoje se regista nas jovens Igrejas seriam impensáveis — como observaram os Padres sinodais — sem o contributo de tantos Institutos de vida consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. Ao longo dos séculos, mantiveram firmemente a comunhão com os Sucessores de Pedro, que neles encontraram generosa prontidão para se dedicarem à missão com uma disponibilidade tal que, em caso de necessidade, soube guindar-se até ao heroísmo.

Sobressai assim o carácter de universalidade e comunhão , que é próprio dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica. Pela conotação supradiocesana radicada na sua especial relação com o ministério petrino, eles estão também ao serviço da colaboração entre as diversas Igrejas particulares (105), entre as quais podem promover eficazmente a « permuta de dons », contribuindo para uma inculturação do Evangelho que purifique, valorize e assuma as riquezas das culturas de todos os povos (106). Também o actual florescimento, nas jovens Igrejas, de vocações para a vida consagrada manifesta a capacidade que esta possui de exprimir na unidade católica as solicitações dos vários povos e culturas.

(105) Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 16: AAS85 (1993), 847-848.
(106) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 13.


A vida consagrada e a Igreja particular

48 Às pessoas consagradas cabe uma função significativa, também no seio das Igrejas particulares. Este é um aspecto que — partindo da doutrina conciliar sobre a Igreja, enquanto comunhão e mistério, e sobre as Igrejas particulares, como porção do Povo de Deus na qual « está verdadeiramente presente e opera a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica » (107) — foi aprofundado e regulado em vários documentos posteriores. À luz destes textos, aparece em toda a sua evidência a importância fundamental que reveste a colaboração das pessoas consagradas com os Bispos, para o desenvolvimento harmonioso da pastoral diocesana. Muito podem contribuir os carismas da vida consagrada para a edificação da caridade na Igreja particular.

De facto, as várias formas em que se vivem os conselhos evangélicos são expressão e fruto de dons espirituais recebidos por fundadores e fundadoras e, como tais, constituem uma « experiência do Espírito, transmitida aos próprios discípulos a fim de ser por eles vivida, conservada, aprofundada e constantemente desenvolvida em sintonia com o Corpo de Cristo em perene crescimento » (108). A índole própria de cada Instituto comporta um peculiar estilo de santificação e apostolado, que tende a consolidar-se numa determinada tradição, caracterizada por elementos objectivos (109). Por isso, a Igreja tem cuidado de que os Institutos cresçam e se desenvolvam segundo o espírito dos fundadores e fundadoras, e as suas sãs tradições (110).

m consequência, é reconhecida aos vários Institutos uma justa autonomia, em virtude da qual podem valer-se de uma disciplina própria e guardar íntegro o seu património espiritual e apostólico. É tarefa dos Ordinários do lugar conservar e tutelar essa autonomia (111). Por isso, é pedido aos Bispos que acolham e estimem os carismas da vida consagrada, dando-lhes espaço nos planos da pastoral diocesana. Uma particular solicitude, devem ter pelos Institutos de direito diocesano, que estão confiados ao cuidado especial do Bispo do lugar. Uma diocese que ficasse sem vida consagrada, para além de perder tantos dons espirituais, lugares privilegiados da busca de Deus, actividades apostólicas e metodologias pastorais específicas, arriscar-se-ia a ficar enormemente enfraquecida naquele espírito missionário que é próprio da maioria dos Institutos (112). Forçoso é, pois, corresponder ao dom da vida consagrada, que o Espírito suscita na Igreja particular, acolhendo-o generosamente com acções de graças.

(107) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o múnus pastoral dos Bispos Christus Dominus,
CD 11.
(108) Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares e Congregação para os Bispos, Directrizes para as relações entre os Bispos e os Religiosos na Igreja Mutuae relationes (14 de Maio de 1978), 11: AAS 70 (1978), 480.
(109) Cf. ibid., 11: o.c., 480.
(110) Cf. Código de Direito Canónico, can. CIC 576.
(111) Cf. ibid., can. CIC 586; Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares e Congregação para os Bispos, Directrizes para as relações entre os Bispos e os Religiosos na Igreja Mutuae relationes (14 de Maio de 1978), 13: AAS 70 (1978), 481-482.
(112) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 18.


Uma comunhão eclesial fecunda e ordenada

49 O Bispo é pai e pastor da Igreja particular inteira. Compete-lhe reconhecer e respeitar, promover e coordenar os vários carismas. Na sua caridade pastoral, portanto, acolherá o carisma da vida consagrada como graça que não diz respeito apenas a um Instituto, mas reverte em favor de toda a Igreja. Procurará, pois, apoiar e ajudar as pessoas consagradas, para que, em comunhão com a Igreja, se abram a perspectivas espirituais e pastorais que correspondam às exigências do nosso tempo, na fidelidade à inspiração originária. Por sua vez, as pessoas de vida consagrada não deixarão de oferecer generosamente a sua colaboração à Igreja particular, segundo as próprias forças e no respeito do próprio carisma, actuando em plena comunhão com o Bispo no âmbito da evangelização, da catequese, da vida das paróquias.

Importa recordar que, ao coordenarem o serviço da Igreja universal com o da Igreja particular, os Institutos não podem invocar a justa autonomia e a própria isenção, de que muitos deles gozam (113), para justificar opções que estão, de facto, em contraste com as exigências de comunhão orgânica requeridas por uma vida eclesial salutar. Ao contrário, é preciso que as iniciativas pastorais das pessoas consagradas sejam decididas e actuadas com base num diálogo cordial e aberto entre Bispos e Superiores dos vários Institutos. A atenção especial da parte dos Bispos pela vocação e missão dos Institutos e, da parte destes, o respeito pelo ministério dos Bispos, através do solícito acolhimento das suas indicações pastorais concretas para a vida diocesana, representam duas formas intimamente conexas daquela única caridade eclesial que a todos obriga ao serviço da comunhão orgânica — carismática e ao mesmo tempo hierarquicamente estruturada — de todo o Povo de Deus.

(113) Cf. Código de Direito Canónico, cân.
CIC 586, § 2; CIC 591; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. CIO 412, § 2.


Um diálogo constante, animado pela caridade

50 Para promover o conhecimento recíproco, pressuposto necessário para uma efectiva cooperação sobretudo no âmbito pastoral, é muito vantajoso um diálogo constante de Superiores e Superioras dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica com os Bispos. Mercê destes contactos habituais, Superiores e Superioras poderão informar os Bispos acerca das iniciativas apostólicas que pensam encetar nas suas dioceses, para se chegar aos necessários ajustamentos práticos. Da mesma forma, é conveniente que pessoas delegadas pelas Conferências dos Superiores e Superioras Gerais sejam convidadas a assistir às assembleias das Conferências dos Bispos e, vice-versa, delegados das Conferências Episcopais sejam convidados às Conferências dos Superiores e Superioras Gerais, segundo modalidades a determinar. Nesta perspectiva, será de grande utilidade que se constituam, onde ainda não existirem, e se tornem operativas, a nível nacional, comissões mistas de Bispos e Superiores e Superioras Maiores (114), que examinem em conjunto os problemas de interesse comum. Para melhor conhecimento recíproco, contribuirá também a inserção da teologia e espiritualidade da vida consagrada no plano de estudos teológicos dos presbíteros diocesanos, assim como prever, na formação das pessoas consagradas, uma exposição adequada da teologia da Igreja particular e da espiritualidade do clero diocesano(115).

É consolador, enfim, recordar que, no Sínodo, não só houve numerosas intervenções acerca da doutrina da comunhão, mas foi grande também a satisfação pela experiência de diálogo, vivida num clima de confiança e abertura recíproca entre os Bispos e os religiosos e religiosas presentes. Isto suscitou o desejo de que « tal experiência espiritual de comunhão e colaboração se estenda a toda a Igreja », depois do Sínodo (116). É um voto, que faço meu, pelo crescimento em todos da mentalidade e da espiritualidade de comunhão.

(114) Cf. propositio 29, 4.
(115) Cf. propositio 49, B.
(116) Propositio 54.



A fraternidade num mundo dividido e injusto

51 A Igreja confia às comunidades de vida consagrada a missão particular de fazerem crescer a espiritualidade da comunhão, primeiro no seu seio e depois na própria comunidade eclesial e para além dos seus confins, iniciando ou retomando incessantemente o diálogo da caridade, sobretudo nos lugares onde o mundo de hoje aparece dilacerado pelo ódio étnico ou por loucuras homicidas. Situadas nas várias sociedades do nosso planeta — sociedades tantas vezes abaladas por paixões e interesses contraditórios, desejosas de unidade mas incertas sobre os caminhos a seguir —, as comunidades de vida consagrada, nas quais se encontram como irmãos e irmãs pessoas de diversas idades, línguas e culturas, aparecem como sinal de um diálogo sempre possível e de uma comunhão capaz de harmonizar as diferenças.

As comunidades de vida consagrada são enviadas a anunciar, pelo testemunho da sua vida, o valor da fraternidade cristã e a força transformadora da Boa Nova (117), que faz reconhecer a todos como filhos de Deus e leva ao amor oblativo para com todos, especialmente para com os últimos. Estas comunidades são lugares de esperança e de descoberta das bem-aventuranças, lugares onde o amor, haurido na fonte da comunhão que é a oração, é chamado a tornar-se lógica de vida e fonte de alegria.

Os Institutos internacionais, nesta época caracterizada pela repercussão universal dos problemas e simultaneamente pelo regresso dos ídolos do nacionalismo, sobretudo eles têm a missão de manter vivo e testemunhar o sentido da comunhão entre os povos, as raças, as culturas. Num clima de fraternidade, a abertura à dimensão mundial dos problemas não sufocará as riquezas particulares, nem a afirmação de uma particularidade gerará contrastes com as outras ou com o todo. Os Institutos internacionais podem realizar isso eficazmente, já que eles próprios devem enfrentar criativamente o desafio da inculturação e conservar ao mesmo tempo a sua identidade.

(117) Cf. Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, sobre a vida fraterna em comunidade Congregavit nos in unam Christi amor (2 de Fevereiro de 1994), 56: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 12 de Março de 1994), 14-15.



Comunhão entre os diversos Institutos

52 O fraterno relacionamento espiritual e a mútua colaboração entre os diversos Institutos de vida consagrada e Sociedades de Vida Apostólica são sustentados e fortalecidos pelo sentido eclesial de comunhão. Pessoas que estão unidas entre si pelo compromisso comum de seguir Cristo e animadas pelo mesmo Espírito, não podem deixar de manifestar visivelmente, como ramos da única Videira, a plenitude do Evangelho do amor. Lembradas da amizade espiritual que muitas vezes ligou na terra os diversos fundadores e fundadoras, tais pessoas, permanecendo fiéis à índole do próprio Instituto, são chamadas a exprimir uma fraternidade exemplar, que sirva de estímulo aos outros corpos eclesiais no empenho quotidiano de dar testemunho do Evangelho.

Permanecem sempre actuais as palavras de S. Bernardo, a propósito das várias Ordens religiosas: « Eu admiro-as todas. Pela observância sou membro de uma delas, mas pela caridade pertenço a todas. Todos temos necessidade uns dos outros: o bem espiritual que não tenho nem possuo, recebo-o dos outros (...). Neste exílio, a Igreja está ainda a caminho e é, se assim posso dizer, plural: é uma pluralidade una e uma unidade plural. E todas as nossas diversidades, que manifestam a riqueza dos dons de Deus, subsistirão na única casa do Pai, que tem muitas moradas. Agora, existe divisão de graças; naquele dia, haverá distinção de glórias. A unidade, tanto aqui como além, consiste numa mesma caridade » (118).

(118) Apologia dirigida a Guilherme de Saint-Thierry, IV, 8: PL 182, 903-904.



Organismos de coordenação

53 Um notável contributo para a comunhão pode ser dado pelas Conferências dos Superiores e das Superioras Maiores e pelos Conselhos dos Institutos Seculares. Encorajados e regulamentados pelo Concílio Vaticano II (119) por documentos posteriores (120), estes organismos têm como principal finalidade a promoção da vida consagrada integrada no conjunto da missão eclesial.

Através deles, os Institutos exprimem a comunhão entre si e procuram os meios para a reforçar, no respeito e valorização das especificidades dos vários carismas em que se reflecte o mistério da Igreja e a multiforme sabedoria de Deus (121). Encorajo os Institutos de vida consagrada a colaborarem uns com os outros, especialmente naqueles países onde, por particulares dificuldades, pode ser forte a tentação de se fecharem em si mesmos, com prejuízo para a própria vida consagrada e para a Igreja. Importa, ao contrário, que se ajudem mutuamente a procurar compreender o desígnio de Deus no actual transe da história, para melhor lhe responder com iniciativas apostólicas adequadas (122). Neste horizonte de comunhão aberto aos desafios do nosso tempo, os Superiores e as Superioras, « actuando em sintonia com o Episcopado », procurem « aproveitar do trabalho dos melhores colaboradores de cada Instituto e, correlativamente, prestar serviços que não só ajudem a superar eventuais limitações, mas criem um estilo válido de formação para a vida consagrada » (123).

Exorto as Conferências dos Superiores e das Superioras Maiores e as Conferências dos Institutos Seculares a cultivarem frequentes e regulares contactos também com a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, como manifestação da sua comunhão com a Santa Sé. Um relacionamento activo e confiante deverá ser mantido ainda com as Conferências Episcopais dos vários países. Segundo o espírito do documento Mutuae relationes, será conveniente que tal relacionamento assuma uma forma estável, de modo que se torne possível a coordenação constante e atempada das iniciativas que progressivamente vão surgindo. Se tudo isto for realizado com perseverança e espírito de fiel adesão às directrizes do Magistério, os organismos de ligação e comunhão revelar-se-ão particularmente úteis para encontrar soluções que evitem incompreensões e conflitos, quer no plano dos princípios quer no campo prático (124); deste modo, servirão de apoio não só ao crescimento da comunhão entre os Institutos de vida consagrada e os Bispos, mas também à realização da própria missão das Igrejas particulares.

(119) Cf. Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis,
PC 23.
(120) Cf. Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares e Congregação para os Bispos, Directrizes para as relações entre os Bispos e os Religiosos na Igreja Mutuae relationes (14 de Maio de 1978), 21.61: AAS 70 (1978), 486.503-504; Código de Direito Canónico, cân. CIC 708-709.
(121) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, PC 1; Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 46.
(122) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 4.
(123) João Paulo II, Mensagem à XIV Assembleia da Conferência dos Religiosos do Brasil (11 de Julho de 1986), 4: Insegnamenti IX/2 (1986), 237; cf. propositio 31.
(124) Cf. Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares e Congregação para os Bispos, Directrizes para as relações entre os Bispos e os Religiosos na Igreja Mutuae relationes (14 de Maio de 1978), 63.65: AAS 70 (1978), 504.505.


Comunhão e colaboração com os leigos

54 Um dos frutos da doutrina da Igreja como comunhão, nestes anos, foi a tomada de consciência de que os seus vários membros podem e devem unir as forças, numa atitude de colaboração e permuta de dons, para participar mais eficazmente na missão eclesial. Isto concorre para dar uma imagem mais articulada e completa da própria Igreja, para além de tornar mais eficiente a resposta aos grandes desafios do nosso tempo, graças ao concurso harmonioso dos diversos dons.

Os contactos com os leigos, no caso de Institutos monásticos e contemplativos, apresentam-se prevalentemente como uma relação espiritual, enquanto que, para os Institutos empenhados na vertente do apostolado, se traduzem em formas de colaboração pastoral. Os membros dos Institutos seculares, leigos ou clérigos, relacionam-se com os outros fiéis nos moldes ordinários da vida quotidiana. Hoje alguns Institutos, frequentemente por imposição das novas situações, chegaram à convicção de que o seu carisma pode ser partilhado com os leigos. E assim estes são convidados a participar mais intensamente na espiritualidade e missão do próprio Instituto. Pode-se dizer que, no rasto de experiências históricas como a das diversas Ordens seculares ou Ordens Terceiras, se iniciou um novo capítulo, rico de esperanças, na história das relações entre as pessoas consagradas e o laicado.



Para um renovado dinamismo espiritual e apostólico

55 Estes novos percursos de comunhão e colaboração merecem ser encorajados, por diversos motivos. Daí poderá resultar, antes de mais, a irradiação de frutuosa espiritualidade para além das fronteiras do Instituto, que assim poderá contar com novas energias até para assegurar à Igreja a continuação de determinadas formas de serviço típicas dele. Outra consequência positiva poderá ser a de propiciar uma sinergia mais intensa entre pessoas consagradas e leigos em ordem à missão: estes, movidos pelos exemplos de santidade das pessoas consagradas, serão introduzidos na experiência directa do espírito dos conselhos evangélicos e, dessa forma, encorajados a viver e testemunhar o espírito das bem-aventuranças, tendo em vista a transformação do mundo segundo o coração de Deus (125).

Não raras vezes, a participação dos leigos traz inesperados e fecundos aprofundamentos de alguns aspectos do carisma, reavivando uma interpretação mais espiritual do mesmo e levando a tirar daí indicações para novos dinamismos apostólicos. Em qualquer actividade ou ministério que estejam empenhadas, as pessoas consagradas lembrem-se de que hão-de ser primariamente guias especializados de vida espiritual, e, nesta perspectiva, cultivem « o talento mais precioso: o espírito »(126). Os leigos, por sua vez, ofereçam às famílias religiosas a ajuda preciosa da sua secularidade e do seu serviço específico.

(125) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium,
LG 31.
(126) S. António M. Zacarias, Escritos, Sermão II (Roma 1975), 129.


Leigos voluntários e associados

56 Uma expressão significativa de participação laical nas riquezas da vida consagrada é a adesão de fiéis leigos aos diversos Institutos, na nova forma dos chamados membros associados ou, segundo as exigências de alguns contextos culturais, de pessoas que partilham, por um certo período de tempo, a vida comunitária e a específica consagração contemplativa ou apostólica do Instituto, sempre com a condição, obviamente, de que a identidade da sua vida interna não sofra dano (127).

É justo rodear de grande estima o voluntariado que vai beber às riquezas da vida consagrada; importa, porém, cuidar da sua formação, para que os voluntários, além da competência, tenham sempre profundas motivações sobrenaturais nos seus propósitos, e vivo sentido comunitário e eclesial nos seus projectos (128). Há que ter em conta ainda que as iniciativas, onde estejam envolvidos leigos ao nível mesmo de decisão, para serem consideradas obra de determinado Instituto, devem propor-se os fins deste e serem concretizadas sob a sua responsabilidade. Por isso, se os leigos assumirem a direcção de tais iniciativas, da mesma terão de responder perante os Superiores e Superioras competentes. É conveniente que tudo isto seja contemplado e regulado por específicas directrizes dos diversos Institutos, aprovadas pela Autoridade Superior, nas quais estejam previstas as respectivas competências do próprio Instituto, das comunidades, dos membros associados ou dos voluntários.

As pessoas consagradas, enviadas pelos seus Superiores e Superioras e sempre na dependência dos mesmos, podem estar presentes, com formas específicas de colaboração, em iniciativas laicais, e de modo particular em organizações e instituições que se interessam dos marginalizados e têm por objectivo aliviar o sofrimento humano. Se tal colaboração é animada e mantida por uma clara e forte identidade cristã e respeita a índole própria da vida consagrada, pode fazer brilhar a força luminosa do Evangelho nas situações mais obscuras da existência humana.

Nestes anos, bastantes pessoas consagradas entraram em movimentos eclesiais, surgidos no nosso tempo. Os directos interessados geralmente tiram proveito de tais experiências, especialmente ao nível da renovação espiritual. Todavia não se pode negar que, nalguns casos, isso tenha gerado mal-estar e desorientação a nível pessoal e comunitário, de forma especial quando estas experiências entram em conflito com as exigências da vida em comum e da espiritualidade do Instituto (129). Será necessário, pois, cuidar de que a adesão aos movimentos eclesiais se realize no respeito do carisma e disciplina do próprio Instituto, com o consentimento dos Superiores e das Superioras e na plena disponibilidade de acolher as suas decisões.

(127) Cf. propositio 33, A e C.
(128) Cf. propositio 33, B.
(129) Cf. Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Intr. sobre a vida fraterna em comunidade Congregavit nos in unum Christi amor (2 de Fevereiro de 1994), 62: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 12 de Março de 19949, 16; Instr.Potissimum institutioni (2 de Fevereiro de 1990), 92-93: AAS 82 (1990), 123-124.




Vita consecrata PT 43