Vita consecrata PT 79

Anúncio de Cristo e inculturação

79 O anúncio de Cristo « tem a prioridade permanente, na missão » (197) da Igreja, e visa a conversão, isto é, a adesão plena e sincera a Cristo e ao seu Evangelho (198). No quadro da actividade missionária, entram também o processo de inculturação e o diálogo inter-religioso. O desafio da inculturação há-de ser acolhido pelas pessoas consagradas como apelo a uma fecunda cooperação com a graça na aproximação às diversas culturas. Isto supõe séria preparação pessoal, dotes maturos de discernimento, fiel adesão aos critérios indispensáveis de ortodoxia doutrinal, autenticidade e comunhão eclesial (199). Com o apoio do carisma dos fundadores e fundadoras, muitas pessoas consagradas souberam aproximar-se das diversas culturas, com a atitude de Jesus que « Se despojou a Si mesmo tomando a condição de servo » (Ph 2,7), e, com um paciente e audaz esforço de diálogo, estabeleceram contactos proveitosos com os povos mais diversos, a todos anunciando o caminho da salvação. Também hoje, muitas delas sabem procurar e encontrar, na história dos indivíduos e de povos inteiros, vestígios da presença de Deus, que guia toda a humanidade para o discernimento dos sinais da sua vontade redentora. E tal investigação revela-se vantajosa também para as próprias pessoas consagradas: na verdade, os valores descobertos nas diversas civilizações podem levá-las a aumentar o seu empenho de contemplação e oração, a praticar mais intensamente a partilha comunitária e a hospitalidade, a cultivar com maior diligência a atenção à pessoa e o respeito pela natureza.

Para uma autêntica inculturação, são necessárias atitudes semelhantes às do Senhor, quando, com amor e humildade, encarnou e veio habitar entre nós. Neste sentido, a vida consagrada torna as pessoas particularmente preparadas para enfrentar o processo complexo da inculturação, visto que as habitua ao desprendimento das coisas e até mesmo de muitos aspectos da própria cultura. Aplicando-se com estas atitudes ao estudo e à compreensão das culturas, os consagrados podem discernir melhor nelas os valores autênticos e o modo como acolhê-los e aperfeiçoá-los com o auxílio do próprio carisma (200). No entanto, convém não esquecer que, em muitas culturas antigas, a expressão religiosa está tão profundamente arreigada que a religião representa muitas vezes a dimensão transcendente da cultura. Neste caso, uma verdadeira inculturação comporta necessariamente um sério e franco diálogo inter-religioso, que « não está em contraposição com a missão ad gentes », nem « dispensa a evangelização » (201).

(197) João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), RMi 44: AAS 83 (1991), 290.
(198) Cf. ibid., RMi 46: o.c., 292.
(199) Cf. ibid., RMi 52-54: o. c.., 299-302.
(200) Cf. propositio 40, A.
(201) João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), RMi 55: AAS 83 (1991), 302; cf. Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso e Congregação para a Evangelização nos Povos, Instr. Diálogo e anúncio. Reflexões e orientações (19 de Maio de 1991), 45-46: AAS 84 (1992), 429-430.


A inculturação da vida consagrada

80 A vida consagrada, portadora por natureza de valores evangélicos, pode por sua vez oferecer, nos lugares onde é vivida com autenticidade, uma contribuição original para os desafios da inculturação. De facto, sendo um sinal do primado de Deus e do seu Reino, ela torna-se uma provocação que, no diálogo, pode despertar as consciências dos homens. Se a vida consagrada mantiver a força profética que lhe é própria, torna-se fermento evangélico dentro de uma cultura, capaz de a purificar e elevar. Isto mesmo o demonstra a história de numerosos santos e santas, que, em épocas diversas, souberam inserir-se no seu tempo, sem se deixar submergir, mas antes conseguindo apontar novos caminhos à sua geração. O estilo de vida evangélico é uma fonte importante para a proposta de um novo modelo cultural. Quantos fundadores e fundadoras, tendo individuado algumas exigências do seu tempo, procuraram, com todas as limitações por eles mesmos reconhecidas, dar-lhes remédio com uma resposta que se tornou proposta cultural inovadora!

As comunidades dos Institutos religiosos e das Sociedades de Vida Apostólica podem, de facto, oferecer concretas e significativas propostas culturais, quando testemunham o modo evangélico de viver o acolhimento recíproco na diversidade e de exercer a autoridade, quando testemunham a partilha dos bens tanto materiais como espirituais, a universalidade, a colaboração intercongregacional, a escuta dos homens e mulheres do nosso tempo. Na verdade, o modo de pensar e agir de quem segue Cristo mais de perto dá origem a uma verdadeira e própria cultura de referência, faz evidenciar aquilo que é desumano, testemunha que só Deus dá aos valores vigor e plenitude. Uma autêntica inculturação ajudará, por sua vez, as pessoas consagradas a viverem o radicalismo evangélico, segundo o carisma do próprio Instituto e a índole do povo com que entram em contacto. Deste fecundo relacionamento, brotam estilos de vida e métodos pastorais que poderão revelar-se uma autêntica riqueza para o Instituto inteiro, se forem coerentes com o carisma de fundação e com a acção unificadora do Espírito Santo. Uma garantia de recto caminho, neste processo feito de discernimento e audácia, de diálogo e provocação evangélica, é oferecida pela Santa Sé, à qual compete encorajar a evangelização das culturas, bem como autenticar os seus progressos e sancionar os seus êxitos em ordem à inculturação (202), tarefa esta « delicada e difícil, porque está em causa a fidelidade da Igreja ao Evangelho e à Tradição Apostólica, na evolução constante das culturas » (203).

(202) Cf. propositio 40, B.
(203) João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), :L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 16 de Setembro de 1995), 13.



A nova evangelização

81 Para enfrentar adequadamente os grandes desafios que a história actual coloca à nova evangelização, faz falta, antes de mais, uma vida consagrada que se deixe interpelar continuamente pela Palavra revelada e pelos sinais dos tempos (204). A recordação das grandes evangelizadoras e evangelizadores — antes tinham sido grandes evangelizados — revela que, para enfrentar o mundo de hoje, são necessárias pessoas dedicadas amorosamente ao Senhor e ao seu Evangelho. « As pessoas consagradas, pela sua vocação específica, são chamadas a fazer emergir a unidade entre auto-evangelização e testemunho, entre renovação interior e ardor apostólico, entre ser e agir, evidenciando que o dinamismo provém sempre do primeiro elemento do binómio » (205).

A nova evangelização, como a evangelização de sempre, será eficaz se souber proclamar sobre os tectos aquilo que antes viveu na intimidade com o Senhor. Para tal, requerem-se personalidades sólidas, animadas pelo fervor dos santos. A nova evangelização exige nos consagrados e consagradas plena consciência do sentido teológico dos desafios do nosso tempo. Estes desafios hão-de ser examinados, com discernimento atento e concorde, em ordem à renovação da missão. A coragem do anúncio do Senhor Jesus deve ser acompanhada pela confiança na acção da Providência que opera no mundo de tal modo que « tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para o bem da Igreja » (206).

Elementos importantes para uma útil inserção dos Institutos no processo da nova evangelização são a fidelidade ao carisma de fundação, a comunhão com quantos na Igreja estão empenhados no mesmo empreendimento, especialmente com os Pastores, e a cooperação com todos os homens de boa vontade. Isto exige um sério discernimento dos apelos que o Espírito dirige a cada Instituto, tanto nas regiões onde não se prevêem a curto prazo grandes progressos, como nas outras onde já se anuncia uma consoladora revitalização. Em cada lugar e situação, as pessoas consagradas sejam ardorosos anunciadores do Senhor Jesus, prontas a responder com a sabedoria evangélica às interpelações feitas hoje pela inquietude do coração humano e pelas suas urgentes necessidades.

(204) Cf. Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975),
EN 15: AAS 68 (1976), 13-15.
(205) Sínodo dos Bispos - IX Assembleia geral ordinária, Relatio ante disceptationem, 22:L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: Outubro de 1994), 10.
(206) João XXIII, Discurso na inauguração do Concílio Vaticano II (11 de Outubro de 1962): AAS54 (1962), 789.


A predilecção pelos pobres e a promoção da justiça

82 Ao início do seu ministério, na sinagoga de Nazaré, Jesus proclama que o Espírito O consagrou para levar aos pobres uma boa nova, para anunciar a libertação aos cativos, devolver a vista aos cegos, libertar os oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor (cf. Lc 4,16-19). A Igreja, assumindo como própria a missão do Senhor, anuncia o Evangelho a todo o homem e mulher, preocupando-se pela sua salvação integral. Mas, com uma atenção especial, uma verdadeira « opção preferencial », ela dirige-se a quantos se encontram em situação de maior debilidade e, consequentemente, de maior necessidade. « Pobres », nas várias acepções da pobreza, são os oprimidos, os marginalizados, os idosos, os doentes, as crianças, todos aqueles que são considerados e tratados como « últimos » na sociedade.

A opção pelos pobres inscreve-se na própria dinâmica do amor, vivido segundo Jesus Cristo. Assim estão obrigados a ela todos os seus discípulos; mas aqueles que querem seguir o Senhor mais de perto, imitando as suas atitudes, não podem deixar de se sentirem implicados de modo absolutamente particular em tal opção. A sinceridade da sua resposta ao amor de Cristo leva-os a viver como pobres e a abraçar a causa dos pobres. Isto comporta para cada Instituto, de acordo com o seu carisma específico, a adopção de um estilo de vida, tanto pessoal como comunitário,humilde e austero. Apoiadas pela vivência deste testemunho, as pessoas consagradas poderão, nos modos adequados à sua opção de vida e permanecendo livres relativamente às ideologias políticas, denunciar as injustiças que são perpetradas contra tantos filhos e filhas de Deus, e empenhar-se na promoção da justiça no ambiente social onde actuam (207). Deste modo, renovar-se-á também nas situações actuais, graças ao testemunho de inúmeras pessoas consagradas, aquela dedicação própria dos fundadores e fundadoras, que gastaram a sua vida a servir o Senhor, presente nos pobres. Na verdade, Cristo « encontra-se, na terra, na pessoa dos seus pobres (...). Enquanto Deus, é rico; enquanto homem, pobre. Com efeito, o próprio homem já rico subiu ao céu, está sentado à direita do Pai, mas aqui em baixo, pobre ainda agora, sofre a fome, a sede, a nudez » (208).

O Evangelho torna-se efectivo através da caridade, que é glória da Igreja e sinal da sua fidelidade ao Senhor. Demonstra-o toda a história da vida consagrada, que pode ser considerada como uma exegese viva da palavra de Jesus: « Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25,40). Muitos Institutos, especialmente na idade moderna, nasceram precisamente para ir ao encontro das diversas necessidades dos pobres. Mas, mesmo quando tal finalidade não foi determinante, a atenção e a solicitude pelos indigentes, expressas mediante a oração, o acolhimento e a hospitalidade, sempre acompanharam naturalmente as várias formas de vida consagrada, inclusive a vida contemplativa. E como poderia ser de outra maneira, uma vez que o Senhor encontrado na contemplação é o mesmo que vive e sofre nos pobres? A história da vida consagrada é rica, neste sentido, de exemplos maravilhosos, por vezes geniais. S. Paulino de Nola, depois de ter distribuído os seus bens aos pobres para se consagrar a Deus, levantou as celas do seu mosteiro sobre um albergue destinado precisamente aos indigentes. Ele rejubilava ao pensar nesta singular « permuta de dons »: os pobres por ele assistidos consolidavam, com a sua oração, os próprios « alicerces » da sua casa, toda ela dedicada ao louvor de Deus (209). S. Vicente de Paulo, por seu lado, gostava de dizer que, quando se tem de deixar a oração para ir prestar assistência a um pobre em necessidade, na realidade a oração não é interrompida, porque « se deixa Deus para ir estar com Deus » (210).

Servir os pobres é acto de evangelização e, ao mesmo tempo, selo de fidelidade ao Evangelho e estímulo de conversão permanente para a vida consagrada, porque — como diz S. Gregório Magno — « quando a caridade se debruça amorosamente a prover mesmo às ínfimas necessidades do próximo, então é que se alteia até aos cumes mais elevados. E quando benignamente se inclina sobre as necessidades extremas, então mais vigorosamente retoma o voo para as alturas » (211).

(207) Cf. propositio 18.
(208) S. Agostinho, Sermo 123, 3-4: PL 38, 685-686.
(209) Cf. Poema XXI, 386-394: PL 61, 587.
(210) Conférence « Sur les Règles » (30 de Maio de 1647): Corréspondance, Entretiens, Documents (ed. Coste IX - Paris, 1923), 319.
(211) Regula pastoralis 2, 5: PL 77, 33.


O cuidado dos doentes

83 Seguindo uma gloriosa tradição, um grande número de pessoas consagradas, sobretudo mulheres, exercem o seu apostolado nos meios hospitalares, segundo o carisma do respectivo Instituto. Ao longo dos séculos, muitas foram as pessoas consagradas que sacrificaram a sua vidaao serviço das vítimas de doenças contagiosas, mostrando que pertence à índole profética da vida consagrada a dedicação até ao heroísmo.

A Igreja olha com admiração e reconhecimento para tantas pessoas consagradas que, assistindo os doentes e atribulados, contribuem de modo significativo para a sua missão. Elas continuam o ministério de misericórdia de Cristo, que « passou (..) fazendo o bem e curando a todos » (
Ac 10,38). Seguindo os passos d'Ele, divino Samaritano, médico das almas e dos corpos (212), e a exemplo dos respectivos fundadores e fundadoras, as pessoas consagradas, que a tal são encaminhadas pelo carisma do próprio Instituto, perseverem no seu testemunho de amor pelos enfermos, dedicando-se a eles com profunda compreensão e solidariedade. Nas suas opções, privilegiem os doentes mais pobres e abandonados, bem como os idosos, os inválidos, os marginalizados, os doentes em fase terminal, as vítimas da droga e das novas doenças contagiosas. Encorajem aos enfermos a oferta do próprio sofrimento em comunhão com Cristo crucificado e glorioso para a salvação de todos (213); mais ainda, alimentem neles a consciência de serem, por meio da oração e do testemunho da palavra e da vida, sujeitos activos de pastoral através do peculiar carisma da cruz (214).

Além disso, a Igreja lembra aos consagrados e consagradas que faz parte da sua missão evangelizar os meios hospitalares onde trabalham, procurando iluminar, através da comunicação dos valores evangélicos, o modo de viver, sofrer e morrer dos homens do nosso tempo. É compromisso seu dedicarem-se à humanização da medicina e ao aprofundamento da bioética, ao serviço do Evangelho da vida. Por isso, promovam sobretudo o respeito pela pessoa e pela vida humana desde a concepção até ao seu termo natural, em plena conformidade com o ensinamento moral da Igreja(215), instituindo também centros de formação para tal fim (216) e colaborando fraternalmente com os organismos eclesiais da pastoral no campo da saúde.

(212) Cf. João Paulo II, Carta ap. Salvifici doloris (11 de Fevereiro de 1984), 28-30: AAS 76 (1984), 242-248.
(213) Cf. ibid., 18: o.c., 221-224; Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), CL 52-53: AAS 81 (1989), 496-500.
(214) Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), PDV 77: AAS 84 (1992), 794-795.
(215) Cf. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de Março de 1995), EV 78-101: AAS 87 (1995), 490-518.
(216) Cf. propositio 43.


II. UM TESTEMUNHO PROFÉTICO FACE AOS GRANDES DESAFIOS


O profetismo da vida consagrada

84 O carácter profético da vida consagrada foi posto em grande relevo pelos Padres sinodais. Apresenta-se como uma forma especial de participação na função profética de Cristo, comunicada pelo Espírito a todo o Povo de Deus. De facto, o profetismo é inerente à vida consagrada enquanto tal, devido ao radicalismo do seguimento de Cristo e da consequente dedicação à missão que o caracteriza. A função de sinal, que o Concílio Vaticano II atribui à vida consagrada (217), exprime-se no testemunho profético da primazia que Deus e os valores do Evangelho têm na vida cristã. Em virtude desta primazia, nada pode ser preferido ao amor pessoal por Cristo e pelos pobres, nos quais Ele vive (218).

A tradição patrística viu um modelo da vida religiosa monástica em Elias, profeta audaz e amigo de Deus (219). Vivia na sua presença e contemplava no silêncio a sua passagem, intercedia pelo povo e proclamava com coragem a sua vontade, defendia os direitos de Deus e levantava-se em defesa dos pobres contra os poderosos do mundo (cf.
1R 18-19 1R 21). Na história da Igreja, juntamente com outros cristãos, não faltaram homens e mulheres consagrados a Deus que exerceram, por dom particular do Espírito, um autêntico ministério profético, falando em nome de Deus a todos, também aos Pastores da Igreja. A verdadeira profecia nasce de Deus, da amizade com Ele, da escuta diligente da sua Palavra nas diversas circunstâncias da história. O profeta sente arder no coração a paixão pela santidade de Deus e, depois de ter acolhido a palavra no diálogo da oração, proclama-a com a vida, com os lábios e com os gestos, fazendo-se porta-voz de Deus contra o mal e o pecado. O testemunho profético requer a busca constante e apaixonada da vontade de Deus, uma comunhão eclesial generosa e imprescindível, o exercício do discernimento espiritual, o amor pela verdade. O referido testemunho exprime-se ainda mediante a denúncia do que é contrário à vontade divina e a busca de novos caminhos para actuar o Evangelho na história, na perspectiva do Reino de Deus(220).

(217) Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 44.
(218) Cf. João Paulo II, Homilia na Missa de encerramento da IX Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (29 de Outubro de 1994), 3: AAS 87 (1995), 580.
(219) Cf. S. Atanásio, Vida de Antão, 7: PG 26, 854.
(220) Cf. propositio 39, A.


A sua importância para o mundo contemporâneo

85 No nosso mundo, onde frequentemente parecem ter-se perdido os vestígios de Deus, torna-se urgente um vigoroso testemunho profético por parte das pessoas consagradas. Tal testemunho versará, primariamente, sobre a afirmação da primazia de Deus e dos bens futuros, como transparece do seguimento e imitação de Cristo casto, pobre e obediente, votado completamente à glória do Pai e ao amor dos irmãos e irmãs. A própria vida fraterna é já profecia em acto, numa sociedade que, às vezes sem se dar conta, anela profundamente por uma fraternidade sem fronteiras. Às pessoas consagradas é pedido que ofereçam o seu testemunho, com a ousadia do profeta que não tem medo de arriscar a própria vida.

Uma íntima força persuasiva da profecia vem-lhe da coerência entre o anúncio e a vida. As pessoas consagradas serão fiéis à sua missão na Igreja e no mundo, se forem capazes de se reverem continuamente a si próprias à luz da Palavra de Deus (221). Poderão assim enriquecer os outros fiéis com os dons carismáticos recebidos, deixando-se por sua vez interpelar pelas provocações proféticas vindas dos outros elementos eclesiais. Nesta permuta de dons, garantida por uma plena sintonia com o Magistério e a disciplina da Igreja, resplandecerá a acção do Espírito, que « conduz [a Igreja] à verdade total e unifica-a na comunhão e no ministério, enriquece-a e guia-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos »(222).

(221) Cf. propositiones 15, A; 39, C.
(222) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium,
LG 4; cf. Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 2.


Uma fidelidade até ao martírio

86 Neste século, como noutras épocas da história, homens e mulheres consagrados testemunharam Cristo Senhor, com o dom da própria vida. Contam-se aos milhares aqueles que, escorraçados para as catacumbas pela perseguição de regimes totalitários ou de grupos violentos, hostilizados na actividade missionária, na acção em favor dos pobres, na assistência aos doentes e marginalizados, viveram, e vivem, a sua consagração num sofrimento prolongado e heróico, chegando muitas vezes até ao derramamento do próprio sangue, plenamente configurados com o Senhor crucificado. A alguns deles, a Igreja já reconheceu oficialmente a sua santidade, honrando-os como mártires de Cristo. Eles iluminam-nos com o seu exemplo, intercedem pela nossa fidelidade, esperam-nos na glória.

Deseja-se vivamente que a memória de tantas testemunhas da fé perdure na consciência da Igreja, como incentivo à sua celebração e imitação. Os Institutos de vida consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica contribuam para esta obra, recolhendo os nomes e os testemunhos de todas as pessoas consagradas que possam ser escritas no Martirológio do século XX (223).

(223) Cf. propositio 53; João Paulo II, Carta ap. Tertio millennio adveniente (10 de Novembro de 1994),
TMA 37: AAS 87 (1995), 29-30.


Os grandes desafios da vida consagrada

87 A missão profética da vida consagrada vê-se provocada por três desafios principais, lançados à própria Igreja: são desafios de sempre, colocados sob formas novas e talvez mais radicais pela sociedade contemporânea, pelo menos nalgumas partes do mundo. Tocam directamente os conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência, estimulando a Igreja, e de modo particular as pessoas consagradas, a pôr em evidência e testemunhar o seu significado antropológico profundo.Na verdade, a opção por estes conselhos, longe de constituir um empobrecimento de valores autenticamente humanos, revela-se antes como uma transfiguração dos mesmos. Os conselhos evangélicos não hão-de ser considerados como uma negação dos valores inerentes à sexualidade, ao legítimo desejo de usufruir de bens materiais, e de decidir autonomamente sobre si próprio. Estas inclinações, enquanto fundadas na natureza, são boas em si mesmas; mas a criatura humana, enfraquecida como está pelo pecado original, corre o risco de as exercitar de modo transgressivo. A profissão de castidade, pobreza e obediência torna-se uma admoestação a que não se subestimem as feridas causadas pelo pecado original, e, embora afirmando o valor dos bens criados, relativiza-os pelo simples facto de apontar Deus como o bem absoluto. Desta forma, aqueles que seguem os conselhos evangélicos, ao mesmo tempo que procuram a santidade para si mesmos, propõem, por assim dizer, uma « terapia espiritual » para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam de algum modo visível o Deus vivo. A vida consagrada, especialmente em tempos difíceis, é uma bênção para a vida humana e para a própria vida eclesial.


O desafio da castidade consagrada

88 A primeira provocação provém de uma cultura hedonista que separa a sexualidade de qualquer norma moral objectiva, reduzindo-a frequentemente ao nível de objecto de diversão e consumo, e favorecendo, com a cumplicidade dos meios de comunicação social, uma espécie de idolatria do instinto. As consequências disto estão à vista de todos: prevaricações de todo o género, geradoras de inúmeros sofrimentos psíquicos e morais para os indivíduos e as famílias. A respostada vida consagrada está, antes de mais, na prática alegre da castidade perfeita, como testemunho da força do amor de Deus na fragilidade da condição humana. A pessoa consagrada atesta que aquilo que é visto como impossível pela maioria da gente, torna-se, com a graça do Senhor Jesus, possível e verdadeiramente libertador. Sim, em Cristo é possível amar a Deus com todo o coração, pondo-O acima de qualquer outro amor, e amar assim, com a liberdade de Deus, toda a criatura! Este testemunho é hoje mais necessário que nunca, exactamente por ser tão pouco compreendido pelo nosso mundo. Ele é oferecido a toda a gente — aos jovens, aos noivos, aos cônjuges, às famílias cristãs — para mostrar a todos que a força do amor de Deus pode operar grandes coisas, mesmo no âmbito das vicissitudes do amor humano. É um testemunho que vai de encontro também a uma necessidade crescente de transparência interior nas relações humanas.

É preciso que a vida consagrada apresente ao mundo de hoje exemplos de uma castidade vivida por homens e mulheres que demonstram equilíbrio, domínio de si, espírito de iniciativa, maturidade psicológica e afectiva (224). Graças a este testemunho, é oferecido ao amor humano um ponto de referência seguro, que a pessoa consagrada encontra na contemplação do amor trinitário, que nos foi revelado em Cristo. Precisamente porque imersa neste mistério, ela sente-se capaz de um amor radical e universal, que lhe dá a força para o domínio de si e a disciplina necessária para não cair na escravidão dos sentidos e dos instintos. A castidade consagrada apresenta-se assim como experiência de alegria e de liberdade. Iluminada pela fé no Senhor ressuscitado e pela esperança dos novos céus e da nova terra (cf.
Ap 21,1), ela oferece também preciosos estímulos para a educação da castidade obrigatória nos outros estados de vida.

(224) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, PC 12.


O desafio da pobreza

89 Outra provocação vem, hoje, de um materialismo ávido de riqueza, sem qualquer atenção pelas exigências e sofrimentos dos mais débeis, nem consideração pelo próprio equilíbrio dos recursos naturais. A resposta da vida consagrada é dada pela profissão da pobreza evangélica, vivida sob diversas formas e acompanhada muitas vezes por um empenhamento activo na promoção da solidariedade e da caridade.

Quantos Institutos se dedicam à educação, à instrução e à formação profissional, habilitando jovens e menos jovens a tornarem-se protagonistas do seu futuro! Quantas pessoas consagradas gastam todas as suas energias em favor dos últimos da terra! Quantas delas se dedicam à formação de futuros educadores e responsáveis da vida social, capazes de se empenharem, por sua vez, para eliminar as estruturas opressoras e promover projectos de solidariedade em benefício dos pobres! Elas lutam para debelar a fome e as suas causas, animam as actividades do voluntariado e as organizações humanitárias, sensibilizam organismos públicos e privados para favorecerem uma equitativa distribuição das ajudas internacionais. As nações devem verdadeiramente muito a estes dinâmicos agentes da caridade, que, pela sua incansável generosidade, deram e continuam a dar uma sensível contribuição para a humanização do mundo.



A pobreza evangélica ao serviço dos pobres

90 Na verdade, a pobreza evangélica, ainda antes de ser um serviço em favor dos pobres, é um valor em si mesma , enquanto faz lembrar a primeira das bem-aventuranças na imitação de Cristo pobre (225). Com efeito, o seu primeiro significado é testemunhar Deus como verdadeira riqueza do coração humano. Mas, por isso mesmo, ela contesta vigorosamente a idolatria do dinheiro, propondo-se como apelo profético lançado a uma sociedade que, em tantos lugares do mundo abastado, se arrisca a perder o sentido da medida e o próprio significado das coisas. Por isso hoje, mais do que noutras épocas, a sua solicitação é escutada com favor inclusive por aqueles que, cientes do carácter limitado dos recursos da terra, pedem o respeito e a salvaguarda da criação, mediante a redução do consumo, a sobriedade, a imposição de um freio obrigatório aos próprios desejos.

Deste modo, às pessoas consagradas é pedido um renovado e vigoroso testemunho evangélico de abnegação e sobriedade, num estilo de vida fraterna inspirada por critérios de simplicidade e de hospitalidade, como exemplo mesmo para quantos permanecem indiferentes perante as necessidades do próximo. Tal testemunho há-de ser naturalmente acompanhado pelo amor preferencial pelos pobres e manifestar-se-á, de modo especial, na partilha das condições de vida dos mais desfavorecidos. Diversas são as comunidades que vivem e operam entre os pobres e marginalizados, abraçam a sua condição e partilham os seus sofrimentos, problemas e perigos.

Exímias páginas de história de solidariedade evangélica e de dedicação heróica foram escritas por pessoas consagradas, nestes anos de profundas mudanças e de grandes injustiças, de esperanças e desilusões, de importantes conquistas mas também de amargas derrotas. E páginas igualmente significativas foram e continuam a ser ainda escritas por muitas outras pessoas consagradas, que vivem em plenitude a sua vida « escondida com Cristo em Deus » (
Col 3,3) pela salvação do mundo, sob o lema da gratuidade, do investimento da própria vida em causas pouco reconhecidas e menos ainda aplaudidas. Através destas formas diversas e complementares, a vida consagrada participa da pobreza extrema abraçada pelo Senhor e vive a sua função específica no mistério salvífico da sua encarnação e da sua morte redentora (226).

(225) Cf. propositio 18, A.
(226) Cf. João Paulo II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, PC 13.


O desafio da liberdade na obediência

91 A terceira provocação provém daquelas concepções da liberdade que subtraem esta fundamental prerrogativa humana à sua relação constitutiva com a verdade e com a norma moral(227). Na realidade, a cultura da liberdade é um valor autêntico, ligado intimamente ao respeito da pessoa humana. Mas quem não vê as consequências monstruosas de injustiça e mesmo de violência, geradas na vida dos indivíduos e dos povos pelo uso deturpado da liberdade?

Uma resposta eficaz a tal situação é a obediência que caracteriza a vida consagrada.Esta apresenta de modo particularmente vivo a obediência de Cristo ao Pai e, partindo exactamente do seu mistério, testemunha que não há contradição entre obediência e liberdade. Com efeito, o comportamento do Filho desvenda o mistério da liberdade humana, como um caminho de obediência à vontade do Pai, e o mistério da obediência, como um caminho de progressiva conquista da verdadeira liberdade. É precisamente este mistério que a pessoa consagrada quer exprimir com este voto concreto. Com ele, deseja dar testemunho da sua consciência de um relacionamento de filiação, em virtude do qual assume a vontade paterna como alimento diário (cf.
Jn 4,34), como sua rocha, alegria, escudo e baluarte (cf. Ps 18,3 /17,3). Demonstra assim que cresce na verdade plena de si mesma, quando permanece ligada à fonte da sua existência, e deste modo oferece uma mensagem repleta de consolação: « Gozam de grande paz os que amam a vossa lei, para eles não existe perturbação » (Ps 119,165 /118,165).

(227) Cf. João Paulo II, Carta enc. Veritatis splendor (6 de Agosto de 1993), VS 31-35: AAS 85 (1993), 1158-1162.


Cumprir juntos a vontade do Pai

92 Este testemunho das pessoas consagradas assume, na vida religiosa, um significado particular também por causa da dimensão comunitária que a caracteriza. A vida fraterna é o lugar privilegiado para discernir e acolher a vontade de Deus e caminhar juntos em união de mente e coração. A obediência, vivificada pela caridade, unifica os membros de um Instituto no mesmo testemunho e na mesma missão, embora na diversidade dos dons e no respeito da individualidade própria de cada um. Na fraternidade animada pelo Espírito Santo, cada qual estabelece com o outro um diálogo precioso para descobrir a vontade do Pai, e todos reconhecem em quem preside a expressão da paternidade divina e o exercício da autoridade recebida de Deus ao serviço do discernimento e da comunhão (228).

De modo particular, a vida de comunidade é o sinal, para a Igreja e para a sociedade, daquele laço que provém de um chamamento igual e da vontade comum de lhe obedecer, para além de qualquer diversidade de raça e de origem, de língua e de cultura. Contra o espírito de discórdia e de divisão, a autoridade e a obediência resplandecem como um sinal daquela única paternidade que vem de Deus, da fraternidade nascida do Espírito, da liberdade interior de quem se fia de Deus, não obstante os limites humanos daqueles que O representam. Através desta obediência, por alguns assumida como regra de vida, é experimentada e anunciada, em benefício de todos, a bem-aventurança prometida por Jesus a quantos « escutam a Palavra de Deus e a põem em prática » (
Lc 11,28). Além disso, quem obedece tem a garantia de estar verdadeiramente em missão no seguimento do Senhor, e não ao sabor dos desejos pessoais ou das próprias aspirações. E, assim, é possível considerar-se guiado pelo Espírito do Senhor e sustentado, mesmo no meio de grandes dificuldades, pela sua mão segura (cf. Ac 20,22s).

(228) Cf. propositio 19, A; Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação religiosa Perfectae caritatis, PC 14.



Vita consecrata PT 79