Verbum Domini PT 14

Dimensão escatológica da Palavra de Deus


14 Por meio de tudo isto, a Igreja exprime a consciência de se encontrar, em Jesus Cristo, com a Palavra definitiva de Deus; Ele é «o Primeiro e o Último» (Ap 1,17). Deu à criação e à história o seu sentido definitivo; por isso somos chamados a viver o tempo, a habitar na criação de Deus dentro deste ritmo escatológico da Palavra. «Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há-de esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1Tm 6,14 Tt 2,13)».[41] De facto, como recordaram os Padres durante o Sínodo, a «especificidade do cristianismo manifesta-se no acontecimento que é Jesus Cristo, ápice da Revelação, cumprimento das promessas de Deus e mediador do encontro entre o homem e Deus. Ele, “que nos deu a conhecer Deus” (Jn 1,18), é a Palavra única e definitiva confiada à humanidade».[42] São João da Cruz exprimiu esta verdade de modo admirável: «Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra – e não tem outra – Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única e já nada mais tem para dizer (…). Porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade».[43]

Consequentemente, o Sínodo recomendou que «se ajudassem os fiéis a bem distinguir a Palavra de Deus das revelações privadas»,[44] cujo «papel não é (…) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente, numa determinada época histórica».[45] O valor das revelações privadas é essencialmente diverso do da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto nela, por meio de palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja, fala-nos o próprio Deus. O critério da verdade de uma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando aquela nos afasta d’Ele, certamente não vem do Espírito Santo, que nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. A revelação privada é uma ajuda para a fé, e manifesta-se como credível precisamente porque orienta para a única revelação pública. Por isso, a aprovação eclesiástica de uma revelação privada indica essencialmente que a respectiva mensagem não contém nada que contradiga a fé e os bons costumes; é lícito torná-la pública, e os fiéis são autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão. Uma revelação privada pode introduzir novas acentuações, fazer surgir novas formas de piedade ou aprofundar antigas. Pode revestir-se de um certo carácter profético (cf. 1Th 5,19-21) e ser uma válida ajuda para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso não se deve desprezá-la. É uma ajuda, que é oferecida, mas da qual não é obrigatório fazer uso. Em todo o caso, deve tratar-se de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são o caminho permanente da salvação para todos.[46]

[41] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 4.
[42] Propositio 4.
[43] São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo, II, 2MC 22.
[44] Propositio 47.
[45] Catecismo da Igreja Católica, CEC 67.
[46] Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, A mensagem de Fátima (26 de Junho de 2000): Ench. Vat., 19, n. 974-1021.

A Palavra de Deus e o Espírito Santo


15 Depois de nos termos detido sobre a Palavra última e definitiva de Deus ao mundo, é necessário recordar agora a missão do Espírito Santo relativamente à Palavra divina. De facto, não é possível uma compreensão autêntica da revelação cristã fora da acção do Paráclito. Isto deve-se ao facto de a comunicação que Deus faz de Si mesmo implicar sempre a relação entre o Filho e o Espírito Santo, a Quem Ireneu de Lião realmente chama «as duas mãos do Pai».[47] Aliás, é a Sagrada Escritura que nos indica a presença do Espírito Santo na história da salvação e, particularmente, na vida de Jesus, o Qual é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (cf. Mt 1,18 Lc 1,35); ao iniciar a sua missão pública nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba (cf. Mt 3,16); neste mesmo Espírito, Jesus age, fala e exulta (cf. Lc 10,21); é no Espírito que Se oferece a Si mesmo (cf. He 9,14). Quando está para terminar a sua missão – segundo narra o evangelista São João –, o próprio Jesus relaciona claramente o dom da sua vida com o envio do Espírito aos Seus (cf. Jn 16,7). Depois Jesus ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixão, derrama o Espírito (cf. Jn 20,22), tornando os discípulos participantes da sua própria missão (cf. Jn 20,21). O Espírito Santo ensinará aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo disse (cf. Jn 14,26), porque será Ele, o Espírito de Verdade (cf. Jn 15,26), a guiar os discípulos para a Verdade inteira (cf. Jn 16,13). Por fim, como se lê nos Actos dos Apóstolos, o Espírito desce sobre os Doze reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes (cf. Ac 2,1-4) e anima-os na missão de anunciar a Boa Nova a todos os povos.[48]

Por conseguinte, a Palavra de Deus exprime-se em palavras humanas graças à obra do Espírito Santo. A missão do Filho e a do Espírito Santo são inseparáveis e constituem uma única economia da salvação. O mesmo Espírito, que actua na encarnação do Verbo no seio da Virgem Maria, guia Jesus ao longo de toda a sua missão e é prometido aos discípulos. O mesmo Espírito que falou por meio dos profetas, sustenta e inspira a Igreja no dever de anunciar a Palavra de Deus e na pregação dos Apóstolos; e, enfim, é este Espírito que inspira os autores das Sagradas Escrituras.


16 Conscientes deste horizonte pneumatológico, os Padres sinodais quiseram lembrar a importância da acção do Espírito Santo na vida da Igreja e no coração dos fiéis relativamente à Sagrada Escritura:[49] sem a acção eficaz do «Espírito da Verdade» (Jn 14,16), não se podem compreender as palavras do Senhor. Como recorda ainda Santo Ireneu: «Aqueles que não participam do Espírito não recebem do peito da sua mãe [a Igreja] o alimento da vida; nada recebem da fonte mais pura que brota do corpo de Cristo».[50] Tal como a Palavra de Deus vem até nós no corpo de Cristo, no corpo eucarístico e no corpo das Escrituras por meio do Espírito Santo, assim também só pode ser acolhida e compreendida verdadeiramente graças ao mesmo Espírito.

Os grandes escritores da tradição cristã são unânimes ao considerar o papel do Espírito Santo na relação que os fiéis devem ter com as Escrituras. São João Crisóstomo afirma que a Escritura «tem necessidade da revelação do Espírito, a fim de que, descobrindo o verdadeiro sentido das coisas que nela se encerram, disso mesmo tiremos abundante proveito».[51] Também São Jerónimo está firmemente convencido de que «não podemos chegar a compreender a Escritura sem a ajuda do Espírito Santo que a inspirou».[52] Depois, São Gregório Magno sublinha, de modo sugestivo, a obra do mesmo Espírito na formação e na interpretação da Bíblia: «Ele mesmo criou as palavras dos Testamentos Sagrados, Ele mesmo as desvendou».[53] Ricardo de São Víctor recorda que são necessários «olhos de pomba», iluminados e instruídos pelo Espírito, para compreender o texto sagrado.[54]

Desejaria ainda sublinhar como é significativo o testemunho a respeito da relação entre o Espírito Santo e a Escritura que encontramos nos textos litúrgicos, onde a Palavra de Deus é proclamada, escutada e explicada aos fiéis. É o caso de antigas orações que, em forma de epiclese, invocam o Espírito antes da proclamação das leituras: «Mandai o vosso Espírito Santo Paráclito às nossas almas e fazei-nos compreender as Escrituras por Ele inspiradas; e concedei-me interpretá-las de maneira digna, para que os fiéis aqui reunidos delas tirem proveito». De igual modo, encontramos orações que, no fim da homilia, novamente invocam de Deus o dom do Espírito sobre os fiéis: «Deus salvador (…), nós Vos pedimos por este povo: Mandai sobre ele o Espírito Santo; o Senhor Jesus venha visitá-lo, fale à mente de todos e abra os corações à fé e conduza para Vós as nossas almas, Deus das Misericórdias».[55] Por tudo isto bem podemos compreender que não é possível alcançar o sentido da Palavra, se não se acolhe a acção do Paráclito na Igreja e nos corações dos fiéis.

[47] Adversus haereses, IV, 7, 4: PG 7, 992-993; V, 1, 3: PG 7, 1123; V, 6, 1: PG 7, 1137; V, 28, 4: PG 7, 1200.
[48] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 12:AAS 99 (2007), 113-114.
[49] Cf. Propositio 5.
[50] Adversus haereses III, 24, 1: PG 7, 966.
[51] Homiliae in Genesim, XXII, 1: PG 53, 175.
[52] Epistula 120, 10: CSEL 55, 500-506.
[53] Homiliae in Ezechielem, I, VII, 17: CC 142, 94.
[54] «Oculi ergo devotae animae sunt columbarum quia sensus eius per Spiritum sanctum sunt illuminati et edocti, spiritualia sapientes. (…) Nunc quidem aperitur animae talis sensus, ut intellegat Scripturas»: Ricardo de São Víctor, Explicatio in Cantica canticorum, 15: PL 196, 450 B.D.
[55] Sacramentarium Serapionis II (XX): Didascalia et Constitutiones apostolorum, ed. F. X. Funk, II (Paderborn 1906), 161.

Tradição e Escritura


17 Reafirmando o vínculo profundo entre o Espírito Santo e a Palavra de Deus, lançamos também as bases para compreender o sentido e o valor decisivo da Tradição viva e das Sagradas Escrituras na Igreja. De facto, uma vez que Deus «amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único» (Jn 3,16), a Palavra divina, pronunciada no tempo, deu-Se e «entregou-Se» à Igreja definitivamente para que o anúncio da salvação possa ser eficazmente comunicado em todos os tempos e lugares. Como nos recorda a Constituição dogmática Dei Verbum, o próprio Jesus Cristo «mandou aos Apóstolos que pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente, comunicando-lhes assim os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação».[56]

Além disso o Concílio Vaticano II recorda que esta Tradição de origem apostólica é realidade viva e dinâmica: ela «progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo»; não no sentido de mudar na sua verdade, que é perene, mas «progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas», com a contemplação e o estudo, com a inteligência dada por uma experiência espiritual mais profunda, e por meio da «pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade».[57]

A Tradição viva é essencial para que a Igreja, no tempo, possa crescer na compreensão da verdade revelada nas Escrituras; de facto, «mediante a mesma Tradição, conhece a Igreja o cânon inteiro dos livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente e torna-se incessantemente operante».[58] Em última análise, é a Tradição viva da Igreja que nos faz compreender adequadamente a Sagrada Escritura como Palavra de Deus. Embora o Verbo de Deus preceda e exceda a Sagrada Escritura, todavia, enquanto inspirada por Deus, esta contém a Palavra divina (cf. 2Tm 3,16) «de modo totalmente singular».[59]

[56] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 7.
[57] Ibid., DV 8.
[58] Ibid., DV 8.
[59] Cf. Propositio 3.

18 Disto conclui-se como é importante que o Povo de Deus seja educado e formado claramente para se abeirar das Sagradas Escrituras na sua relação com a Tradição viva da Igreja, reconhecendo nelas a própria Palavra de Deus. É muito importante, do ponto de vista da vida espiritual, fazer crescer esta atitude nos fiéis. A este respeito pode ajudar a recordação de uma analogia desenvolvida pelos Padres da Igreja entre o Verbo de Deus que Se faz «carne» e a Palavra que se faz «livro».[60] A Constituição dogmática Dei Verbum, ao recolher esta tradição antiga segundo a qual «o corpo do Filho é a Escritura que nos foi transmitida» – como afirma Santo Ambrósio[61] –, declara: «As palavras de Deus, com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai Se assemelhou aos homens tomando a carne da fraqueza humana».[62] Vista assim, a Sagrada Escritura, apesar da multiplicidade das suas formas e conteúdos, aparece-nos como uma realidade unitária. De facto, «através de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus não diz mais que uma só palavra, o seu Verbo único, em quem totalmente Se diz (cf. He 1,1-3)»,[63] como claramente afirmava já Santo Agostinho: «Lembrai-vos de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só, e um só é o Verbo que Se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados».[64]

Em última análise, através da obra do Espírito Santo e sob a guia do Magistério, a Igreja transmite a todas as gerações aquilo que foi revelado em Cristo. A Igreja vive na certeza de que o seu Senhor, tendo falado outrora, não cessa de comunicar hoje a sua Palavra na Tradição viva da Igreja e na Sagrada Escritura. De facto, a Palavra de Deus dá-se a nós na Sagrada Escritura, enquanto testemunho inspirado da revelação, que, juntamente com a Tradição viva da Igreja, constitui a regra suprema da fé.[65]

[60] Cf. Mensagem final, II, 5.
[61] Expositio Evangelii secundum Lucam 6, 33: PL 15, 1677.
[62] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 13.
[63] Catecismo da Igreja Católica, CEC 102. Cf. também Ruperto de Deutz, De operibus Spiritus Sancti, I, 6: SC 131, 72-74.
[64] Enarrationes in Psalmos, 103, IV, 1: PL 37, 1378. Análogas afirmações em Orígenes, In Iohannem V, 5-6: SC 120, pp. 380-384.
[65] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 21.

Sagrada Escritura, inspiração e verdade


19 Um conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em palavras humanas é, sem dúvida, o de inspiração. Também aqui se pode sugerir uma analogia: assim como o Verbo de Deus Se fez carne por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, assim também a Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do mesmo Espírito. A Sagrada Escritura é «Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito de Deus».[66] Deste modo se reconhece toda a importância do autor humano que escreveu os textos inspirados e, ao mesmo tempo, do próprio Deus como verdadeiro autor.

Daqui se vê com toda a clareza – lembraram os Padres sinodais – como o tema da inspiração é decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua correcta hermenêutica,[67] que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi escrita.[68] Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a Escritura como objecto de curiosidade histórica e não como obra do Espírito Santo, na qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua presença na história.

Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como ligado com o tema da inspiração esteja também o tema da verdade das Escrituras.[69] Por isso, um aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior compreensão da verdade contida nos livros sagrados. Como indica a doutrina conciliar sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: «E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consi-gnada nas sagradas Letras. Por isso, “toda a Escri-tura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as boas obras (
2Tm 3,16-17 gr.)”».[70]

Não há dúvida que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e verdade como dois conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas Escrituras. No entanto, deve-se reconhecer a necessidade actual de um condigno aprofundamento destas realidades, para se responder melhor às exigências relativas à interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza. Nesta perspectiva, desejo vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a ciência bíblica e para a vida espiritual dos fiéis.

[66] Ibid., DV 9.
[67] Cf. Propositiones 5 e 12.
[68] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 12.
[69] Cf. Propositio 12.
[70] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 11.

Deus Pai, fonte e origem da Palavra


20 A economia da revelação tem o seu início e a sua origem em Deus Pai. Pela sua palavra «foram feitos os céus, pelo sopro da sua boca todos os seus exércitos» (Ps 33,6). É Ele que faz resplandecer «o conhecimento da glória de Deus, que se reflecte na face de Cristo» (2Co 4,6 cf. Mt 16,17 Lc 9,29).

No Filho, «Logos feito carne» (cf. Jn 1,14), que veio para cumprir a vontade d’Aquele que O enviou (cf. Jn 4,34), Deus, fonte da revelação, manifesta-Se como Pai e leva à perfeição a educação divina do homem, já anteriormente animada pela palavra dos profetas e pelas maravilhas realizadas na criação e na história do seu povo e de todos os homens. O apogeu da revelação de Deus Pai é oferecido pelo Filho com o dom do Paráclito (cf. Jn 14,16), Espírito do Pai e do Filho, que nos «guiará para a verdade total» (Jn 16,13).

Deste modo, todas as promessas de Deus se tornam «sim» em Jesus Cristo (cf. 2Co 1,20). Abre-se assim, para o homem, a possibilidade de percorrer o caminho que o conduz ao Pai (cf. Jn 14,6), para que no fim «Deus seja tudo em todos» (1Co 15,28).


21 Como mostra a cruz de Cristo, Deus fala também por meio do seu silêncio. O silêncio de Deus, a experiência da distância do Omnipotente e Pai é etapa decisiva no caminho terreno do Filho de Deus, Palavra encarnada. Suspenso no madeiro da cruz, o sofrimento que Lhe causou tal silêncio fê-Lo lamentar: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mc 15,34 Mt 27,46). Avançando na obediência até ao último respiro, na obscuridade da morte, Jesus invocou o Pai. A Ele Se entregou no momento da passagem, através da morte, para a vida eterna: «Pai, nas tuas mãos, entrego o meu espírito» (Lc 23,46).

Esta experiência de Jesus é sintomática da situação do homem que, depois de ter escutado e reconhecido a Palavra de Deus, deve confrontar-se também com o seu silêncio. É uma experiência vivida por muitos Santos e místicos, e que ainda hoje faz parte do caminho de muitos fiéis. O silêncio de Deus prolonga as suas palavras anteriores. Nestes momentos obscuros, Ele fala no mistério do seu silêncio. Portanto, na dinâmica da revelação cristã, o silêncio aparece como uma expressão importante da Palavra de Deus.


A resposta do homem a Deus que fala

Chamados a entrar na Aliança com Deus


22 Ao sublinhar a pluralidade de formas da Palavra, pudemos ver através de quantas modalidades Deus fala e vem ao encontro do homem, dando-Se a conhecer no diálogo. É certo que o diálogo, como afirmaram os Padres sinodais, «quando se refere à Revelação comporta o primado da Palavra de Deus dirigida ao homem».[71] O mistério da Aliança exprime esta relação entre Deus que chama através da sua Palavra e o homem que responde, sabendo claramente que não se trata de um encontro entre dois contraentes iguais; aquilo que designamos por Antiga e Nova Aliança não é um acto de entendimento entre duas partes iguais, mas puro dom de Deus. Por meio deste dom do seu amor, Ele, superando toda a distância, torna--nos verdadeiramente seus «parceiros», de modo a realizar o mistério nupcial do amor entre Cristo e a Igreja. Nesta perspectiva, todo o homem aparece como o destinatário da Palavra, interpelado e chamado a entrar, por uma resposta livre, em tal diálogo de amor. Assim Deus torna cada um de nós capaz de escutar e responder à Palavra divina. O homem é criado na Palavra e vive nela; e não se pode compreender a si mesmo, se não se abre a este diálogo. A Palavra de Deus revela a natureza filial e relacional da nossa vida. Por graça, somos verdadeiramente chamados a configurar-nos com Cristo, o Filho do Pai, e a ser transformados n’Ele.

[71] Propositio 4.

Deus escuta o homem e responde às suas perguntas


23 Neste diálogo com Deus, compreendemo-nos a nós mesmos e encontramos resposta para as perguntas mais profundas que habitam no nosso coração. De facto, a Palavra de Deus não se contrapõe ao homem, nem mortifica os seus anseios verdadeiros; pelo contrário, ilumina-os, purifica-os e realiza-os. Como é importante, para o nosso tempo, descobrir que só Deus responde à sede que está no coração de cada homem! Infelizmente na nossa época, sobretudo no Ocidente, difundiu-se a ideia de que Deus é alheio à vida e aos problemas do homem; pior ainda, de que a sua presença pode até ser uma ameaça à autonomia humana. Na realidade, toda a economia da salvação mostra-nos que Deus fala e intervém na história a favor do homem e da sua salvação integral. Por conseguinte é decisivo, do ponto de vista pastoral, apresentar a Palavra de Deus na sua capacidade de dialogar com os problemas que o homem deve enfrentar na vida diária. Jesus apresenta-Se-nos precisamente como Aquele que veio para que pudéssemos ter a vida em abundância (cf. Jn 10,10). Por isso, devemos fazer todo o esforço para mostrar a Palavra de Deus precisamente como abertura aos próprios problemas, como resposta às próprias perguntas, uma dilatação dos próprios valores e, conjuntamente, uma satisfação das próprias aspirações. A pastoral da Igreja deve ilustrar claramente como Deus ouve a necessidade do homem e o seu apelo. São Boaventura afirma no Breviloquium: «O fruto da Sagrada Escritura não é um fruto qualquer, mas a plenitude da felicidade eterna. De facto, a Sagrada Escritura é precisamente o livro no qual estão escritas palavras de vida eterna, porque não só acreditamos mas também possuímos a vida eterna, em que veremos, amaremos e serão realizados todos os nossos desejos».[72]

[72] Prol.: Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), pp. 201-202.

Dialogar com Deus através das suas palavras


24 A Palavra divina introduz cada um de nós no diálogo com o Senhor: o Deus que fala, ensina-nos como podemos falar com Ele. Espontaneamente o pensamento detém-se no Livro dos Salmos, onde Ele nos fornece as palavras com que podemos dirigir-nos a Ele, levar a nossa vida para o colóquio com Ele, transformando assim a própria vida num movimento para Deus.[73] De facto, nos Salmos, encontramos articulada toda a gama de sentimentos que o homem pode ter na sua própria existência e que são sapientemente colocados diante de Deus; alegria e sofrimento, angústia e esperança, medo e perplexidade encontram lá a sua expressão. E, juntamente com os Salmos, pensamos também em numerosos textos da Sagrada Escritura que apresentam o homem a dirigir-se a Deus sob a forma de oração de intercessão (cf. Ex 33,12-16), de canto de júbilo pela vitória (cf. Ex 15), ou de lamento no desempenho da própria missão (cf. Jr 20,7-18). Deste modo, a palavra que o homem dirige a Deus torna-se também Palavra de Deus, como confirmação do carácter dialógico de toda a revelação cristã,[74] e a existência inteira do homem torna-se um diálogo com Deus que fala e escuta, que chama e dinamiza a nossa vida. Aqui a Palavra de Deus revela que toda a existência do homem está sob o chamamento divino.[75]

[73] Cf. Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 721-730.
[74] Cf. Propositio 4.
[75] Cf. Relatio post disceptationem, 12.

A Palavra de Deus e a fé


25 «A Deus que Se revela é devida “a obediência da fé” (Rm 16,26 cf. Rm 1,5 2Co 10,5-6); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo a Deus revelador “o obséquio pleno da inteligência e da vontade” e prestando voluntário assentimento à sua revelação».[76] Com estas palavras, a Constituição dogmática Dei Verbum exprimiu de modo claro a atitude do homem diante de Deus. A resposta própria do homem a Deus, que fala, é a fé.Isto coloca em evidência que, «para acolher a Revelação, o homem deve abrir a mente e o coração à acção do Espírito Santo que lhe faz compreender a Palavra de Deus presente nas Sagradas Escrituras».[77] De facto, é precisamente a pregação da Palavra divina que faz surgir a fé, pela qual aderimos de coração à verdade que nos foi revelada e entregamos todo o nosso ser a Cristo: «A fé vem da pregação, e a pregação pela palavra de Cristo» (Rm 10,17). Toda a história da salvação nos mostra progressivamente esta ligação íntima entre a Palavra de Deus e a fé que se realiza no encontro com Cristo. De facto, com Ele a fé toma a forma de encontro com uma Pessoa à qual se confia a própria vida. Cristo Jesus continua hoje presente, na história, no seu corpo que é a Igreja; por isso, o acto da nossa fé é um acto simultaneamente pessoal e eclesial.

[76] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 5.
[77] Propositio 4.

O pecado como não escuta da Palavra de Deus


26 A Palavra de Deus revela inevitavelmente também a dramática possibilidade que tem a liberdade do homem de subtrair-se a este diálogo de aliança com Deus, para o qual fomos criados. De facto, a Palavra divina desvenda também o pecado que habita no coração do homem. Muitas vezes encontramos, tanto no Antigo como no Novo Testamento, a descrição do pecado como não escuta da Palavra, como ruptura da Aliança e, consequentemente, como fechar-se a Deus que chama à comunhão com Ele.[78] Com efeito, a Sagrada Escritura mostra-nos como o pecado do homem é essencialmente desobediência e «não escuta». Precisamente a obediência radical de Jesus até à morte de Cruz (cf. Ph 2,8) desmascara totalmente este pecado. Na sua obediência, realiza-se a Nova Aliança entre Deus e o homem e é-nos concedida a possibilidade da reconciliação. De facto, Jesus foi mandado pelo Pai como vítima de expiação pelos nossos pecados e pelos do mundo inteiro (cf. 1Jn 2,2 1Jn 4,10 He 7,27). Assim, é-nos oferecida misericordiosamente a possibilidade da redenção e o início de uma vida nova em Cristo. Por isso, é importante que os fiéis sejam educados a reconhecer a raiz do pecado na não escuta da Palavra do Senhor e a acolher em Jesus, Verbo de Deus, o perdão que nos abre à salvação.

[78] Por exemplo Dt 28,1-2 Dt 28,15 Dt 28,45 Dt 32,1; nos grandes profetas cf. Jr 7,22-28 Ez 2,8 Ez 3,10 Ez 6,3 Ez 13,2; mas também nos menores: cf. Za 3,8. Em São Paulo, cf. Rm 10,14-18 1Th 2,13.

Maria «Mater Verbi Dei» e «Mater fidei»


27 Os Padres sinodais declararam que o objectivo fundamental da XII Assembleia foi «renovar a fé da Igreja na Palavra de Deus»; por isso é necessário olhar para uma pessoa em Quem a reciprocidade entre Palavra de Deus e fé foi perfeita, ou seja, para a Virgem Maria, «que, com o seu sim à Palavra da Aliança e à sua missão, realiza perfeitamente a vocação divina da humanidade».[79] A realidade humana, criada por meio do Verbo, encontra a sua figura perfeita precisamente na fé obediente de Maria. Desde a Anunciação ao Pentecostes, vemo-La como mulher totalmente disponível à vontade de Deus. É a Imaculada Conceição, Aquela que é «cheia de graça» de Deus (cf. Lc 1,28), incondicionalmente dócil à Palavra divina (cf. Lc 1,38). A sua fé obediente face à iniciativa de Deus plasma cada instante da sua vida. Virgem à escuta, vive em plena sintonia com a Palavra divina; conserva no seu coração os acontecimentos do seu Filho, compondo-os por assim dizer num único mosaico (cf. Lc 2,19 Lc 2,51).[80]

No nosso tempo, é preciso que os fiéis sejam ajudados a descobrir melhor a ligação entre Maria de Nazaré e a escuta crente da Palavra divina. Exorto também os estudiosos a aprofundarem ainda mais a relação entre mariologia e teologia da Palavra. Daí poderá vir grande benefício tanto para a vida espiritual como para os estudos teológicos e bíblicos. De facto, quando a inteligência da fé olha um tema à luz de Maria, coloca-se no centro mais íntimo da verdade cristã. Na realidade, a encarnação do Verbo não pode ser pensada prescindindo da liberdade desta jovem mulher que, com o seu assentimento, coopera de modo decisivo para a entrada do Eterno no tempo. Ela é a figura da Igreja à escuta da Palavra de Deus que nela Se fez carne. Maria é também símbolo da abertura a Deus e aos outros; escuta activa, que interioriza, assimila, na qual a Palavra se torna forma de vida.


28 Nesta ocasião, desejo chamar a atenção para a familiaridade de Maria com a Palavra de Deus. Isto transparece com particular vigor no Magnificat.Aqui, em certa medida, vê-se como Ela Se identifica com a Palavra, e nela entra; neste maravilhoso cântico de fé, a Virgem exalta o Senhor com a sua própria Palavra: «O Magnificat – um retrato, por assim dizer, da sua alma – é inteiramente tecido de fios da Sagrada Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus. Desta maneira se manifesta que Ela Se sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus, dela sai e a ela volta com naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se Palavra d’Ela, e a sua palavra nasce da Palavra de Deus. Além disso, fica assim patente que os seus pensamentos estão em sintonia com os de Deus, que o d’Ela é um querer juntamente com Deus. Vivendo intimamente permeada pela Palavra de Deus, Ela pôde tornar-Se mãe da Palavra encarnada».[81]

Além disso, a referência à Mãe de Deus mostra-nos como o agir de Deus no mundo envolve sempre a nossa liberdade, porque, na fé, a Palavra divina transforma-nos. Também a nossa acção apostólica e pastoral não poderá jamais ser eficaz, se não aprendermos de Maria a deixar-nos plasmar pela acção de Deus em nós: «A atenção devota e amorosa à figura de Maria, como modelo e arquétipo da fé da Igreja, é de importância capital para efectuar também nos nossos dias uma mudança concreta de paradigma na relação da Igreja com a Palavra, tanto na atitude de escuta orante como na generosidade do compromisso em prol da missão e do anúncio».[82]

Contemplando na Mãe de Deus uma vida modelada totalmente pela Palavra, descobrimo-nos também nós chamados a entrar no mistério da fé, pela qual Cristo vem habitar na nossa vida. Como nos recorda Santo Ambrósio, cada cristão que crê, em certo sentido, concebe e gera em si mesmo o Verbo de Deus: se há uma só Mãe de Cristo segundo a carne, segundo a fé, porém, Cristo é o fruto de todos.[83] Portanto, o que aconteceu em Maria pode voltar a acontecer em cada um de nós diariamente na escuta da Palavra e na celebração dos Sacramentos.

[79] Propositio 55.
[80] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 33:AAS 99 (2007), 132-133.
[81] Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), : AAS 98 (2006), 251.
[82] Propositio 55.
[83] Cf. Expositio Evangelii secundum Lucam 2, 19: PL 15, 1559-1560.


Verbum Domini PT 14