Verbum Domini PT 28


A hermenêutica da Sagrada Escritura na Igreja

A Igreja, lugar originário da hermenêutica da Bíblia


29 Outro grande tema surgido durante o Sínodo, sobre o qual quero debruçar-me agora, é a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja. E precisamente a ligação intrínseca entre Palavra e fé põe em evidência que a autêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial, que tem o seu paradigma no sim de Maria. A este respeito, São Boaventura afirma que, sem a fé, não há chave de acesso ao texto sagrado: «Esta é o conhecimento de Jesus Cristo, do qual têm origem, como de uma fonte, a segurança e a inteligência de toda a Sagrada Escritura. Por isso é impossível que alguém possa entrar para a conhecer, se antes não tiver a fé infusa de Cristo que é lanterna, porta e também fundamento de toda a Escritura».[84] E São Tomás de Aquino, mencionando Santo Agostinho, insiste vigorosamente: «A letra do Evangelho também mata, se faltar a graça interior da fé que cura».[85]

Isto permite-nos assinalar um critério fundamental da hermenêutica bíblica: o lugar originário da interpretação da Escritura é a vida da Igreja.Esta afirmação não indica a referência eclesial como um critério extrínseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas é uma exigência da própria realidade das Escrituras e do modo como se formaram ao longo do tempo. De facto, «as tradições de fé formavam o ambiente vital onde se inseriu a actividade literária dos autores da Sagrada Escritura. Esta inserção englobava também a participação na vida litúrgica e na actividade externa das comunidades, no seu mundo espiritual, na sua cultura e nas vicissitudes do seu destino histórico. Por isso, de modo semelhante, a interpretação da Sagrada Escritura exige a participação dos exegetas em toda a vida e em toda a fé da comunidade crente do seu tempo».[86] Por conseguinte, «devendo a Sagrada Escritura ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita»,[87]é preciso que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que realmente é: como Palavra de Deus que Se nos comunica através de palavras humanas (cf.
1Th 2,13). Trata-se de um dado constante e implícito na própria Bíblia: «Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular, porque jamais uma profecia foi proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens santos falaram em nome de Deus» (2P 1,20-21). Aliás, é precisamente a fé da Igreja que reconhece na Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo Agostinho, «não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da Igreja Católica».[88] O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capaz de interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, a partir da imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeira hermenêutica.

[84] Breviloquium, Prol.: Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), p. 201-202.
[85] Summa theologiae, I-II 106,2.
[86] Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), III, A, 3:Ench. Vat. 13, n. 3035.
[87] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, DV 12.
[88] Contra epistolam Manichaei quam vocant fundamenti, V, 6: PL 42, 176.

30 São Jerónimo recorda que, sozinhos, nunca poderemos ler a Escritura. Encontramos demasiadas portas fechadas e caímos facilmente em erro. A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Somente com o «nós», isto é, nesta comunhão com o Povo de Deus, podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o próprio Deus nos quer dizer.[89] Aquele grande estudioso, para quem «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo»,[90] afirma que o carácter eclesial da interpretação bíblica não é uma exigência imposta do exterior; o Livro é precisamente a voz do Povo de Deus peregrino, e só na fé deste Povo é que estamos, por assim dizer, na tonalidade justa para compreender a Sagrada Escritura. Uma autêntica interpretação da Bíblia deve estar sempre em harmónica concordância com a fé da Igreja Católica. Jerónimo escrevia assim a um sacerdote: «Permanece firmemente apegado à doutrina tradicional que te foi ensinada, para que possas exortar segundo a sã doutrina e rebater aqueles que a contradizem».[91]

Abordagens do texto sagrado que prescindam da fé podem sugerir elementos interessantes ao deterem-se sobre a estrutura do texto e as suas formas; inevitavelmente, porém, tal tentativa seria apenas preliminar e estruturalmente incompleta. De facto, como foi afirmado pela Pontifícia Comissão Bíblica, repercutindo um princípio compartilhado na hermenêutica moderna, «o justo conhecimento do texto bíblico só é acessível a quem tem uma afinidade vital com aquilo de que fala o texto».[92] Tudo isto põe em relevo a relação entre a vida espiritual e a hermenêutica da Escritura. De facto, «com o crescimento da vida no Espírito, cresce também no leitor a compreensão das realidades de que fala o texto bíblico».[93] Uma intensa e verdadeira experiência eclesial não pode deixar de incrementar a inteligência da fé autêntica a respeito da Palavra de Deus; e, vice-versa, a leitura na fé das Escrituras faz crescer a própria vida eclesial. Daqui podemos compreender de um modo novo a conhecida afirmação de São Gregório Magno: «As palavras divinas crescem juntamente com quem as lê».[94] Assim, a escuta da Palavra de Deus introduz e incrementa a comunhão eclesial com todos os que caminham na fé.

[89] Cf. Bento XVI, Audiência Geral (14 de Novembro de 2007): Insegnamenti III/2 (2007), 586-591.
[90] Commentariorum in Isaiam libri, Prol.: PL 24, 17.
[91] Epistula 52, 7: CSEL 54, 426.
[92] Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), II, A, 2:Ench. Vat. 13, n. 2988.
[93] Ibid., II, A, 2: o.c., n. 2991.
[94] Homiliae in Ezechielem I, VII, 8: PL 76, 843 D.

«A alma da sagrada teologia»


31 «O estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia»:[95] esta afirmação da Constituição dogmática Dei Verbum foi-se-nos tornando ao longo destes anos cada vez mais familiar. Podemos dizer que o período sucessivo ao Concílio Vaticano II, no que se refere aos estudos teológicos e exegéticos, citou frequentemente esta frase como símbolo do renovado interesse pela Sagrada Escritura. Também a XII Assembleia do Sínodo dos Bispos se referiu várias vezes a esta conhecida afirmação, para indicar a relação entre investigação histórica e hermenêutica da fé aplicadas ao texto sagrado. Nesta perspectiva, os Padres reconheceram, com alegria, o crescimento do estudo da Palavra de Deus na Igreja ao longo dos últimos decénios e exprimiram um vivo agradecimento aos numerosos exegetas e teólogos que, com a sua dedicação, empenho e competência, deram e ainda dão uma contribuição essencial para o aprofundamento do sentido das Escrituras, enfrentando os problemas complexos que o nosso tempo coloca à investigação bíblica.[96] Expressaram sentimentos de sincera gratidão também aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica que se sucederam nestes últimos anos e que, em estreita relação com a Congregação para a Doutrina da Fé, continuam a dar o seu qualificado contributo para enfrentar questões peculiares inerentes ao estudo da Sagrada Escritura. Além disso, o Sínodo sentiu a necessidade de se interrogar sobre o estado dos estudos bíblicos actuais e sobre a sua relevância no âmbito teológico. De facto, da relação fecunda entre exegese e teologia depende, em grande parte, a eficácia pastoral da acção da Igreja e da vida espiritual dos fiéis. Por isso, considero importante retomar algumas reflexões surgidas no debate havido sobre este tema nos trabalhos do Sínodo.

[95] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum,
DV 24; cf. Leão XIII, Carta enc. Providentissimus Deus (18 de Novembro de 1893), Pars II, sub fine: ASS 26 (1893-94), 269-292; Bento XV, Carta enc. Spiritus Paraclitus (15 de Setembro de 1920), Pars III: AAS12 (1920), 385-422.
[96] Cf. Propositio 26.

Desenvolvimento da investigação bíblica e Magistério eclesial


32 Em primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefícios que a exegese histórico-crítica e os outros métodos de análise do texto, desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para a vida da Igreja.[97] Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a estes métodos é imprescindível e está ligada ao realismo da encarnação: «Esta necessidade é a consequência do princípio cristão formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbum caro factum est. O facto histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e, por isso, deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria».[98] Por isso, o estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado destes métodos de pesquisa. Se é verdade que esta sensibilidade no âmbito dos estudos se desenvolveu mais intensamente na época moderna, embora não de igual modo por toda a parte, todavia na sã tradição eclesial sempre houve amor pelo estudo da «letra». Basta recordar aqui a cultura monástica, à qual em última análise devemos o fundamento da cultura europeia: na sua raiz, está o interesse pela palavra. O desejo de Deus inclui o amor pela palavra em todas as suas dimensões: «Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para nós e nós para Ele, é preciso aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê--la na sua estrutura e no seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua».[99]

[97] Cf. Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), A-B:Ench. Vat. 13, n. 2846-3150.
[98] Bento XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 de Outubro de 2008):Insegnamenti IV/2 (2008), 492; cf. Propositio 25.
[99] Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 722-723.

33 O Magistério vivo da Igreja, ao qual compete «o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição»,[100] interveio com sapiente equilíbrio relativamente à justa posição a tomar face à introdução dos novos métodos de análise histórica. Refiro-me, de modo particular, às encíclicas Providentissimus Deus do Papa Leão XIII e Divino afflante Spiritu do Papa Pio XII. O meu venerável predecessor João Paulo II recordou a importância destes documentos para a exegese e a teologia, por ocasião da celebração do centenário e cinquentenário respectivamente da sua publicação.[101] A intervenção do Papa Leão XIII teve o mérito de proteger a interpretação católica da Bíblia dos ataques do racionalismo, sem contudo se refugiar num sentido espiritual separado da história. Não desprezava a crítica científica; desconfiava-se somente «das opiniões preconcebidas que pretendem fundar-se sobre a ciência mas, na realidade, fazem astuciosamente sair a ciência do seu campo».[102] Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se perante os ataques dos adeptos duma exegese chamada mística, que recusava qualquer abordagem científica. Com grande sensibilidade, a Encíclica Divino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de uma dicotomia entre a «exegese científica» para o uso apologético e a «interpretação espiritual reservada ao uso interno», afirmando, pelo contrário, quer o «alcance teológico do sentido literal metodicamente definido», quer a pertença da «determinação do sentido espiritual (…) ao campo da ciência exegética».[103] De tal modo ambos os documentos recusam «a ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisa científica e a visão da fé, entre o sentido literal e o sentido espiritual».[104] Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no documento de 1993 da Pontifícia Comissão Bíblica: «No seu trabalho de interpretação, os exegetas católicos jamais devem esquecer que interpretam a Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que distinguiram as fontes, definiram as formas ou explicaram os processos literários. O objectivo do seu trabalho só está alcançado quando tiverem esclarecido o significado do texto bíblico como Palavra actual de Deus».[105]

[100] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum,
DV 10.
[101] Cf. João Paulo II, Discurso por ocasião do centenário da Providentissimus Deus e do cinquentenário da Divino afflante Spiritu (23 de Abril de 1993): AAS 86 (1994), 232-243.
[102] Ibid., 4: o.c., 235.
[103] Ibid., 5: o.c., 235.
[104] Ibid., 5: o.c., 236.
[105] Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), III, C, 1: Ench. Vat. 13, n. 3065.

A hermenêutica bíblica conciliar: uma indicação a acolher


34 A partir deste horizonte, podem-se apreciar melhor os grandes princípios da interpretação próprios da exegese católica expressos pelo Concílio Vaticano II, particularmente na Constituição dogmática Dei Verbum: «Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras».[106] O Concílio, por um lado, sublinha, como elementos fundamentais para identificar o significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos géneros literários e a contextualização; por outro, devendo a Escritura ser interpretada no mesmo Espírito em que foi escrita, a Constituição dogmática indica três critérios de base para se respeitar a dimensão divina da Bíblia: 1) interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto hoje chama-se exegese canónica; 2) ter presente a Tradição viva de toda a Igreja; 3) observar a analogia da fé. «Somente quando se observam os dois níveis metodológicos, histórico-crítico e teológico, é que se pode falar de uma exegese teológica, de uma exegese adequada a este Livro».[107]

Os Padres sinodais afirmaram, justamente, que o fruto positivo produzido pelo uso da investigação histórico-crítica moderna é inegável. Mas, enquanto a exegese académica actual, mesmo católica, trabalha a alto nível no que se refere à metodologia histórico-crítica, incluindo as suas mais recentes integrações, é forçoso exigir um estudo análogo da dimensão teológica dos textos bíblicos, para que progrida o aprofundamento segundo os três elementos indicados pela Constituição dogmática Dei Verbum.[108]

[106] N.
DV 12.
[107] Bento XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 de Outubro de 2008):Insegnamenti IV/2 (2008), 493; cf. Propositio 25.
[108] Cf. Propositio 26.

O perigo do dualismo e a hermenêutica secularizada

35 A este propósito, é preciso sublinhar hoje o grave risco de um dualismo que se gera ao abordar as Sagradas Escrituras. De facto, distinguindo os dois níveis da abordagem bíblica, não se pretende de modo algum separá-los, contrapô-los, ou simplesmente justapô-los. Só funcionam em reciprocidade. Infelizmente, não raro uma infrutífera separação dos mesmos leva a exegese e a teologia a comportarem-se como estranhas; e isto «acontece mesmo aos níveis académicos mais altos».[109]Desejo aqui lembrar as consequências mais preocupantes que se devem evitar.

a) Antes de mais nada, se a actividade exegética se reduz só ao primeiro nível, consequentemente a própria Escritura torna-se um texto só do passado: «Daí podem-se tirar consequências morais, pode-se aprender a história, mas o Livro como tal fala só do passado e a exegese já não é realmente teológica, mas torna-se pura historiografia, história da literatura».[110] É claro que, numa tal redução, não é possível de modo algum compreender o acontecimento da revelação de Deus através da sua Palavra que nos é transmitida na Tradição viva e na Escritura.

b) A falta de uma hermenêutica da fé na abordagem da Escritura não se apresenta apenas em termos de uma ausência; o seu lugar acaba inevitavelmente ocupado por outra hermenêutica, uma hermenêutica secularizada, positivista, cuja chave fundamental é a convicção de que o Divino não aparece na história humana. Segundo esta hermenêutica, quando parecer que há um elemento divino, isso deve-se explicar de outro modo, reduzindo tudo ao elemento humano. Consequentemente propõem-se interpretações que negam a historicidade dos elementos divinos.[111]

c) Uma tal posição não pode deixar de danificar a vida da Igreja, fazendo surgir dúvidas sobre mistérios fundamentais do cristianismo e sobre o seu valor histórico, como, por exemplo, a instituição da Eucaristia e a ressurreição de Cristo. De facto, assim impõe-se uma hermenêutica filosófica, que nega a possibilidade de ingresso e presença do Divino na história. A assunção de tal hermenêutica no âmbito dos estudos teológicos introduz, inevitavelmente, um gravoso dualismo entre a exegese, que se situa unicamente no primeiro nível, e a teologia que leva a uma espiritualização do sentido das Escrituras não respeitadora do carácter histórico da revelação.

Tudo isto não pode deixar de resultar negativo também para a vida espiritual e a actividade pastoral; «a consequência da ausência do segundo nível metodológico é que se criou um fosso profundo entre exegese científica e lectio divina. E precisamente daqui nasce às vezes uma forma de perplexidade na própria preparação das homilias».[112] Além disso, há que assinalar que tal dualismo produz às vezes incerteza e pouca solidez no caminho de formação intelectual mesmo de alguns candidatos aos ministérios eclesiais.[113] Enfim, «onde a exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a alma da teologia e, vice-versa, onde a teologia não é essencialmente interpretação da Escritura na Igreja, esta teologia já não tem fundamento».[114] Portanto, é necessário voltar decididamente a considerar com mais atenção as indicações dadas pela Constituição dogmática Dei Verbum a este propósito.

[109] Propositio 27.
[110] Bento XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 de Outubro de 2008):Insegnamenti IV/2 (2008), 493; cf. Propositio 26.
[111] Cf. ibid.: o.c. 493; propositio 26.
[112] Ibid.: o.c. 493; cf. Propositio 26.
[113] Cf. Propositio 27.
[114] Bento XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 de Outubro de 2008):Insegnamenti IV/2 (2008), 493-494.

Fé e razão na abordagem da Escritura


36 Creio que pode contribuir para uma compreensão mais completa da exegese e, consequentemente, da sua relação com a teologia inteira aquilo que escreveu o Papa João Paulo II na Encíclica Fides et ratio a este respeito. Afirmava ele que não se deve subestimar «o perigo que existe quando se quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicação de uma única metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita o acesso, em união com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas metodologias hermenêuticas têm também na sua base uma concepção filosófica: é preciso examiná-las com grande discernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados».[115]

Esta clarividente reflexão permite-nos ver como, na abordagem hermenêutica da Sagrada Escritura, está em jogo inevitavelmente a relação correcta entre fé e razão. De facto, a hermenêutica secularizada da Sagrada Escritura é actuada por uma razão que quer estruturalmente fechar-se à possibilidade de Deus entrar na vida dos homens e falar aos homens com palavras humanas. Por isso é necessário, também neste caso, convidar a alargar os espaços da própria racionalidade.[116]Na utilização dos métodos de análise histórica, dever-se-á evitar de assumir, sempre que aparecem, critérios que preconceituosamente se fechem à revelação de Deus na vida dos homens. A unidade dos dois níveis do trabalho interpretativo da Sagrada Escritura pressupõe, em última análise, umaharmonia entre a fé e a razão. Por um lado, é necessária uma fé que, mantendo uma adequada relação com a recta razão, nunca degenere em fideísmo, que se tornaria, a respeito da Escritura, fautor de leituras fundamentalistas. Por outro, é necessária uma razão que, investigando os elementos históricos presentes na Bíblia, se mostre aberta e não recuse aprioristicamente tudo o que excede a própria medida. Aliás, a religião do Logos encarnado não poderá deixar de apresentar-se profundamente razoável ao homem que sinceramente procura a verdade e o sentido último da própria vida e da história.

[115] João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998),
FR 55: AAS 91 (1999), 49-50.
[116] Cf. Bento XVI, Discurso no IV Congresso Nacional da Igreja em Itália (19 de Outubro de 2006): AAS 98 (2006), 804-815.

Sentido literal e sentido espiritual

37 Como foi afirmado na assembleia sinodal, um significativo contributo para a recuperação de uma adequada hermenêutica da Escritura provém de uma renovada escuta dos Padres da Igreja e da sua abordagem exegética.[117] Com efeito, os Padres da Igreja oferecem-nos, ainda hoje, uma teologia de grande valor, porque no centro está o estudo da Sagrada Escritura na sua integridade. De facto, os Padres são primária e essencialmente «comentadores da Sagrada Escritura».[118] O seu exemplo pode «ensinar aos exegetas modernos uma abordagem verdadeiramente religiosa da Sagrada Escritura, e também uma interpretação que se atém constantemente ao critério de comunhão com a experiência da Igreja, que caminha através da história sob a guia do Espírito Santo».[119]

Apesar de não conhecer, obviamente, os recursos de ordem filológica e histórica à disposição da exegese moderna, a tradição patrística e medieval sabia reconhecer os vários sentidos da Escritura, a começar pelo literal, isto é, «o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese segundo as regras da recta interpretação».[120] Por exemplo, São Tomás de Aquino afirma: «Todos os sentidos da Sagrada Escritura se fundamentam no literal».[121] É preciso, porém, recordar-se de que, no período patrístico e medieval, toda a forma de exegese, incluindo a literal, era feita com base na fé, não havendo necessariamente distinção entre sentido literal e sentido espiritual. A propósito, recorde-se o dístico clássico que traduz a relação entre os diversos sentidos da Escritura:

«Littera gesta docet, quid credas allegoria,
Moralis quid agas, quo tendas anagogia.
A letra ensina-te os factos [passados], a alegoria o que deves crer,
A moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender».[122]

Sobressai aqui a unidade e a articulação entre sentido literal e sentido espiritual, o qual, por sua vez, se subdivide em três sentidos que descrevem os conteúdos da fé, da moral e da tensão escatológica.

Em suma, reconhecendo o valor e a necessidade – apesar dos seus limites – do método histórico-crítico, pela exegese patrística, aprendemos que «só se é fiel à intencionalidade dos textos bíblicos na medida em que se procura encontrar, no coração da sua formulação, a realidade de fé que os mesmos exprimem e em que se liga esta realidade com a experiência crente do nosso mundo».[123]Somente nesta perspectiva se pode reconhecer que a Palavra de Deus é viva e se dirige a cada um de nós no momento presente da nossa vida. Continua assim plenamente válida a afirmação da Pontifícia Comissão Bíblica que define o sentido espiritual, segundo a fé cristã, como «o sentido expresso pelos textos bíblicos quando são lidos sob o influxo do Espírito Santo no contexto do mistério pascal de Cristo e da vida nova que dele resulta. Este contexto existe efectivamente. O Novo Testamento reconhece nele o cumprimento das Escrituras. Por isso, é normal reler as Escrituras à luz deste novo contexto, o da vida no Espírito».[124]

[117] Cf. Propositio 6.
[118] Cf. Santo Agostinho, De libero arbitrio, III, XXI, 59: PL 32, 1300; De Trinitate, II, I, 2:PL 42, 845.
[119] Congr. para a Educação Católica, Instr. Inspectis dierum (10 de Novembro de 1989), 26:AAS 82 (1990), 618.
[120] Catecismo da Igreja Católica,
CEC 116.
[121] Summa theologiae, I 1,10, ad 1.
[122] Catecismo da Igreja Católica, CEC 118.
[123] Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), II, A, 2: Ench. Vat. 13, n. 2987.
[124] Ibid., II, B, 2: o.c., n. 3003.

A necessária superação da «letra»


38 Para se recuperar a articulação entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se então decisivo identificar a passagem entre letra e espírito.Não se trata de uma passagem automática e espontânea; antes, é preciso transcender a letra: «de facto, a Palavra do próprio Deus nunca se apresenta na simples literalidade do texto. Para alcançá-la, é preciso transcender a literalidade num processo de compreensão, que se deixa guiar pelo movimento interior do conjunto e, portanto, deve tornar-se também um processo de vida».[125] Descobrimos assim o motivo por que um autêntico processo interpretativo nunca é apenas intelectual, mas também vital, que requer o pleno envolvimento na vida eclesial enquanto vida «segundo o Espírito» (Ga 5,16). Deste modo tornam-se mais claros os critérios evidenciados pelo número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum DV 12: a referida superação não pode verificar-se no fragmento literário individual mas em relação com a totalidade da Escritura. De facto, é uma única Palavra aquela para a qual somos chamados a transcender. Este processo possui uma íntima dramaticidade, porque, no processo de superação, a passagem que acontece em virtude do Espírito tem inevitavelmente a ver também com a liberdade de cada um. São Paulo viveu plenamente na sua própria vida esta passagem. O que significa transcender a letra e a sua compreensão unicamente a partir do conjunto, expressou-o ele de modo radical nesta frase: «A letra mata, mas o Espírito vivifica» (2Co 3,6). São Paulo descobre que «o Espírito libertador tem um nome e que a liberdade tem, consequentemente, uma medida interior: “O Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor há liberdade” (2Co 3,17). O Espírito libertador não é simplesmente a própria ideia, a visão pessoal de quem interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que nos indica a estrada».[126] Sabemos como esta passagem foi dramática e simultaneamente libertadora em Santo Agostinho; ele acreditou nas Escrituras, que antes se lhe apresentavam muito diversificadas em si mesmas e às vezes indelicadas, precisamente por esta superação que aprendeu de Santo Ambrósio mediante a interpretação tipológica, segundo a qual todo o Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Para Santo Agostinho, transcender a letra tornou credível a própria letra e permitiu-lhe encontrar finalmente a resposta às profundas inquietações do seu espírito, sedento da verdade.[127]

[125] Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 726.
[126] Ibid.: o.c., 726.
[127] Cf. Bento XVI, Audiência Geral (9 de Janeiro de 2008): Insegnamenti IV/1 (2008), 41-45.

A unidade intrínseca da Bíblia


39 Na escola da grande tradição da Igreja, aprendemos na passagem da letra ao espírito a identificar também a unidade de toda a Escritura, pois única é a Palavra de Deus que interpela a nossa vida, chamando-a constantemente à conversão.[128] Continuam a ser para nós uma guia segura as expressões de Hugo de São Víctor: «Toda a Escritura divina constitui um único livro e este único livro é Cristo, fala de Cristo e encontra em Cristo a sua realização».[129] É certo que a Bíblia, vista sob o aspecto puramente histórico ou literário, não é simplesmente um livro, mas uma colectânea de textos literários, cuja redacção se estende por mais de um milénio e cujos diversos livros não são facilmente reconhecíveis como partes duma unidade interior; antes, há tensões palpáveis entre eles. Se isto já se verifica no interior da Bíblia de Israel, que nós, cristãos, chamamos Antigo Testamento, muito mais quando nós, como cristãos, ligamos o Novo Testamento e os seus escritos – como se fosse a chave hermenêutica – com a Bíblia de Israel interpretando-a como caminho para Cristo. No Novo Testamento, aparece menos a expressão «a Escritura» (cf. Rm 4,3 1P 1,6), do que «as Escrituras» (cf. Mt 21,43 Jn 5,39 Rm 1,2 2P 3,16), que porém, no seu conjunto, são depois consideradas como a única Palavra de Deus dirigida a nós.[130] Por isso se vê claramente como é a pessoa de Cristo que dá unidade a todas as «Escrituras» postas em relação com a única «Palavra». Compreende-se assim a afirmação do número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum, quando indica a unidade interna de toda a Bíblia como critério decisivo para uma correcta hermenêutica da fé DV 12.

[128] Cf. Propositio 29.
[129] De arca Noe, 2, 8: PL 176, 642 C-D.
[130] Cf. Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris(12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 725.

A relação entre Antigo e Novo Testamento


40 Na perspectiva da unidade das Escrituras em Cristo, tanto os teólogos como os pastores necessitam de estar conscientes das relações entre o Antigo e o Novo Testamento. Em primeiro lugar, é evidente que o próprio Novo Testamento reconhece o Antigo Testamento como Palavra de Deus e, por conseguinte, admite a autoridade das Sagradas Escrituras do povo judeu.[131]Reconhece-as implicitamente, quando usa a mesma linguagem e frequentemente alude a trechos destas Escrituras; reconhece-as explicitamente, porque cita muitas partes servindo-se delas para argumentar. Uma argumentação baseada nos textos do Antigo Testamento reveste-se assim, no Novo Testamento, de um valor decisivo, superior ao de raciocínios simplesmente humanos. No quarto Evangelho, a este propósito Jesus declara que «a Escritura não pode ser anulada» (Jn 10,35) e São Paulo especifica de modo particular que a revelação do Antigo Testamento continua a valer para nós, cristãos (cf. Rm 15,4 1Co 10,11).[132] Além disso, afirmamos que «Jesus de Nazaré foi um judeu e a Terra Santa é terra-mãe da Igreja»;[133] a raiz do cristianismo encontra-se no Antigo Testamento e sempre se nutre desta raiz. Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou qualquer forma emergente de marcionismo, que tende de diversos modos a contrapor entre si o Antigo e o Novo Testamento.[134]

Além disso, o próprio Novo Testamento se diz em conformidade com o Antigo e proclama que, no mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, encontraram o seu perfeito cumprimento as Escrituras Sagradas do povo judeu. Mas é preciso notar que o conceito de cumprimento das Escrituras é complexo, porque comporta uma tríplice dimensão: um aspecto fundamental decontinuidade com a revelação do Antigo Testamento, um aspecto de ruptura e um aspecto decumprimento e superação. O mistério de Cristo está em continuidade de intenção com o culto sacrificial do Antigo Testamento; mas realizou-se de um modo muito diferente, que corresponde a muitos oráculos dos profetas, e alcançou assim uma perfeição nunca antes obtida. De facto, o Antigo Testamento está cheio de tensões entre os seus aspectos institucionais e os seus aspectos proféticos. O mistério pascal de Cristo está plenamente de acordo – embora de uma forma que era imprevisível – com as profecias e o aspecto prefigurativo das Escrituras; mas apresenta evidentes aspectos de descontinuidade relativamente às instituições do Antigo Testamento.

[131] Cf. Propositio 10; Pont. Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas sagradas Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio de 2001), 3-5: Ench. Vat. 20, n. 748-755.
[132] Cf. Catecismo da Igreja Católica, CEC 121-122.
[133] Propositio 52.
[134] Cf. Pont. Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas sagradas Escrituras na Bíblia cristã(24 de Maio de 2001), 19: Ench. Vat. 20, n. 799-801; Orígenes, Homilia sobre Números 9, 4: SC415, 238-242.

41 Estas considerações mostram assim a importância insubstituível do Antigo Testamento para os cristãos, mas ao mesmo tempo evidenciam a originalidade da leitura cristológica. Desde os tempos apostólicos e depois na Tradição viva, a Igreja deixou clara a unidade do plano divino nos dois Testamentos graças à tipologia, que não tem carácter arbitrário mas é intrínseca aos acontecimentos narrados pelo texto sagrado e, por conseguinte, diz respeito a toda a Escritura. A tipologia «descobre nas obras de Deus, na Antiga Aliança, prefigurações do que o mesmo Deus realizou, na plenitude dos tempos, na pessoa do seu Filho encarnado».[135] Por isso os cristãos lêem o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. Se a leitura tipológica revela o conteúdo inesgotável do Antigo Testamento relativamente ao Novo, não deve todavia fazer-nos esquecer que aquele mantém o seu próprio valor de Revelação que Nosso Senhor veio reafirmar (cf. Mc 12,29-31). Por isso «também o Novo Testamento requer ser lido à luz do Antigo. A catequese cristã primitiva recorreu constantemente a este método (cf. 1Co 5,6-8 1Co 10,1-11)».[136] Por este motivo, os Padres sinodais afirmaram que «a compreensão judaica da Bíblia pode ajudar a inteligência e o estudo das Escrituras por parte dos cristãos».[137]

Assim se exprimia, com aguda sabedoria, Santo Agostinho sobre este tema: «O Novo Testamento está oculto no Antigo e o Antigo está patente no Novo».[138] Deste modo, tanto em âmbito pastoral como em âmbito académico, importa que seja colocada bem em evidência a relação íntima entre os dois Testamentos, recordando com São Gregório Magno que aquilo que «o Antigo Testamento prometeu, o Novo Testamento fê-lo ver; o que aquele anuncia de maneira oculta, este proclama abertamente como presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo Testamento; e o melhor comentário do Antigo Testamento é o Novo Testamento».[139]

[135] Catecismo da Igreja Católica, CEC 128.
[136] Ibid., CEC 129.
[137] Propositio 52.
[138] Quaestiones in Heptateuchum, 2, 73: PL 34, 623.
[139] Homiliae in Ezechielem, I, VI, 15: PL 76, 836 B.


Verbum Domini PT 28