Veritatis splendor PT 16

«Se queres ser perfeito» (MT 19,21)

16 (Mt 19,21)
A resposta sobre os mandamentos não satisfaz o jovem, que pergunta a Jesus: «Tenho cumprido tudo isto; que me falta ainda? » (Mt 19,20). Não é fácil dizer em sã consciência: «tenho cumprido tudo isto», quando se começa a compreender o alcance efectivo das exigências contidas na Lei de Deus. E contudo, mesmo sendo-lhe possível dar semelhante resposta, mesmo tendo seguido o ideal moral com seriedade e generosidade desde a sua infância, o jovem rico sabe que está ainda longe da meta: diante da pessoa de Jesus, percebe que ainda lhe falta alguma coisa. É à consciência desta insuficiência que se dirige Jesus, na Sua última resposta: aproveitando a nostalgia de uma plenitude que supere a interpretação legalista dos mandamentos, o bom Mestre convida o jovem a tomar a estrada da perfeição: «Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-Me» (Mt 19,21).

Tal como já sucedeu na passagem precedente da resposta de Jesus, também esta deve ser lida e interpretada no contexto de toda a mensagem moral do Evangelho e, especialmente, no contexto do Discurso da Montanha, das bem-aventuranças (cf. Mt 5,3-12), a primeira das quais é precisamente a bem-aventurança dos pobres, dos «pobres em espírito», como esclarece S. Mateus (Mt 5,3), ou seja, dos humildes. Neste sentido, pode-se dizer que também as bem-aventuranças entram no espaço aberto pela resposta de Jesus à pergunta do jovem: «Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». De facto, cada bem-aventurança promete, desde uma particular perspectiva, precisamente aquele «bem» que abre o homem à vida eterna, mais, que é a própria vida eterna.

As bem-aventuranças não têm propriamente por objecto normas particulares de comportamento, mas falam de atitudes e disposições de fundo da existência e, portanto, não coincidem exactamente com os mandamentos. Por outro lado, não há separação ou oposição entre as bem-aventuranças e os mandamentos: ambos se referem ao bem, à vida eterna. O Discurso da Montanha começa pelo anúncio das bem-aventuranças, mas contém também a referência aos mandamentos (cf. Mt 5,20-48). Ao mesmo tempo, esse Discurso mostra a abertura e a orientação dos mandamentos para a perspectiva da perfeição, própria das bem-aventuranças. Estas são, antes de tudo, promessas, das quais de modo indirecto derivam também indicações normativas para a vida moral. Na sua profundidade original, são uma espécie de auto-retrato de Cristo e, precisamente por isso, constituem convites ao Seu seguimento e à comunhão de vida com Ele. 26

26. Cf. Catecismo de la Iglesia Católica, n. CEC 1717.



17 Não sabemos até que ponto o jovem do Evangelho tenha compreendido o conteúdo profundo e exigente da primeira resposta dada por Jesus: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos»; certo é, porém, que o compromisso professado pelo jovem a respeito de todas as exigências morais dos mandamentos, constitui o terreno indispensável onde poderá germinar e amadurecer o desejo da perfeição, ou seja, da realização do seu sentido mais amplo no seguimento de Cristo. O diálogo de Jesus com o jovem ajuda-nos a identificar as condições necessárias para o crescimento moral do homem chamado à perfeição: o jovem, que observou todos os mandamentos, mostra-se incapaz de, unicamente com as suas forças, dar o passo seguinte. Para o conseguir, são precisos uma liberdade humana amadurecida: «Se queres», e o dom divino da graça: «Vem, e segue-Me».

A perfeição exige aquela maturidade no dom de si, a que é chamada a liberdade do homem. Jesus indica ao jovem os mandamentos como a primeira condição imprescindível para obter a vida eterna; o abandono de tudo quanto o jovem possui e o seguimento do Senhor assumem, pelo contrário, o carácter de uma proposta: «Se queres... ». A palavra de Jesus revela a dinâmica particular do crescimento da liberdade em direcção à sua maturidade e, ao mesmo tempo, comprova a relação fundamental da liberdade com a lei divina. A liberdade do homem e a lei de Deus não se opõem, pelo contrário, reclamam-se mutuamente. O discípulo de Cristo sabe que a sua é uma vocação para a liberdade. «Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade» (
Ga 5,13), proclama com alegria e orgulho o apóstolo Paulo. Mas logo precisa: «Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade» (ibid. Ga 5,13). A firmeza com que o Apóstolo se opõe a quem confia a própria justificação à Lei, nada tem a ver com a «libertação» do homem dos preceitos, os quais, pelo contrário, estão ao serviço da prática do amor: «Pois quem ama o próximo cumpre a Lei. Com efeito, o preceito: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás e qualquer um dos outros mandamentos resumem-se nestas palavras: Amarás o próximo como a ti mesmo» (Rm 13,8-9). O mesmo S. Agostinho, depois de ter falado da observância dos mandamentos como sendo a primeira e imperfeita liberdade, assim continua: «Não é ainda perfeita, por quê? — perguntará alguém. Porque "sinto nos meus membros uma outra lei em conflito com a lei da minha razão" (...) Liberdade parcial, parcial escravidão: a liberdade ainda não é completa, não é ainda pura, não é ainda plena, porque ainda não estamos na eternidade. Conservamos, em parte, a fraqueza, e, em parte, alcançamos já a liberdade. Todos os nossos pecados foram destruídos no baptismo, mas porventura desapareceu a fraqueza, depois de ter sido destruída a iniquidade? Se aquela tivesse desaparecido, viver-se-ia na terra sem pecado. Quem ousará afirmar isto a não ser o soberbo ou quem é indigno da misericórdia do libertador? (...) Ora, uma vez que ficou em nós alguma fraqueza, ouso dizer que, na medida em que servimos a Deus somos livres, mas somos escravos na medida em que seguimos a lei do pecado».27

27. In Iohannis Evangelium Tractatus, 41, 10: CCL 36, 363.



18 Quem vive «segundo a carne» sente a lei de Deus como um peso, mais, como uma negação ou, pelo menos, uma restrição da própria liberdade. Ao contrário, quem é animado pelo amor e «caminha segundo o Espírito» (Ga 5,16) e deseja servir os outros, encontra na lei de Deus o caminho fundamental e necessário para praticar o amor, livremente escolhido e vivido. Mais ainda, ele percebe a urgência interior — uma verdadeira e própria «necessidade», e não já uma imposição — de não se deter nas exigências mínimas da lei, mas de vivê-las em toda a sua «plenitude». É um caminho ainda incerto e frágil, enquanto estivermos na terra, mas tornado possível pela graça que nos outorga a posse da plena liberdade dos filhos de Deus (cf. Rm 8,21) e, portanto, de responder na vida moral à sublime vocação de ser «filhos no Filho».

Esta vocação ao amor perfeito não está reservada só para um círculo de pessoas. O convite «vai, vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres» com a promessa «terás um tesouro no céu», dirige-se a todos, porque é uma radicalização do mandamento do amor ao próximo, assim como o convite posterior «vem e segue-Me» é a nova forma concreta do mandamento do amor de Deus. Os mandamentos e o convite de Jesus ao jovem rico estão ao serviço de uma única e indivisível caridade, que espontaneamente tende à perfeição, cuja medida é só Deus: «Sede, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste» (Mt 5,48). No Evangelho de S. Lucas, Jesus precisa ainda mais o sentido desta perfeição: «Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6,36).



«Vem e segue-Me» (MT 19,21)

19 (Mt 19,21)
O caminho e, simultaneamente, o conteúdo desta perfeição consiste na sequela Christi, no seguir Jesus, depois de ter renunciado aos próprios bens e a si mesmo. Esta é precisamente a conclusão do diálogo de Jesus com o jovem: «Depois, vem e segue-Me» (Mt 19,21). É um convite, cuja maravilhosa profundidade será plenamente compreendida pelos discípulos só depois da ressurreição de Cristo, quando o Espírito Santo os guiar para a verdade total (cf. Jn 16,13).

É o próprio Jesus que toma a iniciativa, chamando para O seguir. O apelo é feito, antes de mais, àqueles a quem Ele confia uma missão particular, a começar pelos Doze; mas vê-se claramente também que ser discípulo de Cristo é a condição de todo o crente (cf. Ac 6,1). Por isso, seguir Cristo é o fundamento essencial e original da moral cristã: como o povo de Israel seguia Deus que o conduzia no deserto rumo à Terra Prometida (cf. Ex 13,21), assim o discípulo deve seguir Jesus, para o Qual é atraído pelo próprio Pai (cf. Jn 6,44).

Aqui não se trata apenas de dispor-se a ouvir um ensinamento e de acolher na obediência um mandamento. Trata-se, mais radicalmente, de aderir à própria pessoa de Cristo, de compartilhar a sua vida e o seu destino, de participar da sua obediência livre e amorosa à vontade do Pai. Seguindo, mediante a resposta da fé, Aquele que é a Sabedoria encarnada, o discípulo de Jesus torna-se verdadeiramente discípulo de Deus (cf. Jn 6,45). De facto, Jesus é a luz do mundo, a luz da vida (cf. Jn 8,12); é o pastor que guia e alimenta as ovelhas (cf. Jn 10,11-16), é o caminho, a verdade e a vida (cf. Jn 14,6), é Aquele que conduz ao Pai, ao ponto que vê-Lo a Ele, o Filho, é ver o Pai (cf. Jn 14,6-10). Portanto, imitar o Filho, «a imagem do Deus invisível» (Col 1,15), significa imitar o Pai.



20 Jesus pede para O seguir e imitar pelo caminho do amor, de um amor que se dá totalmente aos irmãos por amor de Deus: «O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei» (Jn 15,12). Este «como» exige a imitação de Jesus, do seu amor, de que o lava-pés é sinal: «Se eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também» (Jn 13,14-15). O comportamento de Jesus e a Sua palavra, as Suas acções e os Seus preceitos constituem a regra moral da vida cristã. De facto, estas suas acções e, particularmente, a sua paixão e morte na cruz são a revelação viva do Seu amor pelo Pai e pelos homens. É precisamente este amor que Jesus pede seja imitado por quantos O seguem. Este é o mandamento «novo»: «Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros. É por isto que todos saberão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jn 13,34-35).

Este «como» indica também a medida com que Jesus amou, e com a qual os seus discípulos se devem amar entre si. Depois de ter dito: «O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros,como eu vos amei» (Jn 15,12), Jesus prossegue com as palavras que indicam o dom sacrifical da sua vida na cruz, como testemunho de um amor «até ao fim» (Jn 13,1): «Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos» (Jn 15,13).

Ao chamar o jovem para O seguir pelo caminho da perfeição, Jesus pede-lhe para ser perfeito no mandamento do amor, no «Seu» mandamento: para inserir-se no movimento da Sua doação total, para imitar e reviver o próprio amor do Mestre «bom», d'Aquele que amou «até ao fim». É o que Jesus pede a cada homem que quer segui-l'O: «Se alguém quiser vir após Mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me» (Mt 16,24).



21 Seguir Cristo não é uma imitação exterior, já que atinge o homem na sua profunda interioridade. Ser discípulo de Jesus significa tornar-se conforme a Ele, que Se fez servo até ao dom de Si sobre a cruz (cf. Ph 2,5-8). Pela fé, Cristo habita no coração do crente (cf. Ep 3,17), e assim o discípulo é assimilado ao seu Senhor e configurado com Ele. Isto é fruto da graça, da presença operante do Espírito Santo em nós.

Inserido em Cristo, o cristão torna-se membro do Seu Corpo, que é a Igreja (cf. 1Co 12,13 1Co 12,27). Sob o influxo do Espírito, oBaptismo configura radicalmente o fiel a Cristo no mistério pascal da morte e ressurreição, «reveste-o» de Cristo (cf. Ga 3,27): «Alegremo-nos e agradeçamos — exclama S. Agostinho dirigindo-se aos baptizados —: tornamo-nos não apenas cristãos, mas Cristo (...). Maravilhai-vos e regozijai: tornamo-nos Cristo!». 28 Morto para o pecado, o baptizado recebe a vida nova (cf. Rm 6,3-11): vivendo para Deus em Jesus Cristo, é chamado a caminhar segundo o Espírito e a manifestar na vida os seus frutos (cf. Ga 5,16-25). Depois a participação na Eucaristia, sacramento da Nova Aliança (cf. 1Co 11,23-29), é o ápice da assimilação a Cristo, fonte de «vida eterna» (cf. Jn 6,51-58), princípio e força do dom total de si mesmo, que Jesus — segundo o testemunho transmitido por S. Paulo — manda rememorar na celebração e na vida: «Sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha» (1Co 11,26).

28. Ibid., 21, 8: CCL 36, 216.


«A Deus tudo é possível» (MT 19,26)

22 (Mt 19,26)
Amarga é a conclusão do colóquio de Jesus com o jovem rico: «Ao ouvir isto, o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens» (Mt 19,22). Não só o homem rico, mas também os próprios discípulos se assustam com o apelo de Jesus para O seguir, cujas exigências superam as aspirações e as forças humanas: «Ao ouvir isto, os discípulos ficaram estupefactos e disseram: "Quem pode então salvar-se?"» (Mt 19,25). Mas o Mestre faz apelo ao poder de Deus: «Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível» (Mt 19,26).

No mesmo capítulo do Evangelho de Mateus (Mt 19,3-10), Jesus, ao interpretar a Lei mosaica sobre o matrimónio, rejeita o direito de repúdio, apoiando-se num «princípio» mais original e autêntico que a Lei de Moisés: o desígnio primordial de Deus sobre o homem, um desígnio para o qual o homem, após o pecado, se tornou inadequado: «Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres, mas ao princípio não foi assim» (Mt 19,8). A chamada ao «princípio» abala os discípulos, que comentam com estas palavras: «Se essa é a situação do homem perante a mulher, não é conveniente casar-se!» (Mt 19,10). E Jesus, referindo-se especificamente ao carisma do celibato «pelo Reino dos céus» (Mt 19,12), mas enunciando uma regra geral, apela para a nova e surpreendente possibilidade aberta ao homem pela graça de Deus: «Ele respondeu-lhes: "Nem todos compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado"» (Mt 19,11).

Ao homem, não é possível imitar e reviver o amor de Cristo unicamente com as suas forças. Torna-se capaz deste amor somente em virtude de um dom recebido. Tal como o Senhor Jesus recebe o amor do seu Pai, assim Ele, por Sua vez, comunica-o gratuitamente aos discípulos: «Como o Pai Me amou, também Eu vos amei; permanecei no Meu amor» (Jn 15,9). O dom de Cristo é o Seu Espírito, cujo «fruto» primeiro (cf. Ga 5,22) é a caridade: «O amor de Deus foi derramado em nossos corações, pelo Espírito Santo, que nos foi concedido» (Rm 5,5). S. Agostinho pergunta- -se: «É o amor que nos faz cumprir os mandamentos, ou é a observância dos mandamentos que faz nascer o amor?». E responde: «Mas quem pode pôr em dúvida que o amor precede a observância? Quem, de facto, não ama está privado de motivações para cumprir os mandamentos».29

29. Ibid., 82, 3: CCL 36, 533.



23 «A lei do Espírito de vida em Cristo Jesus, libertou-nos da lei do pecado e da morte» (Rm 8,2). Com estas palavras, o apóstolo Paulo nos leva a considerar, na perspectiva da história da Salvação que se cumpre em Cristo, a relação entre a Lei (antiga) e a graça (nova Lei). Ele reconhece o papel pedagógico da Lei, a qual permitindo ao homem pecador medir a sua fraqueza e retirando-lhe a presunção da auto-suficiência, abre-o à invocação e ao acolhimento da «vida no Espírito». Só nesta vida nova é possível a prática dos mandamentos de Deus. Com efeito, é pela fé em Cristo que fomos justificados (cf. Rm 3,28): a «justiça» que a Lei exige, mas não pode dar a ninguém, encontra-a o crente manifestada e concedida pelo Senhor Jesus. De forma admirável, o mesmo S. Agostinho sintetiza a dialéctica paulina sobre a lei e a graça: «Portanto, a lei foi dada para se invocar a graça; a graça foi dada para que se observasse a lei».30

O amor e a vida segundo o Evangelho não podem ser pensados primariamente em termos de preceito, porque o que eles pedem supera as forças do homem: apenas são possíveis como fruto de um dom de Deus, que restaura, cura e transforma o coração do homem através da Sua graça: «Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo» (Jn 1,17). Por isso, a promessa da vida eterna está unida ao dom da graça, e o dom do Espírito que recebemos é já «penhor da nossa herança» (cf. Ep 1,14).

30. De spiritu et littera, 19, 34: CSEL 60, 187.



24 Revela-se assim a face autêntica e original do mandamento do amor e da perfeição, à qual aquele se ordena: trata-se de umapossibilidade aberta ao homem exclusivamente pela graça, pelo dom de Deus, pelo Seu amor. Por outro lado, precisamente a consciência de ter recebido o dom, de possuir em Jesus Cristo o amor de Deus, gera e sustenta a resposta responsável de um amor total a Deus e entre os irmãos, como insistentemente lembra o apóstolo João na sua primeira Carta: «Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama, nasceu de Deus e conhece-O. Aquele que não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor (...) Caríssimos, se Deus nos amou assim, também nos devemos amar uns aos outros (...) Nós amamo-Lo, porque Ele nos amou primeiro» (1Jn 4,7-8 1Jn 4,11 1Jn 4,19).

Esta conexão indivisível entre a graça do Senhor e a liberdade do homem, entre o dom e o dever, foi expressa, em termos simples e profundos, por S. Agostinho, ao rezar assim: «Da quod iubes et iube quod vis» (dá o que mandas e manda o que quiseres). 31

O dom não diminui, mas reforça a exigência moral do amor: «O Seu mandamento é este: que creiamos no nome de Seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, como Ele nos mandou» (1Jn 3,23). Só se pode «permanecer» no amor, com a condição de observar os mandamentos, como afirma Jesus: «Se guardardes os Meus mandamentos, permanecereis no Meu amor, do mesmo modo que Eu tenho guardado os mandamentos de Meu Pai e permaneço no Seu amor» (Jn 15,10).

Recolhendo aquilo que constitui o âmago da mensagem moral de Jesus e da pregação dos Apóstolos, e repropondo numa síntese admirável a grande tradição dos Padres do Oriente e do Ocidente — particularmente de S. Agostinho 32 —, S. Tomás pôde escrever que a Nova Lei é a graça do Espírito Santo dada pela fé em Cristo.33 Os preceitos externos, de que, aliás, fala o Evangelho, dispõem para esta graça ou prolongam os seus efeitos na vida. De facto, a Nova Lei não se contenta em dizer o que se deve fazer, mas dá também a força «de praticar a verdade» (cf. Jn 3,21). Ao mesmo tempo, S. João Crisóstomo observou que a Nova Lei foi promulgada precisamente quando o Espírito Santo desceu do céu no dia de Pentecostes, e que os Apóstolos «não desceram do monte trazendo em suas mãos, como Moisés, tábuas de pedra; mas traziam o Espírito Santo em seus corações, (...) tornados pela Sua graça uma lei viva, um livro com vida».34

31. Confesiones, X, 29, 40: CCL 27, 176; cf. De gratia et libero arbitrio, XV: PL 44, 899.
32. Cf. De spiritu et littera, 21, 36; 26, 46: CSEL 60, 189-190; 200-201.
33. Cf. Summa Theologiae, I-II 106,1, conclus. y ad. 2um.
34. In Matthaeum, hom. I, 1: PG 57, 15.



«Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (MT 28,20)

25 O colóquio de Jesus com o jovem rico continua, de certa forma, em cada época da história, hoje também. A pergunta: «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?», desabrocha no coração de cada homem, e é sempre Cristo e unicamente Ele a oferecer a resposta plena e decisiva. O Mestre, que ensina os mandamentos de Deus, que convida ao Seu seguimento e dá a graça para uma vida nova, está sempre presente e operante no meio de nós, como prometeu: «Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt 28,20). A contemporaneidade de Cristo ao homem de cada época realiza-se no Seu corpo, que é a Igreja. Por esta razão, o Senhor prometeu aos Seus discípulos o Espírito Santo, que lhes haveria de «lembrar» e fazer compreender os seus mandamentos (cf. Jn 14,26) e seria o princípio fontal de uma nova vida no mundo (cf. Jn 3,5-8 Rm 8,1-13).

As prescrições morais, emanadas por Deus na Antiga Aliança e levadas à sua perfeição na Nova e Eterna Aliança pela Pessoa mesma do Filho de Deus feito homem, devem ser fielmente conservadas e permanentemente actualizadas nas diferentes culturas, ao longo da história. A tarefa da sua interpretação foi confiada por Jesus aos Apóstolos e aos seus sucessores, com a especial assistência do Espírito da verdade: «Quem vos ouve é a Mim que ouve» (Lc 10,16). Com a luz e a força deste Espírito, os Apóstolos cumpriram a missão de pregar o Evangelho e de indicar a «via» do Senhor (cf. Ac 18,25), ensinando, antes de mais, a seguir e a imitar Cristo: «Para mim, o viver é Cristo» (Ph 1,21).



26 Na catequese moral dos Apóstolos, a par de exortações e indicações ligadas ao contexto histórico e cultural, há um ensinamento ético com normas precisas de comportamento. Comprovam-no as suas Cartas que contêm a interpretação, guiada pelo Espírito Santo, dos preceitos do Senhor vividos nas distintas circunstâncias culturais (cf. Rm 12-15 1Co 11-14 Ga 5-6 Ep 4-6 Col 3-4 1P 1-5 Jc 1-5). Incumbidos de pregar o Evangelho, os Apóstolos, desde as origens da Igreja, movidos pela sua responsabilidade pastoral, vigiaram sobre a rectidão da conduta dos cristãos, 35 da mesma forma que vigiaram sobre a pureza da fé e sobre a transmissão dos dons divinos através dos Sacramentos. 36 Os primeiros cristãos, provindos quer do povo judaico quer dos gentios, diferenciavam-se dos pagãos não somente pela sua fé e pela liturgia, mas também pelo testemunho da própria conduta moral, inspirada na Nova Lei. 37 De facto, a Igreja é, ao mesmo tempo, comunhão de fé e de vida; a sua norma é «a fé que actua pela caridade» (Ga 5,6).

Nenhuma dilaceração deve atentar contra a harmonia entre a fé e a vida: a unidade da Igreja é ferida não apenas pelos cristãos que recusam ou alteram as verdades da fé, mas também por aqueles que desconhecem as obrigações morais a que o Evangelho os chama (cf. 1Co 5,9-13). Os Apóstolos recusaram, com decisão, qualquer ruptura entre o compromisso do coração e os gestos que o exprimem e comprovam (cf. 1Jn 2,3-6). E, desde os tempos apostólicos, os Pastores da Igreja denunciaram abertamente os modos de agir daqueles que eram fautores de divisão com os seus ensinamentos ou com o seus comportamentos. 38

35. Cf. S. Ireneo, Adversus haereses, IV, 26, 2-5: SCh 100/2, 718-729.
36. Cf. S. Justino, Apología, I 66: PG 6, 427-430.
37. Cf. 1 Pe 2, 12ss.; Didajé, II, 2: Patres Apostolici, ed. F. X. Funk, I, 6-9; Clemente de Alejandría,Paedagogus, I, 10; II, 10: PG 8, 355-364; 497-536; Tertuliano, Apologeticum, IX, 8: CSEL, 69, 24.
38. Cf. S. Ignacio de Antioiquía, Ad Magnesios, VI, 1-2: Patres Apostolici, ed. F. X. Funk, I, 234-235; S. Ireneo, Adversus haereses, IV, 33, 1.6.7: SCh 100/2, 802-805; 814-815; 816-819.



27 Promover e guardar, na unidade da Igreja, a fé e a vida moral é a tarefa confiada aos Apóstolos por Jesus (cf. Mt 28,19-20), que continua no ministério dos seus sucessores. É o que se encontra na Tradição viva, através da qual — como ensina o Concílio Vaticano II — «a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita. Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo».39 No Espírito, a Igreja acolhe e transmite a Escritura como testemunho das «grandes coisas» que Deus faz na história (cf. Lc 1,49), confessa pela boca dos Padres e Doutores a verdade do Verbo feito carne, põe em prática os preceitos e a caridade na vida dos Santos e Santas e no sacrifício dos Mártires, celebra a esperança na Liturgia: através da mesma Tradição, os cristãos recebem «a voz do Evangelho que ressoa viva»,40 como expressão fiel da sabedoria e da vontade divina.

Dentro da Tradição, desenvolve-se, com a assistência do Espírito Santo, a interpretação autêntica da lei do Senhor. O mesmo Espírito, que está na origem da Revelação dos mandamentos e dos ensinamentos de Jesus, garante que sejam santamente conservados, fielmente expostos e correctamente aplicados, nos vários tempos e circunstâncias. Esta «actualização» dos mandamentos é sinal e fruto de uma penetração mais profunda da Revelação, e de uma compreensão à luz da fé das novas situações históricas e culturais. Todavia, aquela não pode deixar de confirmar a validade da Revelação, inserindo-se no sulco da interpretação dada pela grande Tradição de ensinamento e vida da Igreja, que tem como testemunhas a doutrina dos Padres, a vida dos Santos, a liturgia da Igreja e o ensinamento do Magistério.

Mais em particular, como afirma o Concílio, «o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou transmitida pela Tradição foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo».41 Assim a Igreja, na sua vida e ensinamento, apresenta-se como «coluna e sustentáculo da verdade» (1Tm 3,15), inclusive da verdade sobre o agir moral. De facto, «à Igreja compete anunciar sempre e em toda a parte os princípios morais, mesmo de ordem social, bem como emitir juízo acerca de quaisquer realidades humanas, na medida em que o exijam os direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas».42

Precisamente sobre as questões que caracterizam hoje o debate moral e à volta das quais se desenvolveram novas tendências e teorias, o Magistério, por fidelidade a Jesus Cristo e em continuidade com a tradição da Igreja, sente com maior urgência o dever de oferecer o próprio discernimento e ensinamento, para ajudar o homem no seu caminho em busca da verdade e da liberdade.

39. Const. dogm. sobre la divina revelación Dei Verbum, DV 8.
40. Cf. Ibid. DV 8
41. Ibid., DV 10.
42. Código de Derecho Canónico, can. CIC 747 § 2.



CAPÍTULO II - «NÃO VOS CONFORMEIS COM A MENTALIDADE DESTE MUNDO (RM 12,2)

A Igreja e o discernimento de algumas tendências da teologia moral hodierna

(Rm 12,2)


Ensinar o que é conforme à sã doutrina (cf. TT 2,1)

28 (cf. Tt 2,1)
A meditação do diálogo entre Jesus e o jovem rico permitiu-nos recolher os conteúdos essenciais da Revelação do Antigo e do Novo Testamento sobre o agir moral. Ou sejam: a subordinação do homem e da sua acção a Deus, Aquele que «só é bom»; a relação entre o bem moral dos actos humanos e a vida eterna; o seguimento de Cristo, que abre ao homem a perspectiva do amor perfeito; e, enfim, o dom do Espírito Santo, fonte e auxílio da vida moral da «nova criatura» (cf. 2Co 5,17).

Na sua reflexão moral, a Igreja teve constantemente presente as palavras, que Jesus dirigiu ao jovem rico. A Sagrada Escritura, de facto, permanece a fonte viva e fecunda da doutrina moral da Igreja, como recordou o Concílio Vaticano II: «O Evangelho é (...) fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes».43 Aquela conservou fielmente aquilo que a palavra de Deus ensina, tanto acerca das verdades a acreditar, como sobre o agir moral, isto é, o agir agradável a Deus (cf. 1Th 4,1), realizando um progresso doutrinal análogo ao verificado no âmbito das verdades da fé. Assistida pelo Espírito Santo que a guia para a verdade total (cf. Jn 16,13), a Igreja nunca cessou, nem poderá cessar, de perscrutar o «mistério do Verbo encarnado», no qual «se esclarece verdadeiramente o mistério do homem».44

43. Const. dogm. sobre la divina revelación Dei Verbum, DV 7.
44. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre la Iglesia en el mundo actual Gaudium et spes, GS 22.



29 A reflexão moral da Igreja, sempre realizada à luz de Cristo, o «bom Mestre», desenvolveu-se também na forma específica de ciência teológica, chamada «teologia moral», uma ciência que acolhe e interroga a Revelação divina e, ao mesmo tempo, responde às exigências da razão humana. A teologia moral é uma reflexão que se refere à «moralidade», ou seja, ao bem e ao mal dos actos humanos e da pessoa que os realiza, e neste sentido está aberta a todos os homens; mas é também «teologia», enquanto reconhece o princípio e o fim do agir moral n'Aquele que «só é bom» e que, doando-Se ao homem em Cristo, lhe oferece a bem-aventurança da vida divina.

O Concílio Vaticano II convidou os estudiosos a porem «especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja exposição científica, mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para a vida do mundo».45 O mesmo Concílio convidou os teólogos «a buscar constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra, o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado».46 Daí o posterior convite, lançado a todos os fiéis, mas dirigido particularmente aos teólogos: «vivam, pois, os fiéis em estreita união com os demais homens do seu tempo, e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, qual se exprime pela cultura».47

O esforço de muitos teólogos, incentivados pelo encorajamento do Concílio, já deu os seus frutos com interessantes e úteis reflexões sobre as verdades da fé a crer e a aplicar na vida, apresentadas de forma mais adequada à sensibilidade e às questões dos homens do nosso tempo. A Igreja e, em particular, os Bispos, a quem Jesus Cristo confiou primariamente o ministério de ensinar, acolham com gratidão um tal esforço e estimulem os teólogos a prosseguirem o trabalho, animados por um profundo e autêntico temor do Senhor, que é o princípio da sabedoria (cf.
Pr 1,7).

Ao mesmo tempo, porém, no âmbito das discussões teológicas pós-conciliares, foram-se desenvolvendo algumas interpretações da moral cristã que não são compatíveis com a «sã doutrina» (2Tm 4,3). Certamente o Magistério da Igreja não pretende impor aos fiéis nenhum sistema teológico particular nem mesmo filosófico, mas para «guardar religiosamente e expor fielmente» a Palavra de Deus, 48 ele tem o dever de declarar a incompatibilidade com a verdade revelada de certas orientações do pensamento teológico ou de algumas afirmações filosóficas. 49

45. Decreto sobre la formación sacerdotal Optatam totius, OT 16.
46. Const. past. sobre la Iglesia en el mundo actual Gaudium et spes, GS 62.
47. Ibid. GS 62
48. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre la divina revelación Dei Verbum, DV 10.
49. Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre la fe católica Dei Filius, cap. 4: DS 3018.



30 Ao dirigir-me com esta Encíclica a vós, Irmãos no Episcopado, desejo enunciar os princípios necessários para o discernimento daquilo que é contrário à «sã doutrina», apelando para aqueles elementos do ensinamento moral da Igreja, que hoje parecem particularmente expostos ao erro, à ambiguidade ou ao esquecimento. De resto, são os elementos de que depende «a resposta para os enigmas da condição humana que, hoje como ontem, profundamente preocupam os seus corações: que é o homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado? donde provém o sofrimento, e para que serve? qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos?». 50 Estas e outras questões — como: que é a liberdade e qual a sua relação com a verdade contida na lei de Deus? qual é o papel da consciência na formação do perfil moral do homem? como discernir, em conformidade com a verdade sobre o bem, os direitos e os deveres concretos da pessoa humana? — podem-se resumir na pergunta fundamental que o jovem do Evangelho pôs a Jesus: «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». Enviada por Jesus a pregar o Evangelho e a «instruir todas as nações (...) ensinando-as a observar tudo» o que Ele mandou (cf. Mt 28,19-20), a Igreja propõe sempre de novo, hoje também, a resposta do Mestre: esta possui luz e força capazes de resolver inclusive as questões mais discutidas e complexas. Esta mesma luz e força impelem a Igreja a desenvolver constantemente a reflexão não só dogmática mas também moral, num âmbito interdisciplinar, tal como é necessário especialmente para os novos problemas. 51

É sempre nessa mesma luz e força que o Magistério da Igreja realiza a sua obra de discernimento, acolhendo e pondo em prática a admoestação que o apóstolo Paulo dirigia a Timóteo: «Conjuro-te diante de Deus e de Jesus Cristo que há-de julgar os vivos e os mortos, e em nome da Sua aparição e do Seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina. Porque virá o tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina. Desejosos de ouvir novidades, escolherão para si uma multidão de mestres, ao sabor das paixões, e hão-de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os às fábulas. Tu, porém, sê prudente em tudo, suporta os trabalhos, evangeliza e consagra-te ao teu ministério» (2Tm 4,1-5 cf. Tt 1,10 Tt 1,13-14).

50. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Declaración sobre las relaciones de la Iglesia con las religiones no cristianasNostra aetate, NAE 1.
51. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre la Iglesia en el mundo actual Gaudium et spes, GS 43-44.



Veritatis splendor PT 16