Veritatis splendor PT 63


63 De qualquer forma, é sempre da verdade que deriva a dignidade da consciência: no caso da consciência recta, trata-se da verdade objectiva acolhida pelo homem; no da consciência errónea, trata-se daquilo que o homem errando considera subjectivamente verdadeiro. Nunca é aceitável confundir um erro «subjectivo» acerca do bem moral com a verdade «objectiva», racionalmente proposta ao homem em virtude do seu fim, nem equiparar o valor moral do acto cumprido com uma consciência verdadeira e recta, àquele realizado seguindo o juízo de uma consciência errónea. 108 O mal cometido por causa de uma ignorância invencível ou de um erro de juízo não culpável, pode não ser imputado à pessoa que o realiza; mas, também neste caso, aquele não deixa de ser um mal, uma desordem face à verdade do bem. Além disso, o bem não reconhecido não contribui para o crescimento moral da pessoa que o cumpre: não a aperfeiçoa nem serve para encaminhá-la ao supremo bem. Assim, antes de nos sentirmos facilmente justificados em nome da nossa consciência, deveríamos meditar nas palavras do Salmo: «Quem poderá discernir todos os erros? Purificai-me das faltas escondidas» (Ps 19,13). Existem faltas que não conseguimos ver e que, não obstante, permanecem culpáveis, porque nos recusamos a caminhar para a luz (cf. Jn 9,39-41).

A consciência, como juízo último concreto, compromete a sua dignidade quando é culpavelmente errónea, ou seja, «quando o homem não se preocupa de buscar a verdade e o bem, e quando a consciência se torna quase cega em consequência do hábito ao pecado».109 Jesus alude aos perigos da deformação da consciência, quando admoesta: «A lâmpada do corpo é o olho; se o teu olho estiver são, todo o teu corpo andará iluminado. Se, porém, o teu olho for mau, todo o teu corpo andará em trevas. Portanto, se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão essas trevas!» (Mt 6,22-23).

108. Cf. S. Tomás de Aquino, De Veritate, q. 17, a. 4.
109. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre la Iglesia en el mundo actual Gaudium et spes, GS 16.



64 Nas palavras de Jesus agora referidas, encontramos também o apelo para formar a consciência, fazendo-a objecto de contínua conversão à verdade e ao bem. Análoga é a exortação do Apóstolo a não se conformar com a mentalidade deste mundo, mas a transformar-se pela renovação da própria mente (cf. Rm 12,2). Na verdade, o «coração» convertido ao Senhor e ao amor do bem é a fonte dos juízos verdadeiros da consciência. Com efeito, «para poder conhecer a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito» (Rm 12,2), é necessário o conhecimento da lei de Deus em geral, mas aquele não é suficiente: é indispensável uma espécie de «conaturalidade» entre o homem e o verdadeiro bem. 110 Esta conaturalidade fundamenta-se e desenvolve-se nos comportamentos virtuosos do mesmo homem: a prudência e as outras virtudes cardeais, e, antes ainda as virtudes teologais da fé, esperança e caridade. Neste sentido, disse Jesus: «Quem pratica a verdade aproxima- -se da luz» (Jn 3,21).

Uma grande ajuda para a formação da consciência têm-na os cristãos, na Igreja e no seu Magistério, como afirma o Concílio: «Os fiéis, por sua vez, para formarem a sua própria consciência, devem atender diligentemente à doutrina sagrada e certa da Igreja. Pois, por vontade de Cristo, a Igreja Católica é mestra da verdade, e tem por encargo dar a conhecer e ensinar autenticamente a Verdade que é Cristo, e ao mesmo tempo declara e confirma, com a sua autoridade, os princípios de ordem moral que dimanam da natureza humana».111 Portanto, a autoridade da Igreja, que se pronuncia sobre as questões morais, não lesa de modo algum a liberdade de consciência dos cristãos: não apenas porque a liberdade da consciência nunca é liberdade «da» verdade, mas sempre e só «na» verdade; mas também porque o Magistério não apresenta à consciência cristã verdades que lhe são estranhas, antes manifesta as verdades que deveria já possuir, desenvolvendo-as a partir do acto originário da fé. A Igreja põe-se sempre e só ao serviço da consciência, ajudando-a a não se deixar levar cá e lá por qualquer sopro de doutrina, ao sabor da maldade dos homens (cf. Ep 4,14), a não se desviar da verdade sobre o bem do homem, mas, especialmente nas questões mais difíceis, a alcançar com segurança a verdade e a permanecer nela.

110. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II 45,0.
111. Declaración sobre la libertad religiosa Dignitatis humanae, DH 14.


III. A opção fundamental e os comportamentos concretos


«Não tomeis, porém, a liberdade, como pretexto para servir a carne» (GA 5,13)

65 (Ga 5,13)
O interesse pela liberdade, hoje particularmente sentido, induz muitos estudiosos de ciências, quer humanas quer teológicas, a desenvolver uma análise mais profunda da sua natureza e dos seus dinamismos. Salienta-se acertadamente que a liberdade não é só a escolha desta ou daquela acção particular; mas é também, dentro duma tal escolha, decisão sobre si mesmo e determinação da própria vida a favor ou contra o Bem, a favor ou contra a Verdade, em última análise, a favor ou contra Deus. Justamente se destaca a elevada importância de algumas opções, que dão «forma» a toda a vida moral de um homem, configurando-se como o sulco dentro do qual poderão encontrar espaço e incremento as demais escolhas quotidianas particulares.

Alguns autores, porém, propõem uma revisão bem mais radical da relação entre pessoa e actos. Falam de uma «liberdade fundamental», mais profunda e diversa da liberdade de escolha, fora da qual não se poderiam compreender nem julgar correctamente os actos humanos. De acordo com esses autores, o papel chave na vida moral deveria ser atribuído a uma «opção fundamental», actuada por aquela liberdade fundamental, com que a pessoa decide globalmente de si própria, não através de uma escolha determinada e consciente a nível reflexo, mas de maneira «transcendental» e «atemática». Os actos particulares, derivados desta opção, constituiriam somente tentativas parciais e nunca decisivas de exprimi-la, seriam apenas «sinais» ou sintomas dela. Objecto imediato destes actos — diz-se — não é o Bem absoluto (diante do qual se exprimiria, a nível transcendental, a liberdade da pessoa), mas são os bens particulares (também chamados «categoriais»). Ora, segundo a opinião de alguns teólogos, nenhum destes bens, por sua natureza parciais, poderia determinar a liberdade do homem como pessoa na sua totalidade, mesmo que o homem só pudesse exprimir a própria opção fundamental, mediante a sua realização ou a sua recusa.

Deste modo, chega-se a introduzir uma distinção entre a opção fundamental e as escolhas deliberadas de um comportamento concreto, uma distinção que, nalguns autores, assume a forma de uma separação, já que eles restringem expressamente o «bem» e o «mal» moral à dimensão transcendental própria da opção fundamental, qualificando como «justas» ou «erradas» as escolhas de comportamentos particulares «intramundanos», isto é, referentes às relações do homem consigo próprio, com os outros e com o mundo das coisas. Parece assim delinear-se, no interior do agir humano, uma cisão entre dois níveis de moralidade: por um lado, a ordem do bem e do mal que depende da vontade, e, por outro, os comportamentos determinados, que são julgados como moralmente justos ou errados, somente em função de um cálculo técnico da proporção entre bens e males «pré-morais» ou «físicos», que efectivamente resultam da acção. E isto até ao ponto de um comportamento concreto, mesmo escolhido livremente, ser considerado como um processo simplesmente físico, e não segundo os critérios próprios de um acto humano. O resultado a que se chega, é reservar a qualificação propriamente moral da pessoa à opção fundamental, subtraindo-a total ou parcialmente à escolha dos actos particulares, dos comportamentos concretos.



66 Não há dúvida que a doutrina moral cristã, em suas mesmas raízes bíblicas, reconhece a importância específica de uma opção fundamental que qualifica a vida moral e que compromete radicalmente a liberdade diante de Deus. Trata-se da escolha da fé, da obediência da fé (cf. Rm 16,26), pela qual «o homem entrega-se total e livremente a Deus prestando "a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade"».112 Esta fé, que opera mediante a caridade (cf. Ga 5,6), provém do mais íntimo do homem, do seu «coração» (cf. Rm 10,10), e daí é chamada a frutificar nas obras (cf. Mt 12,33-35 Lc 6,43-45 Rm 8,5-8 Ga 5,22). No Decálogo ao início dos diversos mandamentos, aparece a cláusula fundamental: «Eu sou o Senhor, teu Deus...» (Ex 20,2), a qual, imprimindo o sentido original às múltiplas e variadas prescrições particulares, assegura à moral da Aliança uma fisionomia de globalidade, unidade e profundidade. A opção fundamental de Israel refere-se então ao mandamento fundamental (cf. Jos 24,14-25 Ex 19,3-8 Mi 6,8). Também a moral da Nova Aliança está dominada pelo apelo fundamental de Jesus para O «seguir» — assim diz Ele ao jovem: «Se queres ser perfeito (...) vem e segue-me» (Mt 19,21) —: a este apelo, o discípulo responde com uma decisão e escolha radical. As parábolas evangélicas do tesouro e da pérola preciosa, pela qual se vende tudo o que se possui, são imagens eloquentes e efectivas do carácter radical e incondicionado da opção exigida pelo Reino de Deus. A radicalidade da escolha de seguir Jesus está maravilhosamente expressa nas suas palavras: «O que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho, salvá-la-á» (Mc 8,35).

O apelo de Jesus «vem e segue-Me» indica a máxima exaltação possível da liberdade do homem e, ao mesmo tempo, atesta a verdade e a obrigação de actos de fé e de decisões que se podem designar como opção fundamental. Uma análoga exaltação da liberdade humana, encontramo-la nas palavras de S. Paulo: «Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade» (Ga 5,13). Mas o Apóstolo acrescenta imediatamente uma grave admoestação: «Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne». Nesta advertência, ressoam as suas palavras precedentes: «Cristo nos libertou, para que permaneçamos livres. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão» (Ga 5,1).

O apóstolo Paulo convida-nos à vigilância: a liberdade está sempre ameaçada pela insídia da escravidão. E é precisamente este o caso de um acto de fé — no sentido de uma opção fundamental — que seja separado da escolha dos actos particulares, conforme opinavam as tendências acima recordadas.

112. Conc. Ecum. Vat. II, Const.dogm. sobre la divina revelación Dei Verbum, DV 5; cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre la fe católica Dei Filius, cap. 3: DS 3008.



67 Estas tendências são, pois, contrárias ao ensinamento bíblico, que concebe a opção fundamental como uma verdadeira e própria escolha da liberdade e une profundamente uma tal escolha com os actos particulares. Pela opção fundamental, o homem é capaz de orientar a sua vida e tender, com a ajuda da graça, para o seu fim, seguindo o apelo divino. Mas esta capacidade exercita-se, de facto, nas escolhas particulares de actos determinados, pelos quais o homem se conforma deliberadamente com a vontade, a sabedoria e a lei de Deus. Portanto, deve-se afirmar que a chamada opção fundamental, na medida em que se diferencia de uma intenção genérica e, por conseguinte, ainda não determinada numa forma vinculante da liberdade, realiza-se sempre através de escolhas conscientes e livres. Precisamente por isso, ela fica revogada quando o homem compromete a sua liberdade em escolhas conscientes de sentido contrário, relativas a matéria moral grave.

Separar a opção fundamental dos comportamentos concretos, significa contradizer a integridade substancial ou a unidade pessoal do agente moral no seu corpo e alma. Uma opção fundamental, que não considere explicitamente as potencialidades que põe em acto e as determinações que a exprimem, não se ajusta à finalidade racional imanente ao agir do homem e a cada uma das suas escolhas deliberadas. Na verdade, a moralidade dos actos humanos não se deduz somente da intenção, da orientação ou opção fundamental, interpretada no sentido de uma intenção vazia de conteúdos vinculantes bem determinados ou de uma intenção à qual não corresponda um esforço real nas distintas obrigações da vida moral. A moralidade não pode ser julgada, se se prescinde da conformidade ou oposição da escolha deliberada de um comportamento concreto relativamente à dignidade e à vocação integral da pessoa humana. Cada escolha implica sempre uma referência da vontade deliberada aos bens e aos males, indicados pela lei natural como bens a praticar e males a evitar. No caso dos preceitos morais positivos, a prudência tem sempre a função de verificar a sua oportunidade numa determinada situação, por exemplo tendo em conta outros deveres quem sabe mais importantes ou urgentes. Mas os preceitos morais negativos, ou seja, os que proibem alguns actos ou comportamentos concretos como intrinsecamente maus, não admitem qualquer legítima excepção; eles não deixam nenhum espaço moralmente aceitável para a «criatividade» de qualquer determinação contrária. Uma vez reconhecida, em concreto, a espécie moral de uma acção proibida por uma regra universal, o único acto moralmente bom é o de obedecer à lei moral e abster-se da acção que ela proibe.



68 Deve-se acrescentar aqui uma importante consideração pastoral. Pela lógica das posições acima descritas, o homem poderia, em virtude de uma opção fundamental, permanecer fiel a Deus, independentemente da conformidade ou não de algumas das suas escolhas e dos seus actos determinados com as normas ou regras morais específicas. Devido a uma opção originária pela caridade, o homem poderia manter-se moralmente bom, perseverar na graça de Deus, alcançar a própria salvação, mesmo se alguns dos seus comportamentos concretos fossem deliberada e gravemente contrários aos mandamentos de Deus, reafirmados pela Igreja.

Na verdade, o homem não se perde só pela infidelidade àquela opção fundamental, pela qual ele se entregou «total e deliberadamente a Deus».113 Em cada pecado mortal cometido deliberadamente, ele ofende a Deus que deu a lei e torna-se, portanto, culpável perante toda a lei (cf.
Jc 2,8-11); mesmo conservando- -se na fé, ele perde a «graça santificante», a «caridade» e a «bem-aventurança eterna».114 «A graça da justificação — ensina o Concílio de Trento —, uma vez recebida, pode ser perdida não só pela infidelidade que faz perder a mesma fé, mas também por qualquer outro pecado mortal».115

113. Conc. Ecum. Vat. II, Const.dogm. sobre la divina revelación Dei Verbum, DV 5; cf. S. Congregación para la Doctrina de la Fe, Declaración acerca de ciertas cuestiones de ética sexual Persona humana (29 diciembre 1975), 10: AAS 68 (1976), 88-90.
114. Cf. Exhort. ap. post-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 diciembre 1984), RP 17: AAS 77 (1985), 218-223.
115. Ses. VI, Decreto sobre la justificación Cum hoc tempore, cap. 15: DS 1544; can. 19: DS 1569.


Pecado mortal e venial

69 As considerações em torno da opção fundamental induziram, como acabamos de ver, alguns teólogos a submeterem também a profunda revisão a distinção tradicional entre pecados mortais e pecados veniais. Eles sublinham que a oposição à lei de Deus, que causa a perda da graça santificante — e, no caso de morte neste estado de pecado, a eterna condenação — pode ser somente o fruto de um acto que empenhe a pessoa na sua totalidade, isto é, um acto de opção fundamental. Segundo esses teólogos, o pecado mortal, que separa o homem de Deus, verificar-se-ia somente na rejeição de Deus, feita a um nível da liberdade que não é identificável com um acto de escolha, nem alcançável com consciência reflexa. Neste sentido — acrescentam —, é difícil, pelos menos psicologicamente, aceitar o facto de que um cristão, que quer permanecer unido a Jesus Cristo e à Sua Igreja, possa cometer pecados mortais tão fácil e repetidamente, como indicaria, às vezes, a mesma «matéria» dos seus actos. Seria igualmente difícil aceitar que o homem é capaz, num breve espaço de tempo, de romper radicalmente o ligame de comunhão com Deus e, sucessivamente, converter-se a Ele por uma sincera penitência. É necessário, portanto, — dizem — medir a gravidade do pecado mais pelo grau de empenho da liberdade da pessoa que realiza um acto do que pela matéria de tal acto.



70 A Exortação Apostólica pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia reiterou a importância e a permanente actualidade da distinção entre pecados mortais e veniais, conforme a tradição da Igreja. E o Sínodo dos Bispos de 1983, donde procedia tal Exortação, «não só reafirmou tudo o que foi proclamado no Concílio de Trento sobre a existência e a natureza dos pecados mortais e veniais, mas quis ainda lembrar que é pecado mortal aquele que tem por objecto uma matéria grave e que, conjuntamente, é cometido com plena advertência e consentimento deliberado».116

A afirmação do Concílio de Trento não considera só a «matéria grave» do pecado mortal, mas lembra também, como sua condição necessária, «a plena advertência e o consentimento deliberado». De resto, quer na teologia moral quer na prática pastoral, são bem conhecidos os casos onde um acto grave, por causa da sua matéria, não constitui pecado mortal devido à falta de plena advertência ou do consentimento deliberado de quem o realiza. Por outro lado, «há-de evitar-se reduzir o pecado mortal a um acto de"opção fundamental" — como hoje em dia se costuma dizer — contra Deus», entendendo com isso quer um desprezo explícito e formal de Deus e do próximo, quer uma recusa implícita e não reflexa do amor. «Dá-se, efectivamente, o pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo escolhe alguma coisa gravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim já está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta-se de Deus e perde a caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser radicalmente modificada por actos particulares. Podem, sem dúvida, verificar- -se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador. Mas, da consideração da esfera psicológica, não se pode passar para a constituição de uma categoria teológica, como é precisamente a da "opção fundamental", entendendo-a de tal modo que, no plano objectivo, mudasse ou pusesse em dúvida a concepção tradicional de pecado mortal».117

Deste modo, a separação entre opção fundamental e escolhas deliberadas de determinados comportamentos — desordenados em si próprios ou nas circunstâncias — que não a poriam em causa, supõe o desconhecimento da doutrina católica sobre o pecado mortal: «Com toda a tradição da Igreja, chamamos pecado mortal a este acto, pelo qual o homem, com liberdade e advertência rejeita Deus, a sua lei, a aliança de amor que Deus lhe propõe, preferindo voltar-se para si mesmo, para qualquer realidade criada e finita, para algo contrário ao querer divino (conversio ad creaturam). Isto pode acontecer de modo directo e formal, como nos pecados de idolatria, apostasia e ateísmo; ou de modo equivalente, como em qualquer desobediência aos mandamentos de Deus em matéria grave».118

116. Exhort. ap. post-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 diciembre 1984),
RP 17: AAS 77 (1985), 221.
117. RP 17 Ibid.:l.c.,223.
118. RP 17Ibid.:l.c., 222


IV. O acto moral


Teleologia e teleologismo

71 A relação entre a liberdade do homem e a lei de Deus, que encontra a sua sede íntima e viva na consciência moral, manifesta-se e realiza-se nos actos humanos. É precisamente através dos seus actos que o homem se aperfeiçoa como homem, como homem chamado a procurar espontaneamente o seu Criador e a chegar livremente, pela adesão a Ele, à perfeição total e beatífica. 119

Os actos humanos são actos morais, porque exprimem e decidem a bondade ou malícia do homem que realiza aqueles actos. 120 Eles não produzem apenas uma mudança do estado das coisas externas ao homem, mas, enquanto escolhas deliberadas, qualificam moralmente a pessoa que os faz e determinam a sua profunda fisionomia espiritual, como sublinha sugestivamente S. Gregório de Nissa: «Todos os seres sujeitos a transformação nunca ficam idênticos a si próprios, mas passam continuamente de um estado a outro por uma mudança que sempre se dá, para o bem ou para o mal (...) Ora, estar sujeito a mudança é nascer continuamente (...) Mas aqui o nascimento não acontece por uma intervenção alheia, como se dá nos seres corpóreos (...) Aquele é o resultado de uma livre escolha e nós somos assim, de certo modo, os nossos próprios pais, ao criarmo-nos como queremos, e, pela nossa escolha, dotarmo-nos da forma que queremos».121

119. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre la Iglesia en el mundo actual Gaudium et spes,
GS 17.
120. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II 1,3: «Idem sunt actus morales et actus humani».
121. De vita Moysis, II, 2-3: PG 44, 327-328.



72 A moralidade dos actos é definida pela relação da liberdade do homem com o bem autêntico. Um tal bem é estabelecido como lei eterna pela Sabedoria de Deus, que ordena cada ser para o seu fim: esta lei eterna é conhecida tanto pela razão natural do homem (e assim é «lei natural»), como — de modo integral e perfeito — através da revelação sobrenatural de Deus (sendo assim chamada «lei divina»). O agir é moralmente bom quando as escolhas da liberdade são conformes ao verdadeiro bem do homem e exprimem, desta forma, a ordenação voluntária da pessoa para o seu fim último, isto é, o próprio Deus: o bem supremo, no Qual o homem encontra a sua felicidade plena e perfeita. A pergunta inicial da conversa do jovem com Jesus: «Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?» (Mt 19,16), põe imediatamente em evidência o nexo essencial entre o valor moral de um acto e o fim último do homem. Na sua resposta, Jesus confirma a convicção do seu interlocutor: a realização de actos bons, mandados por Aquele que «só é bom», constitui a condição indispensável e o caminho para a bem-aventurança eterna: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19,17). A resposta de Jesus com o apelo aos mandamentos manifesta também que o caminho para o fim último está assinalado pelo respeito das leis divinas que tutelam o bem humano. Só o acto conforme ao bem pode ser caminho que conduz à vida.

A ordenação racional do acto humano para o bem na sua verdade e a procura voluntária deste bem, conhecido pela razão, constituem a moralidade. Portanto, o agir humano não pode ser considerado como moralmente bom só porque destinado a alcançar este ou aquele objectivo que persegue, ou simplesmente porque a intenção do sujeito é boa. 122 O agir é moralmente bom, quando atesta e exprime a ordenação voluntária da pessoa para o fim último e a conformidade da acção concreta com o bem humano, tal como é reconhecido na sua verdade pela razão. Se o objecto da acção concreta não está em sintonia com o verdadeiro bem da pessoa, a escolha de tal acção torna a nossa vontade e nós próprios moralmente maus e, portanto, põe-nos em contraste com o nosso fim último, o bem supremo, isto é, o próprio Deus.

122. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II 148,3.



73 O cristão, pela Revelação de Deus e pela fé, conhece a «novidade» que caracteriza a moralidade dos seus actos; estes são chamados a exprimir a coerência ou a sua falta relativamente àquela dignidade e vocação, que lhe foram dadas pela graça: em Jesus Cristo e no Seu Espírito, o cristão é «criatura nova», filho de Deus, e, mediante os seus actos, manifesta a sua conformidade ou discordância com a imagem do Filho que é o primogénito entre muitos irmãos (cf. Rm 8,29), vive a sua fidelidade ou infidelidade ao dom do Espírito e abre-se ou fecha-se à vida eterna, à comunhão de visão, de amor e de bem-aventurança com Deus Pai, Filho e Espírito Santo. 123 Cristo «forma-nos à sua imagem — escreve S. Cirilo de Alexandria —, de modo a fazer brilhar em nós os traços da sua natureza divina mediante a santificação, a justiça, e a rectidão de uma vida conforme à virtude (...) Assim, a beleza desta imagem incomparável resplandece em nós, que estamos em Cristo, e nos revelamos pessoas de bem pelas nossas obras».124

Neste sentido, a vida moral possui um essencial carácter «teleológico», visto que consiste na ordenação deliberada dos actos humanos para Deus, sumo bem e fim (telos)último do homem. Comprova-o, mais uma vez, a pergunta do jovem a Jesus: «Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». Mas esta ordenação ao fim último não é uma dimensão subjectivista, que depende só da intenção. Ela pressupõe que aqueles actos sejam em si próprios ordenáveis a um tal fim, enquanto conformes ao autêntico bem moral do homem, tutelado pelos mandamentos. É o que lembra Jesus na resposta ao jovem: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19,17).

Evidentemente deve ser uma ordenação racional e livre, consciente e deliberada, baseado na qual o homem é «responsável» dos seus actos e está sujeito ao juízo de Deus, juiz justo e bom, que premeia o bem e castiga o mal, como nos lembra o apóstolo Paulo: «Todos, com efeito, havemos de comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito, enquanto estava no corpo» (2Co 5,10).

123. El Concilio Vaticano II, en la Constitución pastoral sobre la Iglesia en el mundo actual, precisa: «Esto vale no sólo para los cristianos, sino también para todo los hombres de buena voluntad, en cuyo corazón actúa la gracia de modo visible. Cristo murió por todos, y la vocación última del hombre es realmente una sola, es decir, la divina. En consecuencia, debemos mantenerque el Espíritu Santo ofrece a todos la posibiliad de que, de un modo conocido sólo por Dios, se asocien a este misterio pascual»: Gaudium et spes, GS 22.
124. Tractatus ad Tiberium Diaconum sociosque, II. Responsiones ad Tiberium Diaconum sociosque: S. Cirilo de Alejandría, In D. Johannis Evangelium, vol. III, ed. Philip Edward Pusey, Bruxelles, Culture et Civilisation (1965), 590.



74 Mas de que depende a qualificação moral do livre agir do homem? Esta ordenação a Deus dos actos humanos, por que é assegurada? Pela intenção do sujeito que age, pelascircunstâncias — e, em particular, pelas consequências — do seu agir, pelo próprio objecto do seu acto?

Este é o problema tradicionalmente chamado das «fontes da moralidade». Precisamente a respeito de tal problema, nestes decénios manifestaram-se — ou reconstituiram-se — novas tendências culturais e teológicas que exigem um cuidadoso discernimento por parte do Magistério da Igreja.

Algumas teorias éticas, denominadas «teleológicas», mostram-se atentas à conformidade dos actos humanos com os fins procurados pelo agente e com os valores que ele tem em vista. Os critérios para avaliar a rectidão moral de uma acção são deduzidos da ponderação dos bens não morais ou pré-morais a conseguir e dos correspondentes valores não morais ou pré-morais a respeitar. Para alguns, o comportamento concreto seria justo ou errado, segundo pudesse ou não produzir um melhor estado de coisas para todas as pessoas interessadas: seria justo o comportamento em grau de «maximizar» os bens e «minimizar» os males.

Muitos dos moralistas católicos, que seguem esta orientação, procuram distanciar-se do utilitarismo e do pragmatismo, que avaliam a moralidade dos actos humanos sem fazer referência ao verdadeiro fim último do homem. Aqueles sentem justamente a necessidade de encontrar argumentações racionais, sempre mais consistentes, para justificar as exigências e fundamentar as normas da vida moral. Tal pesquisa é legítima e necessária, visto que a ordem moral, estabelecida pela lei natural, é, em princípio, acessível à razão humana. Além disso, é uma pesquisa que corresponde às exigências do diálogo e colaboração com os não-católicos e os não-crentes, especialmente nas sociedades pluralistas.



75 Mas, no âmbito do esforço de elaborar essa moral racional — por isso mesmo, às vezes, chamada «moral autónoma» —, existem falsas soluções, ligadas em particular a uma inadequada compreensão do objecto do agir moral. Alguns não têm em suficiente consideração o facto de que a vontade fica comprometida com as escolhas concretas que realiza: estas são condição da sua bondade moral e da sua ordenação para o fim último da pessoa. Outros, ainda, inspiram-se num conceito da liberdade que prescinde das condições efectivas do seu exercício, da sua referência objectiva à verdade sobre o bem, da sua determinação através de escolhas de comportamentos concretos. Assim, segundo estas teorias, a vontade livre não estaria moralmente sujeita a obrigações determinadas, nem modelada pelas suas opções, embora permanecesse responsável pelos próprios actos e pelas suas consequências. Este «teleologismo», como método para a descoberta da norma moral, pode então ser chamado — segundo as terminologias e perspectivas adoptadas pelas distintas correntes de pensamento — «consequencialismo» ou «proporcionalismo». O primeiro pretende deduzir os critérios da rectidão de um determinado agir somente a partir do cálculo das consequências que se prevêem derivar da execução de uma opção. O segundo, ponderando entre si valores e bens procurados, centra-se mais na proporção reconhecida entre os efeitos bons e maus, em vista do «maior bem» ou do «menor mal» efectivamente possível numa situação particular.

As teorias éticas teleológicas (proporcionalismo, consequencialismo), apesar de reconhecerem que os valores morais são indicados pela razão e pela Revelação, consideram que nunca se poderá formular uma proibição absoluta de comportamentos determinados que estariam em contradição com aqueles valores, em toda e qualquer circunstância e cultura. O sujeito que age seria certamente responsável pela obtenção dos valores pretendidos, mas segundo um duplo aspecto: de facto, os valores ou bens implicados num acto humano seriam, por um lado, de ordem moral (relativamente a valores propriamente morais, como o amor de Deus, a benevolência para com o próximo, a justiça, etc.) e, por outro, de ordem pré-moral, também chamada não moral, física ou ôntica (relativamente às vantagens e desvantagens ocasionadas seja a quem age, seja a qualquer pessoa neles implicada antes ou depois, como por exemplo, a saúde ou a sua lesão, a integridade física, a vida, a morte, a perda de bens materiais, etc.). Num mundo onde o bem sempre estaria misturado com o mal e cada efeito bom ligado a outros efeitos maus, a moralidade do acto seria julgada de maneira diferenciada: a sua «bondade» moral, com base na intenção do sujeito referida aos bens morais, e a sua «rectidão», com base na consideração dos efeitos ou consequências previsíveis e da sua proporção. Consequentemente, os comportamentos concretos seriam qualificados como «rectos» ou «errados», sem que, por isso, fosse possível avaliar como moralmente «boa» ou «má» a vontade da pessoa que os escolhe. Deste modo, um acto, que, pondo-se em contradição com uma norma universal negativa, viola directamente bens considerados como «pré-morais», poderia ser qualificado como moralmente aceitável se a intenção do sujeito se concentrasse, graças a uma ponderação «responsável» dos bens implicados na acção concreta, sobre o valor moral considerado decisivo naquela circunstância.

A avaliação das consequências da acção, com base na proporção do acto com os seus efeitos e dos efeitos entre si, referir-se-ia apenas à ordem pré-moral. Quanto à especificidade moral dos actos, ou seja, quanto à sua bondade ou malícia, decidiria exclusivamente a fidelidade da pessoa aos valores mais altos da caridade e da prudência, sem que esta fidelidade fosse necessariamente incompatível com opções contrárias a certos preceitos morais particulares. Mesmo em matéria grave, estes últimos deveriam ser considerados como normas operativas, sempre relativas e susceptíveis de excepções.

Nesta perspectiva, o consentimento deliberado a certos comportamentos, declarados ilícitos pela moral tradicional, não implicaria uma malícia moral objectiva.





Veritatis splendor PT 63