Veritatis splendor PT 92


92 No martírio, enquanto afirmação da inviolabilidade da ordem moral, refulge a santidade da lei divina e, conjuntamente, a intangibilidade da dignidade pessoal do homem, criado à imagem e semelhança de Deus: é uma dignidade que nunca é permitido aviltar ou contrariar, nem mesmo com boas intenções, sejam quais forem as dificuldades. Jesus adverte-nos, com a máxima severidade: «Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?» (Mc 8,36).

O martírio desautoriza como sendo ilusório e falso, qualquer «significado humano» que se pretenda atribuir, mesmo em condições «excepcionais», ao acto em si próprio moralmente mau; mais ainda, revela claramente a sua verdadeira face: a de uma violação da «humanidade» do homem, antes ainda em quem o realiza do que naquele que o padece. 144 Portanto, o martírio é também exaltação da perfeita «humanidade» e da verdadeira «vida» da pessoa, como testemunha S. Inácio de Antioquia, dirigindo-se aos cristãos de Roma, lugar do seu martírio: «Tende compaixão de mim, irmãos: não me impeçais de viver, não queirais que eu morra (...) Deixai que eu alcance a pura luz; chegado lá, serei verdadeiramente homem. Deixai que eu imite a paixão do meu Deus». 145

144. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre la Iglesia en el mundo actual Gaudium et spes, GS 27.
145. Ad Romanos, VI, 2-3: Patres Apostolici, ed. F.X. Funk, I, 260-261.



93 O martírio é, enfim, um preclaro sinal da santidade da Igreja: a fidelidade à lei santa de Deus, testemunhada com a morte, é anúncio solene e compromisso missionário usque ad sanguinem, a fim de que o esplendor da verdade moral não seja ofuscado nos costumes e na mentalidade das pessoas e da sociedade. Um tal testemunho oferece uma contribuição de valor extraordinário, para que, tanto na sociedade civil como também no seio das próprias comunidades eclesiais, não se caia na crise mais perigosa que pode afligir o homem: a confusão do bem e do mal, que torna impossível construir e conservar a ordem moral dos indivíduos e das comunidades. Os mártires, e mais em geral todos os santos da Igreja, através do exemplo eloquente e fascinante de uma vida totalmente transfigurada pelo esplendor da verdade moral, iluminam cada época da história despertando o seu sentido moral. Dando pleno testemunho do bem, eles são uma viva censura para os que transgridem a lei (cf. Sg 2,12), e fazem ressoar, com permanente actualidade, as palavras do profeta: «Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas, que têm o amargo por doce e o doce por amargo» (Is 5,20).

Se o martírio representa o ápice do testemunho a favor da verdade moral, ao qual relativamente poucos podem ser chamados, há, contudo, um testemunho coerente que todos os cristãos devem estar prontos a dar cada dia, mesmo à custa de sofrimentos e de graves sacrifícios. De facto, diante das múltiplas dificuldades que, mesmo nas circunstâncias mais comuns, pode exigir a fidelidade à ordem moral, o cristão é chamado, com a graça de Deus implorada na oração, a um compromisso por vezes heróico, amparado pela virtude da fortaleza, mediante a qual — como ensina S. Gregório Magno — ele até consegue «amar as dificuldades deste mundo, em vista do prémio eterno».146

146. Moralia in Job, VII, 21, 24: PL 75, 778.



94 Neste testemunho ao carácter absoluto do bem moral, os cristãos não estão sós: encontram confirmação no sentido moral dos povos e nas grandes tradições religiosas e sapienciais do Ocidente e do Oriente, não sem uma interior e misteriosa acção do Espírito de Deus. Sirva de exemplo, a expressão do poeta latino Juvenal: «Considera o maior dos crimes preferir a sobrevivência à honra e, por amor da vida física, perder as razões de viver».147 A voz da consciência sempre invocou, sem ambiguidades, a existência de verdades e valores morais, pelos quais se deve estar pronto inclusive a dar a vida. Na palavra e sobretudo no sacrifício da vida pelo valor moral, a Igreja reconhece o mesmo testemunho àquela verdade que, já presente na criação, resplandece plenamente no rosto de Cristo: «Sabemos — escreve S. Justino — que os seguidores das doutrinas dos estóicos foram expostos ao ódio e mortos, quando deram prova de sabedoria no seu enunciado moral (...) graças à semente do Verbo inscrita em todo o género humano».148

147. «Summum crede nefas animam praeferre pudori/ et propter vitam vivendi perdere causas»: Satirae, VIII, 83-84.
148. Apologia II, 8: PG 6, 457-458.



As normas morais universais e imutáveis ao serviço da pessoa e da sociedade

95 A doutrina da Igreja, e particularmente a sua firmeza em defender a validade universal e permanente dos preceitos que proibem os actos intrinsecamente maus, é julgada frequentemente como sinal de uma intransigência intolerável, sobretudo nas situações extremamente complexas e conflituosas da vida moral do homem e da sociedade de hoje: uma intransigência que estaria em contraste com o sentido materno da Igreja. Nesta, dizem, escasseiam a compreensão e a compaixão. Mas, na verdade, a maternidade da Igreja nunca pode ser separada da missão de ensinar que ela deve cumprir sempre como Esposa fiel de Cristo, a Verdade em pessoa: «Como Mestra, ela não se cansa de proclamar a norma moral (...) De tal norma, a Igreja não é, certamente, nem a autora nem o juiz. Em obediência à verdade que é Cristo, cuja imagem se reflecte na natureza e na dignidade da pessoa humana, a Igreja interpreta a norma moral e propõe-na a todos os homens de boa vontade, sem esconder as suas exigências de radicalidade e de perfeição».149

Na realidade, a verdadeira compreensão e a genuína compaixão devem significar amor pela pessoa, pelo seu verdadeiro bem, pela sua liberdade autêntica. E isto, certamente, não acontece escondendo ou enfraquecendo a verdade moral, mas sim propondo-a no seu íntimo significado de irradiação da Sabedoria eterna de Deus, que nos veio por Cristo, e de serviço ao homem, ao crescimento da sua liberdade e à consecução da sua felicidade. 150

Ao mesmo tempo, a apresentação clara e vigorosa da verdade moral jamais pode prescindir de um profundo e sincero respeito, animado por um amor paciente e confiante, de que o homem sempre necessita na sua caminhada moral, tornada, com frequência, cansativa pelas dificuldades, debilidades e situações dolorosas. A Igreja, que jamais poderá renunciar ao «princípio da verdade e da coerência, pelo qual não aceita chamar bem ao mal e mal ao bem», 151 deve estar sempre atenta para não partir a cana já fendida e para não apagar a chama que ainda fumega (cf.
Is 42,3). Paulo VI escreveu: «Não diminuir em nada a doutrina salvadora de Cristo constitui eminente forma de caridade para com as almas. Esta, porém, deve ser sempre acompanhada da paciência e bondade, de que o próprio Senhor deu exemplo ao tratar com os homens. Tendo vindo não para julgar mas para salvar (cf. Jn 3,17), Ele foi certamente intransigente com o mal, mas misericordioso com as pessoas».152

149. Exhort. ap. Familiaris consortio (22 noviembre 1981), FC 33: AAS 74 (1982), 120.
150. Cf. ibid., FC 34: l.c., 123-125.
151. Exhortación ap. post-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 diciembre 1984), RP 34: AAS 77 (1985), 272.
152. Cart. enc. Humanae vitae (25 julio 1968), HV 29: AAS 60 (1968), 501.



96 A firmeza da Igreja em defender as normas morais universais e imutáveis, nada tem de humilhante. Fá-lo apenas ao serviço da verdadeira liberdade do homem: dado que não há liberdade fora ou contra a verdade, a defesa categórica, ou seja, sem concessões nem compromissos, das exigências absolutamente irrenunciáveis da dignidade pessoal do homem, deve considerar-se caminho e condição para a existência mesma da liberdade.

Este serviço é oferecido a cada homem, considerado na unicidade e irrepetibilidade do seu ser e existir: só na obediência às normas morais universais, o homem encontra plena confirmação da unicidade como pessoa e possibilidade de verdadeiro crescimento moral. E, precisamente por isso, um tal serviço é prestado a todos os homens: não só aos indivíduos, mas também à comunidade, à sociedade como tal. Estas normas constituem, de facto, o fundamento inabalável e a sólida garantia de uma justa e pacífica convivência humana, e, portanto, de uma verdadeira democracia, que pode nascer e crescer apenas sobre a igualdade de todos os seus membros, irmanados nos direitos e deveres. Diante das normas morais que proibem o mal intrínseco, não existem privilégios, nem excepções para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último «miserável» sobre a face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos absolutamente iguais.




97 Assim as normas morais, e primariamente as negativas que proibem o mal, manifestam o seu significado e a sua força, ao mesmo tempo, pessoal e social: ao proteger a inviolável dignidade pessoal de cada homem, elas servem a própria conservação do tecido social humano e o seu recto e fecundo desenvolvimento. Particularmente os mandamentos da segunda tábua do Decálogo, lembrados também por Jesus ao jovem do Evangelho (cf. Mt 19,18), constituem as regras primordiais de toda a vida social.

Estes mandamentos são formulados em termos gerais. Mas, o facto de que «a pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais», 153 permite precisá-los e explicitá-los num código de comportamento mais pormenorizado. Neste sentido, as regras morais fundamentais da vida social comportam exigências determinadas, às quais se devem ater tanto as autoridades públicas, como os cidadãos. Independentemente das intenções, por vezes boas, e das circunstâncias, amiúde difíceis, as autoridades civis e os sujeitos particulares nunca estão autorizados a transgredir os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana. Assim, só uma moral que reconhece normas válidas sempre e para todos, sem qualquer excepção, pode garantir o fundamento ético da convivência social, tanto nacional como internacional.

153. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre la Iglesia en el mundo actual Gaudium et spes, GS 25.



A moral e a renovação da vida social e política

98 Perante as graves formas de injustiça social e económica e de corrupção política, que gravam sobre povos e nações inteiras, cresce a reacção indignada de muitíssimas pessoas oprimidas e humilhadas nos seus direitos humanos fundamentais e torna-se sempre mais ampla e sentida a necessidade de uma radical renovação pessoal e social, capaz de assegurar justiça, solidariedade, honestidade, transparência.

É certamente longa e dura, a estrada a percorrer; numerosos e ingentes são os esforços a cumprir para levar a cabo uma tal renovação, inclusive pela multiplicidade e gravidade das causas que geram e alimentam as situações de injustiça hoje presentes no mundo. Mas, como ensina a história e a experiência de cada um, não é difícil identificar na base destas situações, causas propriamente «culturais», isto é, relacionadas com determinadas visões do homem, da sociedade e do mundo. Na verdade, no âmago da questão cultural está o sentido moral, que, por sua vez, se fundamenta e se realiza no sentido religioso. 154

154. Cf. Carta enc. Centesimus annus (1 mayo 1991),
CA 24: AAS 83 (1991), 821-822.



99 Só Deus, o Bem supremo, constitui a base irremovível e a condição insubstituível da moralidade, e portanto dos mandamentos, em particular dos negativos que proibem, sempre e em todos os casos, o comportamento e os actos incompatíveis com a dignidade pessoal de cada homem. Deste modo, o Bem supremo e o bem moral encontram-se na verdade: a verdade de Deus Criador e Redentor e a verdade do homem criado e redimido por Ele. Apenas sobre esta verdade é possível construir uma sociedade renovada e resolver os complexos e gravosos problemas que a abalam, sendo o primeiro deles vencer as mais diversas formas de totalitarismo para abrir caminho à autêntica liberdade da pessoa. «O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de Nação contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro (...) A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível e, precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, Nação ou Estado. Nem tão pouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria, alienando, oprimindo, explorando ou tentando destruí-la».155

Por isso, a conexão indivisível entre verdade e liberdade — que exprime o vínculo essencial entre a sabedoria e a vontade de Deus — possui um significado de extrema importância para a vida das pessoas no âmbito sócio-económico e sócio-político, como resulta da doutrina social da Igreja — a qual «pertence (...) ao campo da teologia e, especialmente da teologia moral»,156 — e da sua apresentação de mandamentos que regulam a vida social, económica e política, não só no que se refere a atitudes gerais, mas também a precisos e determinados comportamentos e actos concretos.

155. Ibid., 44: l.c., 848-849; cf. León XIII, Carta enc. Libertas praestantissimum (20 junio 1888): Leonis XIII P.M. Acta, VIII Romae 1889, 224-226.
156. Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 diciembre 1987),
SRS 41: AAS 80 (1988), 571.



100 Desta forma, o Catecismo da Igreja Católica, depois de ter afirmado que, «em matéria económica, o respeito da dignidade humana exige a prática da virtude da temperança, para moderar o apego aos bens deste mundo; da virtude da justiça, para acautelar os direitos do próximo e dar-lhe o que é devido; e da solidariedade, segundo a regra de ouro e conforme a liberalidade do Senhor, que "sendo rico Se fez pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza" (2Co 8,9)», 157 apresenta uma série de comportamentos e actos que vão contra a dignidade humana: o furto, o reter deliberadamente coisas recebidas por empréstimo ou objectos perdidos, a fraude no comércio (cf. Dt 25,13-16), os salários injustos (cf. Dt 24,14-15 Jc 5,4), o aumento dos preços, especulando sobre a ignorância e a necessidade alheia (cf. Am 8,4-6), a apropriação e o uso privado dos bens sociais de uma empresa, os trabalhos mal executados, a fraude fiscal, a falsificação de cheques e facturas, os gastos excessivos, o desperdício, etc. 158 E ainda: «O sétimo mandamento proíbe os actos ou empreendimentos que, seja por que motivo for — egoísta ou ideológico, mercantil ou totalitário —, conduzam a escravizar seres humanos, a desconhecer a sua dignidade pessoal, a comprá-los, vendê-los, trocá-los como mercadoria. É um pecado contra a dignidade das pessoas e seus direitos fundamentais reduzí-las, pela violência, a um valor utilitário ou a uma fonte de lucro. S. Paulo ordenava a um amo cristão que tratasse seu escravo, também cristão, "não como escravo, mas como irmão (...), como um homem, no Senhor" (Phm 1,16)». 159

157. Catecismo de la Iglesia Católica n. CEC 2407.
158. Cf. ibid., nn. CEC 2408-2413.
159. Ibid., n. CEC 2414.



101 No âmbito político, deve-se assinalar que a veracidade nas relações dos governantes com os governados, a transparência na administração pública, a imparcialidade no serviço das Instituições públicas, o respeito dos direitos dos adversários políticos, a tutela dos direitos dos acusados face a processos e condenações sumárias, o uso justo e honesto do dinheiro público, a recusa de meios equívocos ou ilícitos para conquistar, manter e aumentar a todo o custo o poder, são princípios que encontram a sua raiz primária — como também a sua singular urgência — no valor transcendente da pessoa e nas exigências morais objectivas de governo dos Estados. 160 Quando aqueles deixam de ser observados, esmorece o próprio fundamento da convivência política e toda a vida social fica progressivamente comprometida, ameaçada e votada à sua dissolução (cf. Ps 13 Ps 14,3-4 Ap 18,2-3 Ap 18,9-24). Após a queda, em muitos países, das ideologias que vinculavam a política a uma concepção totalitária do mundo — sendo o marxismo, a primeira dentre elas —, esboça-se hoje um risco não menos grave para a negação dos direitos fundamentais da pessoa humana e para a reabsorção na política da própria inquietação religiosa que habita no coração de cada ser humano: é o risco da aliança entre democracia e relativismo ético, que tira à convivência civil qualquer ponto seguro de referência moral, e, mais radicalmente, priva-a da verificação da verdade. De facto, «se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções políticas podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra».161

Desta forma, em qualquer campo da vida pessoal, familiar, social e política, a moral — que se baseia sobre a verdade e na verdade se abre à autêntica liberdade — presta um serviço original, insubstituível e de enorme valor não só para o indivíduo e o seu crescimento no bem, mas também para a sociedade e o seu verdadeiro progresso.

160. Cf. Exhort. ap. post-sinodal Christifideles laici (30 diciembre 1988), CL 42: AAS 81 (1989), 472-476.
161. Carta enc. Centesimus annus (1 mayo 1991), CA 46: AAS 83 (1991), 850.


Graça e obediência à lei de Deus

102 Mesmo nas situações mais difíceis, o homem deve observar a norma moral para ser obediente ao santo mandamento de Deus e coerente com a própria dignidade pessoal. Certamente a harmonia entre liberdade e verdade pede, por vezes, sacrifícios extraordinários, sendo conquistada por alto preço: pode comportar inclusive o martírio. Mas, como demonstra a experiência universal e quotidiana, o homem sente-se tentado a romper essa harmonia: «Não faço aquilo que quero, mas sim aquilo que aborreço (...) O bem que eu quero não o faço, mas o mal que não quero» (Rm 7,15 Rm 7,19).

Mas donde provém, em última análise, esta cisão interior do homem? Este começa a sua história de pecado, quando deixa de reconhecer o Senhor como seu Criador e quer ser ele mesmo a decidir, com total independência, o que é bem e o que é mal. «Sereis como Deus, e ficareis a conhecer o bem e o mal» (Gn 3,5): esta é a primeira tentação, e dela fazem eco todas as outras tentações, às quais o homem está mais facilmente inclinado a ceder por causa das feridas da queda original.

Mas as tentações podem ser vencidas, os pecados podem ser evitados, porque, com os mandamentos, o Senhor nos dá a possibilidade de observá-los: «Os olhos do Senhor estão sobre os que O temem, Ele conhece as acções de cada um. Ele a ninguém deu ordem para fazer o mal e a ninguém deu permissão de pecar (Si 15,19-20). A observância da lei de Deus, em determinadas situações, pode ser difícil, até dificílima: nunca, porém, impossível. Este é um ensinamento constante da tradição da Igreja, assim expresso pelo Concílio de Trento: «Ninguém pois, mesmo justificado, se deve considerar livre da observância dos mandamentos; ninguém se deve apropriar daquela expressão temerária e já condenada com a excomunhão pelos Padres, segundo a qual é impossível ao homem justificado observar os mandamentos de Deus. De facto, Deus não manda coisas impossíveis, mas ao ordená-las exorta-te a fazeres tudo o que podes, e a pedires o que não podes, ajudando-te para que possas; com efeito, "os mandamentos de Deus não são pesados" (cf. 1Jn 5,3) e "o Seu jugo é suave e o Seu fardo leve" (cf. Mt 11,30)». 162

162. Ses. VI. Decreto sobre la justificación Cum hoc tempore, cap. 11: DS 1536; cf. can. 18: DS 1568. El conocido texto de san Agustín, citado por el Concilio, está tomado del De natura et gratia, 43, 50 (CSEL 60, 270).



103 Ao homem, permanece sempre aberto o horizonte espiritual da esperança, com a ajuda da graça divina e com a colaboração da liberdade humana.

É na Cruz salvadora de Jesus, no dom do Espírito Santo, nos Sacramentos que promanam do lado trespassado do Redentor (cf.
Jn 19,34), que o crente encontra a graça e a força para observar sempre a lei santa de Deus, inclusive no meio das mais graves dificuldades. Como diz S. André de Creta, a própria lei «foi animada pela graça e posta ao serviço desta numa combinação harmónica e fecunda. Cada uma delas conservou as suas características sem alteração nem confusão. Mas a lei, que antes constituia um ónus gravoso e uma tirania, tornou-se, por obra de Deus, peso suave e fonte de liberdade».163

Só no mistério da Redenção de Cristo se encontram as «concretas» possibilidades do homem. «Seria um erro gravíssimo concluir (...) que a norma ensinada pela Igreja é em si própria apenas um "ideal" que deve posteriormente ser adaptado, proporcionado, graduado — dizem — às concretas possibilidades do homem: segundo um "cálculo dos vários bens em questão". Mas, quais são as "concretas possibilidades do homem"? E de que homem se fala? Do homem dominado pela concupiscência ou do homem redimido por Cristo? Pois é disso que se trata: da realidade da redenção de Cristo. Cristo redimiu-nos! O que significa que Ele nos deu a possibilidade de realizar toda a verdade do nosso ser; Ele libertou a nossa liberdade do domínio da concupiscência. E se o homem redimido ainda peca, não é devido à imperfeição do acto redentor de Cristo, mas à vontade do homem de furtar-se à graça que brota daquele acto. O mandamento de Deus é certamente proporcionado às capacidades do homem: mas às capacidades do homem a quem foi dado o Espírito Santo; do homem que, no caso de cair no pecado, sempre pode obter o perdão e gozar da presença do Espírito».164

163. Oratio I: PG 97, 805-806.
164. Discurso a lois participantes en un curso sobre la procreación responsable (1 marzo 1984), 4:Insegnamenti VII, 1 (1984), 583.



104 Neste contexto, abre-se o justo espaço à misericórdia de Deus pelo pecado do homem que se converte, e à compreensão pela fraqueza humana. Esta compreensão não significa nunca comprometer e falsificar a medida do bem e do mal, para adaptá-la às circunstâncias. Se é humano que a pessoa, tendo pecado, reconheça a sua fraqueza e peça misericórdia pela própria culpa, é inaceitável, pelo contrário, o comportamento de quem faz da própria fraqueza o critério da verdade do bem, de modo a poder-se sentir justificado por si só, mesmo sem necessidade de recorrer a Deus e à Sua misericórdia. Semelhante atitude corrompe a moralidade da sociedade inteira, porque ensina a duvidar da objectividade da lei moral em geral e a rejeitar o carácter absoluto das proibições morais acerca de determinados actos humanos, acabando por confundir todos os juízos de valor.

Devemos, ao invés, acolher a mensagem que nos vem da parábola evangélica do fariseu e do publicano (cf.
Lc 18,9-14). Talvez o publicano pudesse ter alguma justificação para os pecados cometidos, de modo a diminuir a sua responsabilidade. Porém, não é sobre estas justificações que se detém a sua oração, mas sobre a própria indignidade face à infinita santidade de Deus: «Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador» (Lc 18,13). O fariseu, pelo contrário, justifica-se por si só, encontrando talvez uma desculpa para cada uma das suas faltas. Defrontamo-nos, assim, com dois comportamentos diversos da consciência moral do homem de todos os tempos. O publicano apresenta-nos uma consciência «penitente», que está plenamente ciente da fragilidade da própria natureza e vê nas próprias faltas, independentemente das justificações subjectivas, uma confirmação do próprio ser necessitado de redenção. O fariseu mostra-nos uma consciência «satisfeita consigo mesma», que se ilude de poder observar a lei sem a ajuda da graça e está convencida de não ter necessidade da misericórdia.



105 A todos é pedida uma grande vigilância para não se deixar contagiar pela atitude farisaica que pretende eliminar a consciência da própria limitação e do próprio pecado, e que hoje se exprime particularmente na tentativa de adaptar a norma moral às próprias capacidades e interesses, e até na rejeição do conceito mesmo de norma. Pelo contrário, aceitar a «desproporção» entre a lei e a capacidade humana, ou seja, a capacidade das simples forças morais do homem deixado a si próprio, aviva o desejo da graça e predispõe a recebê-la. «Quem me há-de libertar deste corpo de morte?» — pergunta-se o apóstolo Paulo. E numa jubilosa e grata confissão, responde: «Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo, Nosso Senhor!» (Rm 7,24-25).

A mesma consciência nos aparece nesta oração de S. Ambrósio de Milão: «De facto, o que é o homem se Vós não o visitais? Não esqueçais, portanto, o débil. Lembrai-Vos, ó Senhor, que me fizestes débil, e que do pó me plasmastes. Como poderei permanecer de pé, se Vós não me olhais continuamente para consolidar este barro, já que a minha consistência provém da Vossa face? "Se escondeis o Vosso rosto, tudo desfalece" (Ps 103,29): mas, se Vós me olhais, ai de mim! Nada tendes para ver em mim senão montanhas de delitos: não traz vantagem ser abandonados nem ser vistos, porque, quando somos contemplados, provocamos desgosto. Podemos, porém, pensar que Deus não rejeita aqueles que vê, porque purifica aos que olha. Diante d'Ele arde um fogo capaz de queimar a culpa (cf. Jl 2,3)». 165

165. De interpellatione David, IV, 6, 22: CSEL 32/2, 283-284.



Moral e nova evangelização

106 A evangelização é o desafio mais forte e sublime, que a Igreja é chamada a enfrentar desde a sua origem. Na verdade, a proporem este desafio não são tanto as situações sociais e culturais que ela encontra ao longo da história, como sobretudo o mandato de Jesus Cristo ressuscitado, que assim define a razão da existência da Igreja: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura» (Mc 16,15).

Mas o momento que estamos a viver, pelo menos numa extensão grande da humanidade, é mais o de um formidável incitamento à «nova evangelização», ou seja, ao anúncio do Evangelho sempre novo e sempre portador de novidade, uma evangelização que deve ser «nova no seu ardor, nos seus métodos e na sua expressão».166 A descristianização que pesa sobre povos e comunidades inteiras, outrora ricas de fé e de vida cristã, comporta não só a perda da fé ou de qualquer modo a sua ineficácia na vida, mas também, e necessariamente, um declínio ou um obscurecimento do sentido moral: e isto, quer pela dissipação da consciência da originalidade da moral evangélica, quer pelo eclipse dos próprios princípios e valores éticos fundamentais. As tendências subjectivistas, relativistas e utilitaristas, hoje amplamente difundidas, apresentam-se não simplesmente como posições pragmáticas, como prática comum, mas como concepções consolidadas do ponto de vista teorético que reivindicam uma sua plena legitimidade cultural e social.

166. Discurso a los Obispos del Celam (9 marzo 1983), III: Insegnamenti, VI, 1 (1983), 698.



107 A evangelização — e, portanto, a «nova evangelização» — comporta também o anúncio e a proposta moral. O próprio Jesus, precisamente ao pregar o Reino de Deus e o Seu amor salvífico, fez apelo à fé e à conversão (cf. Mc 1,15). E Pedro, com os outros Apóstolos, ao anunciar a ressurreição de Jesus de Nazaré de entre os mortos, propõe uma vida nova a viver, um «caminho» a seguir para ser discípulo do Ressuscitado (cf. Ac 2,37-41 Ac 3,17-20).

Tanto ou mais ainda que pelas verdades da fé, é ao propor os fundamentos e os conteúdos da moral cristã que a nova evangelização manifesta a sua autenticidade, e, ao mesmo tempo, expande toda a sua força missionária, quando se realiza com o dom não só da palavra anunciada, mas também da palavra vivida. É particularmente a vida de santidade, resplandecente em tantos membros do Povo de Deus, humildes e, com frequência, despercebidos aos olhos dos homens, que constitui o caminho mais simples e fascinante, onde é permitido perceber imediatamente a beleza da verdade, a força libertadora do amor de Deus, o valor da fidelidade incondicional a todas as exigências da lei do Senhor, mesmo nas circunstâncias mais difíceis. Por isso, a Igreja, com a sua sábia pedagogia moral, sempre convidou os crentes a procurarem e a encontrarem nos santos e santas, e, em primeiro lugar, na Virgem Mãe de Deus «cheia de graça» e «toda santa», o modelo, a força e a alegria para viver uma vida conforme aos mandamentos e às Bem-aventuranças do Evangelho.

A vida dos santos, reflexo da bondade de Deus — d'Aquele que «só é bom» —, constitui não apenas uma verdadeira confissão de fé e um impulso para a comunicar aos outros, mas também uma glorificação de Deus e da sua infinita santidade. Uma vida santa leva assim à sua plenitude de expressão e actuação o tríplice e unitário munus propheticum, sacerdotale et regale, que cada cristão recebe como dom no renascimento baptismal «da água e do Espírito» (Jn 3,5). A sua vida moral possui o valor de um « culto espiritual » (Rm 12,1 cf. Ph 3,3), que brota e se alimenta daquela fonte inesgotável de santidade e glorificação de Deus que são os Sacramentos, especialmente a Eucaristia: com efeito, ao participar no sacrifício da Cruz, o cristão comunga do amor de doação de Cristo, ficando habilitado e comprometido a viver esta mesma caridade em todas as suas atitudes e comportamentos de vida. Na vida moral, revela-se e actua-se ainda o serviço régio do cristão: quanto mais ele, com a ajuda da graça, obedece à lei nova do Espírito Santo, tanto mais cresce na liberdade, à qual é chamado através do serviço da verdade, da caridade e da justiça.



108 Na raiz da nova evangelização e da vida moral nova, que aquela propõe e suscita com os seus frutos de santidade e de missionação, está o Espírito de Cristo, princípio e força da fecundidade da santa Mãe Igreja, como nos recorda Paulo VI: «A evangelização nunca será possível sem a acção do Espírito Santo».167 Ao Espírito de Jesus, acolhido pelo coração humilde e dócil do crente, se devem, pois, o florescimento da vida moral cristã e o testemunho da santidade na grande variedade das vocações, dos dons, das responsabilidades e das condições e situações de vida: é o Espírito Santo — anotava Novaciano, nisto exprimindo a autêntica fé da Igreja — «Aquele que deu firmeza aos corações e às mentes dos discípulos, que os iniciou nos mistérios evangélicos, que os iluminou nas coisas divinas; por Ele revigorados, não temeram as prisões nem as correntes pelo nome do Senhor; antes, subjugaram as próprias potências e tormentos do mundo, armados já e reforçados por Seu intermédio, dotados que foram com os Seus dons que este mesmo Espírito reparte e envia como jóias à Igreja, Esposa de Cristo. É Ele, de facto, que na Igreja suscita os profetas, instrui os mestres, guia as línguas, realiza prodígios e curas, produz obras admiráveis, concede o discernimento dos espíritos, confere os encargos de governo, sugere os conselhos, reparte e harmoniza os restantes dons carismáticos, tornando, assim, por toda a parte e em tudo plenamente perfeita a Igreja do Senhor».168

No contexto vivo desta nova evangelização, destinada a gerar e a nutrir «a fé que actua pela caridade» (
Ga 5,6), e em relação com a obra do Espírito Santo, podemos agora compreender o lugar que, na Igreja, comunidade dos crentes, compete à reflexão que a teologia deve desenvolver sobre a vida moral, assim como podemos apresentar a missão e a responsabilidade própria dos teólogos moralistas.

167. Exhort. ap. Evangelii nuntiandi (8 diciembre 1975), EN 75: AAS 68 (1976), 64.
168. De Trinitate, XXIX, 9-10: CCL 4, 70.




Veritatis splendor PT 92