A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
(D. ESTEVÃO TAVARES BETTENCOURT, OSB)
A Inquisição Espanhola não foi
uma instituição meramente eclesiástica, como se pensa. Embora
tenha tido origem em uma Bula do Papa Sixto IV datada de 1478, foi mais e mais
utilizada pelos reis da Espanha para servir aos fins políticos de unificação
dos seus territórios, nos quais habitavam cristãos, judeus e muçulmanos. Mais
de uma vez estiveram em conflito a Santa Sé e os monarcas espanhóis por causa
do abuso de poderes na eliminação de adversários políticos perpetrado em nome
da S. Igreja. A justiça manda que se reconheça esta índole muito peculiar da
Inquisição Espanhola (que, aliás, também na Idade Média não era instituição
meramente eclesiástica). Isto não nos isenta de reconhecer outrossim falhas
cometidas por eclesiásticos a serviço da Inquisição orientada pelos monarcas
espanhóis.
1. 1.
Inquisição: generalidades
A
palavra "Inquisição" significa "procura".
Designa o tribunal que procurava hereges e outras pessoas suspeitas a fim de julgá-los
e sentenciá-los.
No
antigo Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos delituosos; só
procedia ao julgamento depois que lhe fosse apresentada a denúncia. Até a Alta
Idade Média o mesmo se deu na Igreja: a autoridade eclesiástica não procedia
contra os delitos se estes não lhe fossem previamente indicados. No decorrer
dos tempos, porém, esta praxe cedeu à da procura dos hereges ou à Inquisição. A
razão disto foi o surto, no século XI, de nova forma de delito religioso, isto
é, uma heresia fanática e revolucionária como não houvera até então: o catarismo
(do grego katharós, puro) ou o movimento dos alibigenses (de
Aibi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco principal).
Considerando a matéria por si má, os cátaros rejeitavam não somente a face
visível da Igreja, mas também instituições básicas da vida civil - o
matrimônio, a autoridade governamental, o serviço militar - e enalteciam o
suicídio. Destarte constituíam grave ameaça não somente para a fé cristã, mas
também para a vida pública.
Em
bandos fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocaram
tumultos, ataques às igrejas, etc., por todo o decorrer do século X1 até 1150
aproximadamente, na França, na Alemanha, nos Países-Baixos... 0 povo, com a sua
espontaneidade, e a autoridade civil se encarregaram de os reprimir com
violência: não raro o poder régio da França, por iniciativa própria e a
contragosto dos bispos, condenou à morte pregadores albigenses, visto que
solapavam os fundamentos da ordem constituída. Foi o que se deu, por exemplo,
em Orleães (1017), onde o rei Roberto, informado de um surto de heresia na
cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os mandou
lançar ao fogo; a causa da civilização e da ordem pública se identificava
com a da fé! Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas
espirituais (excomunhão, interdito, etc.) aos albigenses, pois até então
nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência
física; S. Agostinho (t430) e antigos bispos, S. Bernardo ( t1 153), S. Noberto
( t 1134) e outros mestres medievais eram contrários ao uso da força
("Sejam os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos
argumentos", admoestava São Bernardo, In Cant. serm. 64).
Não
são casos isolados os seguintes: em 1144 na cidade de Lião o povo quis punir
violentamente um grupo de Inovadores que ai se introduzira; o clero, porém, os
salvou, desejando a sua conversão, e não a sua morte. Em 1077 um herege
professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares
lançou-se então sobre ele, sem esperar o julgamento; encerraram-no numa cabana,
à qual atearam fogo!
Contudo
em meados do século XII a aparente indiferença do clero se mostrou
insustentável: os magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na
repressão do catarismo. Muito significativo, por exemplo, é o episódio
seguinte: o Papa Alexandre III em 1162, escreveu ao arcebispo de Reims e ao
Conde da Flândria, em cujo território os cátaros provocavam desordens:
Maisvale
absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de
inocentes... A mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a dureza".
Informado
desta admoestação pontfícia o rei Luís VII de França irmão do referido
arcebispo, enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o respeito
se traduziam simultaneamente:
Que
vossa prudência dê atenção toda particular a essa parte (a heresia) e a suprima
antes que possa crescer. Suplico-vos para bem da fé cristã: concedei todos os
poderes neste campo ao arcebispo (de Reirris); ele destruirá os que assim se
insurgem contra Deus; sua justa severidade será louvada por todos aqueles que
nesta terra são animados de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo,
as queixas não se acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana
as violentas recriminações da opinião pública" (Martène, Amplissirria
Collectio 11 683s).
As
conseqüências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: o
concilio regional de Tours em 1163, tomando medidas repressivas à heresia,
mandava inquirir (procurar) os seus agrupamentos secretos. Por
fim, a assembléia de Verona (Itália), à qual compareceram o Papa Lúcio 111, o
Imperador Frederico Barbarroxa, numerosos bispos, prelados e príncipes, baixou
em 1184 um decreto de grande importância: o poder eclesiástico e o civil, que
até então haviam agido independentemente um do outro (aquele impondo penas
espirituais, este recorrendo à força física), deveriam combinar seus esforços
em vista de mais eficientes resultados: os hereges seriam doravante não somente
punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo
inspecionaria, por si ou por pessoas de confiança, uma ou duas vezes por ano,
as paróquias suspeitas; os condes, barões e as demais autoridades civis os deveriam
ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito lançado sobre as suas
terras; os hereges depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues no
braço secular, que lhes imporia a sanção devida.
Assim
era instituída a chamada "Inquisição episcopal",
a qual, como mostram os precedentes, atendia a necessidades reais e a clamores
exigentes tanto dos monarcas e magistrados civis como do povo cristão;
independentemente da autoridade da Igreja, já estava sendo praticada a
repressão física das heresias.
No
decorrer do tempo, porém, percebeu-se que a Inquisição episcopal ainda era
insuficiente para deter os inovadores; alguns Bispos, principalmente no sul da
França, eram tolerantes; além disto, tinham seu raio de ação limitado às
respectivas dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente. À vista disto,
os Papas, já em fins do século XII, começaram a nomear legados especiais,
munidos de plenos poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse.
Destarte surgiu a " Inquisição pontifícia" ou
"legatina", que a princípio ainda funcionava ao lado da episcopal,
aos poucos, porém, a tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu
caráter definitivo e sua organização básica em 1233, quando o Papa Gregório IX
confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores; haveria doravante, para cada
nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia com a
assistência de numerosos oficiais subalternos (consultores, jurados, notários
... ), em geral independentemente do Bispo em cuja diocese estivesse instalado.
As normas do procedimento inquisitorial foram sendo sucessivamente ditadas por
bulas pontifícias e decisões de concílios.
Entrementes
a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente (!), contra os
sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico li,
um dos mais perigosos adversários que o Papado teve no século XIII. Em 1220
este monarca exigiu de todos os oficiais do seu governo, prometessem expulsar
de suas terras os hereges reconhecidos pela Igreja; declarou a heresia crime de
lesa-majestade, sujeito à pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1224
publicou decreto mais severo do que qualquer das leis editadas pelos reis ou
Papas anteriores: as autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar
ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo Bispo, mas ainda cortar a
língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse conservado a
vida. E possível que Frederico II visasse a interesses próprios na campanha
contra a heresia; os bens confiscados redundariam em proveito da coroa.
Não
menos típica é a atitude de Henrique li, rei da Inglaterra: tendo entrado em
luta contra o arcebispo Tomaz Becket, primaz de Cantuária, e o Papa Alexandre
III, foi excomungado. Não obstante, mostrou-se um dos mais ardorosos
repressores da heresia no seu reino: em 1185, por exemplo, alguns hereges da
Flândria tendo-se refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los,
marcá-los com ferro vermelho na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo;
além disto, proibiu aos seus súditos lhes dessem asilo ou lhes prestassem o
mínimo serviço.
Estes
dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder
violento contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela suprema autoridade
da Igreja, foi não raro desencadeado independentemente desta, por poderes que
estavam em conflito com a própria Igreja. A Inquisição, em toda a sua história,
se ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasiada ingerência das
autoridades civis em questões que dependem primariamente do foro eclesiástico.
Em
conclusão, o histórico das origens da Inquisição leva-nos a ver que esta não
foi concebida como órgão de intransigência odiosa, mas, sim, qual medida
defensiva do bem comum, religioso e civil. Consciente disto, o historiador
distingue entre a intenção dos homens da Igreja que instituíram a
Inquisição, e a conduta daqueles que a executaram, deixando-se
não raro levar pelas paixões.
A
Inquisição não foi criada de uma só vez nem procedeu sempre do mesmo modo no
decorrer dos séculos. Por isto distinguem-se
1)
a Inquisição Medieval, voltada contra as heresias cátara a e valdense
nos séculos XII/XIII e contra um falso misticismo do século XIV;
2)
a Inquisição Espanhola, instituída em 1478 por iniciativa dos reis
Fernando e Isabel; visando principalmente aos judeus e aos muçulmanos,
tornou-se poderoso instrumento do absolutismo dos monarcas espanhóis até o
século XIX, a ponto de quase não poder ser considerada instituição eclesiástica
(não raro a Inquisição espanhola procedeu independentemente de Roma, resistindo
à intervenção da Santa Sé, porque o rei da Espanha a esta se opunha);
3)
a Inquisição Romana (também dita "O Santo Ofício"), instituída
em 1542 pelo Papa Paulo III, em vista do surto do Protestantismo.
Levando
em conta a notícia de jornal transcrita à p. 82, deter-nos-emos especialmente
sobre a Inquisição Espanhola.
2.
Inquisição Espanhola
2. 1. Uma
população e três confissões religiosas
1.
Em meados do século XV a Espanha apresentava uma situação política assaz
complexa.
A
maior parte do território fora libertada da ocupação árabe (muçulmana) que
desde o século VIII aí se exercia. Os califas árabes dominavam apenas na região
de Granada, ao sul do país. Contudo os soberanos dos pequenos reinos da
península não se entendiam entre si, de modo que a obra da Reconquista se
achava estagnada desde a tomada de Sevilha em 1248 por obra de Fernando 111 o
Santo.
Em
1479, os monarcas Fernando de Aragão e Isabel de Castela, tendo-se previamente
unido em matrimônio, começaram a reinar conjuntamente sobre todo o território
livre da Espanha, pondo termo às rivalidades sangrentas que solapavam os
esforços de unificação nacional. A Espanha entrou então numa fase nova da sua
história, fase selada pela vitória das tropas de Fernando e Isabel sobre os
árabes em Granada no ano de 1492. Nesta data tendo sido extinto o último reduto
árabe, não restava mais poder estrangeiro legalmente instalado em território
espanhol. Contudo a obra de unificação estava longe de se achar consumada: não
somente o fator étnico ou racial dividia entre si a população; também o
elemento religioso diversificava os cidadãos; havia, sim, em meio à grande
maioria de cristãos da península, grupos muito influentes de judeus e de
muçulmanos. Este fato mereceu a atenção dos reis Fernando e Isabel, os quais
resolveram empenhar zelo ferrenho (inspirado, sem dúvida, por motivos
nacionais, mas corroborado por têmpera religiosa) a fim de absorver ou (caso
isto não fosse possível) eliminar os elementos heterogêneos da população.
2.
Não se poderia, porém, descrever a ação dos monarcas contra judeus e muçulmanos
sem se reconstituir brevemente o significado destes dois grupos étnicos dentro
da Espanha medieval.
a)
Os Judeus. Durante a Idade Média foram sempre assaz numerosos no
território espanhol: "uma terça parte dos cidadãos e comerciantes de
Castela", escrevia Vincenzo Quirini, embaixador de Veneza no século XV;
somente Toledo, a capital de Castela, contava mais de doze mil israelitas e
possuía várias sinagogas de incontestável gosto artístico.
Nos
séculos XII/XIV os judeus gozavam de liberdade e mesmo de estima nos reinos
cristãos da península. É o historiador israelita Theodor Graetz (1817-1891)
quem observa:
"Sob
Afonso VIII o Nobre (1166-1214), os judeus ocuparam funções públicas... José
ben Salomão ibn Schoschan, que tinha o título de príncipe, homem rico,
generoso, sábio e piedoso, era muito considerado na corte e junto aos nobres...
0 rei, casado com uma princesa inglesa, tivera durante sete anos uma favorita
judaica, chamada Rahei e, em vista de sua beleza, cognominada Formosa. Os
judeus de Toledo ajudaram energicamente o monarca na sua luta contra os
mouros" (Graetz, Histoire des juifs 1 V 118).
Em fins do
século XIV, porém, e no decurso do século XV, os israelitas tornaram-se objeto
de perseguições; irritavam profundamente o povo por suas riquezas, em grande
parte arrecadadas à custa de empréstimos a juros elevadíssimos (podiam chegar a
40%), e por seu luxo tido como arrogante. Registraram-se primeiramente tumultos
e linchamentos populares contra os judeus, desordens estas que os reis de
Castela, Navarra e Aragão procuraram reprimir. A situação, porém, se tornou
insustentável em meados do século XV, quando não poucos judeus, desejosos de
conservar suas posições financeiras e políticas, pediam o batismo cristão,
conservando não obstante a fé judaica e observando, no recôndito de seus
domicílios, as práticas talmúdicas Essa onda de conversões insinceras
recrudesceu principalmente em Castela, quando o jovem rei João 11 declarou os
judeus incapazes de exercer alguma função pública (1468); deram-se então
milhares de conversões aparentes, ocasionando um tipo de cidadãos que o povo
chamava "Marranos" (palavra que jogava ao mesmo tempo com a expressão
semita "Maran atha", 0 Senhor vem, e com o termo castelhano
"marrano", leitão).
"Embora
tivessem que participar dos sacramentos, (os marranos) esforçavam-se o mais
possível por se lhes subtrair... No tribunal da penitência não confessavam
coisa alguma ou só acusavam faltas leves; mandavam batizar seus filhos, mas, ao
sair das cerimônias, lavavam cuidadosamente as partes do corpo ungidas pelo
santo crisma. Alguns rabinos iam secretamente dar-lhes instrução... Imolavam,
seguindo os seus ritos, animais e aves que lhes serviam de alimento.. . Só
comiam carne de porco quando constrangidos a isso" (M. Marieiol, L*Espagne
sous Fernand et lisabelle, pág. 45).
Ostentando
a aparência de bons cristãos, os marranos chegavam a ocupar elevados cargos na
Igreja, infiltrando-se até mesmo no alto clero; conta-se o caso (até que ponto
será verídico?) de um Bispo de Calahorra, o qual, indo a Roma, comia carne às
sextas-feiras (coisa lá proibida), rezava em hebraico segundo rito judeu,
recusava pronunciar o nome de Cristo, e ainda espancava seus sacerdotes caso
estes lhe quisessem chamar a atenção!
A
hipocrisia dos marranos era não raro denunciada pelos seus correligionários de
raça judaica que, tendo sinceramente abraçado a fé de Cristo, haviam recebido
ordens sacerdotais na Igreja ou queriam dar provas de sua autêntica conversão.
Em conseqüência, os marranos chegaram a se reunir em sociedades secretas de
tipo maçônico, o que os tornava ainda mais suspeito e antipáticos ao povo. Este
os tinha na conta de verdadeiro perigo para o bem comum, tanto do ponto de
vista religioso como do ponto de vista civil (a causa religiosa e a causa
nacional pareciam no caso, solidárias entre si).
b)
Os muçulmanos. Quando os árabes maometanos ocuparam a Península Ibérica
no século VI I I, deram inicio a uma política de tolerância para com o povo
cristão, que cultivava o solo e que conseqüentemente passou a ser chamado
"moçárabe" (do árabe must rib "arabizado"). Diz-se
mesmo que no século XV rara era a família cristã que não contasse entre os seus
antepassados um discípulo de Maomé.
Nos
territórios que aos poucos iam sendo reconquistados, os reis cristãos se
mostravam, por sua vez, tolerantes para com os árabes, reconhecendo a estes
liberdade religiosa. Assim é que notável população de muçulmanos vivia nas
cidades de Valença, Toledo, Sevilha, etc., gozando de grande influência no vida
pública, pois os árabes continuavam a usufruir das Vantagens econômicas que
possuíam antes da Reconquista; conseguiam mesmo ampliar essas vantagens
mediante intenso comércio com seus correligionários do sul da Espanha, da
África do Norte e da bacia do Mediterrâneo. Eis, porém, que no século XIV
alguns motins de árabes prepotentes contra os governos cristãos provocaram, da
parte destes, uma série de medidas que visavam doravante a conter a influência
política e social dos muçulmanos, influência que se exercia
principalmente pela indústria, o comércio e os empréstimos a juros.
Visando
então a libertar-se da coibição e do controle dos soberanos espanhóis, não
poucos maometanos abraçaram a fé católica, dando assim origem a outro tipo de
cidadãos ambíguos, popularmente denominados "mouriscos". Convertendo-se
ao menos em aparência, os árabes passavam a gozar dos mesmos direitos civis e
religiosos que os cristãos, exceto o direito de acesso ao episcopado (contudo
no século XV contavam-se vários bispos espanhóis convertidos do islamismo).
Todavia as conversões interesseiras não escapavam à observação do público, que
se mostrava infenso à hipocrisia dos "mouriscos"; as intrigas e maquinações
destes, tramadas como que em sociedades secretas, vinham a ser inegavelmente
mais perigosas para o bem comum do que as atividades dos muçulmanos confessos.
Na
situação geral que acaba de ser descrita, compreende-se que aos poucos as
autoridades dos reinos cristãos da Espanha tenham percebido a necessidade de
dar busca ou "Inquisição" aos cidadãos ambíguos - marranos e
mouriscos. Era, de um lado a segurança pública que o exigia dos poderes civis;
doutro lado, já que a pureza da fé cristã estava em jogo, também as autoridades
eclesiásticas deviam mostrar-se interessadas em tal gênero de indagação ou
inquisição. Em uma palavra: para a Espanha cristã, a luta contra a falsidade
religiosa, contra as maquinações secretas de cidadãos ambiciosos dissimulados
sob rótulos religiosos, se apresentava como questão de vida ou morte. Destarte
Estado e Igreja, interesses civis e interesses religiosos se entrelaçavam
espontaneamente para dar origem ao famoso fenômeno da "Inquisição
Espanhola".
É
a este que vamos agora voltar diretamente a nossa atenção.
2.2. Surto
e procederes da Inquisição Espanhola
Os
reis Fernando e Isabel, visando à plena unificação de seus domínios, tinham
consciência de que existia uma instituição eclesiástica a Inquisição - oriunda
na Idade Média com o fim de reprimir um perigo religioso e civil dos séculos
XI/XII - a heresia cátara ou albigense ~, perigo ao qual bem se assemelhavam as
atividades dos marranos e mouriscos na Espanha do século XV.
1.
A Inquisição Medieval, que nunca fora muito ativa na Península Ibérica,
achava-se aí mais ou menos adormecida na segunda metade do século XV...
Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa de 1478 foi descoberta em Sevilha
uma conspiração de marranos, a qual, dadas as suas intenções nitidamente
anticristãs, muito exasperou o público. Então lembrou-se o rei Fernando de
pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a antiga Inquisição, e a reavivasse sobre
novas bases, mais promissoras, confiando sua orientação ao monarca espanhol.
Sixto
IV, assim solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de Fernando (ao
qual, depois de hesitar algum tempo, se associara Isabel). Enviou, pois, aos
reis da Espanha a Bula Exigit sincerae devotionis affectus de 1º de
novembro de 1478, pela qual "conferia plenos poderes a Fernando e
Isabel para nomearem dois ou três Inquisidores, arcebispos, bispos ou outros
dignitários eclesiásticos, recomendáveis por sua prudência e suas virtudes,
sacerdotes seculares ou regulares, de quarenta anos de idade ao menos, e de
costumes irrepreensíveis, mestres ou bacharéis em Teologia, doutores ou
licenciados em Direito Canônico, os quais deveriam passar de maneira
satisfatória por um exame especial. Tais Inquisidores ficariam encarregados de
proceder contra os judeus batizados reincidentes no judaísmo e contra todos os
demais culpados de apostasia. 0 Papa delegava a esses oficiais eclesiásticos a
jurisdição necessária para instaurar os processos dos acusados conforme o
Direito e o costume; além disto, autorizava os soberanos espanhóis a destruir
tais Inquisidores e nomear outros em seu lugar, caso isto fosse oportuno- (L.
Pastor, Histoire des Papes IV 370).
Note-se
bem que, conforme este édito, a Inquisição só estenderia sua ação a cristãos
batizados, não a judeus que jamais houvessem pertencido à Igreja; a instituição
era, pois, concebida como órgão promotor de disciplina entre os filhos da
Igreja, não como instrumento de intolerância em relação às crenças não-cristãs.
Ora,
apoiados na licença pontifícia, os reis da Espanha aos 17 de setembro de 1480
nomearam Inquisidores, com sede em Sevilha, os dois dominicanos Miguel Morillo
e Juan Martins, dando-lhes como assessores dois sacerdotes seculares. Os
monarcas promulgaram também um compêndio de "Instruções", enviado a
todos os tribunais da Espanha, constituindo como que um código da Inquisição, a
qual assim se tornava uma espécie de órgão do Estado civil.
Os
Inquisidores entraram logo em ação, procedendo geralmente com grande energia.
Parecia que a Inquisição estava a serviço não da Religião propriamente, mas dos
soberanos espanhóis, os quais procuravam atingir criminosos mesmo de categoria
meramente política.
Em
breve, porém, fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a severidade dos
Inquisidores. Sixto IV então escreveu sucessivas cartas aos monarcas da
Espanha, mostrando-lhes profundo descontentamento por quanto acontecia em seu
reino e baixando instruções de moderação para os juízes tanto civis como
eclesiásticos.
Merece
especial destaque neste particular o Breve de 2 de agosto de 1482, que o Papa,
depois de promulgar certas regras coibitivas do poder dos Inquisidores,
concluía com as seguintes palavras:
“---Visto
que somente a caridade nos torna semelhantes a Deus.--rogamos e exortamos o Rei
e a Rainha, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que imitem Aquele
de quem é característico ter sempre compaixão e perdão. Queiram, portanto,
mostrar-se indulgentes para com os seus súditos da cidade e da diocese de
Sevilha que confessam o erro e imploram a misericórdia!".
Contudo,
apesar das freqüentes admoestações pontifícias, a Inquisição Espanhola ia-se
tornando mais e mais um órgão poderoso de influência e atividade do monarca
nacional. Para comprovar isto, basta lembrar o seguinte: a Inquisição no
território espanhol ficou sendo instituído tutor permanente durante três
séculos a fio. Nisto diferia bem da Inquisição Medieval, a qual foi sempre
intermitente, tendo em vista determinados erros oriundos em tal e tal
localidade. A manutenção permanente de um tribunal inquisitório impunha
avultadas despesas, que somente o Estado podia tomar a seu cargo; foi o que se
deu na Espanha: os reis atribuíam a si todas as rendas materiais da Inquisição
(impostos, multas, bens confiscados) e pagavam as respectivas despesas;
conseqüentemente alguns historiadores, referindo-se à Inquisição Espanhola,
denominaram-na " Inquisição Régia”.
A
fim de completar o quadro até aqui traçado, passemos a mais um pormenor
característico do mesmo.
Os
reis Fernando e Isabel visavam a corroborar a Inquisição, emancipando-a do
controle mesmo de Roma... Conceberam então a idéia de dar à instituição um
chefe.único e plenipotenciário - o Inquisidor-Mor -, o qual julgaria na Espanha
mesma os apelos dirigidos a Roma. Para este cargo, propuseram à Santa Sé um
religioso dominicano, Tomaz de Torquemada ("a Turrecremata", em
latim), o qual em outubro de 1483 foi realmente nomeado Inquisidor-Mor para
todos os territórios de Fernando e Isabel. Procedendo à nomeação, escrevia o
Papa Sixto IV a Torquemada:
-Os
nossos caríssimos filhos em Cristo, o rei e a rainha de Castela e Leão, nos
suplicaram para que te designássemos como Inquisidor do mal da heresia nos seus
reinos de Aragão e Valença, assim como no principado da Catalunha- (Burllar.
Ord. Praedicatorum 111622). O gesto de Sixto IV só se pode explicar
por boa fé e confiança. 0 ato era, na verdade, pouco prudente...
Com
efeito; a concessão benignamente feita aos monarcas seria pretexto para novos e
novos avanços destes: os sucessores de Torquemada no cargo de Inquisidor-Mor já
não foram "nomeados pelo Papa, mas pelos soberanos espanhóis (de acordo
com critérios nem sempre louváveis). Para Torquemada e sucessores, foi obtido
da Santa Sé o direito de nomearem os Inquisidores regionais, subordinados ao
Inquisidor-Mor.
Mais
ainda: Fernando e Isabel criaram o chamado "Conselho Régio da
lnquisição", comissão de consultores nomeados pelo poder civil e
destinados como que a controlar os processos da Inquisição; gozavam de voto
deliberativo em questões de Direito civil, e de voto consultivo em temas de
Direito Canônico.
Uma
das expressões mais típicas da autonomia arrogante do Santo Ofício espanhol é o
famoso processo que os Inquisidores moveram contra o arcebispo primaz da
Espanha, Bartolorneu Carranza, de Toledo. Sem descer aos pormenores do
acontecimento, notaremos aqui apenas que durante dezoito anos contínuos a
Inquisição Espanhola perseguiu o venerável prelado, opondo-se a legados papais,
ao Concilio ecumênico de Trento e ao próprio Papa, em meados do século XVI.
Frisando
ainda um particular, lembraremos que o rei Carlos III (1759-1788) constitui
outra figura significativa do absolutismo régio no setor que vimos estudando.
Colocou-se peremptoriamente entre a Santa Sé e a Inquisição, proibindo a esta
que executasse alguma ordem de Roma sem licença prévia do Conselho de Castela,
ainda que se tratasse apenas de proscrição de livros. 0 Inquisidor-Mor, tendo
acolhido um processo sem permissão do rei, foi logo banido para localidade
situada a doze horas de Madrid; só conseguiu voltar após apresentar desculpas
ao rei, que as aceitou, declarando:
"0 Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu lho concedo, aceito agora os agradecimentos do tribunal; protegê-lo-ei sempre, mas não se esqueça ele desta ameaça de minha cólera voltada contra qualquer tentativa de desobediência" cf. Desdevises du Dezart, L'Espagne de l'Ancien Régime. La Socí~ 101s).
A
história atesta outrossim como a Santa Sé repetidamente decretou medidas que
visavam a defender os acusados frentes à dureza do poder régio e do povo. A
Igreja em tais casos distanciava-se nitidamente da Inquisição Régia, embora
esta continuasse a ser tida como tribunal eclesiástico.
Assim
aos 2 de dezembro de 1530, Clemente Vil conferiu aos Inquisidores a faculdade
de absolver sacramentalmente os delitos de heresia e apostasia; destarte o sacerdote
poderia tentar subtrair do processo público e da infâmia da Inquisição qualquer
acusado que estivesse animado de sinceras disposições para o bem. Aos 15
de junho de 1531, o mesmo Papa Clemente Vil mandava aos Inquisidores tomassem a
defesa dos mouriscos que, acabrunhados de impostos pelos respectivos senhores e
patrões, poderiam conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 2 de agosto de 1546,
Paulo 111 declarava os mouriscos de Granada aptos para todos os cargos civis e
todas as dignidades eclesiásticas. Aos 18 de janeiro de 1556, Paulo IV
autorizava os sacerdotes a absolver em confissão sacramental os mouriscos.
Compreende-se
que a Inquisição Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses às vezes
mesquinhos dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Foi o
que se deu realmente nos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência de uma revolução,
o Imperador Napoleão 1, intervindo no governo da nação, aboliu a Inquisição
Espanhola por decreto de 4 de dezembro de 1808. 0 rei Fernando VI[, porém,
restaurou-a em 1814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam
colaborado com o regime de Napoleão. Finalmente, quando o povo se emancipou do
absolutismo de Fernando Vil, restabelecendo o regime liberal no país, um dos
primeiros atos das Cortes de Cadiz foi a extinção definitiva da Inquisição em
1820. A medida era, sem dúvida, mais do que oportuna, pois punha termo a uma
situação humilhante para a Santa Igreja.
É
a luz destes dados históricos que se devem ler as notícias relativas aos
instrumentos de tortura aplicados na Espanha sob a Inquisição. Não há dúvida,
são algo de desumano e condenável; talvez, porém, os antigos não se
horrorizassem tanto diante deles quanto nós, pois outrora os homens professavam
uma mentalidade fortemente metafísica, isto é, propensa a colocar os valores
transcendentais acima dos valores psicológicos e humanos, sem consideração de
pessoas; desde que julgassem ser seu dever defender alguma nobre causa, tudo
davam por ela, sacrificando mesmo pessoas humanas, de acordo com as categorias
e os procedimentos da sua época. - De resto, o Cesaropapismo ou a indevida
ingerência dos monarcas em assuntos de ordem interna da Igreja muito prejudicou
a causa católica no decorrer dos séculos.
Estêvão Bettencourt O.S.B.