Direito e Pastoral
NULIDADES
MATRIMONIAIS
Entrevista a Rosa Corazón
(Fonte: Revista “Celebração Liturgica, n. 2 de 2002)
Na sequência da crescente instabilidade conjugal e
em linha com o auge de certa imprensa que alimenta tanto divulgar questões
íntimas, como opinar sobre a vida dos outros, há uma grande confusão a respeito
das nulidades matrimoniais. Rosa Corazón, advogada perita em causas
matrimoniais, aborda num livro recente* questões relativas ao
matrimónio, ao divórcio, à separação e também às nulidades. O texto conjuga o
rigor jurídico e a fidelidade ao Direito da Igreja com a delicadeza e a
prudência.
— No seu livro explica que a indissolubilidade é
uma propriedade de qualquer matrimónio, não só do católico. Não será isto
chocante, não só para os não católicos, mas também para muitos católicos, que
podem pensar que o matrimónio católico é «mais exigente»?
— O amor dos esposos, quando é verdadeiro, seja
qual for a religião dos contraentes, inclusive entre pessoas que não seguem
nenhuma confissão, é só para uma e só para um: não admite partilhá-lo, nem
rompê-lo por vontade própria. Isto é assim pela própria natureza do amor
conjugal, e não porque os contraentes sejam católicos. Quando se dá um
matrimónio canónico, não se mudam nem se acrescentam propriedades ao que o
matrimónio é em si: o que se recebe é a graça do sacramento. Isto é, para os
católicos o matrimónio é, além disso, um sacramento, e isto sim é «próprio» dos
católicos. O matrimónio católico, portanto, não é mais exigente, nem tem mais
obrigações: contamos com um grande sacramento precisamente para nos ajudar de
modo extraordinário, embora isto não implique nem menos esforço, nem diminuição
de dificuldades.
— Mas as leis civis de muitos países, e também
outras confissões religiosas, não contemplam esse matrimónio «de um com uma
para sempre». Por isso, torna-se muito difícil falar actualmente do que o
matrimónio é «em si», quando só os católicos mantêm a indissolubilidade...
— É possível que estar em minoria ou ir contra a
corrente seja difícil, mas isso não significa que não se esteja na razão. Além
disso, no Ocidente as leis do divórcio são relativamente recentes em quase
todas as legislações e foram formuladas e ampliadas sobretudo no século XX. As
mentalidades, e as leis civis, podem mudar. Por exemplo, nos EUA existe um
forte movimento de consolidação do matrimónio por via legal – que é um aspecto,
mas não é o único –, não ligado a qualquer confissão religiosa, mediante
restrições ao divórcio ou a instauração de determinadas cláusulas.
A nulidade tem de ser demonstrada
— A senhora explica que a exclusão de qualquer
das propriedades – unidade, indissolubilidade, fidelidade – ou de bens
essenciais do matrimónio – os filhos – por um dos contraentes é causa de
nulidade. Significa isto que, se uma pessoa não acredita na indissolubilidade e
se casa pela Igreja, o seu matrimónio é nulo? Porque, então, dá a sensação de
que há muitos matrimónios canónicos que são nulos...
— É necessário um acto positivo da vontade que
exclua uma das propriedades ou bens. Este acto deve dar-se através de uma
manifestação séria e firme de um ou dos dois cônjuges, ou mediante um pacto ou
uma condição. Em ambos os casos, tem de ser provado. Assim, que uma pessoa
tenha manifestado em alguma ocasião anterior ao casamento que preferiria
casar-se só civilmente ou que tivesse uma mentalidade divorcista, não é prova
suficiente de que essa pessoa se casou excluindo que o matrimónio era para toda
a vida. E não o é, precisamente porque o que essa pessoa fez foi casar-se pela
Igreja e, portanto, deve-se presumir que quis contrair matrimónio tal e como é:
indissolúvel.
— Então, a questão neste caso está nas provas que
demonstrem que existiu simulação, mas também é fundamental a sinceridade e
honradez das partes, dos advogados, do tribunal...
— Exactamente. Por isso se diz que é necessário
proceder com verdade. É de tal importância um processo de nulidade
matrimonial que a sentença ditada nele é encabeçada pelas seguintes palavras:
«Em nome de Deus. Amen»; e nela, recorrendo à ajuda de Deus e com toda a
certeza moral humanamente possível, os juizes declaram que ficou devidamente
provado que o matrimónio é nulo ou, pelo contrário, que não ficou provado
aquilo em que se baseou o pedido de nulidade.
Trata-se de um assunto que afecta não só o bem
privado dos contraentes, mas também o bem público, e por isso a causa necessita
de ser vista por dois tribunais (o de primeira instância e o de apelação). Cada
um destes é formado por três juizes, e as declarações das partes e das testemunhas
são prestadas sob o juramento de dizer a verdade e têm de estar corroboradas
pelas outras provas e circunstâncias que aparecem na causa. Além disso, o
advogado, se é honesto, a primeira coisa que faz é julgar se há causa de
nulidade ou não: se a encontra, assumirá a defesa do caso; mas se não a
encontra, não deve aceitá-lo.
Nulidade ou simples fracasso?
— Ora bem, parece que ninguém põe a questão de o
seu matrimónio ser nulo... senão ante um fracasso ou uma crise matrimonial. Ou
seja, se o matrimónio corre bem, ninguém se põe a pensar se excluiu a
indissolubilidade, a fidelidade, os filhos, ou se um dos contraentes tinha ou
não maturidade quando se casou...
— Eu distinguiria entre situações difíceis,
fracassos e nulidades num matrimónio. Nem toda a situação matrimonial difícil
tem de acabar num fracasso. As pessoas podem superar-se e, se se quer e se
empregam os meios, também se podem superar muitas situações difíceis, o que
dará origem a um amor mais amadurecido. Recordo uma pessoa sábia que dizia: «se
pretendes ser feliz fugindo das dificuldades, nunca o serás», e comprovei que é
verdade. Mas igualmente sabemos que há dificuldades que acabam num fracasso, e
este pode terminar em divórcio ou separação. Às vezes, alguns fracassos acabam
em nulidade, se há causa que fique provada. Logicamente, há muitos fracassos
que não podem acabar em nulidade porque os matrimónios são válidos.
— Não é, então, mais honesto aceitar um fracasso e
não procurar a nulidade?
— Não é questão de procurar ou não procurar. Tentar
ver se há causa de nulidade num matrimónio não é algo contrário à religião
católica; pelo contrário, o divórcio sim, é. E num matrimónio, para o qual uma
das partes não tenha ido com as condições requeridas, isso basta para que seja
nulo, e que o seja para o que «foi bem» e para o que «foi mal», porque um
matrimónio é válido ou nulo para os dois contraentes. A fortaleza do vínculo
matrimonial, que é exclusivo e indissolúvel, tanto se defende mantendo a
validade do matrimónio que é válido apesar das dificuldades que possam aparecer
na vida matrimonial, como declarando nulo o matrimónio que nunca foi válido e
no qual ficou provada a causa que o torna nulo desde a sua origem. Assim, um
fracasso pode dever-se a uma causa de nulidade: por exemplo, uma doença mental
latente que se manifesta durante a convivência matrimonial. Nesse caso, a
nulidade requer que a perturbação mental seja grave, que já existisse antes do
casamento, que se possa provar a sua existência e que incapacite para ser bom
cônjuge e bom pai ou boa mãe.
Os processos não são caros
— Será verdade que as nulidades matrimoniais são
só para os ricos, por serem muito caras?
— Se uma nulidade matrimonial é cara, deve-se a
que o advogado que a defende é caro. Logicamente, pode-se escolher um advogado
caro ou outro mais barato. Mas, para além do advogado, está o trabalho, que se
tem de remunerar, das seguintes pessoas: três juizes e um defensor do vínculo
do tribunal de primeira instância; três juizes e um defensor do vínculo do
tribunal de apelação; um notário em cada um dos tribunais, que dá fé dos autos;
outras pessoas que tornam possível a administração da justiça na Igreja: os
procuradores e peritos que intervenham. Enquanto, na jurisdição civil, o custo
da administração da justiça corre a cargo do erário público, na canónica devem
pagar os que pleiteiam.
Não é, contudo, uma quantia astronómica.
Dependendo das provas e sem contar com o advogado, pode custar à volta de 1.500
euros. Além disso, há a possibilidade de solicitar o patrocínio gratuito para
as pessoas que carecem de suficientes recursos económicos. Isto supõe a
gratuidade de todo o processo de nulidade matrimonial, incluídos o advogado, o
procurador e os peritos, para além da actividade dos juizes e notários. Ou, se
for o caso, pode-se solicitar a redução das custas.
— Então, a Igreja não recebe nada do que cobram os
advogados, os procuradores ou os peritos?
— Rigorosamente nada. O tribunal de primeira
instância recebe só as taxas previstas – 500 euros, até um máximo de 900 euros
, segundo os lugares – por um trabalho de três juizes, o defensor do vínculo,
um notário e o restante pessoal do tribunal, e o de segunda instância uns 300
euros. É preciso pagar o pessoal, o edifício, o material e o equipamento, pelo
que a manutenção dos tribunais é absolutamente deficitária para a Igreja.
Nulidades de pessoas importantes
— Diz-se que as nulidades são para as pessoas
importantes...
— Não se pode esquecer que é da vida das pessoas
consideradas importantes que se fala em alguns meios da comunicação social,
especialmente o mais chamativo, que, além disso, nem sempre condiz com a
verdade. Fala-se dos seus casamentos, das férias, da casa e, se houve, também
da nulidade do casamento. Quando esta transcende, é tratada de modo
superficial, incompleto, por pessoas não especialistas que pouco ou nada
entendem de nulidades. Se um leitor, telespectador ou radiouvinte se interroga
porque declararam nulo o matrimónio daquela pessoa, vai ficar sem o saber. Para
conhecer bem uma causa de nulidade, é preciso estudar todos os documentos, o
que supõe muitas horas de trabalho para uma pessoa que conheça bem a matéria.
Quando alguém pretende, por um artigo numa revista, inteirar-se do que se
passou no matrimónio de uma pessoa importante para que o tenham declarado nulo,
é como aquele homem que dizia ao médico: «Quero que me conte num instante as
causas de que posso morrer». As nulidades são para aquela pessoa que –
importante ou não, rica ou pobre – tenha uma causa de nulidade matrimonial
devidamente provada e actue com verdade.
— Por que é que agora há tantas causas de nulidade
e antes não as havia? Será que a Igreja abriu a mão? As nulidades são uma
espécie de divórcio eclesiástico, uma segunda oportunidade para os católicos?
— As nulidades não são nenhum tipo de divórcio.
Com elas declara-se provado que nunca existiu o matrimónio, que só havia uma
aparência. Sempre houve pedidos de nulidade matrimonial: já Henrique VIII
solicitara que se declarasse nulo o seu casamento, sem o conseguir. O aumento
de causas de nulidade matrimonial não é necessariamente mau, como não o é
recorrer a um médico ante uma grave enfermidade. Alguns dos avanços da ciência
psiquiátrica, por exemplo, serviram para que pessoas que noutro tempo não
teriam sido consideradas capazes para se casarem devido a uma perturbação
mental, agora possam fazê-lo porque a sua enfermidade se pode curar; mas também
serviram, noutros casos, para detectar pessoas que, apesar do casamento, não se
casaram porque nesse momento eram incapazes de assumir as obrigações essenciais
do matrimónio, devido a uma anomalia psíquica grave.
Além disso, agora há mais pessoas que recorrem ao
tribunal da Igreja pedindo a nulidade do seu casamento. O tribunal da Igreja é
de «justiça rogada»: dita sentença a instâncias da parte.
Por outro lado, é preciso reconhecer que mudou a
mentalidade, que a sociedade não é a mesma. Em muitas ocasiões, a mudança foi
para bem, e a Igreja assumiu-a incorporando questões de psiquiatria e de
psicologia que incidem sobre o acto humano do consentimento matrimonial.
Aurora Pimentel
*
ROSA
CORAZÓN, Nulidades matrimoniales, Ed. Desclée De Brouwer,
Bilbau 2001, 213 págs.