Do poder de ordem e da faculdade de absolver
Dr. Rafael Vitola Brodbeck
Pelo
sacramento da Ordem, os clérigos são incorporados de modo mais perfeito a Nosso
Senhor, restando que há entre eles e os simples fiéis uma diferença de grau,
senão essencial. Participantes assim do ministério do próprio Cristo, tornam-se
dispensadores da graça por Ele conquistada na Cruz do Calvário.
Se todos os cristãos somos, de certa forma, sacerdotes em razão do Batismo, a Ordem confere uma nova participação desse sacerdócio, que é, como dissemos, diferente daquele, dito comum dos fiéis, em essência, e não apenas em grau. Esse sacerdócio hierárquico, recebido pela ordenação sacramental, torna o ministro, quando revestido da Ordem presbiteral, o próprio Cristo, um alter Christus. Dessa forma, é o Salvador quem age através do sacerdote, que só pode ser assim chamado em virtude de sua união sacramental com Jesus Cristo, o único, suficiente e supremo Sacerdote, que Se oferece a Si mesmo a Deus em oferta pelos pecados de todos. O sacerdote, por isso, age, como dizemos em Teologia, in Persona Christi, na Pessoa de Cristo, e não somente em Seu Nome.
Ora, o
fruto do exercício do sacerdócio de Cristo é a recuperação da amizade entre
Deus e a humanidade, i.e., a conquista da graça divina, capaz de justificar o
homem que a Ele se achega com fé teologal. Nisso, se o sacerdote ordenado, por
causa do sacramento que recebeu, está unido a Cristo e Seu sacerdócio, o
exercício de seu ministério deve ser a própria dispensação da graça
conquistada. O ato de Cristo ao sacrificar-Se e a ação sacramental do sacerdote
são necessariamente uma só realidade, ainda que separados no tempo.
Assim,
merecida por Nosso Senhor a graça por Seu supremo ato de sacrifício na Cruz,
nos é imputada, pelo poder do Espírito Santo, ordinariamente por canais através
dos quais ela flui. Esses canais, os sacramentos, são também sinais visíveis da
graça invisível. "Os sacramentos são sinais eficazes da graça,
instituídos por Cristo e confiados à Igreja, por meio dos quais nos é
dispensada a vida divina. Os ritos visíveis sob os quais os sacramentos são
celebrados significam e realizam as graças próprias de cada sacramento.
Produzem fruto naqueles que os recebem com as disposições exigidas."
(Catecismo da Igreja Católica, 1131) Com base
nessa doutrina, resumida pelo Catecismo – que abreviaremos como de costume,
Cat. –, podemos definir os sacramentos como canais da graça e sinais sensíveis,
eficazes e visíveis da graça invisível, que realizam e produzem aquilo que
significam.
Se cada
sacramento produz a graça divina dita genérica na alma de quem o recebe, há
também uma graça específica que é por ele produzida. Quanto ao sacramento da
Penitência, que é tema do presente estudo, temos que é o modo ordinário de
alcançarmos o perdão dos pecados cometidos após o Batismo. Em vista disso, é
ato próprio do ordenado investido no sacerdócio, pois que pela Ordem, age in
Persona Christi. Se é Cristo quem nos merece a
graça, só Ele pode no-la imputar, e o faz pela ação do sacerdote no sacramento
da Penitência. O efeito da Penitência é expresso mesmo pela fórmula de
administração deste sacramento: "Deus, Pai de misericórdia, que, pela
Morte e Ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e enviou o
Espírito Santo para a remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da
Igreja, o perdão e a paz. E eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo." (Ritual Romano; Rito da Penitência; Fórmula da
Absolvição)
O estudo
que fazemos, mesmo que tenha de utilizar certas fórmulas teológicas, é
precipuamente jurídico, de onde se infere que devemos amparar conceituações e
explicitações na lei da Igreja, compilada principalmente no Código de Direito
Canônico – Codex Iuri Canonici, CIC. Outras formulações legais poderão
ser usadas, e mesmo fontes subsidiárias do Direito, como a jurisprudência, a
doutrina dos comentadores – opinio communis doctorum –, os costumes, e
os princípios gerais jurídicos. Por se referir a
matéria de Direito divino e não meramente eclesiástico, a Teologia também é
fonte secundária para o melhor entendimento do assunto.
Feita essa
primeira explicação, citamos o cânon 959, CIC, que dá uma definição jurídica e
teológica do sacramento da Penitência:
"Cân.
959 – No sacramento da penitência, os fiéis que confessam seus pecados ao
ministro legítimo, arrependidos e com o propósito de
se emendarem, alcançam de Deus, mediante a absolvição dada pelo ministro, o
perdão dos pecados cometidos após o batismo, e ao mesmo tempo se reconciliam
com a Igreja, à qual feriram pelo pecado."
Conforme tínhamos já demonstrado, o ministro da Penitência é o sacerdote, pois por sua ordenação, que resultou na união mais perfeita a Cristo, é o dispensador da graça por Ele conquistada. Não é outro o disposto no CIC:
"Cân. 965 – Ministro do sacramento da penitência é somente o sacerdote."
Todavia, se
só o sacerdote é o ministro do sacramento da Penitência, pelo qual o batizado
recupera a amizade com Deus perdida pela prática de pecados graves após o
Batismo, isso não quer dizer que necessariamente todo homem investido da graça
sacerdotal possa válida e licitamente dar a absolvição sacramental. Se o poder
de ordem é necessário para ouvir confissões, e conseqüentemente para absolver
os pecados, conforme o cânon 6, Sessão XIV, Concílio Ecumênico de Trento, há
necessidade, entretanto, de outro poder, denominado "de jurisdição"
no revogado Código de Direito Canônico de 1917, e no novo Código de 1983, chamado
de "faculdade de absolver" ou "faculdade de ouvir
confissões".
Poder de
ordem é aquele recebido pelo sacerdote na sua ordenação presbiteral válida. Por
ela, recebe o sacerdote a capacidade de exercer seu múnus sacerdotal em vista à
santificação do povo cristão, mediante a administração dos sacramentos,
sobretudo a celebração da Santa Missa.
Poder de
jurisdição, ou faculdade de absolver, conforme o ensino do ilustre canonista
Pe. Fr. Teodoro da Torre Del Greco, OFMCap, doutor em Direito Canônico, "é
o poder público de reger os fiéis em ordem à vida eterna." (Teologia
Moral. Compêndio de moral católica para o clero em geral e
leigos. Edições Paulinas, São Paulo, 1959, p. 580) O termo
"jurisdição" foi abandonado pela letra do novo Código, reservando-o,
segundo comentário do Pe. Jesús Hortal, SJ, "exclusivamente para o
poder de regime (cf. cân. 129), o qual incide diretamente na ordem externa da
Igreja, enquanto a faculdade de absolver se dirige ao foro interno ou da
consciência." (Nota ao cân. 966, in Código de Direito Canônico. 3a
edição, Edições Loyola, São Paulo, 2001) Ainda que pese a douta advertência
do canonista jesuíta, atemo-nos ao ensino do capuchinho, que, em substância,
mesmo que mudando-se as palavras, daquele não difere,
quando à conceituação. Embora o Código não mais utilize o termo
"jurisdição" para a faculdade de ouvir confissões, é ele ainda a nomenclatura clássica, e usada na doutrina
canônico-jurídica atual por sua base histórica.
Para melhor entendimento das duas formas de manifestações de poder eclesiástico pelo sacerdote, ainda que, pelo conceito de ambas, possamos já ter vislumbrado o que significam, citamos a distinção entre ordem e jurisdição: "O poder de governar – potestas regendi – os fiéis pelas leis, julgamentos e penas se distingue do poder de santifica-los pela celebração do culto e pela confecção ou aplicação pública dos sacramentos ou sacramentais." (Vermeersch, A., SJ; Creusen, J., SJ. Epitome Iuris Canonici, I, 312, H. Dessain, Roma, 1927)
Feitas tais
considerações, chamemos a autorização de ouvir confissões, ora conforme o texto
do Código antigo, "poder de jurisdição", ora segundo o novo Código,
"faculdade de absolver". Para a doutrina, o nome pouco importa, dado
que a substância da conceituação é a mesma.
Com a
ressalva de Hortal, retomamos a definição de Del Greco. Ela nos guiará para
maior aprofundamento do tema.
"Cân.
966 – § 1. Para a válida absolvição dos pecados se requer que o ministro, além
do poder de ordem, tenha a faculdade de exercer esse poder em favor dos fiéis
aos quais dá a absolvição." (CIC)
Não basta
para absolver validamente, vemos pela norma do Código vigente, ter recebido o
poder da Ordem, i.e., estar incorporado a Cristo em virtude desse sacramento. É
preciso ter recebido a faculdade de exercer esse poder de jurisdição, de reger
os fiéis em ordem à vida eterna, retomando a lição de citado canonista
capuchinho. Um e outro poderes são recebidos de
Cristo, através da autoridade competente. "O Bispo, chefe visível da
Igreja Particular, é, portanto, considerado, com plena razão, desde os tempos
primitivos, aquele que principalmente detém o poder e o ministério da
reconciliação: ele é o moderador da disciplina penitencial. Os presbíteros,
seus colaboradores, o exercem na medida em que receberam o múnus, quer de seu
Bispo (ou de um superior religioso), quer do Papa, por meio do direito da
Igreja." (Cat. 1462) A autoridade competente, segundo a Teologia,
expressa no parágrafo citado do documento acima, é o Ordinário, Bispo ou
Superior de comunidade religiosa, cf. cân. 966, § 2, e cân. 969, CIC.
O poder
recebido na Ordem é decorrente da própria recepção deste insigne sacramento. A
existência de um poder de jurisdição, ao lado de um poder de ordem, é
conseqüência lógica da doutrina que sustenta a radical ligação entre o
sacerdote e a Igreja Particular ou instituto para o qual é ordenado. Proíbe-se
a existência dos chamados "clérigos acéfalos" ou "clérigos
vagos", i.e., que não sejam incorporados a uma Igreja Particular,
prelazia, instituto religioso ou secular, ou sociedade de vida apostólica. "Cân.
265 – Todo clérigo deve estar incardinado ou numa
Igreja particular ou prelazia pessoal, ou em algum instituto de vida consagrada
ou sociedade que tenham tal faculdade, de modo que não se admitam de forma
alguma, clérigos acéfalos ou vagantes." (CIC)
Todo
sacramento, para ser celebrado segundo a doutrina e a legislação católicas,
deve apresentar os requisitos de validade e de licitude. Válido é o sacramento
que existe. Lícito é o que, além de existir, pode ser celebrado sem nenhum
impedimento.
Por isso,
se determinado sacramento está eivado de invalidade, podemos tê-lo por nulo,
i.e., ainda que externa e aparentemente celebrado, não possui em si efeito
algum. Como exemplo, se a Eucaristia é celebrada invalidamente, não estamos
falando de verdadeira Eucaristia: o pão é simples pão, o vinho é simples vinho,
e não o Corpo e o Sangue de Cristo. Para a validade do sacramento, sua forma,
sua matéria, seu ministro e a intenção deste precisam ser válidas, e além disso
não deve haver nenhum impedimento de ordem canônica que a Igreja tenha oposto
legitimamente usando de seu poder de regime.
Para a
licitude, requer-se que, além da validade, o sacramento não encontre nenhuma
disposição contrária da Igreja. Por exemplo, a Eucaristia é validamente
celebrada por um ministro de determinada comunidade eclesial cismática, i.e.,
sem plena comunhão com a Sé de Roma, se ele é tido por válido, e a forma, a
matéria e a intenção são igualmente válidas; todavia, pela falta da comunhão
com a Igreja Romana, o sacramento é válido, porém ilícito. O mesmo se diga da
Ordem: conferida por um "bispo" anglicano é inválida, por defeito de
forma, de matéria, de ministro e de intenção; conferida por Bispo da Igreja
grega cismática, dita "ortodoxa", é válida, porém ilícita. Outro
exemplo: se, pretendendo conferir o Batismo, um sacerdote – ministro válido
desse sacramento –, com a intenção correta de fazer o que a Igreja quer –
intenção válida –, utiliza água – matéria válida –, mas não pronuncia as
palavras pelas quais ministra o sacramento em nome da Trindade, citando as
Pessoas divinas nominalmente – forma, portanto, inválida –, a pretensão é
inválida; além desses elementos, informados pela Revelação, pelo Direito
Divino, pode haver outras condições impostas pela Igreja, que, igualmente por
Direito Divino, pode estabelecer normas de Direito Eclesiástico mesmo para a
validade do sacramento.
A Teologia,
ordinariamente, informa as condições para a validade de um sacramento. O
Direito Canônico as condições para a licitude. Entretanto, as duas disciplinas
se interpenetram para a completa disposição, envolvendo o assunto normas de
caráter doutrinário e jurídico. Resta que a Igreja, por Direito Divino, pode
especificar em normas de Direito Eclesiástico humano, as condições para a
validade do sacramento, ao lado daquilo que nos é fornecido pela Revelação.
Também ordinariamente é do Direito da Igreja, originário de disposição divina,
que recebemos pela Igreja as condições para a licitude do sacramento.
Em regras
gerais, segundo o manual de Del Greco, as condições para a válida administração
dos sacramentos são: o poder divino, e neste está implícito o uso de matéria e
forma válidas; e a devida intenção, presente válido ministro. Para a lícita
administração dos sacramentos: o estado de graça; a atenção interna; a
observância dos ritos e das cerimônias; a imunidade de censuras e
irregularidades; e a devida licença.
Em resumo,
tanto por Direito Eclesiástico, originário do poder da Igreja dado por Direito
Divino, quanto diretamente por este último, nos são dadas condições para a
validade e para a licitude dos sacramentos, especialmente aqueles que importam
no exercício efetivo do poder de jurisdição como a Penitência. Como nosso
trabalho não é propriamente teológico, senão jurídico-canônico, é com base nos
cânones e na disciplina do Direito que formularemos a nossa argumentação.
Reza o
Código, in verbis:
"Cân.
967 – § 1. Além do Romano Pontífice, os Cardeais, pelo próprio direito, gozam
da faculdade de ouvir confissões dos fiéis em todo o mundo; do mesmo modo os
Bispos, que dela usam licitamente, em toda a parte, a não ser que o Bispo
diocesano num caso particular se tenha oposto.
§ 2.
Aqueles que têm faculdade de ouvir confissões habitualmente, em virtude de seu
ofício ou por concessão do Ordinário do lugar de incardinação ou do lugar onde
têm domicílio, podem exercer essa faculdade em toda a parte, a não ser que o
Ordinário local se oponha em algum caso particular, salvas as prescrições do
cân. 974, §§ 2 e 3.
§ 3. Pelo
próprio direito, gozam em toda parte dessa faculdade, em favor dos membros e de
outros que vivem dia e noite na casa do instituto ou sociedade, aqueles que têm
faculdade de ouvir confissões em virtude de ofício ou de concessão do Superior
competente, de acordo com os cânones 968, § 2, e 969, § 2; eles na verdade a
usam também licitamente, a não ser que algum Superior maior quanto aos próprios
súditos se tenha oposto, num caso particular." (CIC)
Podemos,
com base no cânon transcrito, esquematizar os detentores do poder de jurisdição
ordinária e delegada ab homine:
a) o Papa e
os Cardeais têm a faculdade de absolver válida e licitamente em todo o mundo;
b) os Bispos, válida e licitamente, em seu território canônico;
c) os Bispos,
validamente em qualquer lugar, e válida e licitamente quando o Bispo diocesano
do lugar não se tenha oposto, em um caso particular;
d) os
sacerdotes, seculares ou religiosos, que a recebem em virtude de seu ofício ou
por concessão do Ordinário do lugar de incardinação ou do lugar onde têm
domicílio, válida e licitamente em toda parte, salvo
oposição do Ordinário local em um caso particular;
e) os
sacerdotes religiosos que a recebem em virtude de seu ofício ou por concessão
do Superior religioso competente, em favor dos membros e de outros que vivem na
casa do instituto ou da sociedade, validamente em qualquer lugar, e válida e
licitamente quando o Superior maior não se opuser, quanto aos próprios súditos,
em um caso particular.
Quando o
Código utiliza a expressão "em virtude de seu ofício", está
querendo especificar aqueles que a própria natureza de sua função na Igreja
Particular exige a jurisdição. No cân. 968, §§ 1 e 2, há a relação: o Ordinário
local – Bispo; Prelado; Superior de instituto ou sociedade clericais de Direito
Pontifício que a tiverem, de acordo com a legislação própria, e somente para os
seus súditos e outros que vivem dia e noite na casa da comunidade religiosa;
Administrador Apostólico –, o cônego penitenciário, o pároco e os outros que estão
em lugar do pároco. Por concessão, falamos de qualquer sacerdote, secular ou
religioso, que receba do Ordinário do lugar de incardinação ou de seu domicílio
– lembramos que os religiosos têm domicílio no território canônico da Igreja
Particular onde está situada a casa da comunidade a qual está ligado –, ou do
Superior de seu instituto ou sociedade.
Assim, se
um sacerdote incardinado em determinada Diocese, e lá tenha faculdade de
absolver dada pelo Bispo, encontra-se em território de outra Igreja Particular,
pode ouvir confissões válida e licitamente, de acordo com as prescrições do
Código.
Quanto aos
sacerdotes religiosos, i.e., incardinados em um instituto de vida consagrada, e
aos sacerdotes membros de institutos seculares ou sociedades de vida apostólica
de Direito Pontifício, deve-se considerar que a norma do Código de 1917, no
cân. 874, § 2, que exigia a formal apresentação de seu Superior ao Ordinário
local para que possam absolver válida e licitamente, está revogada. Na disciplina jurídica atual, basta "que o bispo ouça o
Ordinário próprio deles, enquanto possível." (HORTAL, Pe. Jesús, SJ. Nota
ao cân. 971, in op. cit.) Por outro lado, a norma do cân. 967, § 2, CIC,
pode ser aplicada não só aos sacerdotes diocesanos, mas também aos religiosos.
Assim, v.g., se um sacerdote da Companhia de Jesus possui a faculdade de
absolver dada pelo Ordinário do lugar onde tenha domicílio, pode exercer a
jurisdição mesmo fora desse território, quando estiver viajando, ausentando-se
do lar. Nisso, vê-se que, mesmo que tal religioso não tenha jurisdição delegada
pelo Ordinário do lugar para onde se desloca, nos termos do cân. 971, CIC, a
faculdade pode ser usada invocando-se o cân. 967, § 2, CIC.
Segundo Del
Greco (cf. op. cit., p. 580-585) , a faculdade de absolver pode ser de
jurisdição ordinária, da qual já tratamos, de jurisdição delegada ab homine,
igualmente estudada no item acima, de jurisdição delegada a iure, e de
jurisdição suprida ou supplet Ecclesia.
A
jurisdição ordinária dura enquanto durar o ofício ao qual é anexa. Nisto, se um
sacerdote tem a faculdade de ouvir confissões em razão de ser pároco, cessa sua
jurisdição se for destituído da paróquia restando sem nenhuma, a não ser que
disponha diferentemente o Bispo, concedendo-lhe a jurisdição. Também o cônego
penitenciário, se deixar o ofício, transferindo-se por outro que não tenha a
jurisdição como seu anexo, v.g., responsável pela pastoral vocacional
diocesana, deixa de ter a faculdade de absolver, exceto de acumular outro
ofício com jurisdição ou por concessão do Bispo.
Quando, por
erro comum de fato ou de direito ou por dúvida positiva e provável também de
fato ou de direito, a jurisdição dada na ocasião diz-se suprida. Não é outro o
teor do cân. 144, CIC: "Cân. 144 – No erro comum de fato ou de direito,
bem como na dúvida positiva e provável, de direito ou de fato, a Igreja supre,
para o foro externo e interno, o poder executivo de regime." Erro
comum é o que se dá, por exemplo, quando um sacerdote SEM FACULDADE PARA
ABSOLVER, no horário costumeiro do atendimento em confissões, esconde-se no
confessionário para recitar o breviário sem ser incomodado, e lá é procurado
por um fiel que o julga com jurisdição. O sacerdote, nesse caso, não pode
absolver, por não ter a faculdade própria, e se o faz peca gravemente e incorre
na devida pena canônica. O fiel, todavia, por erro comum, obtém a absolvição
porque a faculdade, naquele momento, é suprida pela Igreja. Quanto à dúvida,
entende-se que o sacerdote, diante de uma situação
excepcional, tendo dúvida quanto a possuir ou não a faculdade de
absolver, pode ouvir confissões, nos termos do citado cânon.
A
jurisdição delegada ab homine é aquela dada pelo Ordinário ou Superior
religioso. "A jurisdição delegada se restringe aos limites do
território do que delega. Fora do território, portanto, absolve-se
invalidamente. Para os religiosos esta delegação dura, ordinariamente, enquanto
um religioso resida numa casa da Ordem, situada na respectiva diocese." (DEL GRECO, Pe. Fr. Teodoro da
Torre, OFMCap. op. cit.) Extraordinariamente, o religioso possui a delegação
jurisdicional enquanto não a revogar o Ordinário.
A
jurisdição delegada a iure confere a qualquer sacerdote validamente
ordenado, ainda que não seja lícita sua ordenação, absolver
válida e licitamente os penitentes que estejam em perigo de morte, de qualquer
pecado e qualquer censura, inclusive os reservados, e mesmo presente um
sacerdote aprovado.
Qualquer
sacerdote, até mesmo os hereges e cismáticos, ou qualquer irregular, acéfalo,
vago, recebe essa jurisdição in articulo mortis.
"Cân. 976 – Qualquer sacerdote, mesmo que não tenha faculdade de
ouvir confissões, absolve válida e licitamente de qualquer censura e de
qualquer pecado qualquer penitente em perigo de morto, mesmo que esteja
presente um sacerdote aprovado." (CIC)
Tais casos
são urgentes e não podem obrigar que se espere jurisdição conferida ao
sacerdote que não a tenha para válida e licitamente absolver ordinariamente.
Por isso, a ausência de jurisdição canonicamente conferida pelo Ordinário ou em
razão de ofício, é como que suprida pela necessidade pela própria autoridade da
Igreja. O Código apenas salienta aquilo que já é ensinado pela Teologia; o
Direito não pode nunca se opor à salvação das almas. Comenta Santo Afonso Maria
de Ligório, exímio moralista e canonista: "A razão é que de outra
maneira muitas almas se perderiam e, por este motivo, se presume razoavelmente
a suplência da jurisdição por parte da Igreja." (De Poenitentia
Sacramento, trt. XVI, c. V, n. 90)
O poder de
absolver é de Direito Divino e decorre da ordenação; é, portanto, extensão do
poder de ordem. Entretanto, como vimos, além do PODER de absolver, é necessária
a FACULDADE para o exercício desse poder. Essa faculdade, dada pelo Direito
Eclesiástico, é como que suprida pela Igreja, em vista da necessidade. Pelo
douto Santo Tomás de Aquino encontramos o reforço na explicação: "A
necessidade comporta a dispensa, porque a necessidade não depende da lei."
(S. Th., I-II, Q. 96, a. 6) Que necessidade é mais urgente do que o perigo
de morte do penitente, arriscando-se à condenação eterna apenas porque, havendo
um sacerdote que possa absolver em virtude da Ordem, não tenha a faculdade para
tal? Dessa maneira, a faculdade de absolver é delegada a iure, pelo
estado de "necessidade pública ou geral dos fiéis", como
ensina o Pe. Felix M. Cappello, SJ, insigne canonista jesuíta, pois em tais
casos "manifestou expressa ou pelo menos tacitamente a
vontade de supri-la." (Summa Iuris Canonici. Pontificia Universitas
Gregoriana, Roma, 1955)
Explica-nos
novamente o Aquinate:
"Qualquer
sacerdote, em virtude do poder de ordem, tem poder indiferentemente sobre todos
e para todos os pecados; o fato de não poder absolver todos de todos os pecados
depende da jurisdição imposta pela lei eclesiástica. Mas já que a ‘a
necessidade não está sujeita à lei’ (Consilium de observ. Ieium. De Reg. Iur. –
V Decretal, can. 4), em caso de necessidade, não está impedido pela disposição
da Igreja de poder absolver mesmo sacramentalmente, dado que possui o poder de
ordem." (S. Th. Supplementum, Q. 8, a. 6)
Com a
maestria habitual, o douto Mons. Luigi de Magistris, Regente da Penitenciária
Apostólica, em Roma, e afamado canonista, disserta, na
revista dirigida pelos Legionários de Cristo para a formação permanente dos
sacerdotes:
"O
sacramento da Penitência, no seu momento conclusivo, da absolvição, ou na
penosa hipótese da indisposição do sujeito, da retenção dos pecados, se celebra
mediante uma sentença, um juízo. De fato, Nosso Senhor, na instituição do
sacramento, conferiu aos apóstolos e através deles aos seus sucessores na ordem
sacerdote o poder de perdoar ou reter os pecados, reconciliando deste modo os
pecadores com Deus e com a Igreja. E este poder está explicitamente ligado,
segundo a mesma palavra de Jesus, com a ação do Espírito Santo, que não é
arbitrária, mas subordinada à graça do mesmo Espírito Santo, graça que é
mistério de santidade, de sabedoria, de justiça superior. Trata-se, portanto,
de um poder que se exercita per
modum iudici. Mas, o juízo – não o juízo de índole puramente
lógico-cognoscivista, mas aquele de reais efeitos sacramentais, no sentido
eclesiológico, social – supõe uma autoridade que deve pronunciar o juízo sobre
o indivíduo em relação do qual se emana o juízo mesmo.
A
propósito, é indispensável conhecer os ensinamentos do Concílio de Trento:
Sessão XIV, De Sacramento Paenitentiae, cap. 2: DB
1671; cap. 5: DB 1679; cap. 6: DB 1585; cân. 9: DB 1709. Destes princípios e
motivos de índole teológica se deriva que o poder de perdoar não é de
necessidade presente em todos os sacerdotes validamente ordenados (nota:
Magistris, aqui, fala de PODER de perdoar no sentido de FACULDADE e não de
poder intrínseco à Ordem, pois do contrário, se estaria pondo em contradição
com o ensino de Santo Tomás), sejam Bispos ou presbíteros, mas somente naqueles
que, com o poder derivante da Sagrada Ordenação, têm também o poder conferido à
Igreja em sua ordem hierárquica – potestas clavium.
Portanto, originariamente o poder de perdoar pertence aos que na Igreja têm o
poder de governo: ao Sumo Pontífice em plenitude, sem limites, seja quanto ao
território, seja quanto ao número de fiéis, seja quanto às matérias que devem
ser submetidas na confissão sacramento ao juízo da Igreja. Do mesmo modo os
Bispos, suposta a comunhão hierárquica com o Sumo Pontífice, como pastores de
uma porção da Igreja, definida com critério territorial, ou pessoal, ou ritual,
e com determinadas limitações estabelecidas pela suprema autoridade. Nos demais
(Bispos que não cobrem um ofício de governo pastoral e os presbíteros) o poder
de perdoar ou reter os pecados deriva de uma concessão feita ou pelo Sumo
Pontífice ou por um Bispo. Tal concessão pode fazer-se com disposição geral de
lei, ou com um ato particular, e isto poder ser ou a colação de um ofício que
comporte dentro de um certo âmbito a cura de almas, ou com uma delegação.
Fica claro
que o poder mesmo poder ser limitado nos sujeitos que, dentro da comunhão
hierárquica, não tenham a potestade suprema. O limite pode referir-se à
extensão territorial ou pessoal com relação aos fiéis. O conteúdo da acusação
sacramental; a duração no tempo do poder mesmo etc.
Agora bem,
a este propósito se deve recordar que em relação com os fiéis, que correm perigo
de morte, cessam todas as limitações, sejam as relativas à extensão territorial
ou pessoal, sejam relativas ao conteúdo da confissão sacramental: quer dizer,
qualquer sacerdote validamente ordenado, em qualquer situação canônica, pode –
e deve – administrar o sacramento da Penitência a qualquer fiel que corra
perigo de morte, seja qual for a condição canônica do
fiel mesmo. Salus animarum, suprema lex.
Excluído
este último caso de perigo de morte, as limitações relativas à extensão, ou
âmbito da jurisdição sacramento são óbvias. O Sumo Pontífice, como premissa,
não tem limites de jurisdição; os cardeais da Santa Igreja Romana tem ex
lege a faculdade de absolver em toda a terra, assim como os Bispos,
inclusive os titulares, com o único limite, no âmbito da legitimidade e não da
validade, de uma eventual oposição por parte do Bispo local; por lei canônica, quem tem a faculdade de absolver em conexão
com um ofício (penitenciário, pároco, capelão militar etc) pode confessar
validamente em todos os lugares; assim como quem tem a faculdade delegada,
porém estável; salvo oposição por parte da autoridade diocesana local (e aqui ad
validitatem) em relação com os fiéis não súditos do confessor, veja-se o
cânon 508, CIC. Mas tal extensão repousa sobre uma concessão ex lege:
originalmente o poder de absolver por si mesmo se estende somente quando se
estende a jurisdição, ex officio, ou delegada, atribuída ao sujeito ou
pela suprema autoridade ou pela autoridade diocesana." (O
instante fugitivo da graça, in Sacerdos, nº 23, de setembro-outubro de 1999,
seção Caso Pastoral, pp. 44-46)
O tema é
simples, mas suas nuances podem revelar-se um tanto
complicadas para os que não estão familiarizados com o Direito Canônico,
ainda que sacerdotes. Claro que a jurisdição supplet Ecclesia pode se
aplicar no caso de dúvida séria, positiva e provável, segundo o disposto no
cân. 144, CIC. Todavia, não podemos nos amparar nessa exceção, que só tem razão
de ser em benefício dos penitentes. O lógico e moralmente mais justo é
incentivar os sacerdotes a conhecer melhor a matéria teológica e canônica com
respeito à matéria. Não incorram nossos presbíteros em desconhecimento culpável
da lei...
rafavitola@veritatis.com.br
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* O autor, Dr. Rafael Vitola Brodbeck, é jurista e escritor.