INSTRUÇÃO
DIGNITAS CONNUBII PARA OS PROCESSOS MATRIMONIAIS
Miguel
Falcão
(Revista
Celebração Litúrgica)
Em 25-I-05 foi publicada a Instrução
«Dignitas connubii» sobre as normas que se devem observar nos tribunais
eclesiásticos nos processos matrimoniais.
A Instrução foi preparada pelo Conselho
Pontifício para os Textos Legislativos, presidido pelo Cardeal Julián Herránz,
em colaboração com outros Dicastérios da Santa Sé – a Congregação para a
Doutrina da Fé, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos, o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica e o Tribunal
Apostólico da Rota Romana –, dando cumprimento a uma indicação explícita do
Papa João Paulo II em 1996.
Natureza e finalidade
Como explicava o Cardeal Herránz na
apresentação no Vaticano a 8-II-05, pretende-se oferecer aos tribunais
eclesiásticos «um documento de índole prática, uma espécie de vademecum, que
sirva de guia imediato para um melhor cumprimento do seu trabalho nos processos
canónicos de nulidade matrimonial», à semelhança da Instrução Provida Mater em
relação ao Código de 1917.
Com efeito, os processos matrimoniais devem
seguir determinadas normas, para garantir que se realizam segundo a justiça. No
Código de Direito Canónico encontram-se as normas consideradas essenciais; no
entanto, a actividade dos tribunais tem levado a interpretá-las de modos
diversos e também a preencher as lacunas com critérios diversos.
A Instrução Dignitas connubii («A dignidade
do matrimónio») não é um novo texto legislativo, mas quer simplesmente
facilitar a consulta e a aplicação do Código de 1983. «Por um lado, apresenta
unido tudo o que diz respeito aos processos de nulidade matrimonial – normas
que no Código estão espalhadas em diversos lugares –, e, por outro lado,
integra os desenvolvimentos jurídicos verificados depois do Código:
interpretações autênticas do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos,
respostas do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, jurisprudência do
Tribunal Apostólico da Rota Romana». Portanto, a Instrução «não se limita a
repetir o texto dos cânones, mas contém interpretações, esclarecimentos sobre
as disposições das leis e novas disposições sobre procedimentos para a sua
execução». Deste modo, toma posição nalguns pontos discutidos na
jurisprudência, deixando naturalmente margem para se continuar a acertar na
procura da verdade e da justiça.
Com este documento, a Santa Sé pretende «encorajar
a responsabilidade dos Bispos diocesanos», como juizes por direito divino das
suas comunidades, cuidando a idoneidade dos membros do seu tribunal e
assegurando a conformidade das sentenças com a recta doutrina – como recordava
João Paulo II no seu último discurso à Rota Romana, em 29-I-05.
Certamente, a finalidade pastoral da Instrução é
«contribuir positivamente para o bem do matrimónio e da família». A ele se opõe
o contexto histórico actual, onde o hedonismo e o egoísmo subordinam tudo à
satisfação individualista, sacrificando para isso a realidade familiar e
matrimonial, com o divórcio e a união de facto. Deste modo, facilmente se
esquece que o vínculo matrimonial – que se estabelece pela entrega e aceitação
mútuas dos direitos e deveres conjugais (abertura aos filhos e fidelidade
perpétua) – é essencial para o desenvolvimento da pessoa humana (os cônjuges e
os filhos); pelo contrário, cada vez se dá mais importância à «felicidade» ou
bem dos cônjuges, menosprezando o bem dos filhos e o bem comum eclesial.
Necessidade dos processos matrimoniais
Desde sempre, quando um matrimónio não
conseguia superar uma crise grave e um dos cônjuges desejava celebrar uma nova
união matrimonial, recorria-se à autoridade eclesiástica. Nalguns casos,
seguindo os ensinamentos de Jesus (Mt 5, 31-32; 19, 3-9), o bispo permitia a
separação, proibindo no entanto nova união; noutros casos, além da separação,
permitia nova união, por estimar que o matrimónio anterior era irregular (com o
tempo, ao clarificar-se a importância do consentimento matrimonial, veio a
considerar-se nulo esse matrimónio). Em qualquer caso, o matrimónio era
considerado uma realidade social, reconhecida pela sociedade e pela Igreja.
Com a multiplicação destes casos e a sua
complexidade, nasceu a necessidade do processo judicial canónico, continuando o
bispo a ser o moderador e responsável do seu tribunal eclesiástico.
Um princípio fundamental nos processos
matrimoniais é o do favor iuris: «o matrimónio goza do favor do direito» (cân.
1060). Em que consiste? Será apenas que se parte, em princípio, da validade do
matrimónio celebrado, como aliás qualquer acto jurídico? Assim podia parecer,
atendendo à concretização do mesmo cânon: «em caso de dúvida se há de estar
pela validade do matrimónio, até que se prove o contrário».
Mas o favor iuris do matrimónio não será algo
mais? Não será que as normas canónicas favorecem a validade do matrimónio
celebrado e que a sua interpretação deva ir no mesmo sentido (cf. A. Bernárdez
Cantón, Compendio de Derecho Matrimonial Canónico, 6.ª ed., Madrid 1989, p.
51-52)? Se houvesse normas a favorecer a nulidade dos matrimónios fracassados
ou se se permitisse nesse sentido a interpretação das normas, então o favor
iuris não seria o favor matrimonii mas um mal-entendido favor libertatis ou
favor personae (cf. João Paulo II, Discurso aos membros do Tribunal da Rota
Romana, em 29-I-04).
O processo matrimonial – como todo o processo
canónico – é um processo humano, portanto, falível. A responsabilidade do bispo
consiste em escolher juizes competentes e de consciência recta. Mesmo assim,
está disposto que, para se executar uma sentença de nulidade do matrimónio,
seja necessária uma segunda sentença conforme (cân. 1682 §1; 1684 §1; 1641,
1.º) – é um exemplo do favor iuris do matrimónio. Outro exemplo deste
favor iuris é a actividade do Defensor do vínculo (cân. 1432 ss).
Como proceder se o processo canónico não consegue
demonstrar a nulidade de um matrimónio e um dos cônjuges tem uma convicção
profunda da sua nulidade, mais ainda se é corroborada pelo confessor ou por um
canonista?
Uma resposta seria fazer notar a maior competência
dos juizes do tribunal eclesiástico e a concordância dos sucessivos tribunais
de apelação; além disso, para evitar um demasiado formalismo, está previsto que
a declaração de uma Parte tenha valor probatório em casos justificados (cân.
1536 §2).
Mas, por vezes, tem-se proposto outra solução só
para o foro interno, que é o «matrimónio nulo de consciência»: neste caso, o
cônjuge poderia aproximar-se dos sacramentos, desde que não desse escândalo;
nesta linha, defende-se que a Igreja renuncie aos processos matrimoniais,
deixando os problemas jurídicos para os tribunais civis. Segundo o Cardeal
Herránz, aceitar esta solução «equivaleria a obscurecer na prática a
sacramentalidade do matrimónio» e reduzir o matrimónio a «uma questão de
interesse exclusivamente privado».
Daí a importância dos processos canónicos
matrimoniais. Neste sentido, a Igreja procura «melhorar os processos, quer em
seriedade, quer a tempo, facilitar-lhes o acesso a todos em igualdade de
oportunidades e tornar cada vez mais harmónicas as decisões dos vários tribunais».
O Cardeal Herránz terminava recordando que, no
actual contexto de mentalidade divorcista, «os processos canónicos de nulidade
podem ser facilmente mal entendidos, como se fossem vias para obter um divórcio
com o aparente beneplácito da Igreja». Através de uma hábil manipulação das
causas de nulidade, qualquer matrimónio fracassado tornar-se-ia nulo. Pelo
contrário, a declaração de nulidade não é a dissolução de um vínculo existente,
mas a constatação da inexistência de verdadeiro matrimónio desde o início. Por
isso, a Igreja favorece a convalidação dos matrimónios nulos, quando é
possível.