DIREITO
E PASTORAL UNEM-SE NO AMOR À VERDADE
Bento
XVI *
(Revista
Celebração Litúrgica)
Ilustres
Juizes, Oficiais e Colaboradores
do
Tribunal Apostólico da Rota Romana
Transcorreu quase um ano desde o último
encontro do vosso Tribunal com o meu amado predecessor João Paulo II. Foi o
último de uma longa série. Da imensa herança que ele nos deixou também em
matéria de direito canónico, gostaria hoje de assinalar em particular a
Instrução Dignitas connubii, sobre o procedimento a seguir nas causas de
nulidade matrimonial. Com ela pretendeu-se redigir uma espécie de vademecum,
que não só recolhe as normas vigentes nesta matéria, mas enriquece-as com
ulteriores disposições, necessárias para a correcta aplicação das primeiras. O
maior contributo desta Instrução, que espero seja aplicada integralmente pelos
agentes dos tribunais eclesiásticos, consiste em indicar em que medida e de que
modo devem ser aplicadas nas causas de nulidade matrimonial as normas contidas
nos cânones relativos ao juízo contencioso ordinário, na observância das normas
especiais ditadas para as causas sobre o estado das pessoas e para as de bem
público.
Oposição entre direito e pastoral?
Como bem sabeis, a atenção dedicada aos
processos de nulidade matrimonial transcende cada vez mais o âmbito dos
especialistas. De facto, as sentenças eclesiásticas nesta matéria incidem sobre
a possibilidade ou não de receber a Comunhão eucarística por parte de não
poucos fiéis. Precisamente este aspecto, tão decisivo sob o ponto de vista da
vida cristã, explica por que o tema da nulidade matrimonial tenha aparecido
repetidamente também durante o recente Sínodo sobre a Eucaristia. À primeira
vista, poderia parecer que a preocupação pastoral reflectida nos trabalhos do
Sínodo e o espírito das normas jurídicas recolhidas na Dignitas connubii
divergem profundamente entre si, chegando quase a oporem-se. Por um lado,
pareceria que os Padres sinodais tinham convidado os tribunais eclesiásticos a
empenharem-se para que os fiéis não casados canonicamente possam regularizar o
mais depressa possível a sua situação matrimonial e aproximar-se de novo do
banquete eucarístico. Por outro lado, a legislação canónica e a recente
Instrução pareceriam, pelo contrário, colocar limites a esta corrente pastoral,
como se a preocupação principal fosse a de cumprir as formalidades jurídicas
previstas, com o risco de esquecer a finalidade pastoral do processo. Por
detrás desta perspectiva, esconde-se uma pretendida oposição entre direito e
pastoral em geral. Não tenciono agora retomar, de maneira aprofundada, a
questão, já tratada por João Paulo II várias vezes, sobretudo no discurso à
Rota Romana de 1990 (cf. AAS, 82 [1990], pp. 872-877). Neste primeiro encontro
convosco, prefiro concentrar-me antes sobre aquilo que representa o ponto fundamental
de encontro entre direito e pastoral: o amor à verdade. Com esta afirmação,
aliás, ligo-me em espírito a quanto o mesmo meu venerado Predecessor vos disse,
precisamente no discurso do ano passado (cf. AAS, 97 [2005], pp. 164-166).
O processo matrimonial como serviço à verdade e
à justiça
O processo canónico de nulidade do matrimónio
constitui essencialmente um instrumento para averiguar a verdade sobre o
vínculo conjugal. A sua finalidade constitutiva não é, por conseguinte,
complicar inutilmente a vida aos fiéis, nem muito menos exacerbar a sua
litigiosidade, mas somente prestar um serviço à verdade. A instituição do
processo em geral, de resto, não é em si um meio para satisfazer um interesse
qualquer, mas antes um instrumento qualificado para responder ao dever de
justiça de dar a cada um o que é seu. O processo, precisamente na sua estrutura
essencial, é uma instituição de justiça e de paz. Com efeito, a finalidade do
processo é a declaração da verdade por parte de um terceiro imparcial, depois
de terem sido oferecidas às partes iguais oportunidades de apresentarem
argumentos e provas num adequado espaço de discussão. Esta troca de pareceres é
normalmente necessária, para que o juiz possa conhecer a verdade e, em
consequência, decidir a causa segundo a justiça. Todo o sistema processual deve
tender, por conseguinte, a garantir a objectividade, a resolução a tempo e a
eficácia das decisões dos juizes.
Características especiais do processo de
declaração de nulidade do matrimónio
De importância fundamental, também nesta
matéria, é a relação entre razão e fé. Se o processo responde à recta razão,
não pode surpreender o facto de que a Igreja tenha adoptado a instituição
processual para resolver questões intra-eclesiais de índole jurídica. Foi-se
consolidando assim uma tradição já plurissecular, que se conserva até aos
nossos dias nos tribunais eclesiásticos de todo o mundo. Além disso, convém ter
presente que o direito canónico contribuiu de modo bastante relevante, na época
do direito clássico medieval, para aperfeiçoar a configuração da mesma
instituição processual. A sua aplicação na Igreja diz respeito antes de tudo
aos casos em que, sendo disponível a matéria da disputa, as partes poderiam
chegar a um acordo que resolveria o litígio, mas por vários motivos isso não
acontece. O recurso à via processual, ao procurar determinar o que é justo, não
só não visa agravar os conflitos, mas torná-los mais humanos, encontrando
soluções objectivamente adequadas às exigências da justiça. Naturalmente, esta
solução por si só não basta, porque as pessoas têm necessidade de amor, mas,
quando se torna inevitável, representa um passo significativo na direcção
justa. Os processos podem versar também sobre matérias que estão fora da
capacidade de dispor das partes, na medida em que interessam os direitos de
toda a comunidade eclesial. Precisamente neste âmbito se coloca o processo
declarativo da nulidade de um matrimónio; de facto, o matrimónio, na sua dupla
dimensão natural e sacramental, não é um bem disponível da parte dos cônjuges,
nem, atendendo à sua índole social e pública, é possível supor qualquer forma
de autodeclaração.
Neste ponto surge naturalmente a segunda
observação. Nenhum processo é rigorosamente contra a outra parte, como se se
tratasse de lhe infligir um dano injusto. O objectivo não é privar alguém de um
bem, mas estabelecer e tutelar a pertença dos bens às pessoas e às
instituições. A esta consideração, válida para todo o processo, na hipótese de
nulidade matrimonial acrescenta-se uma outra mais específica. Aqui não há
nenhum bem em disputa entre as partes que deva ser atribuído a uma ou a outra.
O objecto do processo é, pelo contrário, declarar a verdade acerca da validade
ou invalidade de um matrimónio concreto, isto é, acerca de uma realidade que
funda a instituição da família e que interessa em máxima medida a Igreja e a
sociedade civil. Por conseguinte, pode-se afirmar que, neste género de
processos, o destinatário do pedido de declaração é a própria Igreja. Atendendo
à natural presunção de validade do matrimónio formalmente contraído, o meu
predecessor, Bento XIV, insigne canonista, concebeu e tornou obrigatória a
participação do defensor do vínculo nestes processos (cf. Const. apost. Dei
miseratione, 3 de Novembro de 1741). Desta maneira é garantida em maior medida
a dialéctica processual, destinada a averiguar a verdade.
Uma solução contra a verdade não é pastoral
O critério da procura da verdade, assim como
nos guia para compreender a dialéctica do processo, pode também servir-nos para
captar o outro aspecto da questão: o seu valor pastoral, que não pode estar
separado do amor à verdade. De facto, pode acontecer que a caridade pastoral
seja por vezes contaminada por atitudes condescendentes em relação às pessoas.
Estas atitudes podem parecer pastorais, mas na realidade não respondem ao bem
das pessoas e da própria comunidade eclesial; evitando o confronto com a
verdade que salva, elas podem até resultar contraproducentes em relação ao
encontro salvífico de cada um com Cristo. O princípio da indissolubilidade do
matrimónio, reafirmado por João Paulo II com vigor nesta sede (cf. os discursos
de 21 de Janeiro de 2000, in AAS, 92 [2000], pp. 350-355, e de 28 de Janeiro de
2002, in AAS, 94 [2002], pp. 340-346), pertence à integridade do mistério
cristão. Hoje, infelizmente, é-nos dado constatar que esta verdade está por
vezes obscurecida na consciência dos cristãos e das pessoas de boa vontade.
Precisamente por este motivo, é enganador o serviço que se pode prestar aos
fiéis e aos cônjuges não cristãos em dificuldade, reforçando neles, talvez
apenas implicitamente, a tendência a esquecer a indissolubilidade da própria
união. Desta maneira, a eventual intervenção da instituição eclesiástica
nas causas de nulidade corre o risco de aparecer como mero reconhecimento de um
fracasso.
Critérios pastorais nos processos
matrimoniais
A verdade procurada nos processos de nulidade
matrimonial não é, contudo, uma verdade abstracta, estranha ao bem das pessoas.
É uma verdade que se integra no itinerário humano e cristão de cada fiel. É,
portanto, muito importante que a sua declaração chegue em tempo razoável. A
Providência divina sabe, é certo, tirar o bem do mal, mesmo que as instituições
eclesiásticas descuidassem o seu dever ou cometessem erros. Mas é uma obrigação
grave tornar a obra institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais próxima
dos fiéis. Além disso, a sensibilidade pastoral deve levar a procurar prevenir
as nulidades matrimoniais em sede de admissão às núpcias e a empenhar-se para
que os cônjuges resolvam os seus eventuais problemas e encontrem a via da
reconciliação. A mesma sensibilidade pastoral face às situações reais das
pessoas deve, contudo, levar a salvaguardar a verdade e a aplicar as normas
previstas para a tutelar no processo.
Faço votos por que estas reflexões contribuam
para fazer compreender melhor como o amor à verdade une a instituição do
processo canónico de nulidade matrimonial ao autêntico sentido pastoral que
deve animar estes processos. Nesta chave de leitura, a Instrução Dignitas connubii
e as preocupações surgidas no último Sínodo revelam-se completamente
convergentes. Caríssimos, concretizar esta harmonia é a tarefa difícil e
fascinante para cujo prudente desenvolvimento a comunidade eclesial vos está
muito grata. Com os votos cordiais de que a vossa actividade judicial
contribua para o bem de todos os que se dirigem a vós e os favoreça no encontro
pessoal com a Verdade que é Cristo, abençoo-vos com reconhecimento e afecto.
Comentário
Durante o recente Sínodo sobre a Eucaristia,
apareceu repetidamente o tema da nulidade matrimonial, pela sua repercussão na
possibilidade de receberem a Comunhão eucarística os divorciados recasados. À
primeira vista - diz o Papa -, podia parecer que os Padres sinodais
recomendavam aos tribunais eclesiásticos que se esforçassem para que os fiéis
que não podiam casar canonicamente por causa de um matrimónio anterior
fracassado pudessem regularizar quanto antes a sua situação. Assim, esta
corrente pastoral opor-se-ia ao direito da Igreja, na sua legislação e
jurisprudência, que, ao pronunciar-se sobre a validade ou não de um matrimónio
fracassado, segue normas estabelecidas, como a recente Instrução Dignitas
connubii sobre os processos matrimoniais.
Na linha já traçada por João Paulo II nos seus
discursos à Rota Romana, Bento XVI recorda que o direito e a pastoral devem
encontrar-se no amor à verdade. O processo canónico matrimonial tem como
objectivo averiguar a verdade sobre o vínculo conjugal: se realmente este se
formou e o matrimónio foi consumado, não se pode anular a indissolubilidade do
matrimónio. Se o processo visa uma solução justa entre as duas partes já
separadas, a justiça não se pode separar da verdade: no processo de declaração
de nulidade matrimonial, o que conta é se as partes se comprometeram ou não
validamente ao constituírem o matrimónio, e não a culpabilidade de uma ou de
outra em relação ao fracasso do matrimónio.
Pelo seu lado, a pastoral tem como objectivo
levar o fiel ao encontro salvífico com Cristo, o que não é possível sem a
aceitação da verdade e da eficácia da sua doutrina, em particular acerca da
indissolubilidade do matrimónio. A verdadeira caridade pastoral não consiste em
aprovar uma união marital em que simplesmente as partes se dão bem – o que,
aliás, nunca se sabe até quando –, mas em ajudar sem desanimar cada um dos
esposos a superar as dificuldades que surgem, sacrificando-se pelo bem do
outro, com a ajuda poderosa da graça de Cristo.
Miguel Falcão
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* Discurso aos membros do Tribunal da Rota
Romana na inauguração do Ano Judicial (28-I-06).
Título, subtítulos, revisão da tradução e
comentário por Miguel Falcão.