O BISPO SANTIFICADOR DO SEU POVO

                                                                                  Mons. Francesco Pio Tamburrino

Secretário da Congregação para o Culto Divino e a

Disciplina dos Sacramentos

INTRODUÇÃO

            O título desta minha palestra refere-se aos “tria munera” que o Decreto Conciliar Christus Dominus atribui aos Bispos: ensinar, santificar e governar. No n. 15, o Decreto sobre os Bispos afirma “Os Bispos são os principais dispensadores dos mistérios de Deus e, ao mesmo tempo, os moderadores, os promotores e os guardiães de toda a vida litúrgica”. “Cristo deu aos apóstolos e aos seus sucessores o mandato e o poder de ensinar todas as gentes, de santificar os homens na verdade e de apascentá-los. Por isso os Bispos, pela força do Espírito Santo que lhes foi dado, tornam-se verdadeiros e autênticos mestres da fé, pontífices e pastores”(ib. 2). Quando o Bispo celebra com o seu povo, cumpre uma tarefa primordial, inscrita no coração de seu ministério episcopal. O Bispo é antes de tudo, um celebrante e um mistagogo e isso lhe deriva da natureza sacramental do episcopado.

            A missão de santificar está no meio, entre a de ensinar e a de governar, em posição central, como eixo e, ao mesmo tempo, coração de todo o ministério episcopal. Para compreender o peso e a substância disso, é necessário retornar à sacramentalidade do episcopado – recolocada em plena e nova luz pela eclesiologia do Vaticano II – e à função primordial do Bispo como guarda do mistério da Igreja.

            O episcopado é um sacramento. Durante séculos essa realidade foi colocada na  penumbra. Para o antigo Ritual, a ordenação episcopal (então se dizia “sagração”) era o conferimento de uma dignidade superior, um prestígio sacro, uma espécie de aval litúrgico a uma jurisdição e a um ministério pastoral que recebia de outra parte, ou seja  da nomeação feita pelo Papa e com a tomada de posse (que frequentemente acontecia por procuração!). Assim, já era Bispo antes mesmo da ordenação, com exceção dos poderes sacramentais. Há quem insinuava que a unção do Bispo, no antigo Pontifical, era vizinha da consagração dos reis e imperadores!

            O Concílio Vaticano II restituiu ao episcopado sua verdadeira dignidade ou, mais profundamente, o seu significado sacramental e seu mistério. “O Santo Sínodo ensina, pois, que com a consagração episcopal é conferida a plenitude do sacramento da ordem que, tanto pelo costume litúrgico da Igreja como pela voz dos Santos Padres, é chamada o sumo sacerdócio, o ápice do ministério sagrado (LG 21).

            O episcopado, portanto, é a forma plena e primeira do sacerdócio ou do ministério sacro. A ordenação episcopal não acrescenta um grau ou um poder suplementar às ordenações precedentes, mas confere simplesmente o único sacramento da ordem do qual participam os presbíteros e os diáconos. O ministério ordenado por excelência é o do Bispo.

1.      A Liturgia, coração da aliança nupcial entre Cristo e a Igreja

Na ordenação episcopal há o rito da entrega do anel, que poderia parecer de menor importância, mas seu significado, como é definido pelas palavras explicativas que o acompanham, permite-nos entrar no coração sacramental do episcopado e no munus sanctificandi que dele deriva: Recebe o anel, símbolo da fidelidade; e, com fidelidade invencível, guarda sem mancha a Igreja, esposa de Deus. Não pode haver mal-entendidos: Não é o Bispo o esposo da Igreja; ela é “sponsa Dei” porque Deus desposou a Igreja por meio de seu Verbo feito carne. O Bispo é um guarda, um “episkopos” desse mistério da Igreja. O anel que o Bispo leva no dedo não remete primeiramente a ele mas à Igreja e a Cristo que é seu Esposo. É certo que o anel é um sinal de fidelidade, mas trata-se da fidelidade da Igreja e da pureza de sua fé. Poder-se-ia dizer que é o anel de uma aliança que lhe é confiada não como sua e sim da Igreja. É missão do Bispo velar para que a Igreja seja no mundo,  do modo mais perfeito possível, a esposa pura de Deus e de Cristo. O ministério do Bispo é semelhante ao de João Batista que dizia: “Quem tem a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo, que está presente e o escuta, exulta de alegria  quando ouve a voz do esposo  (Jo 3, 29)

Podemos nos perguntar: onde se encontra o coração do mistério e da aliança nupcial entre o Senhor e a Igreja? Qual é o sinal que revela e manifesta a profundidade desta aliança? Esse mistério está todo inteiro na celebração da liturgia.  O Bispo é revestido da plenitude do sacerdócio, é o administrador dos divinos mistérios: “a dignidade do episcopado e sua distinta posição na Igreja  está fundada sobre esta plenitude de poder sagrado do qual é dotado” (LG 21). Daí brota que o ministério essencial é o da liturgia; não um ministério entre outros, mas a manifestação suprema do episcopado. É exercendo seu “sacerdócio supremo” que o Bispo “guarda na pureza a fé da Esposa de Deus, a Santa Igreja”. 

Para estarmos convencidos disso, basta ler algumas expressões do Vaticano II a esse respeito: “É sobretudo na santa liturgia que se realiza na maneira mais elevada nossa união com a Igreja do céu (LG 50). “É a justo título que a liturgia é considerada como o exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo”(SC 7). “O Bispo, revestido da plenitude do sacramento da ordem, carrega consigo a responsabilidade de distribuir a graça do supremo sacerdócio, em particular na Eucaristia”(LG 26). A Eucaristia, que é como a síntese de toda a obra litúrgica, é o condensado simbólico e eficaz da missão episcopal. 

Isto é confirmado também sob o aspecto eclesiológico. A Igreja, que o Bispo deve guardar na sua fidelidade esponsal a Cristo, tem sua epifania mais luminosa na liturgia: é aí que a comunidade cristã se encontra “convocada”, “populus adunatus”; aí a comunidade é santificada pela presença e pelas ações salvíficas de Cristo, aí é renovada a nova e eterna aliança, e a própria comunidade é constituída “sacramento de salvação para o gênero humano”. Em cada comunidade que participa do altar, sob a sagrada presidência do Bispo, é oferecido o símbolo da caridade e unidade do Corpo místico, sem a qual não pode haver salvação” (LG 26).  Em sua Carta Apostólica Vicesimus quintus annus de 1988, João Paulo II sublinhou: “O Concílio quis ver na liturgia uma epifania da Igreja: essa é a Igreja em oração. Celebrando o culto divino, a Igreja exprime aquilo que ela é: una, santa, católica e apostólica” (n. 9).

Aos Bispos, diz o Concílio,  compete ser “os organizadores, os promotores e os guardiães de toda a vida litúrgica na Igreja a eles confiada” (CD 15). Não se trata, evidentemente, de organizar a liturgia como um dos tantos setores da atividade da diocese, porque a liturgia é santa. Os Bispos são, antes de tudo, os seus guardiães celebrando-a de acordo com toda a plenitude de seu ministério. A liturgia se revela na celebração. Um Bispo que celebra a liturgia com amor e cuidado, com profundo envolvimento, com conhecimento da linguagem ritual e do estilo para comunicar com simplicidade e verdade, é um revelador do próprio coração da Igreja que bate no ritmo do coração de Cristo.

O ministério litúrgico do Bispo não é uma tarefa entre tantas outras; esse situa-se no coração do episcopado sacramental, na celebração da nova e eterna Aliança, selada na Páscoa de Cristo na cruz. O lugar primordial onde o Bispo guarda a fé esponsal da Igreja é a liturgia onde a expressão da fé eclesial atinge sua maior pureza e onde a profissão de fé se transforma em compromisso de testemunho e fonte da missão.

O Bispo representa a figura simbólica e sacramental da Igreja. “Na pessoa dos Bispos, assistidos pelos presbíteros, é o Senhor Jesus Cristo, sumo Pontífice, que está presente em meio aos que crêem (LG 21). Presidindo ao que constitui a Igreja em seu ser fundamental, ele preside à assembléia do povo de Deus e à edificação do Corpo de Cristo. Exprime bem isso um hino do repertório francês de origem cisterciense”:

      “Voici la Table où l’Église commence

        Le Seigneur aujurd’hui nos partage

        Le pains de l’Alliance

        Il met dans nos mains le signe de Pâques

O Bispo não pode estar ausente de onde começa a Igreja e onde nos é dado o sinal da Aliança pascal.

2. O BISPO, CELEBRANTE E MISTAGOGO

            Quando o Bispo mergulha na celebração e na pastoral litúrgica, ele dá ao seu ministério episcopal uma dimensão única, capaz de revelar sua profundidade. O Bispo, “sumo sacerdote de seu povo”, é antes de tudo um celebrante e um mistagogo. A excelência dessa função litúrgica deriva da sua capacidade de simbolizar e compendiar o que há de único na missão episcopal.

            Para dar um exemplo, o Bispo não celebra a Eucaristia como mera devoção pessoal. Presidindo a Ceia do Senhor, circundado pelo presbitério e pelos fiéis, ele realiza perfeitamente tudo o que faz nas múltiplas atividades de sua função de governo e oferece o símbolo daquela caridade e unidade do corpo místico, que a torna instrumento de salvação (cf. LG 26). A vida da diocese chega a seu cume e atinge sua fonte cada vez que o Bispo preside a liturgia.

2.1. O atos sacerdotais do Bispo

            Cada celebração sacramental e litúrgica legítima é dirigida pelo Bispo, mesmo se delega a presidência a outro, “já que na sua Igreja o Bispo não pode presidir pessoalmente sempre e em toda parte, deve necessariamente constituir assembléias de fiéis, entre os quais têm lugar proeminente as paróquias organizadas em cada lugar sob a guia de um pastor que faz as vezes do Bispo; esse, de fato, representa de certo modo a Igreja visível estabelecida em toda a terra.  Por isso, a vida litúrgica da paróquia e sua ligação com o Bispo devem ser cultivadas na alma e na ação dos fiéis e do clero”(LG 42; cf. PO 5-6).

            Há momentos celebrativos nos quais esta situação ideal de “epifania da Igreja local” se verifica de modo especial: a missa do Crisma, as grandes festas diocesanas, entre as quais se devem incluir as ordenações sacerdotais e diaconais, e outros eventos que levam o povo  fiel a se reunir em torno ao Bispo e ao presbitério diocesano, como por ocasião de sínodos, assembléias diocesanas, Congressos Eucarísticos, missões e  em outras circunstâncias análogas. É conveniente que a Igreja local tenha suas epifanias particulares também por ocasião dos outros sacramentos e das diversas formas de celebração litúrgica. Em primeiro lugar vêm os sacramentos da iniciação cristã. O Bispo, em sua diocese, é o primeiro chamado a conferir o sacramento do Batismo, particularmente quando se trata de adultos. Ele é o responsável por todas as etapas que assinalam o longo percurso do catecumenato e da catequese. Seria verdadeiramente estranho que o Bispo jamais realizasse a celebração do batismo de adultos. É certo que ele poderá confiar partes dessa celebração aos presbíteros, diáconos  e catequistas; mas deverá intervir pessoalmente nos momentos principais. Não seria estranho se o Bispo celebrasse a Vigília pascal sem conferir o Batismo?

            O Bispo é o ministro ordinário e originário da Confirmação. Conferindo o dom do Espírito Santo, com a imposição das mãos e a unção do santo crisma, não só concede a plenitude ao sacramento do Batismo, mas também manifesta  em que consiste seu ministério episcopal que é o de “confirmar” seus irmãos na fé e na sua iniciação ao mistério de Cristo. É verdade que em muitas dioceses, pela extensão do território ou o grande número de fiéis, a celebração da Confirmação pode se tornar uma tarefa pesada para o Bispo, mas é também problemática a solução adotada em alguns lugares de delegar sistematicamente a alguns presbíteros, estranhos à vida da comunidade, para celebrar esse sacramento. De per si, os párocos são os primeiros representantes do Bispo e como tais exercem sua missão na comunidade. De qualquer forma, o sentido das delegações que o Bispo faz de seus poderes sacramentais deve ser examinado com muito cuidado. Mas, não se pode esconder que muitos problemas nascem do fato que há dioceses demasiadamente grandes e aí o Bispo se torna um personagem distante e estranho.

            Para completar o horizonte dos sacramentos da iniciação, a todos é claro o nexo íntimo entre Eucaristia e Bispo, sob cujo sacro ministério cada comunidade participa do altar (LG 26). Basta recordar os textos clássicos de Inácio de Antioquia, aos quais aludem os documentos conciliares: “Ninguém faça sem o Bispo alguma daquelas coisas que dizem respeito à Igreja. Considera-se válida aquela Eucaristia celebrada pelo Bispo ou por quem dele recebeu autoridade. Onde aparece o Bispo, aí está a comunidade, assim como onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja católica. Sem o Bispo não é lícito nem batizar nem celebrar o ágape: mas o que ele aprovou é agradável a Deus”. Cristo-Eucaristia-Bispo são o fundamento da Igreja ao mesmo tempo una e múltipla, universal e localmente concretizada.

            Há outros momentos da vida litúrgica que exigem, especialmente hoje, particular cuidado e atenção por parte do Bispo. O Motu Proprio Misericordia Dei, do Papa João Paulo II, nos chama  à responsabilidade de buscar superar uma certa crise do sacramento da Penitência. Já na Carta aos Sacerdotes para a Quinta Feira Santa de 2002, o Papa nos relembra nossa responsabilidade e o empenho, pedindo maior disponibilidade e presença dos confessores para a celebração desse sacramento. O Bispo deve favorecer uma certa organização desse setor da vida sacramental, dedicando também parte de seu tempo a esse ministério.

            O Bispo deve promover a celebração da Liturgia das Horas, oração própria de toda a Igreja e não somente dos clérigos e dos religiosos. É um compromisso explícito e formal que Bispos, presbíteros e diáconos assumiram no momento de sua ordenação, que se refere em primeiro lugar à celebração quotidiana do Ofício Divino com e pelo povo de Deus. Também nisso, a igreja catedral deveria oferecer um modelo constante e normal. A Liturgia das Horas deve ainda encontrar o seu lugar na sinfonia das formas de oração que são oferecidas aos fiéis. Uma particular oportunidade poderia ser oferecida àquelas comunidades que, pelas circunstâncias pastorais devido à escassez de clero, nos domingos se encontram sem a presença do presbítero. Mas, gostaria de sublinhar que os presbíteros e os Bispos recebem a graça e a missão da intercessão. Estão a serviço da intercessão de Jesus Cristo. Por isso, somos chamados à comunhão e à intimidade pessoal com Jesus. É certo que a oração de intercessão é tarefa de todo cristão. A do Bispo é uma intercessão particular, ligada ao ministério sacerdotal, e assegura à Igreja que a intercessão de Jesus continua presente. A intercessão do Bispo é um sinal da aliança.  Parece-me que seja estimulante para nós o exemplo de Moisés que defende seu povo diante de Deus em Rafidim (Ex 32, 11-14). Graças à intercessão de Moisés, Deus perdoa e, com o perdão assegura sua presença.

2.2. Qualidade das celebrações episcopais

            As celebrações presididas pelo Bispo devem servir de modelo, antes de tudo pela qualidade dos ritos, das ações litúrgicas, das palavras pronunciadas e dos espaços celebrativos. Cada catedral deveria ser um lugar eminente do ponto de vista litúrgico e simbólico. Sabemos entretanto que isso nem sempre acontece, inclusive porque muitas vezes o próprio cabido da catedral não é muito sensível a uma celebração litúrgica de qualidade.

            Deve-se estar atento a uma participação ativa e consciente de todo o povo. Espera-se que as celebrações episcopais sejam modelos de participação de alta qualidade, atentas à assembléia concreta que se reúne. A beleza não consiste na pompa solene, no fausto dos ornamentos ou no luxo  mundano. Depende muito da capacidade do Bispo de celebrar bem e harmonizar todos os componentes da celebração, sem deixar que os mestres de cerimônia se irritem ou que o coral condene a voz da Igreja ao silêncio.

            O ponto mais delicado não é a execução acurada dos ritos, embora isso exija uma certa ars celebrandi. Trata-se sobretudo da capacidade de fazer passar para a assembléia o significado dos ritos e do mistério. O Bispo deve ser um iniciador, um mistagogo, pelo seu modo de celebrar, de tornar transparentes os ritos, de dar-lhes sabor e de abrir os espíritos para a inteligência do coração.

           

O Bispo deveria fazer descobrir,  ao menos intuir, a referência simbólica de uma realidade que está “para além” mas também “dentro” do rito. Isso não se comunica a não ser através de uma profunda interioridade, uma alegria e paz espiritual e uma verdadeira contemplação que é fruto maduro da espiritualidade litúrgica.

            Ao Bispo também diz respeito promover o conhecimento de certos aspectos frequentemente esquecidos na pastoral quotidiana e que podem fazer redescobrir a densidade simbólica com a qual se exprime o sentido  mistérico dos sacramentos e lhes  permite produzir todos os seus frutos: por exemplo a promoção do batismo por imersão, nos termos previstos pelo Ritual; a fração do pão na Missa, a  comunhão sob as duas espécies, a dimensão pascal das exéquias; o valor simbólico dos espaços, lugares e objetos litúrgicos (os projetos arquitetônicos e iconográficos, o altar, a sede, o ambão, a expressividade dos sinais como pão, vinho, óleo, água, incenso, cinzas, fogo, flores...), bem como da ministerialidade laical.

2.3. Estruturas diocesanas a serviço da pastoral litúrgica

            É óbvio que o Bispo não pode (e não deve) fazer tudo.  O essencial é que ele leve no coração e na inteligência a preocupação e o cuidado pela vida litúrgica de sua diocese. Cada diocese deve ter uma organização e as devidas estruturas que desenvolvam as tarefas pastorais das quais o Bispo é o promotor e o garante.

            Na carta Apostólica Vicesimus Quintus Annus, o Papa João Paulo II sugere: “Para levar essa missão a bom termo, o Bispo deve constituir uma ou até mais comissões diocesanas, que lhe oferecerão sua contribuição para promover a ação litúrgica, a música e a arte sacra na sua diocese. A comissão diocesana, de sua parte, agirá segundo o pensamento e as diretrizes do Bispo e deverá poder contar, com a autoridade do Bispo e seu encorajamento para desenvolver convenientemente sua tarefa” (n. 21).

            Este texto é importante porque delineia, em grandes traços, o estatuto e as tarefas das comissões. Elas não são organismos autônomos de decisão. Estão em direta dependência do Bispo. O Papa João Paulo II descreve com poucos mas eficazes traços as “mutuae relationes” entre o Bispo e a comissão. Os membros da comissão levam em frente uma missão que é própria do Bispo; não  formam um clube de apaixonados pela liturgia, mas estão a serviço do coração pulsante da Igreja. Cabe  ao Bispo escolher os membros, ratificar sua ação e articular sua contribuição com outros organismos que coordenam a  pastoral e a vida da diocese. O mesmo vale, analogamente, para as comissões regionais e nacionais em relação  às Conferências dos Bispos, em vista a favorecer a fraterna concretização e harmonização da liturgia e da pastoral sacramental em cada diocese.

3. A RESPONSABILIDADE DO BISPO

            O Santo Padre, na Carta Apostólica já aqui citada muitas vezes, menciona uma série de dificuldades encontradas no período pós-conciliar para aplicar concretamente a reforma litúrgica. O Papa sublinha também os resultados positivos que nos levam a render graças a Deus pela passagem de seu Espírito na Igreja através da renovação litúrgica, e afirma: “A renovação litúrgica é o fruto mais visível de toda a obra conciliar. Para muitos, a mensagem do Concílio Vaticano II foi percebida antes de tudo por meio da reforma litúrgica” (VQA, 12).

3.1. Aplicações erradas

            O Papa elenca uma série de desvios, mais ou menos graves, na aplicação da reforma: “Constatam-se, às vezes, omissões ou acréscimos ilícitos; ritos inventados fora das normas estabelecidas; posturas ou cantos que não favorecem a fé ou o sentido do sagrado; abusos na prática da absolvição coletiva; confusões entre o sacerdócio ministerial, ligado à ordenação, e o sacerdócio comum dos fiéis, que tem seu fundamento no batismo”.

            “Não se pode tolerar – diz o Papa preocupado – que alguns sacerdotes se arroguem o direito de compor orações eucarísticas ou substituam textos da Sagrada Escritura por textos profanos. Iniciativas deste gênero, longe de estar ligadas à reforma litúrgica, ou aos livros que lhe seguiram, a contradizem diretamente, a desfiguram e privam o povo cristão da riqueza autêntica da liturgia da Igreja”.

            E o Papa acrescenta: “Compete ao Bispo estirpar  tais  abusos pois que a regulamentação da vida litúrgica depende do Bispo nos limites do direito, e a vida cristã dos seus fiéis de certo modo depende dele”(id. Ib. 13).

            Mas, há também aberrações no sentido contrário, que se manifestam numa hostilidade radical contra toda a renovação conciliar e pós-conciliar. Nos mais inflamados tradicionalistas (que até chegaram a consumar um cisma em nome da liturgia!) chega-se a duvidar da validade dos sacramentos que teriam sido gravemente contaminados por uma visão protestante do culto. Os menos radicais pediram a permissão para celebrar com os ritos anteriores ao  Concílio, e lutam para que se chegue urgentemente a uma  “reforma da reforma”. O fenômeno é extremamente complexo e também os Bispos, em muitas dioceses, devem confrontar-se diretamente com pessoas e grupos desse gênero. Tenha-se em conta que não é raro alguns se aproximarem  do tradicionalismo em reação a certos desvios e experiências muitas vezes conduzidas de forma incompetente.3.2. “Guardar a Aliança”

            A missão do Bispo é eminentemente positiva: não é a de ser o controlador e cobrador da observância de normas impessoais no território de sua diocese, mas sim o guardião da Aliança; aquele que conduz pela mão em direção ao coração do mistério e ao encontro com a pessoa de Cristo Ressuscitado, aquele que faz acolher as “mirabilia Dei” atualizadas nos atos sacramentais; aquele que conduz à pureza da fé da esposa de Deus, a santa Igreja.

            A liturgia tem necessidade de dois aspectos complementares que  o Bispo deve tutelar: de uma parte há o livro litúrgico, a norma objetiva que  estabelece as condições de validade no uso de uma determinada matéria e forma, descreve a estrutura e seqüência dos ritos, os sinais e símbolos, as fórmulas; de outra parte, há a assembléia concreta de pessoas, que exige senso das circunstâncias e adaptações. Compete ao ministro da celebração ser mediador entre o livro e a assembléia, entre a norma universalmente válida e as exigências próprias de cada comunidade.

            O que falta muitas vezes é o conhecimento, o estudo do livro litúrgico, do rito específico que se vai celebrar. A verdadeira atenção ao livro e à sua normatividade leva a descobrir toda uma série de estímulos que convidam a estar atento à assembléia concreta, à sua capacidade celebrativa, à sua cultura, à sua linguagem, ao seu passado e a seu nível de fé. Quem sabe ler entre as linhas do livro litúrgico e entre a dobras do coração humano sabe que não tem necessidade de retorcer os ritos para ser criativo.

3.3. Fazer crescer o conhecimento

            Não obstante os decênios transcorridos desde o Concílio, não se pode dizer que a formação litúrgica, em geral, seja satisfatória. “É necessário e convém urgentemente empreender uma  formação  intensiva para fazer descobrir  as riquezas que a liturgia contém” (DC, n. 9). “a tarefa mais urgente – afirma o Papa João Paulo II – é a da formação bíblica e litúrgica do povo de Deus, dos pastores e dos fiéis (VQA 14-15).

            Em seu território, o Bispo tem algumas oportunidades e alguns lugares onde possa continuar essa obra de formação de longo alcance: o seminário, as casas de formação, o Instituto de ciências religiosas, o ensino da religião nas escolas, as associações de leigos, os retiros, os cursos de formação permanente do clero, as agentes de pastoral, as assembléias pastorais diocesanas, as paróquias, as comunidades religiosas, as famílias, os grupos de jovens e de espiritualidade.

CONCLUSÃO

            “Queres trabalhar na edificação do Corpo de Cristo, que é a Igreja?” foi-nos perguntado no momento da ordenação episcopal. “Queres, como um pai, cuidar do povo santo de Deus?” O trabalho do Bispo é de tipo paterno, como o de um pai que carrega a responsabilidade do crescimento dos próprios filhos. O Bispo é ordenado para uma missão eclesial e mística. Na ordenação ele é introduzido no mistério de aliança de Cristo com a Igreja, mediante a ação e na força do Espírito Criador.

            Para “edificar” a Igreja, o Bispo é chamado a um vida “edificante” com a qual “servirá a Deus dia e noite”. Sua vida será um “sacrifício que agrada a Deus”, uma “vida segundo o Espírito de Deus”. Eis o ponto: um ministério não se vive antes de tudo fazendo coisas, mas vivendo em plenitude o mistério que se exprime nos serviços e nas funções. O ser é a fonte do fazer. O Bispo, para introduzir os irmãos para além dos “ritus et praeces” e levá-los a encontrar o Senhor, deve ser alguém que já ultrapassou a soleira e respira a presença de Cristo, então poderá conduzir os irmãos ao encontro com o Ressuscitado que nos salva e se torna presente na liturgia.

Conferência proferida por  Mons. Francesco Pio Tamburrino, no encontro de reflexão para os novos Bispos, realizado em Roma, de 15 a 24 de setembro de 2002, publicada em DUC IN ALTUM, pela Congregação para os Bispos, pela Libreria Editrice Vaticana, traduzida do italiano por D. Geraldo Lyrio Rocha, Arcebispo de Vitória da Conquista.

Siglas:

CD – Christus Dominus

DC – Dominicae Cenae

LG – Lumen Gentium

PO – Presbyterorum Ordinis

SC – Sacrosanctum Concilium

VQA – Vicesimus Quintus Annus

Vitória da Conquista, 01 de setembro de 2003

Memória da São Gregório Magno