DECLARAÇÃO
DIGNITATIS HUMANAE
SOBRE A
LIBERDADE RELIGIOSA
O
PROBLEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA ACTUALIDADE
1. Os homens de hoje tornam-se cada vez mais
conscientes da dignidade da pessoa humana e (1), cada vez em maior número,
reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade
responsável, não forçados por coacção mas levados pela consciência do dever.
Requerem também que o poder público seja delimitado juridicamente, a fim de que
a honesta liberdade das pessoas e das associações não seja restringida mais do
que é devido. Esta exigência de liberdade na sociedade humana diz respeito
principalmente ao que é próprio do espírito, e, antes de mais, ao que se refere
ao livre exercício da religião na sociedade. Considerando atentamente estas
aspirações, e propondo-se declarar quanto são conformes à verdade e à justiça,
este Concílio Vaticano investiga a sagrada tradição e doutrina da Igreja, das
quais tira novos ensinamentos, sempre concordantes com os antigos.
Em primeiro lugar, pois, afirma o sagrado
Concílio que o próprio Deus deu a conhecer ao género humano o caminho pelo
qual, servindo-O, os homens se podem salvar e alcançar a felicidade em Cristo.
Acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e
apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de a levar a todos os
homens, dizendo aos Apóstolos: «Ide, pois, fazer discípulos de todas as nações,
baptizando os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a
cumprir tudo quanto vos prescrevi» (Mt. 28, 19-20). Por sua parte, todos os
homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e
à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar.
O sagrado Concílio declara igualmente que tais
deveres atingem e obrigam a consciência humana e que a verdade não se impõe de
outro modo senão pela sua própria forca, que penetra nos espíritos de modo ao
mesmo tempo suave e forte. Ora, visto que a liberdade religiosa, que os homens
exigem no exercício do seu dever de prestar culto a Deus, diz respeito à
imunidade de coacção na sociedade civil, em nada afecta a doutrina católica
tradicional acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a
verdadeira religião e a única Igreja de Cristo. Além disso, ao tratar desta
liberdade religiosa, o sagrado Concílio tem a intenção de desenvolver a
doutrina dos últimos Sumos Pontífices acerca dos direitos invioláveis da pessoa
humana e da ordem jurídica da sociedade.
I. DOUTRINA GERAL ACERCA DA LIBERDADE RELIGIOSA
Sujeito, objecto e fundamento da liberdade
religiosa
2. Este Concílio Vaticano declara que a pessoa
humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte:
todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos,
quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em
matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência,
nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou
associado com outros, dentro dos devidos limites. Declara, além disso, que o
direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa
humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer (2).
Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da
sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torne um direito civil.
De harmonia com própria dignidade, todos os
homens, que são pessoas dotadas de razão e de vontade livre e por isso mesmo
com responsabilidade pessoal, são levados pela própria natureza e também
moralmente a procurar a verdade, antes de mais a que diz respeito à religião.
Têm também a obrigação de aderir à verdade conhecida e de ordenar toda a sua
vida segundo as suas exigências. Ora, os homens não podem satisfazer a esta
obrigação de modo conforme com a própria natureza, a não ser que gozem ao mesmo
tempo de liberdade psicológica e imunidade de coacção externa. O direito à
liberdade religiosa não se funda, pois, na disposição subjectiva da pessoa, mas
na sua própria natureza. Por esta razão, o direito a esta imunidade permanece
ainda naqueles que não satisfazem à obrigação de buscar e aderir à verdade; e,
desde que se guarde a justa ordem pública, o seu exercício não pode ser
impedido.
A liberdade religiosa da pessoa e a vinculação
do homem a Deus
3. Tudo isto aparece ainda mais claramente
quando se considera que a suprema norma da vida humana é a própria lei divina,
objectiva e universal, com a qual Deus, no desígnio da sua sabedoria e amor,
ordena, dirige e governa o universo inteiro e os caminhos da comunidade humana.
Desta sua lei, Deus torna o homem participante, de modo que este, segundo a
suave disposição da divina providência, possa conhecer cada vez mais a verdade
imutável (3). Por isso, cada um tem o dever e consequentemente o direito de
procurar a verdade em matéria religiosa, de modo a formar, prudentemente,
usando de meios apropriados, juízos de consciência rectos e verdadeiros.
Mas a verdade deve ser buscada pelo modo que
convém à dignidade da pessoa humana e da sua natureza social, isto é, por meio
de uma busca livre, com a ajuda do magistério ou ensino, da comunicação e do
diálogo, com os quais os homens dão a conhecer uns aos outros a verdade que
encontraram ou julgam ter encontrado, a fim de se ajudarem mutuamente na
inquirição da verdade; uma vez conhecida esta, deve-se aderir a ela com um
firme assentimento pessoal.
O homem ouve e reconhece os ditames da lei
divina por meio da consciência, que ele deve seguir fielmente em toda a sua
actividade, para chegar ao seu fim, que é Deus. Não deve, portanto, ser forçado
a agir contra a própria consciência. Nem deve também ser impedido de actuar
segundo ela, sobretudo em matéria religiosa. Com efeito, o exercício da
religião, pela natureza desta, consiste primeiro que tudo em actos internos
voluntários e livres, pelos quais o homem se ordena directamente para Deus; e
tais actos não podem ser nem impostos nem impedidos por uma autoridade
meramente humana (4). Por sua vez, a própria natureza social do homem exige que
este exprima externamente os actos religiosos interiores, entre em comunicação
com os demais em assuntos religiosos e professe de modo comunitário a própria
religião.
É, portanto, uma injustiça contra a pessoa
humana e contra a própria ordem estabelecida por Deus, negar ao homem o livre
exercício da religião na sociedade, uma vez salvaguardada a justa ordem
pública.
Além disso, os actos religiosos, pelos quais os
homens, privada e publicamente, se orientam para Deus segundo própria
convicção, transcendem por sua natureza a ordem terrena e temporal. Por este
motivo, a autoridade civil, que tem como fim próprio olhar pelo bem comum
temporal, deve, sim, reconhecer e favorecer a vida religiosa dos cidadãos, mas
excede os seus limites quando presume dirigir ou impedir os actos religiosos.
A liberdade religiosa das comunidades
religiosas
4. A liberdade ou imunidade de coacção em
matéria religiosa, que compete às pessoas tomadas individualmente, também lhes
deve ser reconhecida quando actuam em conjunto. Com efeito, as comunidades
religiosas são exigidas pela natureza social tanto do homem como da própria
religião.
Por conseguinte, desde que não se violem as
justas exigências da ordem pública, deve-se em justiça a tais comunidades a
imunidade que lhes permita regerem-se segundo as suas próprias normas,
prestarem culto público ao Ser supremo, ajudarem os seus membros no exercício
da vida religiosa e sustentarem-nos com o ensino e promoverem, enfim,
instituições em que os membros cooperem na orientação da própria vida segundo
os seus princípios religiosos.
Também compete às comunidades religiosas o
direito de não serem impedidas por meios legais ou pela acção administrativa do
poder civil, de escolher, formar, nomear e transferir os próprios ministros, de
comunicar com as autoridades e comunidades religiosas de outras partes da
terra, de construir edifícios religiosos e de adquirir e usar os bens
convenientes.
Os grupos religiosos têm ainda o direito de não
serem impedidos de ensinar e testemunhar publicamente, por palavra e por
escrito a sua fé. Porém, na difusão da fé religiosa e na introdução de novas
práticas, deve sempre evitar-se todo o modo de agir que tenha visos de coacção,
persuasão desonesta ou simplesmente menos leal, sobretudo quando se trata de gente
rude ou sem recursos. Tal modo de agir deve ser considerado como um abuso do
próprio direito e lesão do direito alheio.
Também pertence à liberdade religiosa que os
diferentes grupos religiosos não sejam impedidos de dar a conhecer livremente a
eficácia especial da própria doutrina para ordenar a sociedade e vivificar toda
a actividade humana. Finalmente, na natureza social do homem e na própria
índole da religião se funda o direito que os homens têm de, levados pelas suas
convicções religiosas, se reunirem livremente ou estabelecerem associações
educativas, culturais, caritativas e sociais.
A liberdade religiosa da família
5. A cada família, pelo facto de ser uma
sociedade de direito próprio e primordial, compete o direito de organizar
livremente a própria vida religiosa, sob a orientação dos pais. A estes cabe o
direito de determinar o método de formação religiosa a dar aos filhos, segundo
as próprias convicções religiosas. E, assim, a autoridade civil deve reconhecer
aos pais o direito de escolher com verdadeira liberdade as escolas e outros
meio de educação; nem, como consequência desta escolha, se lhes devem impor
directa ou indirectamente, injustos encargos. Além disso, violam-se os direitos
dos pais quando os filhos são obrigados a frequentar aulas que não correspondem
às convicções religiosas dos pais, ou quando se impõe um tipo único de
educação, do qual se exclui totalmente a formação religiosa.
Promoção da liberdade religiosa
6. Dado que o bem comum da sociedade - ou seja,
o conjunto das condições que possibilitam aos homens alcançar mais plena e
facilmente a própria perfeição - consiste sobretudo na salvaguarda dos direitos
e deveres da pessoa humana (5), o cuidado pela liberdade religiosa incumbe
tanto aos cidadãos como aos grupos sociais, aos poderes civis, à Igreja e às
outras comunidades religiosas, segundo o modo próprio de cada uma, e de acordo
com as suas obrigações para com o bem comum.
Pertence essencialmente a qualquer autoridade
civil tutelar e promover os direitos humanos invioláveis (6). Deve, por isso, o
poder civil assegurar eficazmente, por meio de leis justas e outros meios
convenientes, a tutela da liberdade religiosa de todos os cidadãos, e
proporcionar condições favoráveis ao desenvolvimento da vida religiosa, de modo
que os cidadãos possam realmente exercitar os seus direitos e cumprir os seus
deveres, e a própria sociedade beneficie dos bens da justiça e da paz que
derivam da fidelidade dos homens a Deus e à Sua santa vontade (7).
Se, em razão das circunstâncias particulares
dos diferentes povos, se atribui a determinado grupo religioso um
reconhecimento civil especial na ordem jurídica, é necessário que, ao mesmo
tempo, se reconheça e assegure a todos os cidadãos e comunidades religiosas o
direito à liberdade em matéria religiosa.
Finalmente, a autoridade civil deve tomar
providências para que a igualdade jurídica dos cidadãos - a qual também
pertence ao bem comum da sociedade nunca seja lesada, clara ou larvadamente,
por motivos religiosos, nem entre eles se faça qualquer discriminação.
Daqui se conclui que não e lícito ao poder
público impor aos cidadãos, por força, medo ou qualquer outro meio, que
professem ou rejeitem determinada religião, ou impedir alguém de entrar numa
comunidade religiosa ou dela sair. Muito mais é contra a vontade de Deus e os
sagrados direitos da pessoa e da humanidade recorrer por qualquer modo à força
para destruir ou dificultar a religião, quer em toda a terra quer em alguma
região ou grupo determinado.
Os limites da liberdade religiosa
7. É no seio da sociedade humana que se exerce
o direito à liberdade em matéria religiosa; por isso, este exercício está
sujeito a certas normas reguladoras.
No uso de qualquer liberdade deve respeitar-se
o princípio moral da responsabilidade pessoal e social: cada homem e cada grupo
social estão moralmente obrigados, no exercício dos próprios direitos, a ter em
conta os direitos alheios e os seus próprios deveres para com os outros e o bem
comum. Com todos se deve proceder com justiça e bondade.
Além disso, uma vez que a sociedade civil tem o
direito de se proteger contra os abusos que, sob pretexto de liberdade
religiosa, se poderiam verificar, é sobretudo ao poder civil que pertence
assegurar esta protecção. Isto, porém, não se deve fazer de modo arbitrário, ou
favorecendo injustamente uma parte; mas segundo as normas jurídicas, conformes
à ordem objectiva, postuladas pela tutela eficaz dos direitos de todos os
cidadãos e sua pacífica harmonia, pelo suficiente cuidado da honesta paz
pública que consiste na ordenada convivência sobre a base duma verdadeira
justiça, e ainda pela guarda que se deve ter da moralidade pública. Todas estas
coisas são parte fundamental do bem comum e pertencem à ordem pública. De
resto, deve manter-se o princípio de assegurar a liberdade integral na
sociedade, segundo o qual se há-de reconhecer ao homem o maior grau possível de
liberdade, só restringindo esta quando e na medida em que for necessário.
A educação para o exercício da liberdade
religiosa
8. Os homens de hoje estão sujeitos a pressões
de toda a ordem e correm o perigo de se verem privados da própria liberdade.
Por outro lado, não poucos mostram-se inclinados a rejeitar, sob pretexto de
liberdade, toda e qualquer sujeição, ou a fazer pouco caso da devida obediência
Pelo que este Concílio Vaticano exorta a todos,
mas sobretudo aos que têm a seu cargo educar outros, a que se esforcem por
formar homens que, fiéis à ordem moral, obedeçam à autoridade legítima e amem a
autêntica liberdade; isto é, homens que julguem as coisas por si mesmos e à luz
da verdade, procedam com sentido de responsabilidade, e aspirem a tudo o que é
verdadeiro e justo, sempre prontos para colaborar com os demais. A liberdade
religiosa deve, portanto, também servir e orientar-se para que os homens
procedam responsavelmente no desempenho dos seus deveres na vida social.
II. A LIBERDADE RELIGIOSA À LUZ DA REVELAÇÃO
A liberdade religiosa tem as suas raízes na
Revelação
9. O que este Concilio Vaticano declara acerca
do direito do homem à liberdade religiosa funda-se na dignidade da pessoa,
cujas exigências foram aparecendo mais plenamente à razão humana com a
experiência dos séculos. Mais ainda: esta doutrina sobre a liberdade tem raízes
na Revelação divina, e por isso tanto mais fielmente deve ser respeitada pelos
cristãos. Com efeito, embora a Revelação não afirme expressamente o direito à
imunidade de coacção externa em matéria religiosa, no entanto ela manifesta em
toda a sua amplidão a dignidade da pessoa humana, mostra o respeito de Cristo
pela liberdade do homem no cumprimento do dever de crer na palavra de Deus, e
ensinar-nos qual o espírito que os discípulos de um tal mestre devem admitir e
seguir em tudo. Todas estas coisas iluminam os princípios gerais sobre que se
funda a doutrina desta Declaração acerca da liberdade religiosa. A liberdade
religiosa na sociedade é de modo especial plenamente consentânea com a
liberdade do acto de fé cristã.
A liberdade religiosa está de acordo com a
doutrina teológica sobre a fé
10. Um dos principais ensinamentos da doutrina
católica, contido na palavra de Deus e constantemente pregado pelos santos
Padres (8) é aquele que diz que o homem deve responder voluntariamente a Deus
com a fé, e que, por isso, ninguém deve ser forçado a abraçar a fé contra
vontade (9). Com efeito, o acto de fé é, por sua própria natureza, voluntário,
já que o homem, remido por Cristo Salvador e chamado à adopção filial por Jesus
Cristo (10), não pode aderir a Deus que Se revela a não ser que, atraído pelo
Pai (11), preste ao Senhor o obséquio racional e livre da fé. Concorda
portanto, plenamente com a índole da fé que em matéria religiosa se exclua
qualquer espécie de coacção humana. E por isso o regime da liberdade religiosa
contribui muito para promover aquele estado de coisas em que os homens podem
sem impedimento ser convidados à fé cristã, abraçá-la livremente e confessá-la
por obras em toda a sua vida.
A liberdade religiosa está de acordo com o
comportamento de Cristo e dos Apóstolos
11. Deus chama realmente os homens a servi-lo
em espírito e verdade; eles ficam, por esse facto, moralmente obrigados, mas
não coagidos. Pois Deus tem em conta a dignidade da pessoa humana, por Ele
mesmo criada, a qual deve guiar-se pelo próprio juízo e agir como liberdade.
Isto apareceu no mais alto grau em Jesus Cristo, no qual Deus Se manifestou
perfeitamente, e deu a conhecer os seus desígnios. Com efeito, Cristo, nosso
Mestre e Senhor (12), manso e humilde de coração (13), atraiu e convidou com
muita paciência os seus discípulos (14). Apoiou e confirmou, sem dúvida, com
milagres, a sua pregação; mas para despertar e confirmar a fé dos ouvintes, e
não para exercer sobre eles qualquer coacção (15). Censurou, é verdade, a
incredulidade dos ouvintes, mas reservando para Deus o castigo, no dia juízo
(16). Ao enviar os Apóstolos pelo mundo, disse-lhes: «aquele que acreditar e
for baptizado, será salvo; quem não acreditar, será condenado» (Marc. 16,16).
Mas Ele próprio, sabendo que a cizânia tinha sido semeada juntamente com o
trigo, mandou deixar que ambos crescessem até à ceifa que terá lugar no fim das
tempos (17). Não querendo ser um Messias político e dominador pela força (18),
preferiu chamar-se Filho do homem, que veio «para servir e dar a sua vida para
redenção de muitos» (Marc. 10, 45). Apresentou-se como o perfeito Servo de Deus
(19), que «não quebra a cana rachada, nem apaga a mecha fumegante» (Mat. 12,
20). Reconheceu a autoridade civil e seus direitos, mandando dar o tributo a
César, mas lembrando claramente que se deviam observar os direitos superiores
de Deus: «dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus» (Mat.
22, 21). Finalmente, realizando na cruz a obra da redenção, com a qual
alcançava para os homens a salvação e verdadeira liberdade, completou a sua
revelação. Pois deu testemunho da verdade (20), mas não a quis impor pela força
aos seus contraditores. O seu reino não se defende pela violência (21) mas
implanta-se pelo testemunho e pela audição da verdade; e cresce pelo amor com
que Cristo, elevado na cruz, a Si atrai todos os homens (22).
Os Apóstolos, ensinados pela palavra e exemplo
de Cristo, seguiram o mesmo caminho. Desde os começos da Igreja, os discípulos
de Cristo esforçaram-se por converter os homens a Cristo Senhor, não com a
coacção ou com artifícios indignos do Evangelho, mas primeiro que tudo com
a força da palavra de Deus (23). A todos anunciavam com fortaleza a
vontade de Deus Salvador «o qual quer que todos os homens se salvem e venham ao
conhecimento da verdade» (1 Tim. 2, 4); ao mesmo tempo, respeitavam os fracos,
mesmo que estivessem no erro, mostrando assim como «cada um de nós dará conta
de si a Deus» (Rom. 14, 12) (24) e, nessa medida, tem obrigação de obedecer à
própria consciência. Como Cristo, os Apóstolos sempre se dedicaram a dar
testemunho da verdade de Deus, ousando proclamar diante do povo e dos chefes
«com desassombro, a palavra de Deus» (Act. 4, 31) (25). Pois acreditavam
firmemente que o Evangelho é a força de Deus, para salvação de todo o que
acredita (26). E assim é que, desprezando todas as «armas carnais» (27),
seguindo o exemplo de mansidão e humildade de Cristo, pregaram a palavra de
Deus (28) com plena confiança na sua força para destruir os poderes opostos a
Deus e para trazer os homens à fé e obediência a Cristo (29). Como o Mestre,
também os Apóstolos reconheceram a legítima autoridade civil: «Não há nenhum
poder que não venha de Deus», ensina o Apóstolo, que depois manda: «cada um se
submeta às autoridades constituídas; ...quem resiste à autoridade, rebela-se
contra a ordem estabelecida por Deus» (Rom. 13, 1-2) (30). Ao mesmo tempo, não
temeram contradizer o poder público que se opunha à vontade sagrada de Deus:
«deve-se obedecer antes a Deus do que aos homens» (Act. 5, 29) (31). Inúmeros
mártires e fiéis seguiram, no decorrer dos séculos e por toda a terra, este
mesmo caminho.
A doutrina da Igreja fiel à de Cristo
12. Por isso, a Igreja, fiel à verdade
evangélica, segue o caminho de Cristo e dos Apóstolos, quando reconhece e
fomenta a liberdade religiosa como conforme à dignidade humana e à revelação de
Deus. Conservou e transmitiu, no decurso dos tempos, esta doutrina, recebida do
Mestre e dos Apóstolos. Ainda que na vida do Povo de Deus, que peregrina no
meio das vicissitudes da história humana, houve por vezes modos de agir menos
conformes e até contrários ao espírito evangélico, a Igreja manteve sempre a
doutrina de que ninguém deve ser coagido a acreditar.
O fermento evangélico trabalhou assim
longamente o espírito dos homens e contribuiu muito para que eles, com o
decorrer do tempo, reconhecessem mais plenamente a dignidade da sua pessoa e
amadurecesse a convicção de que, em matéria religiosa, esta devia ficar imune
de qualquer coacção humana na vida social.
A liberdade da Igreja
13. Entre as coisas que dizem respeito ao bem
da Igreja, e mesmo ao bem da própria sociedade terrena, coisas que sempre e em
toda a parte se devem manter e defender de qualquer atentado, sobressai
particularmente que a Igreja goze de toda a liberdade que o seu encargo de
salvar os homens requer (32). É uma liberdade sagrada com que o Filho de Deus
dotou a Igreja, adquirida com o seu próprio sangue. E é de tal modo própria da
Igreja, que agem contra a vontade de Deus quantos a impugnam. A liberdade da
Igreja é um princípio fundamental nas suas relações com os poderes públicos e
toda a ordem civil.
Na sociedade humana e perante qualquer poder
público, a Igreja reivindica para si a liberdade; pois ela é uma autoridade
espiritual, fundada por Cristo Senhor, a quem incumbe, por mandato divino, o
dever de ir por todo o mundo pregar o Evangelho a todas as criaturas (33). A
Igreja reivindica também a liberdade como sociedade que é formada por homens
que têm o direito de viver na sociedade civil segundo os princípios da fé
cristã (34).
E se a liberdade religiosa está em vigor, não
apenas proclamada de palavra ou sancionada pelas leis, mas sinceramente
praticada, então obtém a Igreja finalmente, de direito e de facto, o
condicionalismo estável para a necessária independência no desempenho da sua
missão divina, independência que as autoridades eclesiásticas com insistência
crescente reivindicaram na sociedade civil (35). Por sua vez, os cristãos têm,
como os demais homens, o direito civil de não serem impedidos de viver segundo
a própria consciência. Existe, portanto, harmonia entre a liberdade da Igreja e
aquela liberdade religiosa que a todos os homens e comunidades se deve
reconhecer como direito e sancionar juridicamente.
Obrigação da Igreja e dos cristãos de difundir
a mensagem de Cristo
14. Para obedecer ao mandato divino «ensinai
todas as gentes» (Mt. 28, 19), deve a Igreja Católica trabalhar com muita
diligência «para que a palavra de Deus se propague rapidamente e seja
glorificada» (2 Tess. 3, 1).
A Igreja pede, por isso, com instância que,
antes de mais, os seus filhos façam «preces, orações, súplicas, acções de
graças por todos os homens... Pois é uma coisa boa e agradável a Deus nosso
Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento
da verdade» (1 Tim. 2, 1-4).
Os fiéis, por sua vez, para formarem a sua
própria consciência, devem atender diligentemente à doutrina sagrada e certa da
Igreja (36). Pois, por vontade de Cristo, a Igreja Católica é mestra da
verdade, e tem por encargo dar a conhecer e ensinar autenticamente a Verdade
que é Cristo, e ao mesmo tempo declara e confirma, com a sua autoridade, os
princípios de ordem moral que dimanam da natureza humana. Além disso, os
cristãos, procedendo cordatamente com aqueles que estão fora da Igreja,
procurem «no Espírito Santo, com uma caridade não fingida e com a palavra da
verdade» (2 Cor. 6, 6-7), difundir com desassombro (37) e fortaleza apostólica
a luz da vida, até à efusão do sangue.
Com efeito, o discípulo tem para com Cristo seu
mestre o grave dever de conhecer cada vez mais plenamente a verdade d'Ele
recebida, de a anunciar fielmente e defender corajosamente postos de parte os
meios contrários ao espírito evangélico. Ao mesmo tempo, o amor de Cristo
incita-o a agir com amor, prudência e paciência para com os homens que se
encontram no erro ou na ignorância relativamente à fé (38). Deve-se, pois,
atender quer aos deveres para com Cristo, Verbo vivificador, o qual deve ser
anunciado, quer aos direitos da pessoa humana, quer à medida da graça que Deus,
por meio de Cristo, concedeu ao homem, convidado a receber e a professar
livremente a fé.
Exortação e votos do Concílio
15. É, pois, manifesto que os homens de hoje
desejam poder professar livremente a religião, em particular e em público; mais
ainda, a liberdade religiosa é declarada direito civil na maior parte das
Constituições, e solenemente reconhecida em documentos internacionais (39).
Mas não faltam regimes nos quais, embora a
liberdade de culto religioso seja reconhecida na Constituição, no entanto os
poderes públicos esforçam-se por afastar os cidadãos de professarem a religião
e por tornar muito difícil e perigosa a vida às comunidades religiosas.
Saudando alegremente aqueles propícios sinais
do nosso tempo, e denunciando com dor estes factos deploráveis, o sagrado
Concílio exorta os católicos e pede a todos os homens que considerem com muita
atenção quão necessária é a liberdade religiosa, sobretudo nas actuais
circunstâncias da família humana.
Pois é patente que todos os povos se unem cada
vez mais, que os homens de diferentes culturas e religiões estabelecem entre si
relações mais estreitas, que, finalmente, aumenta a consciência da
responsabilidade própria de cada um. Por isso, para que se estabeleçam e
consolidem as relações pacíficas e a concórdia no género humano, é necessário
que em toda a parte a liberdade religiosa tenha uma eficaz tutela jurídica e
que se respeitem os supremos deveres e direitos dos homens de praticarem
livremente a religião na sociedade.
Queira Deus, Pai de todos os homens, que a família humana, beneficiando da salvaguarda da liberdade religiosa na sociedade, seja conduzida pela graça de Cristo e pela força do Espírito Santo à sublime e perene «liberdade da glória dos Filhos de Deus». (Rom. 8, 21).
7 de Dezembro de 1965.
PAPA PAULO VI
Notas
1. Cfr. João XXIII, Encíclica Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), 279; ibid. p. 265; Pio XII,
Radiomensagem, 24 dez. 1944: AAS 37 (1945), 14.
2. Cfr. João XXIII, Encíclica Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), 260-261, Pio XII, Radiomensagem, 24
dez. 1942: AAS 35 (1943), 19; Pio XI, Encíclica Mit. brennender Sorge, 14
março 1937: AAS 29 (1937), 160; Leão XIII, Encíclica Libertas
praestantissimum, 20 junho 1888: Acta Leonis XIII, 8 (1888),
237-238.
3. Cfr. S. Tomás, Summa theologica, I-II, q.
91, a. 1; q. 93, a. 1-2.
4. Cfr. João XXIII, Encíclica Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), 270; Paulo VI, Radiomensagem, 22 dez.
1964: AAS 57 (1965), 181-182; S. Tomás, Summa Theologica, I--I, q.
91, a. 4 c.
5. Cfr. João XXIII, Encíclica Mater et
Magistra, 15 maio 1961: AAS 53 (1961), 417; Id., Encíclica Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963) 273.
6. Cfr. João XXIII, Encíclica Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), 273-274; Pio XII, Radiomensagem, 1
junho 1941: AAS 33 (1941); 200.
7. Cfr. Leão XIII, Encíclica Imortale Dei, 1
nov. 1885: ASS 18 (1885), 161.
8. Cfr. Lactâncio, Divinarum Institutionum, livro
V, 19: CSEL 19, p. 463-464, 465; PL 6, 614 e 616 (cap. 20); S. Ambrósio, Epistola
ad Valentinianum Imp., c. 21: PL 16, 1005; S. Agostinho, Contra litteras
Petiliani, livro II, cap. 83: CSEL 52, p. 112; PL 43, 315; cfr. c. 23, q.
5, c. 33 (ed. Friedberg, col. 939); Id., Ep. 23: PL 33, 98; Id. Ep. 34:
PL 33, 132; Id. Ep. 35: PL 33, 135; S. Gregório Magno, Epistola ad
Virgilium et Theodorum Episcopos Massiliae Galliarum, Registrum
Epistolarum, I, 45: MGH Ep. 1, p. 72: PL 77, 510-511 (livro I, Ep. 47);
Id., Epistola ad Johannem Episcopum Constantinopolitanum, Registrum
Epistolarum III, 52: MGH Ep. 1, p. 210; PL 77, 649 (livro III, Ep.
53); cfr. D. 45, c. 1 (ed. Friedberg, col. 160); IV Conc. Toledo,
cânon 57: Mansi, 10, 633; cfr. D. 45, c. 5 (ed. Friedberg, col. 161-162) ;
Clemente III: X, V, 6, 9: ed. Friedberg, col. 774; Inocêncio III, Epistola
ad Arelatensem Archiepiscopum, X, III, 42, 3; ed. Friedberg, col. 646.
9. Cfr. CIC c. 1351; Pio XII, aloc. aos
Prelados, auditores e restantes oficiais e servidores do Tribunal da S. Romana
Rota, 6 out. 1946: AAS 38 (1946), 394; Id. Encíclica Mystici Corporis, 29
junho 1943: AAS 1943, 423.
10. Cfr. Ef. 1,5.
11. Cfr. Jo. 6,44.
12. Cfr. Jo. 13,13.
13. Cfr. Mat. 11,29.
14. Cfr. Mat. 11, 28-30; Jo. 6, 67-68.
15. Cfr. Mat. 9, 28-29; Mc. 9, 23-24; 6, 5-6;
Paulo VI, Encíclica Ecclesiam suam, 6 agosto 1964: AAS 56 (1964),
642-643 p. 642-643.
16. Cfr. Mat. 11, 20-24; Rom. 12, 19-24; 2 Tes. 1,
8.
17. Cfr. Mat. 13,30 e 40-42.
18. Cfr. Mat. 11, 8-10; Jo. 6,15.
19. Cfr. Is. 42, 1-4.
20. Cfr. Jo. 18.37.
21. Cfr. Mat. 26, 51-53; Jo. 18,36.
22. Cfr. Jo. 12,32.
23. Cfr. 1 Cor. 2, 3-5; 1 Tes. 2, 3-5.
24. Cfr. Rom. 14, 1-23; 1 Cor. 8, 9-13; 10,
23-33.
25. Cfr. Ef. 6, 19-20.
26. Cfr. Rom. 1,16.
27. Cfr. 2 Cor. 10,4; 1 Tes., 5, 8-9.
28. Cfr. Ef. 6, 11-17.
29. Cfr. 2 Cor. 10, 3-5.
30. Cfr. 1 Ped. 2, 13-17.
31. Cfr. Act. 4, 19-20.
32. Cfr. Leão XIII, Carta Officio
sanctissimo, 22 dez. 1887: ASS 20, (1887), 269; Id.
Carta Ex litteris, 7 abril 1887: ASS 19 (1887) 465.
33. Cfr. Mc. 16,15; Mt. 28, 18-20; Pio XII,
Carta enc. Summi Pontificatus, 20 out. 1939: AAS 31 (1939), 445-446.
34. Cfr. XI, Carta Firmissimam constantiam,
28 março 1937: 1937: AAS 29 (1937), 196.
35. Cfr. Pio XII, Alocução Ci riesce, 6
dez. 1953: AAS 45 (1953), 802.
36. Cfr. Pio XII, Radiomensagem, 23 março 1952:
AAS 44 (1952), 270-278.
37. Cfr. Act. 4,29.
38. Cfr. João XXIII, Encíclica Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), 299-300.
39. Cfr. João XXIII, Encíclica Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), 295-296.