IOANNES PAULUS PP. II
EVANGELIUM VITAE
aos Presbíteros e Diáconos
aos Religiosos e Religiosas
aos Fiéis leigos e a todas as Pessoas de Boa Vontade
sobre o Valor e a Inviolabilidade
da Vida Umana
1995.03.25
CARTA ENCÍCLICA EVANGELIUM VITAE DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II AOS
PRESBÍTEROS E DIÁCONOS AOS RELIGIOSOS E RELIGIOSAS AOS FIÉIS LEIGOS E A TODAS
AS PESSOAS DE BOA VONTADE SOBRE O VALOR E A INVIOLABILIDADE DA VIDA HUMANA
(Esta transcrição é feito do Jornal L´Osservatore Romano, ou do site do Vaticano,
edição em português, de Portugal; algumas palavras são escritas de forma
diferente do português usado no Brasil)
INTRODUÇÃO
1. O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente
acolhido cada dia pela Igreja, há´de ser fiel e corajosamente anunciado como
boa nova aos homens de todos os tempos e culturas. Na aurora da salvação, é
proclamado como feliz notícia o nascimento de um menino: « Anuncio´vos uma
grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu´vos
um Salvador, que é o Messias, Senhor » (Lc 2, 10´11). O motivo imediato que faz
irradiar esta « grande alegria » é, sem dúvida, o nascimento do Salvador; mas,
no Natal, manifesta´se também o sentido pleno de todo o nascimento humano, pelo
que a alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da alegria por cada
criança que nasce (cf. Jo 16, 21). Ao apresentar o núcleo central da sua missão
redentora, Jesus diz: « Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância »
(Jo 10, 10). Ele fala daquela vida « nova » e « eterna » que consiste na
comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado no Filho, por
obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal « vida » que todos os
aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno significado.
O valor incomparável da pessoa humana
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das
dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria
vida de Deus. A sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o
valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a
vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte integrante do
processo global e unitário da existência humana: um processo que, para além de
toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo
dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1
Jo 3, 1´2). Ao mesmo tempo, porém, o próprio chamamento sobrenatural sublinha a
relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não é
realidade « última », mas « penúltima »; trata´se, em todo o caso, de uma
realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com sentido de
responsabilidade e levarmos à perfeição no amor pelo dom de nós mesmos a Deus e
aos irmãos. A Igreja sabe que este Evangelho da vida, recebido do seu Senhor,1
encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa, crente e até
não crente, porque se ele supera infinitamente as suas aspirações, também lhes
corresponde de maneira admirável. Mesmo por entre dificuldades e incertezas,
todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e
com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no
coração (cf. Rm 2, 14´15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início
até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver
plenamente respeitado este seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal
direito é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política. De
modo particular, devem defender e promover este direito os crentes em Cristo,
conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II: «
Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu´Se de certo modo a cada homem
».2 De facto, neste acontecimento da salvação, revela´se à humanidade não só o
amor infinito de Deus que « amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho
único » (Jo 3, 16), mas também o valor incomparável de cada pessoa humana. A
Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre com assombro
incessante 3 este valor, e sente´se chamada a anunciar aos homens de todos os
tempos este « evangelho », fonte de esperança invencível e de alegria
verdadeira para cada época da história. O Evangelho do amor de Deus pelo homem,
o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um único e
indivisível Evangelho. É por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o
primeiro e fundamental caminho da Igreja.4
As novas ameaças à vida humana
3. Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez carne (cf. Jo
1, 14), cada homem está confiado à solicitude materna da Igreja. Por isso,
qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de se repercutir
no próprio coração da Igreja, é impossível não a tocar no centro da sua fé na
encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar sem a interpelar na sua
missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda a criatura
(cf. Mc 16, 15). Hoje, este anúncio torna´se particularmente urgente pela
impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos
povos, sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às antigas e dolorosas chagas
da miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, vêm´se juntar
outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes. Já o Concílio
Vaticano II, numa página de dramática actualidade, deplorou fortemente os
múltiplos crimes e atentados contra a vida humana. À distância de trinta anos e
fazendo minhas as palavras da Assembleia Conciliar, uma vez mais e com idêntica
força os deploro em nome da Igreja inteira, com a certeza de interpretar o
sentimento autêntico de toda a consciência recta: « Tudo quanto se opõe à vida,
como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio
voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as
mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as
próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as
condições de vida infra´humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a
escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as
condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros
instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas
coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a
civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que
padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ».5
4. Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem vindo a
dilatar´se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e
tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano,
enquanto se delínea e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes
contra a vida um aspecto inédito e — se é possível — ainda mais iníquo,
suscitando novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião pública
justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade
individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas
ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta
liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde. Ora, tudo
isto provoca uma profunda alteração na maneira de considerar a vida e as
relações entre os homens. O facto de as legislações de muitos países,
afastando´se quiçá dos próprios princípios basilares das suas Constituições,
terem consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de
tais acções contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante e causa não
marginal de uma grave derrocada moral: opções, outrora consideradas
unanimamente criminosas e rejeitadas pelo senso moral comum, tornam´se pouco a
pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se orienta
para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus sectores vai´se
prestando em escala cada vez maior a realizar tais actos contra a pessoa, e,
deste modo, deforma o seu rosto, contradiz´se a si mesma e humilha a dignidade
de quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal, os graves
problemas demográficos, sociais ou familiares — que incidem sobre numerosos
povos do mundo e exigem a atenção responsável e operante das comunidades
nacionais e internacionais —, encontram´se também sujeitos a soluções falsas e
ilusórias, em contraste com a verdade e o bem das pessoas e das nações. O
resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e preocupante o
fenómeno da eliminação de tantas vidas humanas nascentes ou encaminhadas para o
seu ocaso, não o é menos o facto de à própria consciência, ofuscada por tão
vastos condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a distinção entre o
bem e o mal, precisamente naquilo que toca o fundamental valor da vida humana.
Em comunhão com todos os Bispos do mundo
5. Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi dedicado o
Consistório Extraordinário dos Cardeais, realizado em Roma de 4 a 7 de Abril de
1991. Depois de amplo e profundo debate do problema e dos desafios postos à
família humana inteira e, de modo particular, à Comunidade cristã, os Cardeais,
com voto unânime, pediram´me que reafirmasse, com a autoridade do Sucessor de
Pedro, o valor da vida humana e a sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias
actuais e dos atentados que hoje a ameaçam. Acolhendo tal pedido, no
Pentecostes de 1991 escrevi uma carta pessoal a cada Irmão no Episcopado para
que, em espírito de colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à
elaboração de um específico documento.6 Agradeço profundamente a todos os
Bispos que responderam, fornecendo´me preciosas informações, sugestões e
propostas. Deram também assim testemunho da sua participação concorde e
convicta na missão doutrinal e pastoral da Igreja acerca do Evangelho da vida.
Nessa mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da celebração do
centenário da Encíclica Rerum novarum, chamava a atenção de todos para esta
singular analogia: « Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais
era a classe operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa,
proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora,
quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a
Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é
sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão
ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos ».7 Espezinhada no
direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos débeis
e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao
findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as
injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje, quando às
injustiças sociais do passado — infelizmente ainda não superadas — se vêm
somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves,
mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma
nova ordem mundial. A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de
cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida
humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo dirigido em
nome de Deus a todos e cada um:respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida
humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça, progresso, verdadeira
liberdade, paz e felicidade! Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas
da Igreja! Cheguem a todas as pessoas de boa vontade, solícitas pelo bem de
cada homem e mulher e pelo destino da sociedade inteira! 6. Em profunda
comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por sincera amizade para com
todos, quero meditar de novo e anunciar o Evangelho da vida, clara luz que
ilumina as consciências, esplendor de verdade que cura o olhar ofuscado, fonte
inexaurível de constância e coragem para enfrentar os desafios sempre novos que
encontramos no nosso caminho. Tendo no pensamento a rica experiência vivida
durante o Ano da Família, e quase completando idealmente a Carta que dirigi « a
cada família concreta de cada região da terra »,8 olho com renovada confiança
para todas as comunidades domésticas e faço votos por que renasça ou se
reforce, em todos e aos diversos níveis, o compromisso de apoiarem a família,
para que também hoje — mesmo no meio de numerosas dificuldades e graves ameaças
— ela se conserve sempre, segundo o desígnio de Deus, como « santuário da vida
».9 A todos os membros da Igreja, povo da vida e pela vida, dirijo o mais
premente convite para que, juntos, possamos dar novos sinais de esperança a
este nosso mundo, esforçando´nos por que cresçam a justiça e a solidariedade e
se afirme uma nova cultura da vida humana, para a edificação de uma autêntica
civilização da verdade e do amor.
CAPÍTULO I
A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA ATÉ MIM AS ATUAIS AMEAÇAS À VIDA
HUMANA
« Caim levantou a mão contra o irmão Abele matou´o » (Gn 4, 8): na raiz da
violência contra a vida
7. « Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma
alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência. (...) Com efeito, Deus
criou o homem para a incorruptibilidade, e fê´ ´lo à imagem da sua própria
natureza. Por inveja do demónio é que a morte entrou no mundo e prová´la´ão os
que pertencem ao demónio » (Sab 1, 13´14; 2, 23´24). O Evangelho da vida, que
ressoa, logo ao princípio, com a criação do homem à imagem de Deus para um
destino de vida plena e perfeita (cf. Gn 2, 7; Sab 9, 2´3), vê´se contestado
pela experiência dilacerante da morte que entra no mundo, lançando o espectro
da falta de sentido sobre toda a existência do homem. A morte entra por causa
da inveja do diabo (cf. Gn 3, 1.4´5) e do pecado dos primeiros pais (cf. Gn 2,
17; 3, 17´19). E entra de modo violento, através do assassínio de Abel por obra
do seu irmão: « Logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão
Abel e matou´o » (Gn 4, 8). Este primeiro assassínio é apresentado, com
singular eloquência, numa página paradigmática do Livro do Génesis: página
transcrita cada dia, sem cessar e com degradante repetição, no livro da
história dos povos. Queremos ler de novo, juntos, esta página bíblica, que,
apesar do seu aspecto arcaico e extrema simplicidade, se apresenta riquíssima
de ensinamentos. « Abel foi pastor; e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo,
Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel
ofereceu primogénitos do seu rebanho e as gorduras deles. O Senhor olhou
favoravelmente para Abel e para a sua oferta, mas não olhou para Caim nem para
a sua oferta. Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou´ ´se´lhe. O Senhor disse a Caim: ´Porque estás
zangado e o teu rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer
o rosto; se procederes mal, o pecado deitar´se´á à tua porta e andará a
espreitar´te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves
dominá´lo´. Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: ´Vamos ao campo´. Porém,
logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou´o.
O Senhor disse a Caim: ´Onde está Abel, teu irmão?´ Caim respondeu: ´Não
sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?´ O Senhor replicou: ´Que
fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás
maldito sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o sangue do
teu irmão. Quando a
cultivares, negar´te´á as suas riquezas. Serás vagabundo e fugitivo sobre a
terra´. Caim disse ao Senhor: ´A minha culpa é grande demais para obter perdão!
Expulsas´me hoje desta terra; obrigado a ocultar´me longe da tua face, terei de
andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar´me matar´me´á´.
O Senhor respondeu: ´Não, se alguém matar Caim, será castigado sete vezes
mais´. E o Senhor marcou´o com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o
viesse a encontrar. Caim afastou´se da presença do Senhor e foi residir na
região de Nod, ao oriente do Éden » (Gn 4, 2´16).
8. Caim está « muito irritado » e tem o rosto « transtornado », porque « o
Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta » (Gn 4, 4). O texto
bíblico não revela o motivo pelo qual Deus preferiu o sacrifício de Abel ao de
Caim; mas indica claramente que, mesmo preferindo a oferta de Abel, não
interrompe o seu diálogo com Caim. Acautela´o, recordando´lhe a sua liberdade
frente ao mal: o homem não está de forma alguma predestinado para o mal.
Certamente, à semelhança de Adão, ele é tentado pela força maléfica do pecado
que, como um animal feroz, se agacha à porta do seu coração, à espera de
lançar´se sobre a presa. Mas Caim permanece livre diante do pecado. Pode e deve
dominá´lo: « Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves
dominá´lo » (Gn 4, 7). Sobre a advertência feita pelo Senhor, porém, levam a melhor
o ciúme e a ira, e Caim atira´se contra o próprio irmão e mata´o. Como lemos no
Catecismo da Igreja Católica, « a Sagrada Escritura, na narrativa da morte de
Abel por seu irmão Caim, revela, desde os primórdios da história humana, a
presença no homem da cólera e da inveja, consequências do pecado original. O
homem tornou´se inimigo do seu semelhante ».10 O irmão mata o irmão. Como
naquele primeiro fratricídio, também em cada homicídio é violado o parentesco «
espiritual » que congrega os homens numa única grande família,11 sendo todos
participantes do mesmo bem fundamental: a igual dignidade pessoal. E, não raro,
resulta violado também o parentesco « da carne e do sangue », quando, por
exemplo, as ameaças à vida se verificam ao nível do relacionamento pais e
filhos, como sucede com o aborto ou quando, no mais vasto contexto familiar ou
de parentela, é encorajada ou provocada a eutanásia. Na raiz de qualquer
violência contra o próximo, há uma cedência à « lógica » do maligno, isto é,
daquele que « foi assassino desde o princípio » (Jo 8, 44), como nos recorda o
apóstolo João: « Porque esta é a mensagem que ouvistes desde o princípio: que
nos amemos uns aos outros. Não seja como Caim que era do maligno, e matou o seu
irmão » (1 Jo 3, 11´12). Assim o assassinato do irmão, desde os alvores da
história, é o triste testemunho de como o mal progride com rapidez
impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso terreal segue´se a
luta mortal do homem contra o homem. Depois do crime, Deus intervém para vingar
a vítima. Frente a Deus que o interroga sobre a sorte de Abel, Caim, em vez de
se mostrar confundido e desculpar´se, esquiva´se à pergunta com arrogância: «
Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9). « Não
sei dele »: com a mentira, Caim procura encobrir o crime. Assim aconteceu frequentemente e continua a
verificar´se quando se servem das mais diversas ideologias para justificar e
mascarar os crimes mais atrozes contra a pessoa. « Sou, porventura, guarda do
meu irmão? »: Caim não quer pensar no irmão, e recusa´se a assumir aquela
responsabilidade que cada homem tem pelo outro. Saltam espontaneamente ao
pensamento as tendências actuais para sonegar a responsabilidade do homem pelo
seu semelhante, de que são sintomas, entre outros, a falta de solidariedade com
os membros mais débeis da sociedade — como são os idosos, os doentes, os
imigrantes, as crianças —, e a indiferença que tantas vezes se regista nas
relações entre os povos, mesmo quando estão em jogo valores fundamentais como a
sobrevivência, a liberdade e a paz.
9. Mas Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi derramado, o
sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn 37, 26; Is 26, 21; Ez 24,
7´8). Deste texto, a Igreja retirou a denominação de « pecados que bradam ao
Céu », incluindo em primeiro lugar o homicídio voluntário.12 Para os hebreus,
como para muitos povos da antiguidade, o sangue é a sede da vida, ou melhor « o
sangue é a vida » (Dt 12, 23), e a vida, sobretudo a humana, pertence
unicamente a Deus: por isso, quem atenta contra a vida do homem, de algum modo
atenta contra o próprio Deus. Caim é amaldiçoado por Deus como também pela
terra, que lhe recusará os seus frutos (cf. Gn 4, 11´12). E épunido: habitará
em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera profundamente o
ambiente da vida do homem. A terra, que era o « jardim do Éden » (Gn 2, 15),
lugar de abundância, de serenas relações interpessoais e de amizade com Deus,
torna´se o « país de Nod » (Gn 4, 16), lugar de « miséria », de solidão e de
afastamento de Deus. Caim será « fugitivo e vagabundo pela terra » (Gn 4, 14):
dúvida e instabilidade sempre o acompanharão. Contudo Deus, misericordioso
mesmo quando castiga, « marcou 1 com um sinal, a fim de nunca ser morto por
quem o viesse a encontrar » (Gn 4, 15): põe´lhe um sinal, cujo objectivo não é
condená´lo à abominação dos outros homens, mas protegê´lo e defendê´lo daqueles
que o quiserem matar, ainda que seja para vingar a morte de Abel. Nem sequer o
homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu
garante. E é precisamente aqui que se manifesta o mistério paradoxal da justiça
misericordiosa de Deus, como escreve Santo Ambrósio: « Visto que tinha sido
cometido um fratricídio — ou seja, o maior dos crimes —, no momento em que se
introduziu o pecado, teve imediatamente de ser ampliada a lei da misericórdia
divina; para que, caso o castigo atingisse imediatamente o culpado, não
sucedesse que os homens, ao punirem, não usassem de qualquer tolerância nem
mansidão, mas entregassem imediatamente ao castigo os culpados. (...) Deus
repeliu Caim da sua presença e, renegado pelos seus pais, como que o desterrou
para o exílio de uma habitação separada, pelo facto de ter passado da mansidão
humana à crueldade selvagem. Todavia Deus não quer punir o homicida com um
homicídio, porque prefere o arrependimento do pecador à sua morte ».13
« Que fizeste? » (Gn 4, 10): o eclipse do valor da vida
10. O Senhor disse a Caim: « Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da
terra até Mim » (Gn 4, 10). A voz do sangue derramado pelos homens não cessa de
clamar, de geração em geração, assumindo tons e acentos sempre novos e
diversos. A pergunta do Senhor « que fizeste? », à qual Caim não se pode
esquivar, é dirigida também ao homem contemporâneo, para que tome consciência
da amplitude e gravidade dos atentados à vida que continuam a registar´se na
história da humanidade, para que vá à procura das múltiplas causas que os geram
e alimentam, e, enfim, para que reflita com extrema seriedade sobre as
consequências que derivam desses mesmos atentados para a existência das pessoas
e dos povos. Algumas ameaças provêm da própria natureza, mas são agravadas pelo
descuido culpável e pela negligência dos homens que, não raro, lhes poderiam
dar remédio; outras, ao contrário, são fruto de situações de violência, de
ódio, de interesses contrapostos, que induzem homens a agredirem outros homens
com homicídios, guerras, massacres, genocídios. Como não pensar na violência
causada à vida de milhões de seres humanos, especialmente crianças,
constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua
distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais? Ou na
violência inerente às guerras, e ainda antes delas, ao escandaloso comércio de armas,
que favorece o torvelinho de tantos conflitos armados que ensanguentam o mundo?
Ou então na sementeira de morte que se provoca com a imprudente alteração dos
equilíbrios ecológicos, com a criminosa difusão da droga, ou com a promoção do
uso da sexualidade segundo modelos que, além de serem moralmente inaceitáveis,
acarretam ainda graves riscos para a vida? É impossível registar de modo
completo a vasta gama das ameaças à vida humana, tantas são as formas, abertas
ou camufladas, de que se revestem no nosso tempo!
11. Mas queremos concentrar a nossa atenção, de modo particular, sobre outro
género de atentados, relativos à vida nascente e terminal, que apresentam novas
características em relação ao passado e levantam problemas de singular
gravidade: é que, na consciência colectiva, aqueles tendem a perder o carácter
de « crimes » para assumir, paradoxalmente, o carácter de « direitos », a ponto
de se pretender um verdadeiro e próprioreconhecimento legal da parte do Estado
e a consequente execução gratuita por intermédio dos profissionais da saúde.
Tais atentados ferem a vida humana em situações de máxima fragilidade, quando
se acha privada de qualquer capacidade de defesa. Mais grave ainda é o facto de
serem consumados, em grande parte, mesmo no seio e por obra da família que
está, pelo contrário, chamada constitutivamente a ser « santuário da vida ».
Como se pôde criar semelhante situação? Há que tomar em consideração diversos
factores. Como pano de fundo, existe uma crise profunda da cultura, que gera cepticismo
sobre os próprios fundamentos do conhecimento e da ética e torna cada vez mais
difícil compreender claramente o sentido do homem, dos seus direitos e dos seus
deveres. A isto, vêm juntar´se as mais diversas dificuldades existenciais e
interpessoais, agravadas pela realidade de uma sociedade complexa, onde
frequentemente as pessoas, os casais, as famílias são deixadas sozinhas a
braços com os seus problemas. Não faltam situações de particular pobreza,
angústia e exasperação, onde a luta pela sobrevivência, a dor nos limites do
suportável, as violências sofridas, especialmente aquelas que investem as
mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções de defesa e
promoção da vida. Tudo isto explica — pelo menos em parte — como possa o valor
da vida sofrer hoje uma espécie de « eclipse », apesar da consciência não
cessar de o apontar como valor sagrado e intocável; e comprova´o o próprio
fenómeno de se procurar encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou
terminal com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do facto de
estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana concreta.
12. Com efeito, se muitos e graves aspectos da problemática social actual
podem, de certo modo, explicar o clima de difusa incerteza moral e, por vezes,
atenuar a responsabilidade subjectiva no indivíduo, não é menos verdade que
estamos perante uma realidade mais vasta que se pode considerar como verdadeira
e própria estrutura de pecado, caracterizada pela imposição de uma cultura
anti´solidária, que em muitos casos se configura como verdadeira « cultura de
morte ». É activamente promovida por fortes correntes culturais, económicas e
políticas, portadoras de uma concepção eficientista da sociedade. Olhando as
coisas deste ponto de vista, pode´se, em certo sentido, falar de uma guerra dos
poderosos contra os débeis: a vida que requereria mais acolhimento, amor e
cuidado, é reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e,
consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo aquele que, pela sua
enfermidade, a sua deficiência ou, mais simplesmente ainda, a sua própria
presença, põe em causa o bem´estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem
mais avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual defender´se ou um
inimigo a eliminar. Desencadeia´se assim uma espécie de « conjura contra a vida
». Esta não se limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações pessoais,
familiares ou de grupo, mas alarga´se muito para além até atingir e subverter,
a nível mundial, as relações entre os povos e os Estados.
13. Para facilitar a difusão do aborto, foram investidas — e continuam a sê´lo
— somas enormes, destinadas à criação de fármacos que tornem possível a morte
do feto no ventre materno, sem necessidade de recorrer à ajuda do médico. A própria
investigação científica, neste âmbito, parece quase exclusivamente preocupada
em obter produtos cada vez mais simples e eficazes contra a vida e, ao mesmo
tempo, capazes de subtrair o aborto a qualquer forma de controlo e
responsabilidade social. Afirma´se frequentemente que a contracepção, tornada
segura e acessível a todos, é o remédio mais eficaz contra o aborto. E depois
acusa´se a Igreja Católica de, na realidade, favorecer o aborto, porque
continua obstinadamente a ensinar a ilicitude moral da contracepção. Bem vista,
porém, a objecção é falaciosa. De facto, pode acontecer que muitos recorram aos
contraceptivos com a intenção também de evitar depois a tentação do aborto. Mas
os pseudo´valores inerentes à « mentalidade contraceptiva » — muito diversa do
exercício responsável da paternidade e maternidade, actuada no respeito pela
verdade plena do acto conjugal — são tais que tornam ainda mais forte essa
tentação, na eventualidade de ser concebida uma vida não desejada. De facto, a
cultura pro´aborto aparece sobretudo desenvolvida nos mesmos ambientes que
recusam o ensinamento da Igreja sobre a contracepção. Certo é que a
contracepção e o aborto são males especificamente diversos do ponto de vista
moral: uma contradiz a verdade integral do acto sexual enquanto expressão
própria do amor conjugal, o outro destrói a vida de um ser humano; a primeira
opõe´se à virtude da castidade matrimonial, o segundo opõe´se à virtude da
justiça e viola directamente o preceito divino « não matarás ». Mas, apesar de
terem natureza e peso moral diversos, eles surgem, com muita frequência,
intimamente relacionados como frutos da mesma planta. É verdade que não faltam
casos onde, à contracepção e ao próprio aborto se vem juntar a pressão de
diversas dificuldades existenciais que, no entanto, não podem nunca exonerar do
esforço de observar plenamente a lei de Deus. Mas, em muitíssimos outros casos,
tais práticas afundam as suas raízes numa mentalidade hedonista e
desresponsabilizadora da sexualidade, e supõem um conceito egoísta da liberdade
que vê na procriação um obstáculo ao desenvolvimento da própria personalidade.
A vida que poderia nascer do encontro sexual torna´se assim o inimigo que se
há´de evitar absolutamente, e o aborto a única solução possível diante de uma
contracepção falhada. Infelizmente, emerge cada vez mais a estreita conexão que
existe, a nível de mentalidade, entre as práticas da contracepção e do aborto,
como o demonstra, de modo alarmante, a produção de fármacos, dispositivos
intra´uterinos e preservativos, os quais, distribuídos com a mesma facilidade
dos contraceptivos, actuam na prática como abortivos nos primeiros dias de
desenvolvimento da vida do novo ser humano.
14. Também as várias técnicas de reprodução artificial, que pareceriam estar ao
serviço da vida e que, não raro, são praticadas com essa intenção, na realidade
abrem a porta a novos atentados contra a vida. Para além do facto de serem
moralmente inaceitáveis, porquanto separam a procriação do contexto
integralmente humano do acto conjugal,14 essas técnicas registam altas
percentagens de insucesso: este diz respeito não tanto à fecundação como
sobretudo ao desenvolvimento sucessivo do embrião, sujeito ao risco de morte em
tempos geralmente muito breves. Além disso, são produzidos às vezes embriões em
número superior ao necessário para a implantação no útero da mulher e esses,
chamados « embriões supranumerários », são depois suprimidos ou utilizados para
pesquisas que, a pretexto de progresso científico ou médico, na realidade
reduzem a vida humana a simples « material biológico », de que se pode
livremente dispor. Os diagnósticos pré´natais, que não apresentam dificuldades
morais quando feitos para individuar a eventualidade de curas necessárias à
criança ainda no seio materno, tornam´se, com muita frequência, ocasião para
propor e solicitar o aborto. É o aborto eugénico, cuja legitimação, na opinião
pública, nasce de uma mentalidade — julgada, erradamente, coerente com as
exigências « terapêuticas » — que acolhe a vida apenas sob certas condições, e
que recusa a limitação, a deficiência, a enfermidade. Seguindo a mesma lógica,
chegou´se a negar os cuidados ordinários mais elementares, mesmo até a
alimentação, a crianças nascidas com graves deficiências ou enfermidades. E o
cenário contemporâneo apresenta´se ainda mais desconcertante com as propostas —
avançadas aqui e além — para, na mesma linha do direito ao aborto, se legitimar
até o infanticídio, retornando assim a um estado de barbárie que se esperava
superado para sempre.
15. Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes incuráveis e os
doentes terminais, num contexto social e cultural que, tornando mais difícil
enfrentar e suportar o sofrimento, aviva a tentação de resolver o problema do
sofrimento eliminando´o pela raiz, com a antecipação da morte para o momento
considerado mais oportuno. Para tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos
de natureza diversa mas infelizmente convergentes para essa terrível saída.
Pode ser decisivo, na pessoa doente, o sentimento de angústia, exasperação, ou
até desespero, provocado por uma experiência de dor intensa e prolongada.
Vêem´se, assim, duramente postos à prova os equilíbrios, por vezes já abalados,
da vida pessoal e familiar, de maneira que, por um lado, o doente, não obstante
os auxílios cada vez mais eficazes da assistência médica e social, corre o
risco de se sentir esmagado pela própria fragilidade; por outro lado, naqueles
que lhe estão afectivamente ligados, pode gerar´se um sentimento de
compreensível, ainda que mal´entendida, compaixão. Tudo isto fica agravado por
uma atmosfera cultural que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento,
antes considera´o como o mal por excelência, que se há´de eliminar a todo o
custo; isto verifica´ ´se especialmente quando não se possui uma visão
religiosa que ajude a decifrar positivamente o mistério da dor. Mas, no
conjunto do horizonte cultural, não deixa de incidir também uma espécie de
atitude prometéica do homem que, desse modo, se ilude de poder apropriar´se da
vida e da morte para decidir delas, quando na realidade acaba derrotado e
esmagado por uma morte irremediavelmente fechada a qualquer perspectiva de
sentido e a qualquer esperança. Uma trágica expressão de tudo isto,
encontramo´la na difusão da eutanásia, ora mascarada e subreptícia, ora actuada
abertamente e até legalizada. Para além do motivo de presunta compaixão diante
da dor do paciente, às vezes pretende´se justificar a eutanásia também com uma
razão utilitarista, isto é, para evitar despesas improdutivas demasiado gravosas
para a sociedade. Propõe´se, assim, a supressão dos recém´nascidos defeituosos,
dos deficientes profundos, dos inválidos, dos idosos, sobretudo quando não
auto´suficientes, e dos doentes terminais. Nem nos é lícito calar frente a
outras formas mais astuciosas, mas não menos graves e reais, de eutanásia, como
são as que se poderiam verificar, por exemplo, quando, para aumentar a
disponibilidade de material para transplantes, se procedesse à extracção dos
órgãos sem respeitar os critérios objectivos e adequados de certificação da
morte do dador. 16. Outro motivo actual, que frequentemente é acompanhado por
ameaças e atentados à vida, é o fenómeno demográfico. Este reveste aspectos
diversos, nas várias partes do mundo: nos países ricos e desenvolvidos, regista´se
uma preocupante diminuição ou queda da natalidade; os países pobres, ao
contrário, apresentam em geral uma elevada taxa de aumento da população,
dificilmente suportável num contexto de menor progresso económico e social, ou
até de grave subdesenvolvimento. Face ao sobrepovoamento dos países pobres,
verifica´se, a nível internacional, a falta de intervenções globais — sérias
políticas familiares e sociais, programas de crescimento cultural e de justa
produção e distribuição dos recursos — enquanto se continuam a actuar políticas
anti´natalistas. Devendo, sem dúvida, incluir´se a contracepção, a
esterilização e o aborto entre as causas que contribuem para determinar as
situações de forte queda da natalidade, pode ser fácil a tentação de recorrer
aos mesmos métodos e atentados contra a vida, nas situações de « explosão
demográfica ». O antigo Faraó, sentindo como um íncubo a presença e a
multiplicação dos filhos de Israel, sujeitou´os a todo o tipo de opressão e
ordenou que fossem mortas todas as crianças do sexo masculino (cf. Ex 1, 7´22).
Do mesmo modo se comportam hoje bastantes poderosos da terra. Também estes vêem
como um íncubo o crescimento demográfico em acto, e temem que os povos mais
prolíferos e mais pobres representem uma ameaça para o bem´estar e a
tranquilidade dos seus países. Consequentemente, em vez de procurarem enfrentar
e resolver estes graves problemas dentro do respeito da dignidade das pessoas e
das famílias e do inviolável direito de cada homem à vida, preferem promover e
impor, por qualquer meio, um maciço planeamento da natalidade. As próprias
ajudas económicas, que se dizem dispostos a dar, ficam injustamente
condicionadas à aceitação desta política anti´natalista.
17. A humanidade de hoje oferece´nos um espectáculo verdadeiramente alarmante,
se pensarmos não só aos diversos âmbitos em que se realizam os atentados à
vida, mas também à singular dimensão numérica dos mesmos, bem como ao múltiplo
e poderoso apoio que lhes é dado pelo amplo consenso social, pelo frequente
reconhecimento legal, pelo envolvimento de uma parte dos profissionais da
saúde. Como senti dever bradar em Denver, por ocasião do VIII Dia Mundial da
Juventude, « com o tempo, as ameaças contra a vida não diminuíram. Elas, ao
contrário, assumem dimensões enormes. Não se trata apenas de ameaças vindas do
exterior, de forças da natureza ou dos « Cains » que assassinam os « Abéis »;
não, trata´se de ameaças programadas de maneira científica e sistemática. O
século XX ficará considerado uma época de ataques maciços contra a vida, uma
série infindável de guerras e um massacre permanente de vidas humanas
inocentes. Os falsos profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso
possível ».15 Para além das intenções, que podem ser várias e quiçá assumir
formas persuasivas em nome até da solidariedade, a verdade é que estamos
perante uma objectiva « conjura contra a vida » que vê também implicadas
Instituições Internacionais, empenhadas a encorajar e programar verdadeiras e
próprias campanhas para difundir a contracepção, a esterilização e o aborto.
Não se pode negar, enfim, que os mass´media são frequentemente cúmplices dessa
conjura, ao abonarem junto da opinião pública aquela cultura que apresenta o
recurso à contracepção, à esterilização, ao aborto e à própria eutanásia como sinal
do progresso e conquista da liberdade, enquanto descrevem como inimigas da
liberdade e do progresso as posições incondicionalmente a favor da vida. « Sou,
porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9): uma noção perversa de liberdade
18. O panorama descrito requer ser conhecido não somente nos fenómenos de morte
que o caracterizam, mas também nas múltiplas causas que o determinam. A
pergunta do Senhor « que fizeste? » (Gn 4, 10) quase parece um convite dirigido
a Caim para que, ultrapassando a materialidade do gesto homicida, veja toda a
gravidade nas motivações que estão na sua origem e nas consequências que dele
derivam. As opções contra a vida nascem, às vezes, de situações difíceis ou
mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de carência total de
perspectivas económicas, de depressão e de angústia pelo futuro. Estas
circunstâncias podem atenuar, mesmo até notavelmente, a responsabilidade
subjectiva e, consequentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tais
opções em si mesmas criminosas. Hoje, todavia, o problema estende´se muito para
além do reconhecimento, sempre necessário, destas situações pessoais. Põe´se
também no plano cultural, social e político, onde apresenta o seu aspecto mais
subversivo e perturbador na tendência, cada vez mais largamente compartilhada,
de interpretar os mencionados crimes contra a vida como legítimas expressões da
liberdade individual, que hão´de ser reconhecidas e protegidas como verdadeiros
e próprios direitos. Chega assim a uma viragem de trágicas consequências, um
longo processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o conceito de «
direitos humanos » — como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a
qualquer Constituição e legislação dos Estados —, incorre hoje numa estranha
contradição: precisamente numa época em que se proclamam solenemente os
direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o
próprio direito à vida é praticamente negado e espezinhado, particularmente nos
momentos mais emblemáticos da existência, como são o nascer e o morrer. Por um
lado, as várias declarações dos direitos do homem e as múltiplas iniciativas
que nelas se inspiram, indicam a consolidação a nível mundial de uma
sensibilidade moral mais diligente em reconhecer o valor e a dignidade de cada
ser humano enquanto tal, sem qualquer distinção de raça, nacionalidade,
religião, opinião política, estrato social. Por outro lado, a estas nobres
proclamações contrapõem´se, infelizmente nos factos, a sua trágica negação.
Esta é ainda mais desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente porque
se realiza numa sociedade que faz da afirmação e tutela dos direitos humanos o
seu objectivo principal e, conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de
acordo essas repetidas afirmações de princípio com a contínua multiplicação e a
difusa legitimação dos atentados à vida humana? Como conciliar estas
declarações com a recusa do mais débil, do mais carenciado, do idoso, daquele
que acaba de ser concebido? Estes atentados encaminham´se exactamente na
direcção contrária à do respeito pela vida e representam uma ameaça frontal a
toda a cultura dos direitos do homem. É uma ameaça capaz, em última análise, de
pôr em risco o próprio significado da convivência democrática: de sociedade de
« con´viventes », as nossas cidades correm o risco de passar a sociedade de
excluídos, marginalizados, irradiados e suprimidos. Se depois o olhar se alarga
ao horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos direitos das pessoas
e dos povos, verificada em altas reuniões internacionais, se reduz a um estéril
exercício retórico, se lá não é desmascarado o egoísmo dos países ricos que
fecham aos países pobres o acesso ao desenvolvimento ou o condicionam a
proibições absurdas de procriação, contrapondo o progresso ao homem? Porventura
não é de pôr em discussão os próprios modelos económicos, adoptados pelos
Estados frequentemente também por pressões e condicionamentos de carácter
internacional, que geram e alimentam situações de injustiça e violência, nas
quais a vida humana de populações inteiras fica degradada e espezinhada?
19. Onde estão as raízes de uma contradição tão paradoxal?
Podemo´las individuar em avaliações globais de ordem cultural e moral, a
começar daquela mentalidade que, exasperando e até deformando o conceito de subjectividade,
só reconhece como titular de direitos quem se apresente com plena ou, pelo
menos, incipiente autonomia e esteja fora da condição de total dependência dos
outros. Mas, como conciliar tal impostação com a exaltação do homem enquanto
ser « não´disponível »? A teoria dos direitos humanos funda´se precisamente na
consideração do facto de o homem, ao contrário dos animais e das coisas, não
poder estar sujeito ao domínio de ninguém. Deve´se acenar ainda àquela lógica
que tende a identificar a dignidade pessoal com a capacidade de comunicação
verbal e explícita e, em todo o caso, experimentável. Claro que, com tais
pressupostos, não há espaço no mundo para quem, como o nascituro ou o doente
terminal, é um sujeito estruturalmente débil, parece totalmente à mercê de
outras pessoas e radicalmente dependente delas, e sabe comunicar apenas
mediante a linguagem muda de uma profunda simbiose de afectos. Assim a força
torna´se o critério de decisão e de acção, nas relações interpessoais e na
convivência social. Mas isto é precisamente o contrário daquilo que,
historicamente, quis afirmar o Estado de direito, como comunidade onde as «
razões da força » são substituídas pela « força da razão ». A outro nível, as
raízes da contradição que se verifica entre a solene afirmação dos direitos do
homem e a sua trágica negação na prática, residem numa concepção da liberdade
que exalta o indivíduo de modo absoluto e não o predispõe para a solidariedade,
o pleno acolhimento e serviço do outro. Se é certo que, por vezes, a supressão
da vida nascente ou terminal aparece também matizada com um sentido equivocado
de altruísmo e de compaixão humana, não se pode negar que tal cultura de morte,
no seu todo, manifesta uma concepção da liberdade totalmente individualista que
acaba por ser a liberdade dos « mais fortes » contra os débeis, destinados a
sucumbir. Precisamente neste sentido, se pode interpretar a resposta de Caim à
pergunta do Senhor « onde está Abel, teu irmão? »: « Não sei dele. Sou,
porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9). Sim, todo o homem é « guarda do
seu irmão », porque Deus confia o homem ao homem. E é tendo em vista também tal
entrega que Deus dá a cada homem a liberdade, que possui uma dimensão
relacional essencial. Trata´se de um grande dom do Criador, quando colocada
como deve ser ao serviço da pessoa e da sua realização mediante o dom de si e o
acolhimento do outro; quando, pelo contrário, a liberdade é absolutizada em
chave individualista, fica esvaziada do seu conteúdo originário e contestada na
sua própria vocação e dignidade. Mas há um aspecto ainda mais profundo a
sublinhar: a liberdade renega´se a si mesma, autodestrói´se e predispõe´se à
eliminação do outro, quando deixa de reconhecer e respeitar a sua ligação
constitutiva com a verdade. Todas as vezes que a razão humana, querendo
emancipar´se de toda e qualquer tradição e autoridade, se fecha até às
evidências primárias de uma verdade objectiva e comum, fundamento da vida
pessoal e social, a pessoa acaba por assumir como única e indiscutível referência
para as próprias decisões, não já a verdade sobre o bem e o mal, mas apenas a
sua subjectiva e volúvel opinião ou, simplesmente, o seu interesse egoísta e o
seu capricho.
20. Nesta concepção da liberdade, a convivência social fica profundamente
deformada. Se a promoção do próprio eu é vista em termos de autonomia absoluta,
inevitavelmente chega´se à negação do outro, visto como um inimigo de quem
defender´se. Deste modo, a sociedade torna´se um conjunto de indivíduos,
colocados uns ao lado dos outros mas sem laços recíprocos: cada um quer
afirmar´se independentemente do outro, mais, quer fazer prevalecer os seus
interesses. Todavia, na presença de análogos interesses da parte do outro, terá
de se render a procurar qualquer forma de compromisso, se se quer que, na
sociedade, seja garantido a cada um o máximo de liberdade possível. Deste modo,
diminui toda a referência a valores comuns e a uma verdade absoluta para todos:
a vida social aventura´se pelas areias movediças de um relativismo total.
Então, tudo é convencional, tudo é negociável: inclusivamente o primeiro dos
direitos fundamentais, o da vida. É aquilo que realmente acontece, mesmo no
âmbito mais especificamente político e estatal: o primordial e inalienável
direito à vida é posto em discussão ou negado com base num voto parlamentar ou
na vontade de uma parte — mesmo que seja maioritária — da população. É o
resultado nefasto de um relativismo que reina incontestado: o próprio « direito
» deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável
dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Deste modo e
para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um
substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a « casa comum », onde todos
podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e transforma´se num
Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos,
desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de uma utilidade
pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns. Tudo parece
acontecer no mais firme respeito da legalidade, pelo menos quando as leis, que
permitem o aborto e a eutanásia, são votadas segundo as chamadas regras
democráticas. Na verdade, porém, estamos perante uma mera e trágica aparência
de legalidade, e o ideal democrático, que é verdadeiramente tal apenas quando
reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana, é atraiçoado nas suas
próprias bases: « Como é possível falar ainda de dignidade de toda a pessoa
humana, quando se permite matar a mais débil e a mais inocente? Em nome de qual
justiça se realiza a mais injusta das discriminações entre as pessoas,
declarando algumas dignas de ser defendidas, enquanto a outras esta dignidade é
negada? ».16 Quando se verificam tais condições, estão já desencadeados aqueles
mecanismos que levam à dissolução da convivência humana autêntica e à
desagregação da própria realidade estatal. Reivindicar o direito ao aborto, ao
infanticídio, à eutanásia, e reconhecê´lo legalmente, equivale a atribuir à
liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder
absoluto sobre os outros e contra os outros. Mas isto é a morte da verdadeira
liberdade: « Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é
escravo do pecado » (Jo 8, 34).
« Obrigado a ocultar´me longe da tua face » (Gn 4, 14): o eclipse do sentido de
Deus e do homem
21. Quando se procuram as raízes mais profundas da luta entre a « cultura da
vida » e a « cultura da morte », não podemos deter´nos na noção perversa de
liberdade acima referida. É necessário chegar ao coração do drama vivido pelo
homem contemporâneo: o eclipse do sentido de Deus e do homem, típico de um
contexto social e cultural dominado pelo secularismo que, com os seus
tentáculos invasivos, não deixa às vezes de pôr à prova as próprias comunidades
cristãs. Quem se deixa contagiar por esta atmosfera, entra facilmente na
voragem de um terrível círculo vicioso: perdendo o sentido de Deus, tende´se a
perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida; por sua vez,
a sistemática violação da lei moral, especialmente na grave matéria do respeito
da vida humana e da sua dignidade, produz uma espécie de ofuscamento
progressivo da capacidade de enxergar a presença vivificante e salvífica de
Deus. Podemos, mais uma vez, inspirar´nos na narração da morte de Abel
provocada pelo seu irmão. Depois da maldição infligida por Deus a Caim, este
dirige´se ao Senhor dizendo: « A minha culpa é grande demais para obter perdão.
Expulsas´me hoje desta terra;obrigado a ocultar´me longe da tua face, terei de
andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar´me matar´me´á »
(Gn 4, 13´14). Caim pensa que o seu pecado não poderá obter perdão do Senhor e
que o seu destino inevitável será « ocultar´se longe » d´Ele. Se Caim chega a
confessar que a sua culpa é « grande demais », é por saber que se encontra
diante de Deus e do seu justo juízo. Na realidade, só diante do Senhor é que o
homem pode reconhecer o seu pecado e perceber toda a sua gravidade. Tal foi a
experiência de David, que, depois « de ter feito o que é mal aos olhos do
Senhor » e de ser repreendido pelo profeta Natã (cf. 2 Sam 11´12), exclama: «
Eu reconheço os meus pecados, e as minhas culpas tenho´as sempre diante de mim.
Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos » (Sal
5150, 5´6).
22. Por isso, quando declina o sentido de Deus, também o sentido do homem fica
ameaçado e adulterado, como afirma de maneira lapidar o Concílio Vaticano II: «
Sem o Criador, a criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece Deus, a
própria criatura se obscurece ».17 O homem deixa de conseguir sentir´se como «
misteriosamente outro » face às diversas criaturas terrenas; considera´se
apenas como um de tantos seres vivos, como um organismo que, no máximo, atingiu
um estado muito elevado de perfeição. Fechado no estreito horizonte da sua
dimensão física, reduz´se de certo modo a « uma coisa », deixando de captar o
carácter « transcendente » do seu « existir como homem ». Deixa de considerar a
vida como um dom esplêndido de Deus, uma realidade « sagrada » confiada à sua
responsabilidade e, consequentemente, à sua amorosa defesa, à sua « veneração
». A vida torna´se simplesmente « uma coisa », que ele reivindica como sua
exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e manipular. Assim, diante
da vida que nasce e da vida que morre, o homem já não é capaz de se deixar
interrogar sobre o sentido mais autêntico da sua existência, assumindo com
verdadeira liberdade estes momentos cruciais do próprio « ser ». Preocupa´se
somente com o « fazer », e, recorrendo a qualquer forma de tecnologia, moureja
a programar, controlar e dominar o nascimento e a morte. Estes acontecimentos,
em vez de experiências primordiais que requerem ser « vividas », tornam´se
coisas que se pretende simplesmente « possuir » ou « rejeitar ». Aliás, uma vez
excluída a referência a Deus, não surpreende que o sentido de todas as coisas
resulte profundamente deformado, e a própria natureza, já não vista como mater
1, fique reduzida a « material » sujeito a todas as manipulações. A isto parece
conduzir certa mentalidade técnico´científica, predominante na cultura
contemporânea, que nega a ideia mesma de uma verdade própria da criação que se
há´de reconhecer, ou de um desígnio de Deus sobre a vida que temos de
respeitar. E isto não é menos verdade, quando a angústia pelos resultados de
tal « liberdade sem lei » induz alguns à exigência oposta de uma « lei sem
liberdade », como sucede, por exemplo, em ideologias que contestam a legitimidade
de qualquer forma de intervenção sobre a natureza, como que em nome de uma sua
« divinização », o que uma vez mais menospreza a sua dependência do desígnio do
Criador. Na realidade, vivendo « como se Deus não existisse », o homem perde o
sentido não só do mistério de Deus, mas também do mistério do mundo, e do
mistério do seu próprio ser.
23. O eclipse do sentido de Deus e do homem conduz inevitavelmente ao
materialismo prático, no qual prolifera o individualismo, o utilitarismo e o
hedonismo. Também aqui se manifesta a validade perene daquilo que escreve o
Apóstolo: « Como não procuraram ter de Deus conhecimento perfeito, entregou´os
Deus a um sentimento pervertido, a fim de que fizessem o que não convinha (Rm
1, 28). Assim os valores do ser ficam substituídos pelos do ter. O único fim
que conta, é a busca do próprio bem´estar material. A chamada « qualidade de
vida » é interpretada prevalente ou exclusivamente como eficiência económica,
consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física, esquecendo as dimensões
mais profundas da existência, como são as interpessoais, espirituais e
religiosas. Em tal contexto, o sofrimento — peso inevitável da existência
humana mas também factor de possível crescimento pessoal —, é « deplorado »,
rejeitado como inútil, ou mesmo combatido como mal a evitar sempre e por todos
os modos. Quando não é possível superá´lo e a perspectiva de um bem´estar, pelo
menos futuro, se desvanece, parece então que a vida perdeu todo o significado e
cresce no homem a tentação de reivindicar o direito à sua eliminação. Sempre no
mesmo horizonte cultural, o corpo deixa de ser visto como realidade tipicamente
pessoal, sinal e lugar da relação com os outros, com Deus e com o mundo. Fica
reduzido à dimensão puramente material: é um simples complexo de órgãos,
funções e energias, que há´de ser usado segundo critérios de mero prazer e
eficiência. Consequentemente, também a sexualidade fica despersonalizada e
instrumentalizada: em lugar de ser sinal, lugar e linguagem do amor, ou seja, do
dom de si e do acolhimento do outro na riqueza global da pessoa, torna´se cada
vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação
egoísta dos próprios desejos e instintos. Deste modo se deforma e falsifica o
conteúdo original da sexualidade humana, e os seus dois significados — unitivo
e procriativo —, inerentes à própria natureza do acto conjugal, acabam
artificialmente separados: assim a união é atraiçoada e a fecundidade fica
sujeita ao arbítrio do homem e da mulher. A geração torna´se, então, o «
inimigo » a evitar no exercício da sexualidade: se aceite, é´o apenas porque
exprime o próprio desejo ou mesmo a determinação de ter o filho « a todo o
custo », e não já porque significa total acolhimento do outro e, por
conseguinte, abertura à riqueza de vida que o filho é portador. Na perspectiva
materialista até aqui descrita, as relações interpessoais experimentam um grave
empobrecimento. E os primeiros a sofrerem os danos são a mulher, a criança, o
enfermo ou atribulado, o idoso. O critério próprio da dignidade pessoal — isto
é, o do respeito, do altruísmo e do serviço — é substituído pelo critério da
eficiência, do funcional e da utilidade: o outro é apreciado não por aquilo que
« é », mas por aquilo que « tem, faz e rende ». É a supremacia do mais forte
sobre o mais fraco.
24. É no íntimo da consciência moral que se consuma o eclipse do sentido de
Deus e do homem, com todas as suas múltiplas e funestas consequências sobre a
vida. Em questão está, antes de mais, a consciência de cada pessoa, onde esta,
na sua unicidade e irrepetibilidade, se encontra a sós com Deus.18 Mas, em
certo sentido, é posta em questão também a « consciência moral » da sociedade:
esta é, de algum modo, responsável, não só porque tolera ou favorece
comportamentos contrários à vida, mas também porque alimenta a « cultura da
morte », chegando a criar e consolidar verdadeiras e próprias « estruturas de
pecado » contra a vida. A consciência moral, tanto do indivíduo como da
sociedade, está hoje — devido também à influência invasora de muitos meios de
comunicação social —, exposta a um perigo gravíssimo e mortal: o perigo da
confusão entre o bem e o mal, precisamente no que se refere ao fundamental
direito à vida. Uma parte significativa da sociedade actual revela´se tristemente
semelhante àquela humanidade que Paulo descreve na Carta aos Romanos. É feita «
de homens que sufocam a verdade na injustiça » (1, 18): tendo renegado Deus e
julgando poder construir a cidade terrena sem Ele, « desvaneceram nos seus
pensamentos », pelo que « se obscureceu o seu insensato coração » (1, 21); «
considerando´se sábios, tornaram´se néscios » (1, 22), fizeram´se autores de
obras dignas de morte, e « não só as cometem, como também aprovam os que as
praticam » (1, 32). Quando a consciência, esse luminoso olhar da alma (cf. Mt
6, 22´23), chama « bem ao mal e mal ao bem » (Is 5, 20), está já no caminho da
sua degeneração mais preocupante e da mais tenebrosa cegueira moral. Mas todos
esses condicionalismos e tentativas de impor silêncio não conseguem sufocar a
voz do Senhor, que ressoa na consciência de cada homem: é sempre deste sacrário
íntimo da consciência que pode recomeçar um novo caminho de amor, de
acolhimento e de serviço à vida humana.
« Aproximaste´vos do sangue de aspersão » (cf. Heb 12, 22.24): sinais de
esperança e convite ao compromisso
25. « A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim! » (Gn 4, 10). Não é
só a voz do sangue de Abel, o primeiro inocente morto, a gritar por Deus, fonte
e defensor da vida. Também o sangue de todos os outros homens, assassinados
depois de Abel, é voz que brada ao Senhor. De uma forma absolutamente única,
porém, grita a Deus a voz do sangue de Cristo, de quem Abel, na sua inocência,
é figura profética, como nos recorda o autor da Carta aos Hebreus: « Vós,
porém, aproximaste´vos do monte de Sião, da cidade do Deus vivo, (...) de
Jesus, o Mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão que fala melhor
do que o de Abel » (12, 22.24). É o sangue de aspersão. Símbolo e sinal
prefigurador dele fora o sangue dos sacrifícios da Antiga Aliança, com os quais
Deus exprimia a vontade de comunicar a sua vida aos homens, purificando´os e
consagrando´os (cf. Ex 24, 8; Lv 17, 11). Agora em Cristo, tudo isso se cumpre
e realiza: o d´Ele é o sangue de aspersão que redime, purifica e salva; é o
sangue do Mediador da Nova Aliança, « derramado por muitos, em remissão dos
pecados » (Mt 26, 28). Este sangue, que brota do peito trespassado de Cristo na
Cruz (cf. Jo 19, 34), « fala melhor » do que o sangue de Abel; aquele, com
efeito, exprime e exige uma « justiça » mais profunda, mas sobretudo implora
misericórdia,19 torna´se junto do Pai intercessão pelos irmãos (cf. Heb 7, 25),
é fonte de perfeita redenção e dom de vida nova. O sangue de Cristo, ao mesmo
tempo que revela a grandeza do amor do Pai, manifesta também como o homem é
precioso aos olhos de Deus e quão inestimável seja o valor da sua vida. Isto
mesmo nos recorda o apóstolo Pedro: « Sabei que fostes resgatados da vossa vã
maneira de viver, recebida por tradição dos vossos pais, não a preço de coisas
corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como de um
cordeiro imaculado e sem defeito algum » (1 Ped 1, 18´19). Contemplando
precisamente o sangue precioso de Cristo, sinal da sua doação de amor (cf. Jo
13, 1), o crente aprende a reconhecer e a apreciar a dignidade quase divina de
cada homem, e pode exclamar com incessante e agradecida admiração: « Que grande
valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se ´mereceu tão grande Redentor´ (Precónio
Pascal), se ´Deus deu o seu Filho´, para que ele, o homem, ´não pereça, mas
tenha a vida eterna´ (cf. Jo 3, 16) »! 20 Além disso, o sangue de Cristo revela
ao homem que a sua grandeza e, consequentemente, a sua vocação consiste no dom
sincero de si. Precisamente porque é derramado como dom de vida, o sangue de
Jesus já não é sinal de morte, de separação definitiva dos irmãos, mas
instrumento de uma comunhão que é riqueza de vida para todos. Quem, no
sacramento da Eucaristia, bebe este sangue e permanece em Jesus (cf. Jo 6, 56),
vê´se associado ao mesmo dinamismo de amor e doação de vida d´Ele, para levar à
plenitude a primordial vocação ao amor que é própria de cada homem (cf. Gn 1,
27; 2, 18´24). É, enfim, do sangue de Cristo que todos os homens recebem a
força para se empenharem a favor da vida. Precisamente esse sangue é o motivo
mais forte de esperança, melhor é o fundamento da certeza absoluta de que,
segundo o desí´ gnio de Deus, a vitória será da vida. « Nunca mais haverá morte
» — exclama a voz poderosa que sai do trono de Deus na Jerusalém celeste (Ap
21, 4). E S. Paulo assegura´nos que a vitória actual sobre o pecado é sinal e
antecipação da vitória definitiva sobre a morte, quando « se cumprirá o que
está escrito: ´A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua
vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?´ » (1 Cor 15, 54´55).
26. Na realidade, não faltam prenúncios desta vitória nas nossas sociedade e
culturas, apesar de marcadas tão fortemente pela « cultura da morte ». Dar´se´ia,
por conseguinte, uma imagem unilateral que poderia induzir a um estéril
desânimo, se a denúncia das ameaças contra a vida não fosse acompanhada pela
apresentação dos sinais positivos, operantes na actual situação da humanidade.
Infelizmente, estes sinais positivos têm com frequência dificuldade em
manifestar´se e ser reconhecidos, talvez também porque não recebem adequada
atenção dos meios de comunicação social. Mas quantas iniciativas de ajuda e
amparo às pessoas mais débeis e indefesas surgiram — e continuam a surgir — na
comunidade cristã e na sociedade, a nível local, nacional e internacional, por
obra de indivíduos, grupos, movimentos e organizações de vário género! Muitos
são ainda os esposos que, com generosa responsabilidade, sabem acolher os filhos
como « o maior dom do matrimónio ».21 E não faltam famílias que, para além do
seu serviço quotidiano à vida, sabem também abrir´se ao acolhimento de crianças
abandonadas, de adolescentes e jovens em dificuldade, de pessoas inválidas, de
idosos que vivem na solidão. Numerosos são os centros de ajuda à vida ou
instituições análogas, dinamizadas por pessoas e grupos que, com admirável
dedicação e sacrifício, oferecem apoio moral e material às mães em dificuldade,
tentadas a recorrer ao aborto. Surgem e multiplicam´se ainda os grupos de
voluntários, empenhados em dar hospitalidade a quem não tem família,
encontra´se em condições de particular dificuldade ou precisa de reencontrar um
ambiente educativo que o ajude a superar hábitos destrutivos e recuperar o sentido
da vida. A medicina, promovida com grande empenho por investigadores e
profissionais, prossegue no seu esforço por encontrar remédios cada vez mais
eficazes: resultados, antes totalmente impensáveis e capazes de abrir
promissoras perspectivas, são hoje obtidos em favor da vida nascente, das
pessoas que sofrem e dos doentes em fase grave ou terminal. Várias entidades e
organizações se mobilizam para levar aos países mais atingidos pela miséria e
por doenças crónicas, tais benefícios da medicina mais avançada. Do mesmo modo,
associações nacionais e internacionais de médicos movem´se rapidamente, para
prestar socorro às populações provadas por calamidades naturais, epidemias ou
guerras. Apesar de estar ainda longe da sua plena consecução uma verdadeira justiça
internacional na partilha dos recursos médicos, como não reconhecer, nos passos
até agora dados, o sinal de crescente solidariedade entre os povos, de
apreciável sensibilidade humana e moral, e de maior respeito pela vida?
27. Face a legislações que permitiram o aborto e a tentativas, aqui e além
concretizadas, de legalizar a eutanásia, surgiram em todo o mundo movimentos e
iniciativas de sensibilização social a favor da vida. Quando estes movimentos,
de acordo com a sua inspiração autêntica, agem com determinada firmeza mas sem
recorrer à violência, então eles favorecem uma tomada de consciência mais ampla
e profunda do valor da vida, fazem apelo e realizam um empenho mais decisivo em
sua defesa. Como não recordar, além disso, todos aqueles gestos diários de
acolhimento, de sacrifício, de cuidado desinteressado, que um número
incalculável de pessoas realiza com amor nas famílias, nos hospitais, nos
orfanatos, nos lares da terceira idade, e noutros centros ou comunidades em
defesa da vida? A Igreja, deixando´se guiar pelo exemplo de Jesus, « bom
samaritano » (cf. Lc 10, 29´37), e sustentada pela sua força, sempre esteve em
primeira fila nestes confins da caridade: muitos dos seus filhos e filhas,
especialmente religiosas e religiosos, em formas antigas e novas, consagraram e
continuam a consagrar a sua vida a Deus, dando´a por amor do próximo mais débil
e necessitado. Estes gestos constroem em profundidade aquela « civilização do
amor e da vida », sem a qual a existência das pessoas e da sociedade perde o
seu significado humano mais autêntico. Ainda que ninguém os notasse, e ficassem
escondidos aos olhos dos outros, a fé assegura que o Pai, « que vê no segredo »
(Mt 6, 4), saberá não só recompensá´los, mas também torná´los desde já fecundos
de frutos duradouros para todos. Entre os sinais de esperança, há que incluir
ainda o crescimento, em muitos estratos da opinião pública, de uma nova
sensibilidade cada vez mais contrária à guerra como instrumento de solução dos
conflitos entre os povos, e sempre mais inclinada à busca de instrumentos
eficazes, mas « não violentos », para bloquear o agressor armado. No mesmo
horizonte, se coloca igualmente a aversão cada vez mais difusa na opinião
pública à pena de morte — mesmo vista só como instrumento de « legítima defesa
» social —, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna
dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna
inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade
de se redimir. Também ocorre saudar favoravelmente a atenção crescente à
qualidade de vida e à ecologia, que se regista sobretudo nas sociedades mais
avançadas, nas quais os anseios das pessoas já não estão concentrados tanto
sobre os problemas da sobrevivência como sobretudo na procura de um
melhoramento global das condições de vida. Particularmente significativo é o
despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição e o desenvolvimento cada
vez maior da bioética favoreceu a reflexão e o diálogo — entre crentes e não
crentes, como também entre crentes de diversas religiões — sobre problemas
éticos, mesmo fundamentais, que dizem respeito à vida do homem.
28. Este horizonte de luzes e sombras deve tornar´nos, a todos, plenamente
conscientes de que nos encontramos perante um combate gigantesco e dramático
entre o mal e o bem, a morte e a vida, a « cultura da morte » e a « cultura da
vida ». Encontramo´nos não só « diante », mas necessariamente « no meio » de
tal conflito: todos estamos implicados e tomamos parte nele, com a responsabilidade
iniludível de decidir incondicionalmente a favor da vida. Também para nós,
ressoa claro e forte o convite de Moisés: « Vê, ofereço´te hoje, de um lado, a
vida e o bem; do outro, a morte e o mal. (...) Coloco diante de ti a vida e a
morte, a felicidade e a maldição. Escolhe a vida, e então viverás com toda a
tua posteridade » (Dt 30, 15.19). É um convite muito apropriado para nós,
chamados cada dia a ter de escolher entre a « cultura da vida » e a « cultura
da morte ». Mas o apelo do Deuteronómio é ainda mais profundo, porque nos chama
a uma opção especificamente religiosa e moral. Trata´se de dar à própria
existência uma orientação fundamental, vivendo com fidelidade e coerência a Lei
do Senhor: « Recomendo´te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus
caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. (...)
Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade. Ama o Senhor, teu
Deus, escuta a sua voz e permanece´Lhe fiel, porque é Ele a tua vida e a
longevidade dos teus dias » (30, 16.19´20). A decisão incondicional a favor da
vida atinge em plenitude o seu significado religioso e moral, quando brota, é
plasmada e alimentada pela fé em Cristo. Nada ajuda tanto a enfrentar
positivamente o conflito entre a morte e a vida, no qual estamos imersos, como
a fé no Filho de Deus que Se fez homem e veio habitar entre os homens, « para
que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10): é a fé no
Ressuscitado, que venceu a morte; é a fé no sangue de Cristo « que fala melhor
do que o de Abel » (Heb 12, 24). Assim, com a luz e a força desta fé, perante
os desafios da situação actual, a Igreja toma consciência mais viva da graça e
da responsabilidade, que lhe vêm do seu Senhor, de anunciar, celebrar e servir
o Evangelho da vida.
CAPÍTULO II
VIM PARA QUE TENHAM VIDA A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
« A vida manifestou´se, nós vimo´la » (1 Jo 1, 2): o olhar voltado para Cristo,
« o Verbo da vida »
29. Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida, presentes no mundo
contemporâneo, poder´se´ia ficar como que dominado por um sentido de impotência
insuperável: jamais o bem poderá ter força para vencer o mal! Este é o momento
em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes, é chamado a professar, com
humildade e coragem, a própria fé em Jesus Cristo, « o Verbo da vida » (1 Jo 1,
1). O Evangelho da vida não é uma simples reflexão, mesmo se original e
profunda, sobre a vida humana; nem é apenas um preceito destinado a
sensibilizar a consciência e provocar mudanças significativas na sociedade;
tampouco é a ilusória promessa de um futuro melhor. O Evangelho da vida é uma
realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria pessoa de
Jesus. Ao apóstolo Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta´Se com estas palavras:
« Eu sou o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14, 6). A mesma identidade foi
referida a Marta, irmã de Lázaro: « Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em
Mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em Mim, não
morrerá jamais » (Jo 11, 25´26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade,
recebe a vida do Pai (cf. Jo 5, 26) e veio estar com os homens, para os tornar
participantes deste dom: « Eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância » (Jo 10, 10). Deste modo, a possibilidade de « conhecer » a verdade
plena sobre o valor da vida humana é oferecida ao homem pela palavra, a acção e
a própria pessoa de Jesus; e desta « fonte », vem´lhe, de forma especial, a
capacidade de « praticar » perfeitamente tal verdade (cf. Jo 3, 21), ou seja, a
capacidade de assumir e realizar em plenitude a responsabilidade de amar e
servir, de defender e promover a vida humana. Em Cristo, de facto, é anunciado
definitivamente e concedido plenamente aquele Evangelho da vida, que, oferecido
já na Revelação do Antigo Testamento e, antes ainda, de algum modo escrito no
próprio coração de cada homem e mulher, ressoa em toda a consciência « desde o
princípio », ou seja, desde a própria criação, de tal modo que, não obstante os
condicionalismos negativos do pecado, pode também ser conhecido nos seus traços
essenciais pela razão humana. Como escreve o Concílio Vaticano II, Cristo « com
toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais
e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o
envio do Espírito da verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho
divino a revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar das
trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna ».22
30. É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos novamente escutar
d´Ele « as palavras de Deus » (Jo 3, 34) e meditar o Evangelho da vida. O
sentido mais profundo e original desta meditação sobre a mensagem revelada
relativa à vida humana foi recolhido pelo apóstolo João, quando escreve, no
início da sua Primeira Carta: « O que era desde o princípio, o que ouvimos, o
que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam
acerca do Verbo da vida, — porque a vida manifestou´se, nós vimo´la, damos
testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos
foi manifestada — o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também
vós tenhais comunhão connosco » (1, 1´3). Então, a vida divina e eterna é
anunciada e comunicada em Jesus, « Verbo da vida ». Graças a este anúncio e a
este dom, a vida física e espiritual do homem, mesmo na sua fase terrena,
adquire plenitude de valor e significado: com efeito, a vida divina e eterna é
o fim, para o qual está orientado e chamado o homem que vive neste mundo.
Assim, o Evangelho da vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a
razão humana dizem acerca do valor da vida humana: acolhe´o, eleva´o e condu´lo
à sua plena realização.
« O Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem me salvou » (Ex 15,
2): a vida é sempre um bem
31. Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora preparada
já no Antigo Testamento. É sobretudo nos acontecimentos do Êxodo, fulcro da
experiência de fé do Antigo Testamento, que Israel descobre quão preciosa é aos
olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao extermínio, dado que sobre
todos os seus recém´nascidos do sexo masculino grava a ameaça de morte (cf. Ex
1, 15´22), o Senhor revela´Se´lhes como salvador, capaz de assegurar um futuro
a quem vive sem esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem precisa: a
sua vida não se acha à mercê de um faraó que a pode usar com despótico
arbítrio; mas, ao contrário, é objecto de um terno e intenso amor da parte de
Deus. A libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o reconhecimento de
uma dignidade indelével e o início de uma história nova, na qual caminham lado
a lado a descoberta de Deus e a descoberta de si próprio. A experiência do Êxodo
é constitutiva e paradigmática. Lá Israel compreendeu que, todas as vezes que
estiver ameaçado na sua existência, terá apenas de recorrer a Deus com renovada
confiança para encontrar n´Ele eficaz assistência: « Formei´te, tu és meu
servo; Israel, não te posso esquecer » (Is 44, 21). Assim, enquanto reconhece o
valor da própria existência como povo, Israel avança também na percepção do
sentido e valor da vida como tal. É uma reflexão que se desenvolve
particularmente nos Livros Sapienciais, partindo da experiência quotidiana da
precariedade da vida e da consciência das ameaças que a tramam. Diante das
contradições da existência, a fé é chamada a dar uma resposta. É sobretudo o
problema da dor, o que mais pressiona a fé e a põe à prova. Como não
identificar o gemido universal do homem na meditação do Livro de Job? O
inocente esmagado pelo sofrimento é compreensivelmente levado a interrogar´se:
« Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida àquele cuja alma está
desconsolada, os quais esperam a morte sem que ela venha e a procuram com mais
ardor que um tesouro? » (3, 20´21). Mas, mesmo na escuridão mais densa, a fé
encaminha para o reconhecimento confiante e adorador do « mistério »: « Sei que
podes tudo e que nada Te é impossível » (Job 42, 2). Progressivamente a
Revelação faz ver, com uma clareza cada vez maior, o germe de vida imortal
posto pelo Criador no coração dos homens: « Todas as coisas que Deus fez são
boas no seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração inteira, sem que
ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro » (Ecl 3, 11).
Este germe de totalidade e plenitude anseia por se manifestar no amor e
realizar´se, por dom gratuito de Deus, na participação da sua vida eterna. «
Pela fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças » (Act 3, 16): na
precariedade da existência humana, Jesus realiza plenamente o sentido da vida
32. A experiência do povo da Aliança renova´se em todos os « pobres » que
encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, « amante da vida » (Sab 11, 26), já tinha
tranquilizado Israel no meio dos perigos, assim agora o Filho de Deus anuncia a
quantos se sentem ameaçados e limitados na própria existência, que a sua vida é
um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor. « Os cegos vêem, os coxos
andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a boa
nova é anunciada aos pobres » (Lc 7, 22). Com estas palavras do profeta Isaías
(35, 5´6; 61, 1), Jesus apresenta o significado da sua própria missão: deste
modo, aqueles que sofrem por causa de uma existência de qualquer modo «
limitada » ouvem d´Ele a boa nova do interesse que Deus nutre por eles e têm a
confirmação de que também a sua vida é um dom zelosamente guardado nas mãos do
Pai (cf. Mt 6, 25´34). Quem se sente particularmente interpelado pela pregação
e acção de Jesus, são os « pobres ». As multidões de doentes e marginalizados,
que O seguem e procuram (cf. Mt 4, 23´25), encontram na sua palavra e nos seus
gestos a revelação do valor imenso da vida deles e de quão fundados sejam os seus
anseios de salvação. Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas
origens. Ao anunciar Jesus como Aquele que « andou de lugar em lugar, fazendo o
bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com
Ele » (Act 10, 38), ela sabe que é portadora de uma mensagem de salvação que
ressoa, com toda a sua novidade, precisamente nas situações de miséria e
pobreza da vida humana. Assim faz Pedro, ao curar o paralítico que estava
colocado diariamente junto da porta « Formosa » do templo de Jerusalém a pedir
esmola: « Não tenho ouro nem prata, mas vou dar´te o que tenho: Em nome de
Jesus Cristo Nazareno, levanta´te e anda! » (Act 3, 6). Pela fé em Jesus, «
Príncipe da vida » (Act 3, 15), a vida que ali jaz abandonada e suplicante, reencontra
a consciência de si mesma e a sua plena dignidade. A palavra e os gestos de
Jesus e da sua Igreja não dizem respeito apenas a quem está enfermo, aflito
pela provação, ou é vítima das diversas formas de marginalização social. Vão
mais fundo, tocando o próprio sentido da vida de cada homem nas suas dimensões
morais e espirituais. Só quem reconhece que a própria vida está tocada pelas
mazelas do pecado, pode reencontrar a verdade e a autenticidade da própria
existência junto de Jesus Salvador, segundo as suas próprias palavras: « Não
são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não
foram os justos, mas os pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento » (Lc 5,
31´32). Pelo contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor da parábola
evangélica julga poder assegurar a própria vida com a posse de simples bens
materiais, na realidade engana´se. A vida está´lhe escapando, e bem depressa
ficará privado dela sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: «
Insensato! Nesta mesma noite, pedir´te´ão a tua alma; e o que acumulaste para
quem será? » (Lc 12, 20).
33. Na vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra´se esta « dialéctica
» singular entre a experiência da contingência da vida humana e a afirmação do
seu valor. De facto, a precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu
nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento dos justos, que se unem ao
« sim » pronto e feliz de Maria (cf. Lc 1, 38). Mas logo aparece também a
rejeição por parte de um mundo que se torna hostil e procura o Menino « para O
matar » (Mt 2, 13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do
mistério desta vida que entra no mundo: « não havia para eles lugar na
hospedaria » (Lc 2, 7). Exactamente por este contraste — as ameaças e
inseguranças, por um lado, e o poder do dom de Deus, pelo outro — resplandece
com maior força a glória que irradia da casa de Nazaré e da manjedoura de
Belém: esta vida que nasce é salvação para a humanidade inteira (cf. Lc 2,
10´11). As contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por Jesus: «
sendo rico, fez´Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza » (2 Cor
8, 9). Esta pobreza, de que fala Paulo, não é apenas despojamento dos
privilégios divinos, mas também partilha das condições mais humildes e
precárias da vida humana (cf. Fil 2, 6´7). Jesus vive esta pobreza ao longo de
toda a sua vida até ao momento culminante da cruz: « Humilhou´Se a Si mesmo,
feito obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe
deu um nome que está acima de todo o nome » (Fil 2, 8´9). É precisamente na sua
morte que Jesus revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto a sua doação
na cruz se torna fonte de vida nova para todos os homens (cf. Jo 12, 32). Neste
peregrinar por entre as contradições e a própria perda da vida, Jesus é guiado
pela certeza de que ela está nas mãos do Pai. Por isso, na cruz pode dizer´Lhe:
« Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito » (Lc 23, 46), isto é, a minha
vida. Verdadeiramente grande é o valor da vida humana, se o Filho de Deus a
assumiu e fez dela o lugar onde se realiza a salvação para a humanidade
inteira!
« Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho » (Rm 8, 28´29): a
glória de Deus resplandece no rosto do homem
34. A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de experiência,
cuja razão profunda o homem é chamado a compreender. Por que motivo a vida é um
bem? Esta pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras
páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa
e original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele,
apesar de emparentado com o pó da terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19; Job 34, 15; Sal
103102, 14; 104103, 29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua
presença, vestígio da sua glória (cf. Gn 1, 26´27; Sal 8, 6). Isto mesmo quis
sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: « A glória de Deus é o
homem vivo ».23 Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes
na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da
própria realidade de Deus. Afirma´o o Livro do Génesis, na primeira narração
das origens, ao colocar o homem no vértice da actividade criadora de Deus, como
seu coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até à
criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o homem e tudo lhe
fica submetido: « Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os
animais que se movem na terra » (1, 28) — ordena Deus ao homem e à mulher.
Mensagem semelhante aparece também no outro relato das origens: « O Senhor
levou o homem e colocou´o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para o
guardar » (Gn 2, 15). Confirma´ ´se assim o primado do homem sobre as coisas:
estas estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade, enquanto por
nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que
reduzido ao estatuto de coisa. Na narração bíblica, a distinção entre o homem e
as demais criaturas é evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua criação
ser apresentada como fruto de uma especial decisão da parte de Deus, de uma
deliberação que consiste em estabelecer uma ligação particular e específica com
o Criador: « Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança » (Gn 1, 26). A
vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si
mesmo à sua criatura. Israel interrogar´se´á longamente acerca do sentido desta
ligação particular e específica do homem com Deus. O Livro de Ben´Sirá
reconhece que Deus, ao criar os homens, « revestiu´os da força conveniente e
fê´los à própria imagem » (17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só o
domínio sobre o mundo, mas também as faculdades espirituais mais específicas do
homem, como a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre: «
Encheu´os de saber e inteligência, e mostrou´lhes o bem e o mal » (Sir 17, 7).
A capacidade de alcançar a verdade e a liberdade são prerrogativas do homem
enquanto criatura feita à imagem do seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf.
Dt 32, 4). Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é « capaz de
conhecer e amar o seu Criador ».24 A vida que Deus dá ao homem, é muito mais do
que uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de vida; é germe de
uma existência que ultrapassa os próprios limites do tempo: « Deus criou o
homem para a incorruptibilidade, e fê´lo à imagem da sua própria natureza »
(Sab 2, 23).
35. Também o relato jahvista das origens exprime a mesma convicção. Esta antiga
narração fala de um sopro divino que éinsuflado no homem, para que este dê
entrada na vida: « O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou´lhe
pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou´se num ser vivo » (Gn 2,
7). A origem divina deste espírito de vida explica a perene insatisfação que
acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo Senhor e trazendo
em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende naturalmente para Ele.
Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar de fazer sua esta
afirmação de Santo Agostinho: « Criastes´nos para Vós, Senhor, e o nosso
coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós ».25 Como é eloquente aquela
insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como
única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20)! Somente a aparição da
mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf.
Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer
a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No
outro, homem ou mulher, reflecte´Se o próprio Deus, abrigo definitivo e
plenamente feliz de toda a pessoa. « Que é o homem para Vos lembrardes dele, o
filho do homem para dele cuidardes? » — interroga´se o Salmista (Sal 8, 5).
Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem; mas é
precisamente este contraste que faz sobressair a sua grandeza: « Pouco lhe
falta para que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes » (Sal 8,
6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador encontra o
seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio: « Terminou o
sexto dia, ficando concluída a criação do mundo com a formação daquela
obra´prima, o homem, que exerce o domínio sobre todos os seres vivos e é como
que o ápice do universo e a suprema beleza de todo o ser criado.
Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que o Senhor Se
repousou de toda a obra do mundo. Repousou´Se no íntimo do homem, repousou´Se
na sua mente e no seu pensamento; de facto, tinha criado o homem dotado de
razão, capaz de O imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças
celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: ´Sobre quem repousarei
senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?´ (Is 66, 1´2).
Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa que nela
encontra o seu repouso ».26 36. Infelizmente, este projecto maravilhoso de Deus
ficou ofuscado pela irrupção do pecado na história. Com o pecado, o homem
revolta´se contra o Criador, acabando por idolatrar as criaturas: « Veneraram a
criatura e prestaram´lhe culto de preferência ao Criador » (Rm 1, 25). Deste
modo, o ser humano não só deturpa a imagem de Deus em si mesmo, mas é tentado a
ofendê´la também nos outros, substituindo as relações de comunhão por atitudes
de desconfiança, indiferença, inimizade, até chegar ao ódio homicida. Quando
não se reconhece Deus como tal, atraiçoa´se o sentido profundo do homem e
prejudica´se a comunhão entre os homens. Na vida do homem, a imagem de Deus
volta a resplandecer e manifesta´se em toda a sua plenitude com a vinda do
Filho de Deus em carne humana: « Ele é a imagem do Deus invisível » (Col 1,
15), « o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância » (Heb 1, 3).
Ele é a imagem perfeita do Pai. O projecto de vida confiado ao primeiro Adão
encontra finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a desobediência de
Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus sobre a vida do homem e introduz a
morte no mundo, a obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se
derrama sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas do reino da
vida (cf. Rm 5, 12´21). Afirma o apóstolo Paulo: « O primeiro homem, Adão, foi
feito alma vivente; o último Adão é um espírito vivificante » (1 Cor 15, 45). A
todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é´lhes dada a plenitude da vida:
neles, a imagem divina é restaurada, renovada e levada à perfeição. Este é o
desígnio de Deus para os seres humanos: tornarem´se « conformes à imagem do seu
Filho » (Rm 8, 29). Só assim, no esplendor desta imagem, é que o homem pode ser
liberto da escravidão da idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e
reencontrar a sua identidade. « Quem crê em Mim, ainda que esteja morto viverá
» (Jo 11, 26): o dom da vida eterna 37. A vida que o Filho de Deus veio dar aos
homens, não se reduz meramente à existência no tempo. A vida, que desde sempre
está « n´Ele » e constitui « a luz dos homens » (Jo 1, 4), consiste em ser gerados
por Deus e participar na plenitude do seu amor: « A todos os que O receberam,
aos que crêem n´Ele, deu´lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles que
não nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem, mas sim
de Deus » (Jo 1, 12´13). Umas vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar,
simplesmente como « a vida »; e apresenta o ser gerado por Deus como condição
necessária para poder alcançar o fim para o qual o homem foi criado: « Quem não
nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus » (Jo 3, 3). O dom desta vida
constitui o objecto próprio da missão de Jesus; Ele « é Aquele que desce do Céu
e dá a vida ao mundo » (Jo 6, 33), de tal modo que pode afirmar com toda a
verdade: « Quem Me segue (...) terá a luz da vida » (Jo 8, 12). Outras vezes,
Jesus fala de « vida eterna », sem querer com o adjectivo aludir apenas a uma
perspectiva supratemporal. « Eterna » é a vida que Jesus promete e dá, porque é
plenitude de participação na vida do « Eterno ». Todo aquele que crê em Jesus e
vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3, 15; 6, 40), porque d´Ele
escuta as únicas palavras que revelam e infundem plenitude de vida à sua
existência; são as « palavras de vida eterna », que Pedro reconhece na sua
confissão de fé: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de
vida eterna; e nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus » (Jo 6,
68´69). O que seja essa vida eterna, declara´o Jesus quando se dirigiu ao Pai
na grande oração sacerdotal: « A vida eterna consiste nisto: que Te conheçam a
Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste » (Jo 17, 3).
Conhecer a Deus e ao seu Filho é acolher o mistério da comunhão de amor do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, na própria vida que se abre, já desde agora, à vida
eterna pela participação na vida divina. 38. Por conseguinte, a vida eterna é a
própria vida de Deus e simultaneamente a vida dos filhos de Deus. Um assombro
incessante e uma gratidão sem limites não podem deixar de se apoderar do crente
diante desta inesperada e inefável verdade que nos vem de Deus em Cristo. O
crente faz suas as palavras do apóstolo João: « Vede com que amor nos amou o
Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E somo´lo de facto! (...)
Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que
havemos de ser. Sabemos, porém, que, quando Ele Se manifestar, seremos
semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é » (1 Jo 3, 1´2). Assim, chega ao
seu auge a verdade cristã acerca da vida. A dignidade desta não está ligada
apenas às suas origens, à sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao
seu destino de comunhão com Deus no conhecimento e no amor d´Ele. É à luz desta
verdade que Santo Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: «
glória de Deus » é, sim, « o homem vivo », mas « a vida do homem consiste na
visão de Deus ».27 Daqui resultam consequências imediatas para a vida humana em
sua própria condição terrena, na qual já germinou e está a crescer a vida
eterna. Se o homem ama instintivamente a vida porque é um bem, tal amor
encontra ulterior motivação e força, nova amplitude e profundidade nas
dimensões divinas desse bem. Em semelhante perspectiva, o amor que cada ser
humano tem pela vida não se reduz à simples busca de um espaço onde poder exprimir´se
a si mesmo e entrar em relação com os outros, mas evolui até à certeza feliz de
poder fazer da própria existência o « lugar » da manifestação de Deus, do
encontro e comunhão com Ele. A vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a nossa
existência no tempo, mas assume´a e condu´la ao seu último destino: « Eu sou a
ressurreição e a vida; (...) todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá
jamais » (Jo 11, 25.26).
« A cada um, pedirei contas do seu irmão » (cf. Gn 9, 5): veneração e amor pela
vida dos outros
39. A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura d´Ele,
participação do seu sopro vital. Desta vida, portanto, Deus é o único senhor: o
homem não pode dispor dela. Deus mesmo o confirma a Noé, depois do dilúvio: «
Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão » (Gn 9, 5). E o texto
bíblico preocupa´se em sublinhar como a sacralidade da vida tem o seu
fundamento em Deus e na sua acção criadora: « Porque Deus fez o homem à sua
imagem » (Gn 9, 6). Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus,
em seu poder: « Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro
de vida de todos os homens » — exclama Job (12, 10). « O Senhor é que dá a
morte e a vida, leva à habitação dos mortos e retira de lá » (1 Sam 2, 6). Apenas
Ele pode afirmar: « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39). Mas
Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas, sim, como cuidado e
solicitude amorosa pelas suas criaturas. Se é verdade que a vida do homem está
nas mãos de Deus, não o é menos que estas são mãos amorosas como as de uma mãe
que acolhe, nutre e toma conta do seu filho: « Fico sossegado e tranquilo como
criança deitada nos braços de sua mãe, como um menino deitado é a minha alma »
(Sal 131130, 2; cf. Is 49, 15; 66, 12´13; Os 11, 4). Assim nas vicissitudes dos
povos e na sorte dos indivíduos, Israel não vê o fruto de pura casualidade ou
de um destino cego, mas o resultado de um desígnio de amor, pelo qual Deus
resguarda todas as potencialidades da vida e se contrapõe às forças de morte
que nascem do pecado: « Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não
Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência » (Sab 1,
13´14).
40. Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as origens
no coração do homem, na sua consciência. A pergunta « que fizeste? » (Gn 4,
10), dirigida por Deus a Caim depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz a
experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele sente
incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida — a própria e a alheia —,
como realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus Criador e
Pai. O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o centro dos «
dez mandamentos » na aliança do Sinai (cf. Ex 34, 28). Nele se proíbe, antes de
mais, o homicídio: « Não matarás » (Ex 20, 13), « não causarás a morte do
inocente e do justo » (Ex 23, 7); mas proíbe também — como se explicita na
legislação posterior de Israel — qualquer lesão infligida a outrem (cf. Ex 21,
12´27). Tem´se de reconhecer que esta sensibilidade pelo valor da vida no
Antigo Testamento, apesar de já tão notável, não alcança ainda a perfeição do
Sermão da Montanha, como resulta de alguns aspectos da legislação penal então
vigente, que previa castigos corporais pesados e até mesmo a pena de morte. Mas
globalmente esta mensagem, que o Novo Testamento levará à perfeição, é já um
forte apelo ao respeito pela inviolabilidade da vida física e da integridade
pessoal, e tem o seu ápice no mandamento positivo que obriga a cuidar do
próximo como de si mesmo: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (Lv 19, 18).
41. O mandamento « não matarás », contido e aprofundado no mandamento positivo
do amor do próximo, é confirmado em toda a sua validade pelo Senhor Jesus. Ao
jovem rico que Lhe pede « Mestre, que hei´de fazer de bom para alcançar a vida
eterna? », responde: « Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos »
(Mt 19, 16.17). E, logo em primeiro lugar, cita « não matarás » (19, 18). No
Sermão da Montanha, Jesus exige dos discípulos uma justiça superior à dos
escribas e fariseus, no campo do respeito pela vida: « Ouvistes que foi dito
aos antigos: ´Não matarás; aquele que matar está sujeito a ser condenado´. Eu,
porém, digo´vos: quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal
» (Mt 5, 21´22). Com a sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita
ulteriormente as exigências positivas do mandamento referente à inviolabilidade
da vida. Estavam já presentes no Antigo Testamento, onde a legislação se
preocupava em garantir e salvaguardar as situações de vida débil e ameaçada: o
estrangeiro, a viúva, o órfão, o enfermo, o pobre em geral, a própria vida
antes de nascer (cf. Ex 21, 22; 22, 20´26). Mas com Jesus, essas exigências
positivas adquirem novo vigor e ímpeto, manifestando´se em toda a sua amplitude
e profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão (familiar, membro do mesmo
povo, estrangeiro que habita na terra de Israel), passam pelo cuidar do
desconhecido, para chegarem até ao amor do inimigo. O desconhecido deixa de ser
tal para quem deve fazer´se próximo de todo aquele que se encontra necessitado,
até assumir a responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo eloquente e
incisivo, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25´37). Também o inimigo
cessa de o ser para quem é obrigado a amá´lo (cf. Mt 5, 38´48; Lc 6, 27´35) e «
fazer´lhe bem » (cf. Lc 6, 27.33.35), levando remédio às carências da sua vida,
com prontidão e sem esperar recompensa (cf. Lc 6, 34´35). No vértice deste amor,
está a oração pelo inimigo, pela qual nos colocamos em sintonia com o amor
providente de Deus: « Eu, porém, digo´vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos
que vos perseguem. Fazendo assim, tornar´vos´eis filhos do vosso Pai que está
nos Céus; pois Ele faz que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair
a chuva sobre os justos e os pecadores » (Mt 5, 44´45; cf. Lc 6, 28.35). Assim,
o mandamento de Deus, orientado para a defesa da vida do homem, tem a sua
dimensão mais profunda na exigência de veneração e amor por toda a pessoa e sua
vida. Este é o ensinamento que o apóstolo Paulo, dando eco às palavras de Jesus
(cf. Mt 19, 17´18), dirige aos cristãos de Roma: « Com efeito: ´Não cometerás
adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás´ e qualquer dos outros
mandamentos resumem´se nestas palavras: ´Amarás ao próximo como a ti mesmo´. A
caridade não faz mal ao próximo. A caridade é, pois, o pleno cumprimento da lei
» (Rm 13, 9´10).
« Crescei e multiplicai´vos, enchei e dominai a terra » (Gn 1, 28): as
responsabilidades do homem pela vida
42. Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que Deus confia a cada
homem, ao chamá´lo enquanto sua imagem viva a participar no domínio que Ele tem
sobre o mundo: « Abençoando´os, Deus disse: ´Crescei e multiplicai´vos, enchei
e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e
sobre todos os animais que se movem na terra´ » (Gn 1, 28). O texto bíblico
manifesta claramente a amplitude e profundidade do domínio que Deus concede ao
homem. Trata´se, antes de mais, de domínio sobre a terra e sobre todo o ser
vivo, como recorda o Livro da Sabedoria: « Deus dos nossos pais e Senhor de
misericórdia, (...) formastes o homem pela vossa sabedoria, para dominar sobre
as criaturas a quem destes a vida, para governar o mundo com santidade e
justiça » (9, 1.2´3). Também o Salmista exalta o domínio do homem como sinal da
glória e honra recebidas do Criador: « Destes´lhe domínio sobre as obras das
vossas mãos. Tudo submetestes debaixo dos seus pés; os rebanhos e os gados sem
excepção, até mesmo os animais selvagens; as aves do céu e os peixes do mar,
tudo o que se move nos oceanos » (Sal 8, 7´9). Chamado a cultivar e guardar o
jardim do mundo (cf. Gn 2, 15), o homem detém uma responsabilidade específica
sobre o ambiente de vida, ou seja, sobre a criação que Deus pôs ao serviço da
sua dignidade pessoal, da sua vida: e isto não só em relação ao presente, mas
também às gerações futuras. É a questão ecológica — desde a preservação do «
habitat » natural das diversas espécies animais e das várias formas de vida,
até à « ecologia humana » propriamente dita 28 — que, no texto bíblico,
encontra luminosa e forte indicação ética para uma solução respeitosa do grande
bem da vida, de toda a vida. Na realidade, « o domínio conferido ao homem pelo
Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de ´usar e
abusar´, ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo
mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de
´comer o fruto da árvore´ (cf. Gn 2, 16´17), mostra com suficiente clareza que,
nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só
biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas ».29
43. Uma certa participação do homem no domínio de Deus manifesta´se também na
específica responsabilidade que lhe está confiada no referente à vida
propriamente humana. Essa responsabilidade atinge o auge na doação da vida,
através da geração por obra do homem e da mulher no matrimónio, como nos
recorda o Concílio Vaticano II: « O mesmo Deus que disse ´não é bom que o homem
esteja só´ (Gn 2, 18) e que ´desde a origem fez o ser humano varão e mulher´
(Mt 19, 4), querendo comunicar uma participação especial na sua obra criadora,
abençoou o homem e a mulher dizendo: ´crescei e multiplicai´vos´ (Gn 1, 28)
».30 Ao falar de « uma participação especial » do homem e da mulher na « obra
criadora » de Deus, o Concílio pretende pôr em relevo como a geração do filho é
um facto não só profundamente humano mas também altamente religioso, enquanto
implica os cônjuges, que formam « uma só carne » (Gn 2, 24), e simultaneamente
o próprio Deus que Se faz presente. Como escrevi na Carta às Famílias, « quando
da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma
particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está
inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais,
são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano,
não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar
que, na paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está presente de um
modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração ´sobre a terra´.
Efectivamente, só de Deus pode provir aquela ´imagem e semelhança´ que é
própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação
da criação ».31 Isto mesmo ensina, com linguagem clara e eloquente, o texto
sagrado ao mencionar o grito jubiloso da primeira mulher, a « mãe de todos os
viventes » (Gn 3, 20); consciente da intervenção de Deus, Eva exclama: « Gerei
um homem com o auxílio do Senhor » (Gn 4, 1). Assim, na geração, através da
comunicação da vida dos pais ao filho transmite´se, graças à criação da alma
imortal,32 a imagem e semelhança do próprio Deus. Neste sentido, se exprime o
início do « livro da genealogia de Adão »: « Quando Deus criou o homem, fê´lo à
semelhança de Deus. Criou´os varão e mulher, e abençoou´os. Deu´lhes o nome de
Homem no dia em que os criou. Com cento e trinta anos, Adão gerou um
filho à sua imagem e semelhança, e pôs´lhe o nome de Set » (Gn 5, 1´3). Precisamente neste papel de
colaboradores de Deus, que transmite a sua imagem à nova criatura, está a grandeza
dos cônjuges, dispostos « a colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por
meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família ».33 À luz disto, o
bispo Anfilóquio exaltava o « matrimónio santo, eleito e elevado acima de todos
os dons terrenos », porque « gerador da humanidade, artífice de imagens de Deus
».34 Assim o homem e a mulher, unidos pelo matrimónio, estão associados a uma
obra divina: por meio do acto da geração, o dom de Deus é acolhido, e uma nova
vida se abre ao futuro. Mas, uma vez realçada a missão específica dos pais, há
que acrescentar: a obrigação de acolher e servir a vida compete a todos e deve
manifestar´se sobretudo a favor da vida em condições de maior fragilidade. É o
próprio Cristo quem no´lo recorda, ao pedir para ser amado e servido nos irmãos
provados por qualquer tipo de sofrimento: famintos, sedentos, estrangeiros,
nus, doentes, encarcerados... Aquilo que for feito a cada um deles, é feito ao
próprio Cristo (cf. Mt 25, 31´46).
« Vós é que plasmastes o meu interior » (Sal 139138, 13): a dignidade da
criança ainda não nascida
44. A vida humana atravessa situações de grande fragilidade, quer ao entrar no
mundo, quer quando sai do tempo para ir ancorar´se na eternidade. Na Palavra de
Deus, encontramos numerosos apelos ao cuidado e respeito pela vida, sobretudo
quando esta aparece ameaçada pela doença e pela velhice. Se faltam apelos
directos e explícitos para salvaguardar a vida humana nas suas origens,
especialmente a vida ainda não nascida, ou então a vida próxima do seu termo,
isso explica´se facilmente pelo facto de que a mera possibilidade de ofender,
agredir ou mesmo negar a vida em tais condições estava fora do horizonte
religioso e cultural do Povo de Deus. No Antigo Testamento, a esterilidade era
temida como uma maldição, enquanto se considerava uma bênção a prole numerosa:
« Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor »
(Sal 127126, 3; cf. Sal 128127, 3´4). Para esta convicção, concorre certamente
a consciência que Israel tem de ser o povo da Aliança, chamado a multiplicar´se
segundo a promessa feita a Abraão: « Ergue os olhos para os céus e conta as
estrelas, se fores capaz de as contar (...) será assim a tua descendência » (Gn
15, 5). Mas influi sobretudo a certeza de que a vida transmitida pelos pais tem
a sua origem em Deus, como o atestam tantas páginas bíblicas que, com respeito
e amor, falam da concepção, da moldagem da vida no ventre materno, do
nascimento e da ligação íntima entre o momento inicial da existência e a acção
de Deus Criador. « Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te
conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei » (Jr 1, 5): a
existência de cada indivíduo, desde as suas origens, obedece ao desígnio de
Deus. Job, na profundidade da sua dor, detém´se a contemplar a obra de Deus na
miraculosa formação do seu corpo no ventre da mãe, retirando daí motivo de
confiança e exprimindo a certeza da existência de um projecto divino para a sua
vida: « As tuas mãos formaram´me e fizeram´me e, de repente, vais aniquilar´me?
Lembra´Te que me formaste com o barro; far´me´ás, agora, voltar ao pó? Não me
espremeste como o leite e coalhaste como o queijo? De pele e de carne me
revestiste, de ossos e de nervos me consolidaste. Deste´me a vida e favoreceste´me;
a tua providência conservou o meu espírito » (10, 8´12). Modulações cheias de
enlevo adorador pela intervenção de Deus na vida em formação no ventre materno
ressoam também nos Salmos.35 Como pensar que este maravilhoso processo de
germinação da vida possa subtrair´se, por um só momento, à obra sapiente e
amorosa do Criador para ficar abandonado ao arbítrio do homem? Não o pensa,
seguramente, a mãe dos sete irmãos que professa a sua fé em Deus, princípio e
garantia da vida desde a concepção e ao mesmo tempo fundamento da esperança da
nova vida para além da morte: « Não sei como aparecestes nas minhas entranhas,
porque não fui eu quem vos deu a alma nem a vida e nem fui eu quem ajuntou os
vossos membros. Mas o Criador do mundo, autor do nascimento do homem e criador
de todas as coisas, restituir´vos´á, na sua misericórdia, tanto o espírito como
a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor das suas leis » (2
Mac 7, 22´23).
45. A revelação do Novo Testamento confirma o reconhecimento indiscutível do
valor da vida desde os seus inícios. A exaltação da fecundidade e o trepidante
anseio da vida ressoam nas palavras com que Isabel rejubila pela sua gravidez:
ao Senhor « aprouve retirar a minha ignomínia » (Lc 1, 25). Mas o valor da
pessoa, desde a sua concepção, é celebrado ainda melhor no encontro da Virgem
Maria e Isabel e entre as duas crianças, que trazem no seio. São precisamente
eles, os meninos, a revelarem a chegada da era messiânica: no seu encontro,
começa a agir a força redentora da presença do Filho de Deus no meio dos
homens. « Depressa se manifestam — escreve Santo Ambrósio — os benefícios da
chegada de Maria e da presença do Senhor. (...) Isabel foi a primeira a escutar
a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a
ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada
de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a
presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam´na interiormente,
iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade; e, por um duplo milagre,
as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos. O filho exultou de alegria;
a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este
que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe ».36
« Confiei mesmo quando disse: ´Sou um homem de todo infeliz´ » (Sal 116115,
10): a vida na velhice e no sofrimento
46. Também no que se refere aos últimos dias da existência, seria anacrónico
esperar da revelação bíblica uma referência expressa à problemática actual do
respeito pelas pessoas idosas e doentes, ou uma explícita condenação das
tentativas de lhes antecipar violentamente o fim: encontramo´nos, de facto,
perante um contexto cultural e religioso que não está pervertido por tais
tentações, mas antes reconhece na sabedoria e experiência do ancião uma riqueza
insubstituível para a família e a sociedade. A velhice goza de prestígio e é
circundada de veneração (cf. 2 Mac 6, 23). O justo não pede para ser privado da
velhice nem do seu peso; antes pelo contrário: « Vós sois a minha esperança, a
minha confiança, Senhor, desde a minha juventude. (...) Agora, na velhice e na
decrepitude, não me abandoneis, ó Deus; para que narre às gerações a força do vosso
braço, o vosso poder a todos os que hão´de vir » (Sal 7170, 5.18). O ideal do
tempo messiânico é apresentado como aquele em que « não mais haverá (...) um
velho que não complete os seus dias » (Is 65, 20). Mas, como enfrentar o
declínio inevitável da vida, na velhice?Como comportar´se frente à morte? O
crente sabe que a sua vida está nas mãos de Deus: « Senhor, nas tuas mãos está
a minha vida » (cf. Sal 1615, 5); e d´Ele aceite também a morte: « Este é o
juízo do Senhor sobre toda a humanidade; e porque quererias reprovar a lei do
Altíssimo? » (Sir 41, 4). O homem não é senhor nem da vida nem da morte; tanto
numa como noutra, deve abandonar´se totalmente à « vontade do Altíssimo », ao
seu desígnio de amor. Também no momento da doença, o homem é chamado a viver a
mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua confiança fundamental n´Aquele que «
sara todas as enfermidades » (cf. Sal 103102, 3). Quando toda e qualquer
esperança de saúde parece fechar´se para o homem — a ponto de o levar a gritar:
« Os meus dias são como a sombra que declina, e vou´me secando como o feno »
(Sal 102101, 12) — , mesmo então o crente está animado pela fé inabalável no
poder vivificador de Deus. A doença não o leva ao desespero nem ao desejo da
morte, mas a uma invocação cheia de esperança: « Confiei mesmo quando disse:
´Sou um homem de todo infeliz´ » (Sal 116115, 10); « Senhor, meu Deus, a vós
clamei e fui curado. Senhor, livrastes a minha alma da mansão dos mortos;
destes´me a vida quando já descia ao túmulo » (Sal 3029, 3´4).
47. A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto Deus
tem a peito também a vida corporal do homem. « Médico do corpo e do espírito
»,37 Jesus foi mandado pelo Pai para anunciar a boa nova aos pobres e para
curar os de coração despedaçado (cf. Lc 4, 18; Is 61, 1). Depois, ao enviar os
seus discípulos pelo mundo, confia´lhes uma missão na qual a cura dos doentes
acompanha o anúncio do Evangelho: « Pelo caminho, proclamai que o reino dos
Céus está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os
leprosos, expulsai os demónios » (Mt 10, 7´8; cf. Mc 6, 13; 16, 18).
Certamente, a vida do corpo na sua condição terrena não é um absoluto para o
crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a abandonar por um bem
superior; como diz Jesus, « quem quiser salvar a sua vida, perdê´la´á, e quem
perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho, salvá´la´á » (Mc 8, 35). A este
propósito, o Novo Testamento oferece diversos testemunhos. Jesus não hesita em
sacrificar´Se a Si próprio e, livremente, faz da sua vida uma oferta ao Pai
(cf. Jo 10, 17) e aos seus (cf. Jo 10, 15). Também a morte de João Baptista,
precursor do Salvador, atesta que a existência terrena não é o bem absoluto: é
mais importante a fidelidade à palavra do Senhor, ainda que esta possa pôr em
jogo a vida (cf. Mc 6, 17´29). E Estêvão, ao ser privado da vida temporal
porque testemunha fiel da ressurreição do Senhor, segue os passos do Mestre e
vai ao encontro dos seus lapidadores com as palavras do perdão (cf. Act 7,
59´60), abrindo a estrada do exército inumerável dos mártires, venerados pela
Igreja desde o princípio. Todavia, ninguém pode escolher arbitrariamente viver
ou morrer; efectivamente, senhor absoluto de tal decisão é apenas o Criador,
Aquele em quem « vivemos, nos movemos e existimos » (Act 17, 28).
« Todos os que a seguirem alcançarão a vida » (Bar 4, 1): da Lei do Sinai ao
dom do Espírito
48. A vida traz indelevelmente inscrita nela uma verdade sua. O homem, ao
acolher o dom de Deus, deve comprometer´se a manter a vida nesta verdade, que
lhe é essencial. Desviar´se dela, equivale a condenar´se a si próprio à
insignificância e à infelicidade, com a consequência de poder tornar´se também
uma ameaça para a existência dos outros, já que foram rompidos os diques que
garantiam o respeito e a defesa da vida, em qualquer situação. A verdade da
vida é revelada pelo mandamento de Deus. A palavra do Senhor indica
concretamente a direcção que a vida deve seguir, para poder respeitar a própria
verdade e salvaguardar a sua dignidade. Não é apenas o mandamento específico —
« não matarás » (Ex 20, 13; Dt 5, 17) — a garantir a protecção da vida; mas a
Lei do Senhor em toda a sua extensão está ao serviço dessa protecção, porque
revela aquela verdade na qual a vida encontra o seu pleno significado. Não
admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo esteja tão intensamente
ligada à perspectiva da vida, mesmo na sua dimensão corpórea. Naquela, o
mandamento é dado como caminho da vida: « Vê, ofereço´te hoje, de um lado, a
vida e o bem; de outro, a morte e o mal. Recomendo´te hoje que ames o Senhor,
teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis
e seus decretos. Se assim fizeres, viverás, engrandecer´te´ás e serás abençoado
pelo Senhor, teu Deus, na terra em que vais entrar para a possuir » (Dt 30,
15´16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a existência do povo de
Israel, mas também o mundo de hoje e do futuro e a existência de toda a
humanidade. De facto, não é possível, absolutamente, a vida permanecer
autêntica e plena, quando se afasta do bem; e o bem, por sua vez, está
essencialmente ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à « lei da vida » (Sir
17, 11). O bem que se tem de realizar, não é imposto à vida como um fardo que
pesa sobre ela, porque a própria razão da vida é precisamente o bem, e a vida é
construída apenas mediante o cumprimento do bem. Portanto, é a Lei no seu todo
que salvaguarda plenamente a vida do homem. Isto explica como é difícil
manter´se fiel ao preceito « não matarás », quando não são observadas as demais
« palavras de vida » (Act 7, 38), às quais ele está ligado. Fora deste
horizonte, o mandamento acaba por se tornar uma mera obrigação extrínseca, da
qual bem depressa desejar´se´ão ver os limites e procurar´se´ão as atenuantes
ou as excepções. Só se nos abrirmos à plenitude da verdade acerca de Deus, do
homem e da história, é que o preceito « não matarás » voltará a resplandecer
como o melhor para o homem em todas as suas dimensões e relações. Nesta
perspectiva, podemos atingir a plenitude da verdade contida na passagem do
Livro do Deuteronómio, retomada por Jesus na resposta à primeira tentação: « O
homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor » (8, 3;
cf. Mt 4, 4). É escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com
dignidade e justiça; é observando a lei de Deus que o homem pode produzir
frutos de vida e de felicidade: « Todos os que a seguirem alcançarão a vida, e
os que a abandonarem cairão na morte » (Bar 4, 1).
49. A história de Israel mostra como é difícil permanecer fiel à lei da vida,
que Deus inscreveu no coração dos homens e entregou no Sinai ao povo da
Aliança. Contra a busca de projectos de vida alternativos ao plano de Deus,
levantam´se de modo particular os Profetas, recordando insistentemente que só o
Senhor é a autêntica fonte da vida. Assim escreve Jeremias: « O meu povo
cometeu um duplo crime: abandonou´Me a Mim, fonte de águas vivas, para cavar
cisternas, cisternas rotas, que não podem reter as águas » (2, 13). Os Profetas
apontam o dedo acusador contra aqueles que desprezam a vida e violam os
direitos das pessoas: « Esmagam como o pó da terra a cabeça do pobre » (Am 2,
7); « mancharam este lugar com o sangue de inocentes » (Jr 19, 4). E a estes,
vem juntar´se o profeta Ezequiel que mais de uma vez verbera a cidade de
Jerusalém, designando´a como « a cidade sanguinária » (22, 2; 24, 6.9), a «
cidade que derramou o sangue no seu seio » (22, 3). Mas, ao mesmo tempo que
denunciam as ofensas contra a vida, os Profetas preocupam´se sobretudo por
suscitar a esperança de um novo princípio de vida, capaz de fundar um renovado
relacionamento com Deus e com os irmãos, entreabrindo possibilidades inéditas e
extraordinárias para compreender e actuar todas as exigências contidas no
Evangelho da vida. Isso será possível unicamente mediante um dom de Deus, que
purifique e renove: « Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados;
Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os pecados. Dar´vos´ei um
coração novo e infundirei em vós um espírito novo » (Ez 36, 25´26; cf. Jr 31,
31´34). Graças a este « coração novo », pode´se compreender e realizar o
sentido mais verdadeiro e profundo da vida: ser um dom que se consuma no
dar´se. É a mensagem luminosa sobre o valor da vida que nos vem da figura do
Servo do Senhor: « Oferecendo a sua vida em sacrifício expiatório, terá uma
posteridade duradoura e viverá longos dias. (...) Livrada a sua alma dos
tormentos, verá a luz » (Is 53, 10.11). Na existência de Jesus de Nazaré, a Lei
teve pleno cumprimento, ao ser dado o coração novo por meio do seu Espírito.
Com efeito, Cristo não revoga a Lei, mas leva´a ao seu pleno cumprimento (cf.Mt
5, 17): a Lei e os Profetas resumem´se na regra´áurea do amor recíproco (cf. Mt
7, 12). N´Ele, a Lei torna´se definitivamente « evangelho », feliz notícia do
domínio de Deus sobre o mundo, que reconduz toda a existência às suas raízes e
perspectivas originais. É a Nova Lei, « a lei do Espírito que dá vida em Cristo
Jesus » (Rm 8, 2), cuja expressão fundamental, a exemplo do Senhor que dá a
vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13), é o dom de si no amor aos irmãos: «
Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos » (1 Jo
3, 14). É lei de liberdade, alegria e felicidade. « Hão´de olhar para Aquele
que trespassaram » (Jo 19, 37): na árvore da Cruz, cumpre´se o Evangelho da
Vida 50. No final deste capítulo, em que meditámos a mensagem cristã sobre a
vida, quereria deter´me com cada um de vós a contemplar Aquele que trespassaram
e que atrai todos a Si (cf. Jo 19, 37; 12, 32). Levantando os olhos para « o
espectáculo » da cruz (cf. Lc 23, 48), poderemos descobrir, nesta árvore
gloriosa, o cumprimento e a plena revelação de todo o Evangelho da vida. Nas
primeiras horas da tarde de Sexta´feira Santa, « as trevas cobriram toda a
terra (...) por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo rasgou´se ao meio »
(Lc 23, 44.45). É o símbolo de uma grande perturbação cósmica e de uma luta
atroz das forças do bem contra as do mal, da vida contra a morte. Também hoje
nos encontramos no meio de uma luta dramática entre a « cultura da morte » e a
« cultura da vida ». Mas o esplendor da Cruz não fica submerso pelas trevas;
pelo contrário, aquela desenha´se ainda mais clara e luminosa, revelando´se
como o centro, o sentido e o fim da história inteira e de toda a vida humana.
Jesus é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o momento da sua máxima «
impotência », e a sua vida parece totalmente abandonada aos insultos dos seus
adversários e às mãos dos seus carrascos: é humilhado, escarnecido, ultrajado
(cf. Mc 15, 24´36). E contudo, precisamente diante de tudo isso e « ao vê´Lo
expirar daquela maneira », o centurião romano exclama: « Verdadeiramente este
homem era o Filho de Deus! » (Mc 15, 39). Revela´se assim, no momento da sua
extrema debilidade, a identidade do Filho de Deus: na Cruz, manifesta´se a sua
glória! Com a sua morte, Jesus ilumina o sentido da vida e da morte de todo o
ser humano. Antes de morrer, Jesus reza ao Pai, pedindo o perdão para os seus
perseguidores (cf. Lc 23, 34), e ao malfeitor, que Lhe pede para Se recordar
dele no seu reino, responde: « Em verdade te digo: hoje estarás Comigo no
Paraíso » (Lc 23, 43). Depois da sua morte, « abriram´se os túmulos e muitos
corpos de santos que estavam mortos, ressuscitaram » (Mt 27, 52). A salvação,
operada por Jesus, é doação de vida e de ressurreição. Ao longo da sua
existência, Jesus tinha concedido a salvação, curando e fazendo o bem a todos
(cf. Act 10, 38). Mas os milagres, as curas e as próprias ressurreições eram
sinal de outra salvação que consiste no perdão dos pecados, ou seja, na
libertação do homem do mal mais profundo, e na sua elevação à própria vida de
Deus. Na Cruz, renova´se e realiza´se, em sua perfeição plena e definitiva, o
prodígio da serpente erguida por Moisés no deserto (cf. Jo 3, 14´15; Nm 21,
8´9). Também hoje, voltando o olhar para Aquele que foi trespassado, cada homem
com a sua existência ameaçada recobra a esperança segura de encontrar
libertação e redenção.
51. Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o meu olhar e merece
compenetrada meditação. « Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: ´Tudo está
consumado´. E inclinando a cabeça, entregou o espírito » (Jo 19, 30). E
o soldado romano « perfurou´Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água
» (Jo 19, 34). Tudo chegou já
ao seu pleno cumprimento. O « entregar o espírito » exprime certamente a morte
de Jesus, semelhante à de qualquer outro ser humano, mas parece aludir também
ao « dom do Espírito », com que Ele nos resgata da morte e desperta para uma
vida nova. A própria vida de Deus é participada ao homem. Mediante os
sacramentos da Igreja — cujo símbolo são o sangue e a água, que brotam do lado
de Cristo —, aquela vida é incessantemente comunicada aos filhos de Deus, constituídos
como povo da nova aliança. Da Cruz, fonte de vida, nasce e se propaga o « povo
da vida ». Deste modo, a contemplação da Cruz leva´nos às raízes mais profundas
daquilo que sucedeu. Jesus que, ao entrar no mundo, tinha dito: « Eis que
venho, ó Deus, para fazer a tua vontade » (cf. Heb 10, 9), fez´Se em tudo
obediente ao Pai, e tendo « amado os seus que estavam no mundo, amou´os até ao
fim » (Jo 13, 1), entregando´Se inteiramente por eles. Ele que não « veio para
ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos » (Mc 10, 45),
chega ao vértice do amor na Cruz: « Ninguém tem maior amor do que aquele que dá
a vida pelos seus amigos » (Jo 15, 13). E Ele morreu por nós, quando éramos
ainda pecadores (cf. Rm 5, 8). Deste modo, Cristo proclama que a vida atinge o
seu centro, sentido e plenitude quando é doada. Chegada a este ponto, a
meditação faz´se louvor e agradecimento e, ao mesmo tempo, estimula´nos a
imitar Jesus e a seguir os seus passos (cf. 1 Ped 2, 21). Também nós somos
chamados a dar a nossa vida pelos irmãos, realizando assim, na sua verdade mais
plena, o sentido e o destino da nossa existência. Podê´lo´emos fazer porque
Vós, Senhor, nos destes o exemplo e comunicastes a força do Espírito.
Podê´lo´emos fazer se cada dia, Convosco e como Vós, formos obedientes ao Pai e
fizermos a sua vontade. Concedei´nos, pois, ouvir com coração dócil e generoso
toda a palavra que sai da boca de Deus: aprenderemos assim não apenas a « não
matar » a vida do homem, mas também a sabê´la venerar, amar e promover.
CAPÍTULO III
NÃO MATARÁS A LEI SANTA DE DEUS
« Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt 19, 17):
Evangelho e mandamento
52. « Aproximou´se d´Ele um jovem e disse´ ´Lhe: ´Que hei´de fazer de bom para
alcançar a vida eterna?´ » (Mt 19, 16). Jesus respondeu: « Se queres entrar na
vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt 19, 17). O Mestre fala da vida eterna,
isto é, da participação na própria vida de Deus. A esta vida, chega´se através
da observância dos mandamentos, incluindo naturalmente aquele que diz « não
matarás ». Este é precisamente o primeiro preceito do Decálogo que Jesus
recorda ao jovem, quando este Lhe solicita os mandamentos que terá de cumprir:
« Retorquiu Jesus: ´Não matarás; não cometerás adultério; não roubarás...´ »
(Mt 19, 18). O mandamento de Deus nunca está separado do seu amor: é sempre um
dom para o crescimento e a alegria do homem. Como tal, constitui um aspecto
essencial e um elemento inalienável do Evangelho, mais, o próprio mandamento se
configura como « evangelho », ou seja, uma boa e feliz notícia. Também o
Evangelho da vida é um grande dom de Deus e simultaneamente uma exigente tarefa
para o homem. Aquele suscita assombro e gratidão na pessoa livre e pede para
ser acolhido, guardado e valorizado com vivo sentimento de responsabilidade:
dando´lhe a vida, Deus exige do homem que a ame, respeite e promova. Deste
modo, o dom faz´se mandamento, e o mandamento é em si mesmo um dom. Imagem viva de Deus, o homem foi
querido pelo seu Criador como rei e senhor. « Deus fez o homem — escreve S.
Gregório de Nissa — de forma tal que pudesse desempenhar a sua função de rei da
terra. (...) O homem foi criado à imagem d´Aquele que governa o universo. Tudo
indica que, desde o princípio, a sua natureza está marcada pela realeza. (...)
Assim a natureza humana, criada para ser senhora das outras criaturas, à
semelhança do Soberano do universo, foi estabelecida como sua imagem viva,
participante da dignidade do divino Arquétipo ».38 Chamado para ser fecundo e
multiplicar´se, sujeitar a terra e dominar sobre os seres que lhe são
inferiores (cf. Gn 1, 28), o homem é rei e senhor não apenas das coisas, mas
também e primariamente de si mesmo 39 e, em certo sentido, da vida que lhe é
dada e que ele pode transmitir por meio da geração cumprida no amor e no
respeito do desígnio de Deus. No entanto, o seu domínio não é absoluto, mas
ministerial: é reflexo concreto do domínio único e infinito de Deus. Por isso,
o homem deve vivê´lo com sabedoria e amor, participando da sabedoria e do amor
incomensurável de Deus. E isto verifica´se pela obediência à sua Lei santa: uma
obediência livre e alegre (cf. Sal 119118) que nasce e se alimenta da certeza
de que os preceitos do Senhor são dons de graça, confiados ao homem sempre e só
para o seu bem, para a defesa da sua dignidade pessoal e para a prossecução da
sua felicidade. Aquilo que foi dito no referente às coisas, vale ainda mais
agora no contexto da vida: o homem não é senhor absoluto e árbitro
incontestável, mas — e nisso está a sua grandeza incomparável — é « ministro do
desígnio de Deus ».40 A vida é confiada ao homem como um tesouro que não pode
malbaratar, como um talento que há´de pôr a render. Dela terá de prestar contas
ao seu Senhor (cf. Mt 25, 14´30; Lc 19, 12´27).
« Ao homem, pedirei contas da vida do homem » (Gn 9, 5): a vida humana é
sagrada e inviolável
53. « A vida humana é sagrada, porque, desde a sua origem, supõe ´a acção
criadora de Deus´ e mantém´se para sempre numa relação especial com o Criador,
seu único fim. Só Deus é senhor da vida, desde o princípio até ao fim: ninguém,
em circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir directamente um
ser humano inocente ».41 Com estas palavras, a Instrução Donum vitae expõe o
conteúdo central da revelação de Deus sobre a sacralidade e inviolabilidade da
vida humana. De facto, a Sagrada Escritura apresenta ao homem o preceito « não
matarás » (Ex 20, 13; Dt 5, 17) como mandamento divino. Como já sublinhei,
encontra´se no Decálogo, no coração da Aliança, que o Senhor concluiu com o
povo eleito; mas estava já contido na aliança primordial de Deus com a
humanidade, após o castigo purificador do dilúvio, que fora provocado pelo
incremento do pecado e da violência (cf. Gn 9, 5´6). Deus proclama´Se Senhor
absoluto da vida do homem, formado à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26´28).
A vida humana possui, portanto, um carácter sagrado e inviolável, no qual se
reflecte a própria inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo, será Deus que Se
fará juiz severo de qualquer violação do mandamento « não matarás », colocado
na base de toda a convivência social. Deus é o go´el, ou seja, o defensor do
inocente (cf. Gn 4, 9´15; Is 41, 14; Jr 50, 34; Sal 1918, 15). Deus comprova,
assim também, que não Se alegra com a perdição dos vivos (cf. Sab 1, 13). Com
esta, apenas Satanás se pode alegrar: foi pela sua inveja que a morte entrou no
mundo (cf. Sab 2, 24). « Assassino desde o princípio », o diabo é também «
mentiroso e pai da mentira » (Jo 8, 44): enganando o homem, levou´o para metas
de pecado e de morte, apresentadas como objectivos e frutos de vida.
54. O preceito « não matarás », explicitamente, tem um forte conteúdo negativo:
indica o limite extremo que nunca poderá ser transposto. Implicitamente, porém,
induz a uma atitude positiva de respeito absoluto pela vida, levando a
promovê´la e a crescer seguindo a estrada do amor que se dá, acolhe e serve.
Também o povo da Aliança, ainda que lentamente e não sem contradições,
experimentou um amadurecimento progressivo nessa direcção, preparando´se assim
para a grande proclamação de Jesus: o amor do próximo é um mandamento
semelhante ao do amor de Deus; « destes dois mandamentos depende toda a Lei e
os Profetas » (Mt 22, 36´40). « Com efeito, (...) não matarás (...) e qualquer
dos outros mandamentos — sublinha S. Paulo — resumem´se nestas palavras:
´Amarás ao próximo como a ti mesmo´ » (Rm 13, 9; cf. Gal 5, 14). Assumido e
levado à perfeição na Nova Lei, o preceito « não matarás » permanece como
condição indispensável para poder « entrar na vida » (cf. Mt 19, 16´19). E,
nesta mesma perspectiva, aponta decisivamente a palavra do apóstolo João: «
Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida e sabeis que nenhum homicida tem a
vida eterna permanentemente em si » (1 Jo 3, 15). Desde os seus primórdios, a Tradição
viva da Igreja — como testemunha a Didaké, o escrito cristão extra´bíblico mais
antigo — reafirmou de modo categórico o mandamento « não matarás »: « Há dois
caminhos, um da vida e o outro da morte; mas entre os dois existe uma grande
diferença. (...) Segundo o preceito da doutrina: não matarás; (...) não matarás
o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém´nascido. (...) Este é
o caminho da morte: (...) não têm compaixão do pobre, não sofrem com o enfermo,
nem reconhecem o seu Criador; assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem
perecer criaturas de Deus; desprezam o necessitado, oprimem o atribulado, são
defensores dos ricos e juízes injustos dos pobres; estão cheios de todo o
pecado. Possais, filhos, permanecer sempre longe de todas estas culpas! ».42 Ao
longo dos tempos, a Tradição da Igreja ensinou sempre e unanimamente o valor
absoluto e permanente do mandamento « não matarás ». É sabido que, nos
primeiros séculos, o homicídio se contava entre os três pecados mais graves —
juntamente com a apostasia e o adultério —, e exigia´se uma penitência pública
particularmente onerosa e demorada, antes de ser concedido ao homicida
arrependido o perdão e a readmissão na comunidade eclesial.
55. Não há de que se maravilhar! Matar o ser humano, no qual está presente a
imagem de Deus, é pecado de particular gravidade.Só Deus é dono da vida! No
entanto, frente aos múltiplos casos, frequentemente dramáticos, que a vida
individual e social apresenta, a reflexão dos crentes procurou sempre alcançar um
conhecimento mais completo e profundo daquilo que o mandamento de Deus proíbe e
prescreve.43 Com efeito, há situações onde os valores propostos pela Lei de
Deus parecem formar um verdadeiro paradoxo. É o caso, por exemplo, da legítima
defesa, onde o direito de proteger a própria vida e o dever de não lesar a
alheia se revelam, na prática, dificilmente conciliáveis. Sem dúvida que o
valor intrínseco da vida e o dever de dedicar um amor a si mesmo não menor que
aos outros, fundam um verdadeiro direito à própria defesa. O próprio preceito
que manda amar os outros, enunciado no Antigo Testamento e confirmado por
Jesus, supõe o amor a si mesmo como termo de comparação: « Amarás o teu próximo
como a ti mesmo » (Mc 12, 31). Portanto, ninguém poderia renunciar ao direito
de se defender por carência de amor à vida ou a si mesmo, mas apenas em virtude
de um amor heróico que, na linha do espírito das bem´aventuranças evangélicas
(cf. Mt 5, 38´ 48), aprofunde o amor a si mesmo, transfigurando´o naquela
oblação radical cujo exemplo mais sublime é o próprio Senhor Jesus. Por outro
lado, « a legítima defesa pode ser, não somente um direito, mas um dever grave,
para aquele que é responsável pela vida de outrem, do bem comum da família ou
da sociedade ».44 Acontece, infelizmente, que a necessidade de colocar o
agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a sua eliminação.
Nesta hipótese, o desfecho mortal há´de ser atribuído ao próprio agressor que a
tal se expôs com a sua acção, inclusive no caso em que ele não fosse moralmente
responsável por falta do uso da razão.45
56. Nesta linha, coloca´se o problema da pena de morte, à volta do qual se
regista, tanto na Igreja como na sociedade, a tendência crescente para pedir
uma aplicação muito limitada, ou melhor, a total abolição da mesma. O problema
há´de ser enquadrado na perspectiva de uma justiça penal, que seja cada vez
mais conforme com a dignidade do homem e portanto, em última análise, com o
desígnio de Deus para o homem e a sociedade. Na verdade, a pena, que a
sociedade inflige, tem « como primeiro efeito o de compensar a desordem
introduzida pela falta ».46 A autoridade pública deve fazer justiça pela
violação dos direitos pessoais e sociais, impondo ao réu uma adequada expiação
do crime como condição para ser readmitido no exercício da própria liberdade.
Deste modo, a autoridade há´de procurar alcançar o objectivo de defender a
ordem pública e a segurança das pessoas, não deixando, contudo, de oferecer
estímulo e ajuda ao próprio réu para se corrigir e redimir.47 Claro está que,
para bem conseguir todos estes fins, a medida e a qualidade da pena hão´de ser
atentamente ponderadas e decididas, não se devendo chegar à medida extrema da
execução do réu senão em casos de absoluta necessidade, ou seja, quando a defesa
da sociedade não fosse possível de outro modo. Mas, hoje, graças à organização
cada vez mais adequada da instituição penal, esses casos são já muito raros, se
não mesmo praticamente inexistentes. Em todo o caso, permanece válido o
princípio indicado pelo novo Catecismo da Igreja Católica: « na medida em que
outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem
para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública,
tais processos não sangrentos devem preferir´se, por serem proporcionados e
mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana ».48
57. Se se deve mostrar uma atenção assim tão grande por qualquer vida, mesmo
pela do réu e a do injusto agressor, o mandamento « não matarás » tem valor
absoluto quando se refere à pessoa inocente. E mais ainda, quando se trata de
um ser frágil e inerme que encontra a sua defesa radical do arbítrio e da
prepotência alheia, unicamente na força absoluta do mandamento de Deus. De
facto, a inviolabilidade absoluta da vida humana inocente é uma verdade moral
explicitamente ensinada na Sagrada Escritura, constantemente mantida na
Tradição da Igreja e unanimamente proposta pelo seu Magistério. Tal unanimidade
é fruto evidente daquele « sentido sobrenatural da fé » que, suscitado e
apoiado pelo Espírito Santo, preserva do erro o Povo de Deus, quando «
manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes ».49 Face ao
progressivo enfraquecimento, nas consciências e na sociedade, da percepção da
absoluta e grave ilicitude moral da eliminação directa de qualquer vida humana
inocente, sobretudo no seu início e no seu termo, o Magistério da Igreja
intensificou as suas intervenções em defesa da sacralidade e inviolabilidade da
vida humana. Ao Magistério pontifício, particularmente insistente, sempre se
uniu o Magistério episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e
pastorais emanados quer pelas Conferências Episcopais, quer pelos Bispos
individualmente. Não faltou sequer, forte e incisiva na sua brevidade, a
intervenção do Concílio Vaticano II.50 Portanto, com a autoridade que Cristo
conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja
Católica,confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é
sempre gravemente imoral. Esta doutrina, fundada naquela lei não´escrita que
todo o homem, pela luz da razão, encontra no próprio coração (cf. Rm 2, 14´15),
é confirmada pela Sagrada Escritura, transmitida pela Tradição da Igreja e
ensinada pelo Magisterio ordinário e universal.51 A decisão deliberada de
privar um ser humano inocente da sua vida é sempre má do ponto de vista moral,
e nunca pode ser lícita nem como fim, nem como meio para um fim bom. É, de
facto, uma grave desobediência à lei moral, antes ao próprio Deus, autor e
garante desta; contradiz as virtudes fundamentais da justiça e da caridade. «
Nada e ninguém pode autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja
ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante.
E também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou para
outrem confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti´lo explícita ou
implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou
permitir ».52 No referente ao direito à vida, cada ser humano inocente é
absolutamente igual a todos os demais. Esta igualdade é a base de todo o
relacionamento social autêntico, o qual, para o ser verdadeiramente, não pode
deixar de se fundar sobre a verdade e a justiça, reconhecendo e tutelando cada
homem e cada mulher como pessoa, e não como coisa de que se possa dispor.
Diante da norma moral que proíbe a eliminação directa de um ser humano
inocente, « não existem privilégios, nem excepções para ninguém. Ser o dono do
mundo ou o último ´miserável´ sobre a face da terra, não faz diferença alguma:
perante as exigências morais, todos somos absolutamente iguais ».53
« Vossos olhos contemplaram´me ainda em embrião » (Sal 139138, 16): o crime
abominável do aborto
58. Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o aborto
provocado apresenta características que o tornam particularmente grave e
abjurável. O Concílio Vaticano II define´o, juntamente com o infanticídio, «
crime abominável ».54 Mas hoje, a percepção da sua gravidade vai´se
obscurecendo progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na
mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloquente de uma
perigosíssima crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz de
distinguir o bem do mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à
vida. Diante de tão grave situação, impõe´se mais que nunca a coragem de olhar
frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a
compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de auto´engano. A propósito
disto, ressoa categórica a censura do Profeta: « Ai dos que ao mal chamam bem,
e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas » (Is 5, 20).
Precisamente no caso do aborto, verifica´se a difusão de uma terminologia
ambígua, como « interrupção da gravidez », que tende a esconder a verdadeira
natureza dele e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este
fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal´estar das
consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o
aborto provocado é a morte deliberada e directa, independentemente da forma
como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que
vai da concepção ao nascimento. A gravidade moral do aborto provocado aparece
em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e,
particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o
qualificam. A pessoa eliminada é um ser humano que começa a desabrochar para a
vida, isto é, o que de mais inocente, em absoluto, se possa imaginar: nunca
poderia ser considerado um agressor, menos ainda um injusto agressor! É frágil,
inerme, e numa medida tal que o deixa privado inclusive daquela forma mínima de
defesa constituída pela força suplicante dos gemidos e do choro do
recém´nascido. Está totalmente entregue à protecção e aos cuidados daquela que
o traz no seio. E todavia, às vezes, é precisamente ela, a mãe, quem decide e
pede a sua eliminação, ou até a provoca. É verdade que, muitas vezes, a opção
de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se
desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de
comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a
própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às
vezes, temem´se para o nascituro condições de existência tais que levam a
pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões
semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a
supressão deliberada de um ser humano inocente.
59. A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da mãe, aparecem,
com frequência, outras pessoas. Antes de mais, culpado pode ser o pai da
criança, não apenas quando claramente constringe a mulher ao aborto, mas também
quando favorece indirectamente tal decisão ao deixá´la sozinha com os problemas
de uma gravidez: 55 desse modo, a família fica mortalmente ferida e profanada
na sua natureza de comunidade de amor e na sua vocação para ser « santuário da
vida ». Nem se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do âmbito
familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não raro, é sujeita a pressões
tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não há
dúvida que, neste caso, a responsabilidade moral pesa particularmente sobre
aqueles que directa ou indirectamente a forçaram a abortar. Responsáveis são
também os médicos e restantes profissionais da saúde, sempre que põem ao
serviço da morte a competência adquirida para promover a vida. Mas a
responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que promoveram e aprovaram
leis abortistas, e sobre os administradores das estruturas clínicas onde se
praticam os abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma
responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos aqueles que
favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissivismo sexual e de
menosprezo pela maternidade, como também àqueles que deveriam ter assegurado —
e não o fizeram — válidas políticas familiares e sociais de apoio às famílias,
especialmente às mais numerosas ou com particulares dificuldades económicas e
educativas. Não se pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela
incluindo instituições internacionais, fundações e associações, que se batem
sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no mundo. Neste sentido,
o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano que lhes é
causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é uma ferida gravíssima
infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os seus
construtores e defensores. Como escrevi na Carta às Famílias, « encontramo´nos
defronte a uma enorme ameaça contra a vida, não apenas dos simples indivíduos,
mas também de toda a civilização ».56 Achamo´nos perante algo que bem se pode
definir uma « estrutura de pecado » contra a vida humana ainda não nascida. 60.
Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o fruto da concepção, pelo
menos até um certo número de dias, não pode ainda ser considerado uma vida
humana pessoal. Na realidade, porém, « a partir do momento em que o óvulo é
fecundado, inaugura´se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a
de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se
tornaria humana, se não o fosse já desde então. A esta evidência de sempre
(...) a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou
que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o programa daquilo que será
este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual, com as suas notas
características já bem determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura
de uma vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma delas,
apenas exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir ».57 Não
podendo a presença de uma alma espiritual ser assinalada através da observação
de qualquer dado experimental, são as próprias conclusões da ciência sobre o
embrião humano a fornecer « uma indicação valiosa para discernir racionalmente
uma presença pessoal já a partir desta primeira aparição de uma vida humana:
como poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana? ».58 Aliás, o valor
em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a simples probabilidade de
encontrar´se em presença de uma pessoa para se justificar a mais categórica
proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano. Por
isso mesmo, independentemente dos debates científicos e mesmo das afirmações
filosóficas com os quais o Magistério não se empenhou expressamente, a Igreja
sempre ensinou — e ensina — que tem de ser garantido ao fruto da geração
humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional
que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e
espiritual: « O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde
a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem´lhe ser
reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o
direito inviolável de cada ser humano inocente à vida ».59
61. Os textos da Sagrada Escritura, que nunca falam do aborto voluntário e, por
conseguinte, também não apresentam condenações directas e específicas do mesmo,
mostram pelo ser humano no seio materno uma consideração tal que exige, como
lógica consequência, que se estenda também a ele o mandamento de Deus: « não
matarás ». A vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua
existência, inclusive na fase inicial que precede o nascimento. Desde o seio
materno, o homem pertence a Deus que tudo perscruta e conhece, que o forma e
plasma com suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e que
nele entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e cuja vocação
está já escrita no « livro da vida » (cf. Sal 139138, 1.13´16). Quando está
ainda no seio materno — como testemunham numerosos textos bíblicos 60 — já o
homem é objecto muito pessoal da amorosa e paterna providência de Deus. A
Tradição cristã — como justamente se realça na Declaração sobre esta matéria,
emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé 61 — é clara e unânime, desde as
suas origens até aos nossos dias, em classificar o aborto como desordem moral
particularmente grave. A comunidade cristã, desde o seu primeiro confronto com
o mundo greco´romano onde se praticava amplamente o aborto e o infanticídio,
opôs´se radicalmente, com a sua doutrina e a sua praxe, aos costumes
generalizados naquela sociedade, como o demonstra a já citada Didaké.62 Entre
os escritores eclesiásticos da área linguística grega, Atenágoras recorda que
os cristãos consideram homicidas as mulheres que recorrem a produtos abortivos,
porque os filhos, apesar de estarem ainda no seio da mãe, « são já objecto dos
cuidados da Providência divina ».63 Entre os latinos, Tertuliano afirma: « É um
homicídio premeditado impedir de nascer; pouco importa que se suprima a alma já
nascida ou que se faça desaparecer durante o tempo até ao nascer. É já um homem
aquele que o será ».64 Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina
foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e
Doutores. Mesmo as discussões de carácter científico e filosófico acerca do
momento preciso da infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima
hesitação quanto à condenação moral do aborto.
62. O Magistério pontifício mais recente reafirmou, com grande vigor, esta
doutrina comum. Em particular Pio XI, na encíclicaCasti connubii rejeitou as
alegadas justificações do aborto; 65 Pio XII excluiu todo o aborto directo,
isto é, qualquer acto que vise directamente destruir a vida humana ainda não
nascida, « quer tal destruição seja pretendida como fim ou apenas como meio
para o fim »; 66 João XXIII corroborou que a vida humana é sagrada, porque «
desde o seu despontar empenha directamente a acção criadora de Deus ».67 O
Concílio Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com grande
severidade: « A vida deve, pois, ser salvaguardada com extrema solicitude,
desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes
abomináveis ».68 A disciplina canónica da Igreja, desde os primeiros séculos,
puniu com sanções penais aqueles que se manchavam com a culpa do aborto, e tal
praxe, com penas mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos períodos
históricos. O Código de Direito Canónico de 1917, para o aborto, prescrevia a
pena de excomunhão.69 Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua
nesta linha quando determina que « quem procurar o aborto, seguindo´se o
efeito, incorre em excomunhão latae sententiae »,70 isto é, automática. A
excomunhão recai sobre todos aqueles que cometem este crime com conhecimento da
pena, incluindo também cúmplices sem cujo contributo o aborto não se teria
realizado: 71 com uma sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime como
um dos mais graves e perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a
ingressar diligentemente pela estrada da conversão. Na Igreja, de facto, a
finalidade da pena de excomunhão é tornar plenamente consciente da gravidade de
um determinado pecado e, consequentemente, favorecer a adequada conversão e
penitência. Frente a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e disciplinar
da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal ensinamento não conheceu mudança e é
imutável.72 Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus
Sucessores, em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas
condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de
dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro
que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre
uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente.
Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus
escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério
ordinário e universal.73 Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no
mundo poderá jamais tornar lícito um acto que é intrinsecamente ilícito, porque
contrário à Lei de Deus, inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela
própria razão, e proclamada pela Igreja.
63. A avaliação moral do aborto deve aplicar´se também às recentes formas de
intervenção sobre embriões humanos, que, não obstante visarem objectivos em si
legítimos, implicam inevitavelmente a sua morte. É o caso da experimentação
sobre embriões, em crescente expansão no campo da pesquisa biomédica e
legalmente admitida em alguns países. Se « devem ser consideradas lícitas as
intervenções no embrião humano, sob a condição de que respeitem a vida e a
integridade do embrião, não comportem para ele riscos desproporcionados, e
sejam orientadas para a sua cura, para a melhoria das suas condições de saúde
ou para a sua sobrevivência individual »,74 impõe´se, pelo contrário, afirmar que
o uso de embriões ou de fetos humanos como objecto de experimentação constitui
um crime contra a sua dignidade de seres humanos, que têm direito ao mesmo
respeito devido à criança já nascida e a qualquer pessoa.75 A mesma condenação
moral vale para o sistema que desfruta os embriões e os fetos humanos ainda
vivos — às vezes « produzidos » propositadamente para este fim através da
fecundação in vitro — seja como « material biológico » à disposição, seja como
fornecedores de órgãos ou de tecidos para transplante no tratamento de algumas
doenças. Na realidade, o assassínio de criaturas humanas inocentes, ainda que
com vantagem para outras, constitui um acto absolutamente inaceitável. Especial
atenção há´de ser reservada à avaliação moral das técnicas de diagnose
pré´natal, que permitem individuar precocemente eventuais anomalias do
nascituro. Com efeito, devido à complexidade dessas técnicas, a avaliação em
causa deve fazer´se mais cuidadosa e articuladamente. Quando estão isentas de
riscos desproporcionados para a criança e para a mãe, e se destinam a tornar
possível uma terapia precoce ou ainda a favorecer uma serena e consciente
aceitação do nascituro, estas técnicas são moralmente lícitas. Mas, dado que as
possibilidade de cura antes do nascimento são hoje ainda reduzidas, acontece
bastantes vezes que essas técnicas são postas ao serviço de uma mentalidade
eugenista que aceita o aborto selectivo, para impedir o nascimento de crianças
afectadas por tipos vários de anomalias. Semelhante mentalidade é ignominiosa e
absolutamente reprovável, porque pretende medir o valor de uma vida humana
apenas segundo parâmetros de « normalidade » e de bem´estar físico, abrindo
assim a estrada à legitimação do infanticídio e da eutanásia. Na realidade,
porém, a própria coragem e serenidade com que muitos irmãos nossos, afectados
por graves deficiências, conduzem a sua existência quando são aceites e amados
por nós, constituem um testemunho particularmente eficaz dos valores autênticos
que qualificam a vida e a tornam, mesmo em condições difíceis, preciosa para o
próprio e para os outros. A Igreja sente´se solidária com os cônjuges que, com
grande ansiedade e sofrimento, aceitam acolher os seus filhos gravemente
deficientes, tal como se sente grata a todas as famílias que, pela adopção,
acolhem os que são abandonados pelos seus pais por causa de limitações ou
doenças. « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39): o drama da
eutanásia
64. No outro topo da existência, o homem encontra´se diante do mistério da
morte. Hoje, na sequência dos progressos da medicina e num contexto cultural
frequentemente fechado à transcendência, a experiência do morrer apresenta´se
com algumas características novas. Com efeito, quando prevalece a tendência
para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e bem´estar, o
sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é preciso
libertar´se a todo o custo. A morte, considerada como « absurda » quando
interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de possíveis
experiências interessantes, torna´se, pelo contrário, uma « libertação
reivindicada », quando a existência é tida como já privada de sentido porque
mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento sempre mais intenso.
Além disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento fundamental com Deus,
o homem pensa que é critério e norma de si mesmo e julga que tem inclusive o
direito de pedir à sociedade que lhe garanta possibilidades e modos de decidir
da própria vida com plena e total autonomia. Em particular, o homem que vive
nos países desenvolvidos é que assim se comporta: a tal se sente impelido,
entre outras coisas, pelos contínuos progressos da medicina e das suas técnicas
cada vez mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente
sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica são capazes de resolver casos
anteriormente insolúveis e de aliviar ou eliminar a dor, como também de
sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade extrema, de
reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas elementares sofreram
danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos para transplante.
Num tal contexto, torna´se cada vez mais forte a tentação daeutanásia, isto é,
de apoderar´se da morte, provocando´a antes do tempo e, deste modo, pondo fim «
docemente » à vida própria ou alheia. Na realidade, aquilo que poderia parecer
lógico e humano, quando visto em profundidade, apresenta´se absurdo e desumano.
Estamos aqui perante um dos sintomas mais alarmantes da « cultura de morte »
que avança sobretudo nas sociedades do bem´estar, caracterizadas por uma
mentalidade eficientista que faz aparecer demasiadamente gravoso e insuportável
o número crescente das pessoas idosas e debilitadas. Com muita frequência,
estas acabam por ser isoladas da família e da sociedade, organizada quase
exclusivamente sobre a base de critérios de eficiência produtiva, segundo os
quais uma vida irremediavelmente incapaz não tem mais qualquer valor.
65. Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais,
defini´la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve´se
entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções,
provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento. « A eutanásia situa´se,
portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregues ».76 Distinta
da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado « excesso terapêutico », ou
seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente,
porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda
porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações,
quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode´se em consciência «
renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso
da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em
casos semelhantes ».77 Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e
procurar curar´se, mas essa obrigação há´de medir´se segundo as situações
concretas, isto é, impõe´se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são
objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a
meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à
eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte.78
Na medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados «
cuidados paliativos », destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase
aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado
acompanhamento humano. Neste contexto, entre outros problemas, levanta´se o da
licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e sedativos para aliviar
o doente da dor, quando isso comporta o risco de lhe abreviar a vida. Ora, se
pode realmente ser considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita
sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez
e, se crente, participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal
comportamento « heróico » não pode ser considerado obrigatório para todos. Já
Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com
a consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, « se não existem
outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento
de outros deveres religiosos e morais ».79 É que, neste caso, a morte não é
querida ou procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela:
pretende´ ´se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos
analgésicos postos à disposição pela medicina. Contudo, « não se deve privar o
moribundo da consciência de si mesmo, sem motivo grave »: 80 quando se aproxima
a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas
obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder´se preparar com plena
consciência para o encontro definitivo com Deus. Feitas estas distinções, em
conformidade com o Magistério dos meus Predecessores 81 e em comunhão com os
Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei
de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana.
Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus
escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério
ordinário e universal.82 A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a
malícia própria do suicídio ou do homicídio.
66. Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o homicídio. A
tradição da Igreja sempre o recusou, como opção gravemente má.83 Embora certos
condicionalismos psicológicos, culturais e sociais possam levar a realizar um
gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de cada um à vida,
atenuando ou anulando a responsabilidade subjectiva, o suicídio, sob o perfil
objectivo, é um acto gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si
mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as
várias comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto.84 No
seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania
absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo proclamada na oração
do antigo Sábio de Israel: « Vós, Senhor, tendes o poder da vida e da morte, e
conduzis os fortes à porta do Hades e de lá os tirais » (Sab 16, 13; cf. Tob
13, 2). Compartilhar a intenção suicida de outrem e ajudar a realizá´la
mediante o chamado « suicídio assistido », significa fazer´se colaborador e,
por vezes, autor em primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser
justificada, nem sequer quando requerida. « Nunca é lícito — escreve com
admirável actualidade Santo Agostinho — matar o outro: ainda que ele o
quisesse, mesmo se ele o pedisse, porque, suspenso entre a vida e a morte,
suplica ser ajudado a libertar a alma que luta contra os laços do corpo e
deseja desprender´se; nem é lícito sequer quando o doente já não estivesse em
condições de sobreviver ».85 Mesmo quando não é motivada pela recusa egoísta de
cuidar da vida de quem sofre, a eutanásia deve designar´se uma falsa compaixão,
antes uma preocupante « perversão » da mesma: a verdadeira « compaixão », de
facto, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem não se pode
suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta o gesto da eutanásia,
quando é realizado por aqueles que — como os parentes — deveriam assistir com
paciência e amor o seu familiar, ou por quantos — como os médicos —, pela sua
específica profissão, deveriam tratar o doente, inclusive nas condições
terminais mais penosas. A decisão da eutanásia torna´se mais grave, quando se
configura como um homicídio, que os outros praticam sobre uma pessoa que não a
pediu de modo algum nem deu nunca qualquer consentimento para a mesma.
Atinge´se, enfim, o cúmulo do arbítrio e da injustiça, quando alguns, médicos
ou legisladores, se arrogam o poder de decidir quem deve viver e quem deve
morrer. Aparece assim reproposta a tentação do Éden: tornar´se como Deus «
conhecendo o bem e o mal » (cf. Gn 3, 5). Mas, Deus é o único que tem o poder
de fazer morrer e de fazer viver: « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt
32, 39; cf. 2 Re 5, 7; 1 Sam 2, 6). Ele exerce o seu poder sempre e apenas
segundo um desígnio de sabedoria e amor. Quando o homem usurpa tal poder,
subjugado por uma lógica insensata e egoísta, usa´o inevitavelmente para a
injustiça e a morte. Assim, a vida do mais fraco é abandonada às mãos do mais
forte; na sociedade, perde´se o sentido da justiça e fica minada pela raiz a
confiança mútua, fundamento de qualquer relação autêntica entre as pessoas.
67. Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da verdadeira compaixão,
que nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé em Cristo Redentor,
morto e ressuscitado, ilumina com novas razões. A súplica que brota do coração
do homem no confronto supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando
é tentado a fechar´se no desespero e como que a aniquilar´se nele, é sobretudo
uma petição de companhia, solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda
para continuar a esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos
recordou o Concílio Vaticano II, « é em face da morte que o enigma da condição
humana mais se adensa » para o homem; e, todavia, « a intuição do próprio
coração fá´lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o
desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele
existe, irredutível à pura matéria, insurge´se contra a morte ».86 Esta
repugnância natural da morte e este germe de esperança na imortalidade são
iluminadas e levadas à plenitude pela fé cristã, que promete e oferece a
participação na vitória de Cristo Ressuscitado: é a vitória d´Aquele que, pela
sua morte redentora, libertou o homem da morte, « salário do pecado » (Rm 6,
23), e lhe deu o Espírito, penhor de ressurreição e de vida (cf. Rm 8, 11). A
certeza da imortalidade futura e a esperança na ressurreição prometida
projectam uma luz nova sobre o mistério do sofrimento e da morte e infundem no
crente uma força extraordinária para se abandonar ao desígnio de Deus. O apóstolo
Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença total ao Senhor que abraça
qualquer condição humana: « Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós
morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o
Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor » (Rm 14,
7´8). Morrer para o Senhor significa viver a própria morte como acto supremo de
obediência ao Pai (cf. Fil 2, 8), aceitando encontrá´la na « hora » querida e
escolhida por Ele (cf. Jo 13, 1), o único que pode dizer quando está cumprido o
caminho terreno. Viver para o Senhor significa também reconhecer que o
sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal e uma prova, sempre se pode
tornar fonte de bem. E torna´se tal se é vivido por amor e com amor, na
participação, por dom gratuito de Deus e por livre opção pessoal, no próprio
sofrimento de Cristo crucificado. Deste modo, quem vive o seu sofrimento no
Senhor fica mais plenamente configurado com Ele (cf. Fil 3, 10; 1 Ped 2, 21) e
intimamente associado à sua obra redentora a favor da Igreja e da huma´
nidade.87 É esta experiência do Apóstolo, que toda a pessoa que sofre é chamada
a viver: « Alegro´me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na
minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a
Igreja » (Col 1, 24).
« Importa mais obedecer a Deus do que aos homens » (Act 5, 29): a lei civil e a
lei moral
68. Uma das características dos actuais atentados à vida humana — como já se
disse várias vezes — é a tendência para exigir a sua legitimação jurídica, como
se fossem direitos que o Estado deveria, pelo menos em certas condições,
reconhecer aos cidadãos e, consequentemente, a pretensão da execução dos mesmos
com a assistência segura e gratuita dos médicos e restantes profissionais da
saúde. Considera´se, não raro, que a vida daquele que ainda não nasceu ou está
gravemente debilitado, seria um bem simplesmente relativo: teria de ser
confrontada e ponderada com outros bens, segundo uma lógica proporcionalista ou
de puro cálculo. Igualmente pensa´se que só quem se encontra na situação
concreta e nela está pessoalmente implicado é que poderia realizar uma justa
ponderação dos bens em jogo: por conseguinte, unicamente essa pessoa poderia
decidir sobre a moralidade da sua escolha. Por isso, e no interesse da
convivência civil e da harmonia social, o Estado deveria respeitar essa
escolha, chegando mesmo a admitir o aborto e a eutanásia. Outras vezes,
julga´se que a lei civil não poderia exigir que todos os cidadãos vivessem segundo
um grau de moralidade mais elevado do que aquele que eles mesmos reconhecem e
condividem. Por isso, a lei deveria exprimir sempre a opinião e a vontade da
maioria dos cidadãos e reconhecer´lhes também, pelo menos em certos casos
extremos, o direito ao aborto e à eutanásia. Nesses casos, aliás, a proibição e
a punição dos referidos actos conduziria inevitavelmente — assim o dizem — a um
aumento de práticas clandestinas: e estas escapariam ao necessário controlo
social e seriam realizadas sem a devida segurança médica. E interrogam´se, além
disso, se o apoiar uma lei que não é concretamente aplicável não significaria,
em última análise, minar também a autoridade de qualquer outra lei. Nas
opiniões mais radicais, chega´se mesmo a defender que, numa sociedade moderna e
pluralista, deveria ser reconhecida a cada pessoa total autonomia para dispor
da própria vida e da vida de quem ainda não nasceu: não seria competência da
lei fazer a escolha entre as diversas opiniões morais, e menos ainda poderia
ela pretender impor uma opinião particular em detrimento das outras.
69. Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha amplamente
generalizada a opinião, segundo a qual o ordenamento jurídico de uma sociedade
haveria de limitar´se a registar e acolher as convicções da maioria e,
consequentemente, dever´se´ia construir apenas sobre aquilo que a própria
maioria reconhece e vive como moral. Se, depois, se chega a pensar que uma
verdade comum e objectiva seria realmente inacessível, então o respeito pela liberdade
dos cidadãos — que, num regime democrático, são considerados os verdadeiros
soberanos — exigiria que, a nível legislativo, se reconhecesse a autonomia da
consciência de cada um e, por conseguinte, ao estabelecer aquelas normas que
são absolutamente necessárias à convivência social, se adequassem
exclusivamente à vontade da maioria, fosse ela qual fosse. Desta maneira, todo
o político deveria separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência
privada e o do comportamento público. Em consequência disto, registam´se duas
tendências que na aparência são diametralmente opostas. Por um lado, os
indivíduos reivindicam para si a mais completa autonomia moral de decisão, e
pedem que o Estado não assuma nem imponha qualquer concepção ética, mas se
limite a garantir o espaço mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo
como único limite externo não lesar o espaço de autonomia a que cada um dos
outros cidadãos também tem direito. Mas por outro lado, pensa´se que, no
desempenho das funções públicas e profissionais, o respeito pela liberdade
alheia de escolha obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções para
se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos, que as leis reconhecem
e tutelam, aceitando como único critério moral no exercício das próprias
funções aquilo que está estabelecido pelas mesmas leis. Deste modo, a
responsabilidade da pessoa é delegada na lei civil com a abdicação da própria
consciência moral, pelo menos no âmbito da acção pública.
70. Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo ético, que caracteriza
grande parte da cultura contemporânea. Não falta quem pense que tal relativismo
seja uma condição da democracia, visto que só ele garantiria tolerância,
respeito recíproco entre as pessoas e adesão às decisões da maioria, enquanto
as normas morais, consideradas objectivas e vinculantes, conduziriam ao
autoritarismo e à intolerância. Mas é exactamente a problemática conexa com o
respeito da vida que mostra os equívocos e contradições, com terríveis
resultados práticos, que se escondem nesta posição. É verdade que a história
regista casos de crimes cometidos em nome da « verdade ». Mas crimes não menos
graves e negações radicais da liberdade foram também cometidos e cometem´se em
nome do « relativismo ético ». Quando uma maioria parlamentar ou social decreta
a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda
não nascida, porventura não assume uma decisão « tirânica » contra o ser humano
mais débil e indefeso? Justamente reage a consciência universal diante dos
crimes contra a humanidade, de que o nosso século viveu tão tristes
experiências. Porventura deixariam de ser crimes, se, em vez de terem sido
cometidos por tiranos sem escrúpulos, fossem legitimados por consenso popular?
Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da moralidade ou
a panaceia da imoralidade. Fundamentalmente, é um « ordenamento » e, como tal,
um instrumento, não um fim. O seu carácter « moral » não é automático, mas
depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer
outro comportamento humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins
que persegue e dos meios que usa. Regista´se hoje um consenso quase universal
sobre o valor da democracia, o que há´de ser considerado um positivo « sinal
dos tempos », como o Magistério da Igreja já várias vezes assinalou.88 Mas, o
valor da democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e promove:
fundamentais e imprescindíveis são certamente a dignidade de toda a pessoa humana,
o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção
do « bem comum » como fim e critério regulador da vida política. Na base destes
valores, não podem estar « maiorias » de opinião provisórias e mutáveis, mas só
o reconhecimento de uma lei moral objectiva que, enquanto « lei natural »
inscrita no coração do homem, seja ponto normativo de referência para a própria
lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da consciência colectiva, o
cepticismo chegasse a pôr em dúvida mesmo os princípios fundamentais da lei
moral, então o próprio ordenamento democrático seria abalado nos seus
fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação empírica dos
diversos e contrapostos interesses.89 Alguém poderia pensar que, na falta de
melhor, já esta função reguladora fosse de apreciar em vista da paz social.
Mesmo reconhecendo qualquer ponto de verdade em tal avaliação, é difícil não
ver que, sem um ancoradouro moral objectivo, a democracia não pode assegurar
uma paz estável, até porque é ilusória a paz não fundada sobre os valores da
dignidade de cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos próprios
regimes de democracia representativa, de facto, a regulação dos interesses é
frequentemente feita a favor dos mais fortes, sendo estes os mais competentes
para manobrar não apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos
consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna uma palavra vazia.
71. Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge,
pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e
congénitos, que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam
a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum
Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá
reconhecer, respeitar e promover. Importa retomar, neste sentido, os elementos
fundamentais da visão das relações entre lei civil e lei moral, tal como os
propõe a Igreja, mas que fazem parte também do património das grandes tradições
jurídicas da humanidade. Certamente, a função da lei civil é diversa e
de âmbito mais limitado que a da lei moral. De facto, « em nenhum âmbito da vida, pode a lei civil substituir´se à
consciência, nem pode ditar normas naquilo que ultrapassa a sua competência
»,90 que é assegurar o bem comum das pessoas, mediante o reconhecimento e
defesa dos seus direitos fundamentais, a promoção da paz e da moralidade
pública.91 Com efeito, a função da lei civil consiste em garantir uma convivência
social na ordem e justiça verdadeira, para que todos « tenhamos vida tranquila
e sossegada, com toda a piedade e honestidade » (1 Tm 2, 2). Por isso mesmo, a
lei civil deve assegurar a todos os membros da sociedade o respeito de alguns
direitos fundamentais, que pertencem por natureza à pessoa e que qualquer lei
positiva tem de reconhecer e garantir. Primeiro e fundamental entre eles é o
inviolável direito à vida de todo o ser humano inocente. Se a autoridade
pública pode, às vezes, renunciar a reprimir algo que, se proibido, provocaria
um dano maior,92 ela não poderá nunca aceitar como direito dos indivíduos —
ainda que estes sejam a maioria dos membros da sociedade —, a ofensa infligida
a outras pessoas através do menosprezo de um direito tão fundamental como o da
vida. A tolerância legal do aborto ou da eutanásia não pode, de modo algum,
fazer apelo ao respeito pela consciência dos outros, precisamente porque a
sociedade tem o direito e o dever de se defender contra os abusos que se possam
verificar em nome da consciência e com o pretexto da liberdade.93 A este
propósito, João XXIII recordara na Encíclica Pacem in terris: « Hoje em dia
crê´se que o bem comum consiste sobretudo no respeito dos direitos e deveres da
pessoa. Oriente´se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido
que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e
promovidos, tornando´se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres.
´A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos
invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres´. Por
isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar,
não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas
de qualquer valor jurídico ».94
72. Também está em continuidade com toda a Tradição da Igreja, a doutrina da
necessidade da lei civil se conformar com a lei moral, como se vê na citada
encíclica de João XXIII: « A autoridade é exigência da ordem moral e promana de
Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa
ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não
podem obrigar a consciência dos cidadãos. (...) Neste caso, a própria
autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder ».95 O mesmo
ensinamento aparece claramente em S. Tomás de Aquino, que escreve: « A lei
humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando,
portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama´se lei iníqua e,
como tal, não tem valor, mas é um acto de violência ».96 E ainda: « Toda a lei
constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei
natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural,
então não é lei mas sim corrupção da lei ».97 Ora, a primeira e mais imediata
aplicação desta doutrina diz respeito à lei humana que menospreza o direito
fundamental e primordial à vida, direito próprio de cada homem. Assim, as leis
que legitimam a eliminação directa de seres humanos inocentes, por meio do
aborto e da eutanásia, estão em contradição total e insanável com o direito
inviolável à vida, próprio de todos os homens, e negam a igualdade de todos
perante a lei. Poder´se´ia objectar que é diverso o caso da eutanásia, quando
pedida em plena consciência pelo sujeito interessado. Mas um Estado que
legitimasse tal pedido, autorizando a sua realização, estaria a legalizar um
caso de suicídio´homicídio, contra os princípios fundamentais da não´ ´disponibilidade
da vida e da tutela de cada vida inocente. Deste modo, favorece´se a diminuição
do respeito pela vida e abre´se a estrada a comportamentos demolidores da
confiança nas relações sociais. As leis que autorizam e favorecem o aborto e a
eutanásia colocam´se, pois, radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas
também contra o bem comum e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica
validade jurídica. De facto, o menosprezo do direito à vida, exactamente porque
leva a eliminar a pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua razão de
existir, é aquilo que se contrapõe mais frontal e irreparavelmente à
possibilidade de realizar o bem comum. Segue´se daí que, quando uma lei civil
legitima o aborto ou a eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira
lei civil, moralmente obrigatória.
73. O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei humana pode
pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para a
consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor´se
a elas através da objecção de consciência. Desde os princípios da Igreja, a
pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades
públicas legitimamente constituídas (cf. Rm 13, 1´7; 1 Ped 2, 13´14), mas, ao
mesmo tempo, advertiu firmemente que « importa mais obedecer a Deus do que aos
homens » (Act 5, 29). Já no Antigo Testamento e a propósito de ameaças contra a
vida, encontramos um significativo exemplo de resistência à ordem injusta da
autoridade. As parteiras dos hebreus opuseram´se ao Faraó, que lhes tinha dado
a ordem de matarem todos os rapazes por ocasião do parto. « Não cumpriram a
ordem do rei do Egipto, e deixaram viver os rapazes » (Ex 1, 17). Mas há que
salientar o motivo profundo deste seu comportamento: « As parteiras temiam a
Deus » (Ex 1, 17). É precisamente da obediência a Deus — o único a Quem se deve
aquele temor que significa reconhecimento da sua soberania absoluta — que
nascem a força e a coragem de resistir às leis injustas dos homens. É a força e
a coragem de quem está disposto mesmo a ir para a prisão ou a ser morto à
espada, na certeza de que nisto « está a paciência e a fé dos Santos » (Ap 13,
10). Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que
admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar´se com ela, « nem
participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem
dar´lhe a aprovação com o próprio voto ».98 Um particular problema de
consciência poder´se´ia pôr nos casos em que o voto parlamentar fosse
determinante para favorecer uma lei mais restritiva, isto é, tendente a
restringir o número dos abortos autorizados, como alternativa a uma lei mais
permissiva já em vigor ou posta a votação. Não são raros tais casos. Sucede, com
efeito, que, enquanto, nalgumas partes do mundo, continuam as campanhas para a
introdução de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes apoiadas por organismos
internacionais poderosos, noutras nações, pelo contrário — particularmente
naquelas que já fizeram a amarga experiência de tais legislações permissivas —,
vão´se manifestando sinais de reconsideração. No caso hipotizado, quando não
fosse possível esconjurar ou abrogar completamente uma lei abortista, um
deputado, cuja absoluta oposição pessoal ao aborto fosse clara e conhecida de
todos, poderia licitamente oferecer o próprio apoio a propostas que visassem
limitar os danos de uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no âmbito
da cultura e da moralidade pública. Ao proceder assim, de facto, não se realiza
a colaboração ilícita numa lei injusta; mas cumpre´se, antes, uma tentativa
legítima e necessária para limitar os seus aspectos iníquos. 74. A introdução
de legislações injustas põe frequentemente os homens moralmente rectos frente a
difíceis problemas de consciência em matéria de colaboração, por causa da
imperiosa afirmação do próprio direito de não ser obrigado a participar em
acções moralmente más. Às vezes, as opções que se impõem tomar, são dolorosas e
podem requerer o sacrifício de posições profissionais consolidadas ou a
renúncia a legítimas perspectivas de promoção na carreira. Noutros casos, pode
acontecer que o cumprimento de algumas acções, em si mesmas indiferentes ou
mesmo até positivas, previstas no articulado de legislações globalmente
injustas, consinta a salvaguarda de vidas humanas ameaçadas. Mas, por outro
lado, pode´se justamente temer que a disponibilidade a realizar tais acções não
só provoque um escândalo e favoreça o enfraquecimento da oposição necessária
aos atentados contra a vida, como insensivelmente induza também a conformar´se
cada vez mais com uma lógica permissiva. Para iluminar esta difícil questão
moral, é preciso recorrer aos princípios gerais referentes à cooperação em
acções moralmente más. Os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são
chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração
formal em acções que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em
contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito
cooperar formalmente no mal. E essa cooperação verifica´se quando a acção
realizada, pela sua própria natureza ou pela configuração que tem assumido num
contexto concreto, se qualifica como participação directa num acto contra a
vida humana inocente ou como aprovação da intenção moral do agente principal.
Tal cooperação nunca pode ser justificada invocando o respeito da liberdade
alheia, nem apoiando´se no facto de que a lei civil a prevê e requer: com
efeito, nos actos cumpridos pessoalmente por cada um, existe uma
responsabilidade moral, à qual ninguém poderá jamais subtrair´se e sobre a qual
cada um será julgado pelo próprio Deus (cf. Rm 2, 6; 14, 12). Recusar a própria
participação para cometer uma injustiça é não só um dever moral, mas também um direito
humano basilar. Se assim não fosse, a pessoa seria constrangida a cumprir uma
acção intrinsecamente incompatível com a sua dignidade e, desse modo, ficaria
radicalmente comprometida a sua própria liberdade, cujo autêntico sentido e fim
reside na orientação para a verdade e o bem. Trata´se, pois, de um direito
essencial que, precisamente como tal, deveria estar previsto e protegido pela
própria lei civil. Nesse sentido, a possibilidade de se recusar a participar na
fase consultiva, preparatória e executiva de semelhantes actos contra a vida,
deveria ser assegurada aos médicos, aos outros profissionais da saúde e aos
responsáveis pelos hospitais, clínicas e casas de saúde. Quem recorre à
objecção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de sanções penais,
mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, económico e
profissional. « Amarás ao teu próximo como a ti mesmo » (Lc 10, 27): « promove
» a vida
75. Os mandamentos de Deus ensinam´nos o caminho da vida. Os preceitos morais
negativos, isto é, aqueles que declaram moralmente inaceitável a escolha de uma
determinada acção, têm um valor absoluto para a liberdade humana: valem sempre
e em todas as circunstâncias, sem excepção. Indicam que a escolha de
determinado comportamento é radicalmente incompatível com o amor a Deus e com a
dignidade da pessoa, criada à sua imagem: por isso, tal escolha não pode ser
resgatada pela bondade de qualquer intenção ou consequência, está em contraste
insanável com a comunhão entre as pessoas, contradiz a decisão fundamental de
orientar a própria vida para Deus.99 Já neste sentido, os preceitos morais
negativos têm uma função positiva importantíssima: o ´não´ que exigem
incondicionalmente, aponta o limite intransponível abaixo do qual o homem livre
não pode descer, e simultaneamente indica o mínimo que ele deve respeitar e do
qual deve partir para pronunciar inumeráveis « sins », capazes de cobrir
progressivamente todo o horizonte do bem (cf. Mt 5, 48), em cada um dos seus
âmbitos. Os mandamentos, de modo particular os preceitos morais negativos, são
o início e a primeira etapa necessária do caminho da liberdade: « A primeira
liberdade — escreve Santo Agostinho — consiste em estar isento de crimes (...),
como seja o homicídio, o adultério, a fornicação, o roubo, a fraude, o
sacrilégio, e assim por diante. Quando alguém começa a não ter estes crimes (e
nenhum cristão os deve ter), começa a levantar a cabeça para a liberdade, mas
isto é apenas o início da liberdade, não a liberdade perfeita ».100
76. O mandamento « não matarás » estabelece, pois, o ponto de partida de um
caminho de verdadeira liberdade, que nos leva a promover activamente a vida e a
desenvolver determinadas atitudes e comportamentos ao seu serviço: procedendo
assim, exercemos a nossa responsabilidade para com as pessoas que nos estão
confiadas, e manifestamos, em obras e verdade, o nosso reconhecimento a Deus
pelo grande dom da vida (cf. Sal 139138, 13´14). O Criador confiou a vida do
homem à sua solicitude responsável, não para que disponha arbitrariamente dela
mas a guarde com sabedoria e administre com amorosa fidelidade. O Deus da
Aliança confiou a vida de cada homem ao homem, seu irmão, segundo a lei da
reciprocidade no dar e no receber, no dom de si e no acolhimento do outro. Na
plenitude dos tempos, o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida pelo
homem, mostrou a altura e profundidade a que pode chegar esta lei da
reciprocidade. Com o dom do seu Espírito, Cristo dá conteúdos e significados
novos à lei da reciprocidade, à entrega do homem ao homem. O Espírito, que é
artífice de comunhão no amor, cria entre os homens uma nova fraternidade e
solidariedade, verdadeiro reflexo do mistério de recíproca doação e acolhimento
próprios da Santíssima Trindade. O próprio Espírito torna´Se a lei nova, que dá
força aos crentes e apela à sua responsabilidade para viverem reciprocamente o
dom de si e o acolhimento do outro, participando no próprio amor de Jesus
Cristo e segundo a sua medida.
77. Animado e plasmado por esta lei nova está também o mandamento que diz « não
matarás ». Para o cristão, isto implica, em última análise, o imperativo de
respeitar, amar e promover a vida de cada irmão, segundo as exigências e as
dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. « Ele deu a Sua vida por nós, e nós
devemos dar a vida pelos nossos irmãos » (1 Jo 3, 16). O mandamento « não
matarás », inclusive nos seus conteúdos mais positivos de respeito, amor e
promoção da vida humana, vincula todo o homem. De facto, ressoa na consciência
moral de cada um como um eco irreprimível da aliança primordial de Deus criador
com o homem; todos o podem conhecer pela luz da razão e observar pela obra
misteriosa do Espírito que, soprando onde quer (cf. Jo 3, 8), alcança e inspira
todo o homem que vive neste mundo. Constitui, portanto, um serviço de amor,
aquele que todos estamos empenhados em assegurar ao nosso próximo, para que a
sua vida seja defendida e promovida sempre, mas sobretudo quando é mais débil
ou ameaçada. É uma solicitude pessoal mas também social, que todos devemos
cultivar, pondo o respeito incondicional da vida humana como fundamento de uma
sociedade renovada. É´nos pedido que amemos e honremos a vida de cada homem e
de cada mulher, e que trabalhemos, com constância e coragem, para que, no nosso
tempo atravessado por demasiados sinais de morte, se instaure finalmente uma
nova cultura da vida, fruto da cultura da verdade e do amor.
CAPÍTULO IV
A MIM O FIZESTES POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
« Vós sois o povo adquirido por Deus, para proclamardes as suas obras maravilhosas
» (1 Ped 2, 9): o povo da vida e pela vida
78. A Igreja recebeu o Evangelho, como anúncio e fonte de alegria e de
salvação. Recebeu´o em dom de Jesus, que foi enviado pelo Pai « para anunciar a
Boa Nova aos pobres » (Lc 4, 18). Recebeu´o através dos Apóstolos, que o Mestre
enviou pelo mundo inteiro (cf. Mc 16, 15; Mt 28, 19´20). Nascida desta acção
missionária, a Igreja ouve ressoar em si mesma todos os dias aquela palavra de
incitamento apostólico: « Ai de mim se não evangelizar! » (1 Cor 9, 16). « Evangelizar
— como escrevia Paulo VI — constitui, de facto, a graça e a vocação própria da
Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar ».101 A
evangelização é uma acção global e dinâmica que envolve a Igreja na sua
participação da missão profética, sacerdotal e real do Senhor Jesus. Por isso,
a evangelização compreende indivisivelmente as dimensões do anúncio, da
celebração e do serviço da caridade. É um acto profundamente eclesial, que
compromete todos os operários do Evangelho, cada um segundo os seus carismas e
o próprio ministério. O mesmo acontece quando se trata de anunciar o Evangelho
da vida, parte integrante do Evangelho que é Jesus Cristo. Nós estamos ao
serviço deste Evangelho, amparados na certeza de o termos recebido em dom e de
sermos enviados a proclamá´lo a toda a humanidade, « até aos confins do mundo »
(Act 1, 8). Por isso, grata e humildemente conservamos a consciência de ser o
povo da vida e pela vida e assim nos apresentamos diante de todos. 79. Somos o
povo da vida, porque Deus, no seu amor generoso, deu´nos o Evangelho da vida e,
por este mesmo Evangelho, fomos transformados e salvos. Fomos reconquistados
pelo « Príncipe da vida » (Act 3, 15), com o preço do seu sangue precioso (cf.
1 Cor 6, 20; 7, 23; 1 Ped 1, 19), e, pelo banho baptismal, fomos enxertados
n´Ele (cf. Rm 6, 4´5; Col 2, 12) como ramos que recebem seiva e fecundidade da
única árvore (cf. Jo 15, 5). Interiormente renovados pela graça do Espírito, «
Senhor que dá a vida », tornámo´nos um povo pela vida, e como tal somos
chamados a comportar´nos. Somos enviados: estar ao serviço da vida não é para
nós um título de glória, mas um dever que nasce da consciência de sermos « o
povo adquirido por Deus para proclamar as suas obras maravilhosas » (cf. 1 Ped
2, 9). No nosso caminho, guia´nos e anima´nos a lei do amor: um amor, cuja
fonte e modelo é o Filho de Deus feito homem que « pela sua morte deu a vida ao
mundo ».102 Somos enviados como povo. O compromisso de servir a vida incumbe
sobre todos e cada um. É uma responsabilidade tipicamente « eclesial », que
exige a acção concertada e generosa de todos os membros e estruturas da
comunidade cristã. Mas a sua característica de dever comunitário não elimina
nem diminui a responsabilidade de cada pessoa, a quem é dirigido o mandamento
do Senhor de « fazer´se próximo » de todo o homem: « Vai e faz tu também do
mesmo modo » (Lc 10, 37). Todos juntos sentimos o dever de anunciar o Evangelho
da vida, de o celebrar na liturgia e na existência inteira, de o servir com as diversas
iniciativas e estruturas de apoio e promoção. « O que vimos e ouvimos, isso vos
anunciamos » (1 Jo 1, 3): anunciar o Evangelho da vida 80. « O que era desde o
princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e
as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida (...) isso vos anunciamos,
para que também vós tenhais comunhão connosco » (1 Jo 1, 1.3). Jesus é o único
Evangelho: Ele é tudo o que temos para dizer e testemunhar. O próprio anúncio
de Jesus é anúncio da vida. Ele, de facto, é o « Verbo da vida » (1 Jo 1, 1).
N´Ele, « a vida manifestou´se » (1 Jo 1, 2); melhor, Ele mesmo é a « vida
eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada » (1 Jo 1, 2). Esta mesma
vida, graças ao dom do Espírito, foi comunicada ao homem. Orientada para a vida
em plenitude — a « vida eterna » —, também a vida terrena de cada um adquire o
seu sentido pleno. Iluminados pelo Evangelho da vida, sentimos a necessidade de
o proclamar e testemunhar pela surpreendente novidade que o caracteriza: identificando´se
com o próprio Jesus, portador de toda a novidade 103 e vencedor daquele «
envelhecimento » que provém do pecado e conduz à morte,104 este Evangelho
supera toda a expectativa do homem e revela a grandeza excelsa, a que a
dignidade da pessoa é elevada pela graça. Assim a contempla S. Gregório de
Nissa: « Quando comparado com os outros seres, o homem nada vale, é pó, erva,
ilusão; mas, uma vez adoptado como filho pelo Deus do universo, é feito
familiar deste Ser, cuja excelência e grandeza ninguém pode ver, ouvir nem
compreender. Com que palavra, pensamento ou arroubo de espírito poderemos
celebrar a superabundância desta graça? O homem supera a sua natureza: de
mortal passa a imortal, de perecível a imperecível, de efémero a eterno, de
homem torna´se deus ».105 A gratidão e a alegria por esta dignidade
incomensurável do homem incitam´nos a tornar os demais participantes desta
mensagem: « O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós
tenhais comunhão connosco » (1 Jo 1, 3). É necessário fazer chegar o Evangelho
da vida ao coração de todo o homem e mulher, e inseri´lo nas pregas mais
íntimas do tecido da sociedade inteira.
81. Trata´se em primeiro lugar de anunciar o núcleo deste Evangelho: é o
anúncio de um Deus vivo e solidário, que nos chama a uma profunda comunhão
Consigo e nos abre à esperança segura da vida eterna; é a afirmação do laço
indivisível que existe entre a pessoa, a sua vida e a própria corporeidade; é a
apresentação da vida humana como vida de relação, dom de Deus, fruto e sinal do
seu amor; é a proclamação da extraordinária relação de Jesus com todo o homem,
que permite reconhecer o rosto de Cristo em cada rosto humano; é a indicação do
« dom sincero de si » como tarefa e lugar de plena realização da própria liberdade.
Importa, depois, mostrar todas as consequências deste mesmo Evangelho, que se
podem resumir assim: a vida humana, dom precioso de Deus, é sagrada e
inviolável, e, por isso mesmo, o aborto provocado e a eutanásia são
absolutamente inaceitáveis; a vida do homem não apenas não deve ser eliminada,
mas há´de ser protegida com toda a atenção e carinho; a vida encontra o seu
sentido no amor recebido e dado, em cujo horizonte haurem plena verdade a
sexualidade e a procriação humana; nesse amor, até mesmo o sofrimento e a morte
têm um sentido, podendo tornar´se acontecimentos de salvação, não obstante
perdurar o mistério que os envolve; o respeito pela vida exige que a ciência e
a técnica estejam sempre orientadas para o homem e para o seu desenvolvimento
integral; a sociedade inteira deve respeitar, defender e promover a dignidade
de toda a pessoa humana, em cada momento e condição da sua vida.
82. Para sermos verdadeiramente um povo ao serviço da vida, temos de propor,
com constância e coragem, estes conteúdos, desde o primeiro anúncio do
Evangelho, e, depois, na catequese e nas diversas formas de pregação, no
diálogo pessoal e em toda a acção educativa. Aos educadores, professores,
catequistas e teólogos, incumbe o dever de pôr em destaque as razões antropológicas
que fundamentam e apoiam o respeito de cada vida humana. Desta forma, ao mesmo
tempo que faremos resplandecer a original novidade do Evangelho da vida,
poderemos ajudar os demais a descobrirem, inclusive à luz da razão e da
experiência, como a mensagem cristã ilumina plenamente o homem e o significado
do seu ser e existir; encontraremos valiosos pontos de encontro e diálogo
também com os não crentes, empenhados todos juntos a fazer despertar uma nova
cultura da vida. Cercados pelas vozes mais constrastantes, enquanto muitos
rejeitam a sã doutrina sobre a vida do homem, sentimos dirigida a nós a
recomendação de Paulo a Timóteo: « Prega a palavra, insiste oportuna e
inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina » (2 Tm 4,
2). Com particular vigor, há´de ressoar esta exortação no coração de quantos na
Igreja, mais directamente e a diverso título, participam da sua missão de «
mestra » da verdade. Ressoe, antes de mais, em nós, Bispos, que somos os
primeiros a quem é pedido tornar´se incansável anunciador do Evangelho da vida;
está´nos confiado também o dever de vigiar sobre a transmissão íntegra e fiel
do ensinamento proposto nesta Encíclica, e de recorrer às medidas mais
oportunas para que os fiéis sejam preservados de toda a doutrina contrária ao
mesmo. Havemos de dedicar especial atenção às Faculdades Teológicas, aos
Seminários e às diversas Instituições Católicas, para que aí seja comunicado,
ilustrado e aprofundado o conhecimento da sã doutrina.106 A exortação de Paulo
seja também ouvida por todos os teólogos, pastores e quantos desempenham
tarefas de ensino, catequese e formação das consciências: cientes do papel que
lhes cabe, não assumam nunca a grave responsabilidade de atraiçoar a verdade e
a própria missão, expondo ideias pessoais contrárias ao Evangelho da vida, que
o Magistério fielmente propõe e interpreta. Quando anunciarmos este Evangelho,
não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso
e ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo (cf. Rm 12, 2).
Com a força recebida de Cristo, que venceu o mundo pela sua morte e
ressurreição (cf. Jo 16, 33), devemos estar no mundo, mas não ser do mundo (cf.
Jo 15, 19; 17, 16). « Eu Vos louvo porque me fizestes como um prodígio » (Sal
139138, 14): celebrar o Evangelho da vida
83. Enviados ao mundo como « povo pela vida », o nosso anúncio deve tornar´se
também uma verdadeira e própria celebração do Evangelho da vida. É precisamente
esta celebração, com toda a força evocativa dos seus gestos, símbolos e ritos,
que se torna o lugar mais precioso e significativo para transmitir a beleza e a
grandeza desse Evangelho. Para isso, urge, antes de mais, cultivar, em nós e
nos outros, um olhar contemplativo.107 Este nasce da fé no Deus da vida, que
criou cada homem fazendo dele um prodígio (cf. Sal 139138, 14). É o olhar de
quem observa a vida em toda a sua profundidade, reconhecendo nela as dimensões
de generosidade, beleza, apelo à liberdade e à responsabilidade. É o olhar de
quem não pretende apoderar´se da realidade, mas a acolhe como um dom,
descobrindo em todas as coisas o reflexo do Criador e em cada pessoa a sua
imagem viva (cf. Gn 1, 27; Sal 8, 6). Este olhar não se deixa cair em desânimo
à vista daquele que se encontra enfermo, atribulado, marginalizado, ou às
portas da morte; mas deixa´se interpelar por todas estas situações procurando
nelas um sentido, sendo, precisamente em tais circunstâncias, que se apresenta
disponível para ler de novo no rosto de cada pessoa um apelo ao entendimento,
ao diálogo, à solidariedade. É tempo de todos assumirem este olhar, tornando´se
novamente capazes de venerar e honrar cada homem, com ânimo repleto de
religioso assombro, como nos convidava a fazer Paulo VI numa das suas mensagens
natalícias.108 Animado por este olhar contemplativo, o povo novo dos redimidos
não pode deixar de prorromper em hinos de alegria, louvor e gratidão pelo dom
inestimável da vida, pelo mistério do chamamento de todo o homem a participar,
em Cristo, na vida da graça e numa existência de comunhão sem fim com Deus
Criador e Pai.
84. Celebrar o Evangelho da vida significa celebrar o Deus da vida, o Deus que
dá a vida: « Nós devemos celebrar a Vida eterna, da qual procede qualquer outra
vida. Dela recebe a vida, na proporção das respectivas capacidades, todo o ser
que, de algum modo, participa da vida. Essa Vida divina, que está acima de
qualquer vida, vivifica e conserva a vida. Toda a vida e qualquer movimento
vital procedem desta Vida que transcende cada vida e cada princípio de vida. A
Ela devem as almas a sua incorruptibilidade, como também vivem, graças a Ela,
todos os animais e todas as plantas que recebem da vida um eco mais débil. Aos
homens, seres compostos de espírito e matéria, a Vida dá a vida. Se depois nos
acontece abandoná´la, então a Vida, pelo transbordar do seu amor pelo homem,
converte´nos e chama´nos a Si. E mais... Promete também conduzir´nos — alma e
corpo — à vida perfeita, à imortalidade. É demasiado pouco dizer que esta Vida
é viva: Ela é Princípio de vida, Causa e Fonte única de vida. Todo o vivente
deve contemplá´la e louvá´la: é Vida que transborda de vida ».109 Como o
Salmista, também nós, na oração diária individual e comunitária, louvamos e
bendizemos a Deus nosso Pai que nos plasmou no seio materno, viu´nos e amou´nos
quando estávamos ainda em embrião (cf. Sal 139138, 13.15´16), e exclamamos, com
alegria irreprimível: « Eu Vos louvo porque me fizestes como um prodígio; as
vossas obras são admiráveis, conheceis a sério a minha alma » (Sal 139138, 14).
Sim, « esta vida mortal, não obstante as suas aflições, os seus mistérios
obscuros, os seus sofrimentos, a sua fatal caducidade, é um facto belíssimo, um
prodígio sempre original e enternecedor, um acontecimento digno de ser cantado
com júbilo e glória ».110 Mais, o homem e a sua vida não se revelam apenas como
um dos prodígios mais altos da criação: Deus conferiu ao homem uma dignidade
quase divina (cf. Sal 8, 6´7). Em cada criança que nasce e em cada homem que
vive ou morre, reconhecemos a imagem da glória de Deus: nós celebramos esta
glória em cada homem, sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo. Somos chamados
a exprimir assombro e gratidão pela vida recebida em dom e a acolher, saborear
e comunicar o Evangelho da vida, não só através da oração pessoal e
comunitária, mas sobretudo com as celebrações do ano litúrgico. No mesmo
contexto, há que recordar, de modo particular, os Sacramentos, sinais eficazes
da presença e acção salvadora do Senhor Jesus na existência cristã: tornam os
homens participantes da vida divina, assegurando´lhes a energia espiritual
necessária para realizarem plenamente o verdadeiro significado do viver, do
sofrer e do morrer. Graças a uma genuína descoberta do sentido dos ritos e à
sua adequada valorização, as celebrações litúrgicas, sobretudo as sacramentais,
serão capazes de exprimir cada vez melhor a verdade plena acerca do nascimento,
da vida, do sofrimento e da morte, ajudando a viver estas realidades como
participação no mistério pascal de Cristo morto e ressuscitado.
85. Na celebração do Evangelho da vida, é preciso saber apreciar e valorizar
também os gestos e os símbolos, de que são ricas as diversas tradições e
costumes culturais dos povos. Trata´se de momentos e formas de encontro, pelos
quais, nos diversos países e culturas, se manifesta a alegria pela vida que
nasce, o respeito e defesa de cada existência humana, o cuidado por quem sofre
ou passa necessidade, a solidariedade com o idoso ou o moribundo, a partilha da
tristeza de quem está de luto, a esperança e o desejo da imortalidade. Nesta
perspectiva e acolhendo a sugestão feita pelos Cardeais no Consistório de 1991,
proponho que se celebre anualmente um Dia em defesa da Vida, nas diversas
Nações, à semelhança do que já se verifica por iniciativa de algumas
Conferências Episcopais. É necessário que essa ocorrência seja preparada e
celebrada com a activa participação de todas as componentes da Igreja local. O
seu objectivo principal é suscitar nas consciências, nas famílias, na Igreja e
na sociedade, o reconhecimento do sentido e valor da vida humana em todos os
seus momentos e condições, concentrando a atenção de modo especial na gravidade
do aborto e da eutanásia, sem contudo transcurar os outros momentos e aspectos
da vida que merecem ser, de vez em quando, tomados em atenta consideração,
conforme a evolução da situação histórica sugerir.
86. Em coerência com o culto espiritual agradável a Deus (cf.Rm 12, 1), a
celebração do Evangelho da vida requer a sua concretização sobretudo na
existência quotidiana, vivida no amor pelos outros e na doação de si próprio.
Assim, toda a nossa existência tornar´se´á acolhimento autêntico e responsável
do dom da vida e louvor sincero e agradecido a Deus que nos fez esse dom. É o
que sucede já com tantos e tantos gestos de doação, frequentemente humilde e
escondida, cumpridos por homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e
idosos, sãos e doentes. É neste contexto, rico de humanidade e amor, que nascem
também os gestos heróicos. Estes são a celebração mais solene do Evangelho da
vida, porque o proclamam com o dom total de si; são a manifestação refulgente
do mais elevado grau de amor, que é dar a vida pela pessoa amada (cf. Jo 15,
13); são a participação no mistério da Cruz, na qual Jesus revela quão grande
valor tem para Ele a vida de cada homem e como esta se realiza em plenitude no
dom sincero de si. Além dos factos clamorosos, existe o heroísmo do quotidiano,
feito de pequenos ou grandes gestos de partilha que alimentam uma autêntica
cultura da vida. Entre estes gestos, merece particular apreço a doação de
órgãos feita, segundo formas eticamente aceitáveis, para oferecer uma
possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já sem esperança. A
tal heroísmo do quotidiano, pertence o testemunho silencioso, mas tão fecundo e
eloquente, de « todas as mães corajosas, que se dedicam sem reservas à própria
família, que sofrem ao dar à luz os próprios filhos, e depois estão prontas a
abraçar qualquer fadiga e a enfrentar todos os sacrifícios, para lhes
transmitir quanto de melhor elas conservam em si ».111 No cumprimento da sua
missão, « nem sempre estas mães heróicas encontram apoio no seu ambiente.
Antes, os modelos de civilização, com frequência promovidos e propagados pelos
meios de comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome do progresso e da modernidade,
são apresentados como já superados os valores da fidelidade, da castidade e do
sacrifício, nos quais se distinguiram e continuam a distinguir´se multidões de
esposas e de mães cristãs. (...) Nós vos agradecemos, mães heróicas, o vosso
amor invencível! Nós vos agradecemos a intrépida confiança em Deus e no seu
amor. Nós vos agradecemos o sacrifício da vossa vida. (...) Cristo, no Mistério
Pascal, restituiu´vos o dom que Lhe fizestes. Ele, de facto, tem o poder de vos
restituir a vida, que Lhe levastes em oferenda ».112 « De que aproveitará,
irmãos, a alguém dizer que tem fé se não tiver obras? » (Tg 2, 14): servir o
Evangelho da vida
87. Em virtude da participação na missão real de Cristo, o apoio e a promoção
da vida humana devem actuar´se através do serviço da caridade, que se exprime
no testemunho pessoal, nas diversas formas de voluntariado, na animação social
e no compromisso político. Trata´se de uma exigência sobremaneira premente na
hora actual, em que a « cultura da morte » se contrapõe à « cultura da vida »,
de forma tão forte que muitas vezes parece levar a melhor. Antes ainda, porém,
trata´se de uma exigência que nasce da « fé que actua pela caridade » (Gal 5,
6), como nos adverte a Carta de S. Tiago: « De que aproveitará, irmãos, a alguém
dizer que tem fé se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá´lo? Se um irmão
ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhe
disser: ´Ide em paz, aquecei´vos e saciai´vos´, sem lhes dar o que é necessário
ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, é
morta em si mesma » (2, 14´17). No serviço da caridade, há uma atitude que nos
há´de animar e caracterizar: devemos cuidar do outro enquanto pessoa confiada
por Deus à nossa responsabilidade. Como discípulos de Jesus, somos chamados a
fazermo´nos próximo de cada homem (cf. Lc 10, 29´37), reservando uma
preferência especial a quem vive mais pobre, sozinho e necessitado. É
precisamente através da ajuda prestada ao faminto, ao sedento, ao estrangeiro,
ao nu, ao doente, ao encarcerado — como também à criança ainda não nascida, ao
idoso que está doente ou perto da morte —, que temos a possibilidade de servir
Jesus, como Ele mesmo declarou: « Sempre que fizestes isto a um destes meus
irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40). Por isso, não
podemos deixar de nos sentir interpelados e julgados por esta página sempre
actual de S. João Crisóstomo: « Queres honrar o corpo de Cristo? Não O
transcures quando se encontrar nu! Não vale prestares honras aqui no templo com
tecidos de seda, e depois transcurá´Lo lá fora, onde sofre frio e nudez ».113 O
serviço da caridade a favor da vida deve ser profundamente unitário: não pode
tolerar unilateralismos e discriminações, já que a vida humana é sagrada e
inviolável em todas as suas fases e situações; é um bem indivisível. Trata´se
de «cuidar » da vida toda e da vida de todos. Ou melhor ainda e mais
profundamente, trata´se de ir até às próprias raízes da vida e do amor.
Partindo exactamente deste amor profundo por todo o homem e mulher, foi´se
desenvolvendo, ao longo dos séculos, uma extraordinária história de caridade,
que introduziu, na vida eclesial e civil, numerosas estruturas de serviço à
vida, que suscitam a admiração até do observador menos prevenido. É uma
história que cada comunidade cristã deve, com renovado sentido de
responsabilidade, continuar a escrever graças a uma múltipla acção pastoral e
social. Neste sentido, é preciso criar formas discretas mas eficazes de
acompanhamento da vida nascente, prestando uma especial solidariedade àquelas
mães que, mesmo privadas do apoio do pai, não temem trazer ao mundo o seu filho
e educá´lo. Cuidado análogo deve ser reservado à vida provada pela
marginalização ou pelo sofrimento, de forma particular nas suas etapas finais.
88. Tudo isto comporta uma obra educativa paciente e corajosa, que estimule
todos e cada um a carregar os fardos dos outros (cf. Gal 6, 2); requer uma
contínua promoção das vocações ao serviço, particularmente entre os jovens; implica
a realização de projectos e iniciativas concretas, sólidas e inspiradas
evangelicamente. Múltiplos são os instrumentos a valorizar por um empenho
competente e sério. Relativamente às fontes da vida, sejam promovidos os
centros com os métodos naturais de regulação da fertilidade, como válida ajuda
à paternidade e maternidade responsável, na qual cada pessoa, a começar do
filho, é reconhecida e respeitada por si mesma, e cada decisão é animada e
guiada pelo critério do dom sincero de si. Também os consultórios matrimoniais
e familiares, através da sua acção específica de consulta e prevenção,
desenvolvida à luz de uma antropologia coerente com a visão cristã da pessoa,
do casal e da sexualidade, constituem um precioso serviço para descobrir o
sentido do amor e da vida, e para apoiar e assistir cada família na sua missão
de « santuário da vida ». Ao serviço da vida nascente, estão ainda os centros
de ajuda à vida e os lares de acolhimento da vida. Graças à sua acção, tantas
mães´solteiras e casais em dificuldade readquirem razões e convicções, e
encontram assistência e apoio para superar contrariedades e medos no
acolhimento de uma vida nascitura ou que acaba de vir à luz. Diante da vida
condicionada por dificuldades, extravio, doença ou marginalização, outros
instrumentos — como as comunidades para a recuperação dos toxicodependentes, os
lares para abrigo de menores ou dos doentes mentais, os centros para
acolhimento e tratamento dos doentes da SIDA, as Cooperativas de solidariedade
sobretudo para inválidos — são expressões eloquentes daquilo que a caridade
sabe inventar para dar novas razões de esperança e possibilidades concretas de
vida a cada um. Quando, depois, a existência terrena se encaminha para o seu
termo, é ainda a caridade que encontra as modalidades mais oportunas para os
idosos, sobretudo se não´autosuficientes, e os chamados doentes terminais
poderem gozar de uma assistência verdadeiramente humana e receber respostas
adequadas às suas exigências, especialmente à sua angústia e solidão. Nestes
casos, é insubstituível o papel das famílias; mas estas podem encontrar grande
ajuda nas estruturas sociais de assistência e, quando necessário, no recurso
aos cuidados paliativos, valendo´se para o efeito dos idóneos serviços clínicos
e sociais, sejam os existentes nos edifícios públicos de internamento e
tratamento, sejam os disponíveis para apoio no domicílio. Em particular, ocorre
reconsiderar o papel dos hospitais, das clínicas e das casas de saúde: a sua
verdadeira identidade não é a de serem apenas estruturas onde se cuida dos
enfermos e doentes terminais, mas e primariamente ambientes nos quais o
sofrimento, a dor e a morte sejam reconhecidos e interpretados no seu
significado humano e especificamente cristão. De modo especial, tal identidade
deve manifestar´se clara e eficientemente nas instituições dependentes de
religiosos ou, de alguma maneira, ligadas à Igreja.
89. Estas estruturas e lugares de serviço à vida, e todas as demais iniciativas
de apoio e solidariedade, que as diversas situações poderão sugerir em cada
ocasião, precisam de ser animados por pessoas generosamente disponíveis e
profundamente conscientes de quão decisivo seja o Evangelho da vida para o bem
do indivíduo humano e da sociedade. Peculiar é a responsabilidade confiada aos
profissionais da saúde — médicos, farmacêuticos, enfermeiros, capelães,
religiosos e religiosas, administradores e voluntários: a sua profissão
pede´lhes que sejam guardiães e servidores da vida humana. No actual contexto
cultural e social, em que a ciência e a arte médica correm o risco de
extraviar´se da sua dimensão ética originária, podem ser às vezes fortemente
tentados a transformarem´se em fautores de manipulação da vida, ou mesmo até em
agentes de morte. Perante tal tentação, a sua responsabilidade é hoje muito
maior e encontra a sua inspiração mais profunda e o apoio mais forte
precisamente na intrínseca e imprescindível dimensão ética da profissão
clínica, como já reconhecia o antigo e sempre actual juramento de Hipócrates,
segundo o qual é pedido a cada médico que se comprometa no respeito absoluto da
vida humana e da sua sacralidade. O respeito absoluto de cada vida humana
inocente exige inclusivamente o exercício da objecção de consciência frente ao
aborto provocado e à eutanásia. O « fazer morrer » nunca pode ser considerado
um cuidado médico, nem mesmo quando a intenção fosse apenas a de secundar um
pedido do paciente: pelo contrário, é a própria negação da profissão médica,
que se define como um apaixonado e vigoroso « sim » à vida. Também a pesquisa
biomédica, campo fascinante e promissor de novos e grandes benefícios para a
humanidade, deve sempre rejeitar experiências, investigações ou aplicações que,
menosprezando a dignidade inviolável do ser humano, deixam de estar ao serviço
dos homens para se transformarem em realidades que, parecendo socorrê´los,
efectivamente os oprimem.
90. Um papel específico são chamadas a desempenhar as pessoas empenhadas no
voluntariado: oferecem um contributo precioso ao serviço da vida, quando sabem
conjugar capacidade profissional com um amor generoso e gratuito. O Evangelho
da vida impele´as a elevarem os sentimentos de simples filantropia até à altura
da caridade de Cristo; a reavivarem diariamente, por entre fadigas e cansaços,
a consciência da dignidade de cada homem; a irem à procura das carências das
pessoas, iniciando — se necessário — novos caminhos em lugares onde a
necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos consistentes. O
realismo pertinaz da caridade exige que o Evangelho da vida seja servido ainda
por meio de formas de animação social e de empenho político, que defendam e
proponham o valor da vida nas nossas sociedades cada vez mais complexas e
pluralistas. Indivíduos, famílias, grupos, entidades associativas têm a sua
responsabilidade, mesmo se a título e com método diverso, na animação social e
na elaboração de projectos culturais, económicos, políticos e legislativos que,
no respeito de todos e segundo a lógica da convivência democrática, contribuam
para edificar uma sociedade, onde a dignidade de cada pessoa seja reconhecida e
tutelada, e a vida de todos fique tutelada e promovida. Semelhante tarefa
incumbe, de modo particular, sobre os responsáveis da vida pública. Chamados a
servir o homem e o bem comum, têm o dever de realizar opções corajosas a favor
da vida, primeiro que tudo, no âmbito das disposições legislativas. Num regime
democrático, onde as leis e as decisões se estabelecem sobre a base do consenso
de muitos, pode atenuar´se na consciência dos indivíduos investidos de autoridade
o sentido da responsabilidade pessoal. Mas ninguém pode jamais abdicar desta
responsabilidade, sobretudo quando tem um mandato legislativo ou poder
decisório que o chama a responder perante Deus, a própria consciência e a
sociedade inteira de opções eventualmente contrárias ao verdadeiro bem comum.
Se as leis não são o único instrumento para defender a vida humana,
desempenham, contudo, um papel muito importante, por vezes determinante, na
promoção de uma mentalidade e dos costumes. Afirmo, uma vez mais, que uma norma
que viola o direito natural de um inocente à vida, é injusta e, como tal, não
pode ter valor de lei. Por isso, renovo o meu veemente apelo a todos os
políticos para não promulgarem leis que, ao menosprezarem a dignidade da
pessoa, minam pela raiz a própria convivência social. A Igreja sabe que é
difícil actuar uma defesa legal eficaz da vida no contexto das democracias
pluralistas, por causa da presença de fortes correntes culturais de matriz
diversa. Todavia, movida pela certeza de que a verdade moral não pode deixar de
ter eco no íntimo de cada consciência, ela encoraja os políticos — a começar
pelos que são cristãos — a não se renderem, mas tomarem aquelas decisões que,
tendo em conta as possibilidades concretas, levem a restabelecer uma ordem
justa na afirmação e promoção do valor da vida. Nesta perspectiva, convém
sublinhar que não basta eliminar as leis iníquas. Mas terão de ser removidas as
causas que favorecem os atentados contra a vida, sobretudo garantindo o devido
apoio à família e à maternidade: a política familiar deve constituir o ponto
fulcral e o motor de todas as políticas sociais. Para isso, é necessário
activar iniciativas sociais e legislativas, capazes de garantir condições de
autêntica liberdade de escolha em ordem à paternidade e à maternidade;
impõe´se, além disso, reordenar as políticas do emprego, de urbanização, da
habitação, dos serviços sociais, para se conseguir conciliar entre si os tempos
do trabalho e da família, tornando possível um efectivo cuidado das crianças e dos
idosos.
91. Um capítulo importante da política em favor da vida é constituído hoje pela
problemática demográfica. As autoridades públicas têm certamente a
responsabilidade de intervir com válidas iniciativas « para orientar a
demografia da população »; 114 mas tais iniciativas devem pressupor e respeitar
sempre a responsabilidade primária e inalienável dos esposos e das famílias, e
não podem recorrer a métodos desrespeitadores da pessoa e dos seus direitos
fundamentais, a começar pelo direito à vida de todo o ser humano inocente. Por
isso, é moralmente inaceitável que, para regular a natalidade, se encoraje ou
até imponha o uso de meios como a contracepção, a esterilização e o aborto. Bem
diferentes são os caminhos para resolver o problema demográfico: os Governos e
as várias instituições internacionais devem, antes de tudo, visar a criação de
condições económicas, sociais, médico´sanitárias e culturais que permitam aos
esposos realizarem as suas opções procriadoras, com plena liberdade e
verdadeira responsabilidade; devem esforçar´se, depois, por « aumentar os meios
e distribuir com maior justiça a riqueza, para que todos possam participar
equitativamente dos bens da criação. São necessárias soluções a nível mundial,
que instaurem uma verdadeira economia de comunhão e participação de bens, tanto
na ordem internacional como nacional ».115 Esta é a única estrada que respeita
a dignidade das pessoas e das famílias, como também o autêntico património
cultural dos povos. Vasto e complexo é, portanto, o serviço ao Evangelho da
vida. Ele manifesta´se cada vez mais como âmbito precioso e favorável para uma
efectiva colaboração com os irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais,
na linha daquele ecumenismo das obras que o Concílio Vaticano II, com autoridade,
encorajou.116 Além disso, o referido serviço apresenta´se como espaço
providencial para o diálogo e colaboração com os sequazes de outras religiões e
com todos os homens de boa vontade: a defesa e a promoção da vida não são
monopólio de ninguém, mas tarefa e responsabilidade de todos. O desafio que
temos pela frente, na vigília do terceiro milénio, é árduo: somente a
cooperação concorde de todos aqueles que acreditam no valor da vida, poderá
evitar uma derrota da civilização com consequências imprevisíveis. « Os filhos
são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor » (Sal 127126,
3): a família « santuário da vida » 92. No seio do « povo da vida e pela vida
», resulta decisiva a responsabilidade da família: é uma responsabilidade que
brota da própria natureza dela — uma comunidade de vida e de amor, fundada
sobre o matrimónio — e da sua missão que é « guardar, revelar e comunicar o
amor ».117 Em causa está o próprio amor de Deus, do qual os pais são
constituídos colaboradores e como que intérpretes na transmissão da vida e na
educação da mesma segundo o seu projecto de Pai.118 É, por conseguinte, o amor
que se faz generosidade, acolhimento, doação: na família, cada um é
reconhecido, respeitado e honrado porque pessoa, e se alguém está mais necessitado,
maior e mais diligente é o cuidado por ele. A família tem a ver com os seus
membros durante toda a existência de cada um, desde o nascimento até à morte.
Ela é verdadeiramente « o santuário da vida (...), o lugar onde a vida, dom de
Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos
ataques a que está exposta, e pode desenvolver´se segundo as exigências de um
crescimento humano autêntico ».119 Por isso, o papel da família é determinante
e insubstituível na construção da cultura da vida. Como igreja doméstica, a
família é chamada a anunciar, celebrar e servir o Evangelho da vida. Esta
tríplice função compete primariamente aos cônjuges, chamados a serem
transmissores da vida, apoiados numa consciência sempre renovada do sentido da
geração, enquanto acontecimento onde, de modo privilegiado, se manifesta que a
vida humana é um dom recebido a fim de, por sua vez, ser dado. Na geração de
uma nova vida, eles tomam consciência de que o filho « se é fruto da recíproca
doação de amor dos pais, é, por sua vez, um dom para ambos: um dom que promana
do dom ».120 A família cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho da vida,
principalmente através da educação dos filhos. Pela palavra e pelo exemplo, no
relacionamento mútuo e nas opções quotidianas, e mediante gestos e sinais
concretos, os pais iniciam os seus filhos na liberdade autêntica, que se
realiza no dom sincero de si, e cultivam neles o respeito do outro, o sentido
da justiça, o acolhimento cordial, o diálogo, o serviço generoso, a solidariedade
e os demais valores que ajudam a viver a existência como um dom. A obra
educadora dos pais cristãos deve constituir um serviço à fé dos filhos e
prestar uma ajuda para eles cumprirem a vocação recebida de Deus. Entra na
missão educadora dos pais ensinar e testemunhar aos filhos o verdadeiro sentido
do sofrimento e da morte: podê´lo´ão fazer se souberem estar atentos a todo o
sofrimento existente ao seu redor e, antes ainda, se souberem desenvolver
atitudes de solidariedade, assistência e partilha com doentes e idosos no
âmbito familiar.
93. Além disso, a família celebra o Evangelho da vida com a oração diária,
individual e familiar: nela, agradece e louva o Senhor pelo dom da vida e
invoca luz e força para enfrentar os momentos de dificuldade e sofrimento, sem
nunca perder a esperança. Mas a celebração que dá significado a qualquer outra
forma de oração e de culto é a que se exprime na existência quotidiana da
família, quando esta é uma existência feita de amor e doação. A celebração
transforma´se assim num serviço ao Evangelho da vida, que se exprime através da
solidariedade, vivida no seio e ao redor da família como atenção carinhosa,
vigilante e cordial nas acções pequenas e humildes de cada dia. Uma expressão
particularmente significativa de solidariedade entre as famílias é a
disponibilidade para a adopção ou para o acolhimento das crianças abandonadas
pelos seus pais ou, de qualquer modo, em situação de grave dificuldade. O
verdadeiro amor paterno e materno sabe ir além dos laços da carne e do sangue
para acolher também crianças de outras famílias, oferecendo´lhes quanto seja
necessário para a sua vida e o seu pleno desenvolvimento. Entre as formas de
adopção, merece ser assinalada a adopção à distância, que se há´de preferir
sempre que o abandono tenha por único motivo as condições de grave pobreza da
família. Na realidade, com esta espécie de adopção é oferecida aos pais a ajuda
necessária para manter e educar os próprios filhos, sem ter de os desarraigar
do seu ambiente natural. Concebida como « determinação firme e perseverante de
se empenhar pelo bem comum »,121 a solidariedade requer ser também concretizada
mediante formas de participação social e política. Consequentemente, servir o
Evangelho da vida implica que as famílias, nomeadamente tomando parte em
apropriadas associações, se empenhem por que as leis e as instituições do
Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua concepção até à
morte natural, mas o defendam e promovam.
94. Um lugar especial há´de ser reconhecido aos idosos. Enquanto, nalgumas
culturas, a pessoa de mais idade permanece inserida na família com um papel
activo importante, noutras, ao contrário, quem chegou à velhice é sentido como
um peso inútil e fica abandonado a si mesmo: em tal contexto, pode mais facilmente
surgir a tentação de recorrer à eutanásia. A marginalização ou mesmo a rejeição
dos idosos é intolerável. A sua presença na família ou, pelo menos, a estreita
solidariedade desta com eles quando, pelo reduzido espaço da habitação ou
outros motivos, essa presença não fosse possível, é de importância fundamental
para criar um clima de intercâmbio recíproco e de comunicação enriquecedora
entre as várias idades da vida. Por isso, é importante que se conserve, ou se
restabeleça onde tal se perdeu, uma espécie de « pacto » entre as gerações, de
modo que os pais idosos, chegados ao termo da sua caminhada, possam encontrar
nos filhos aquele acolhimento e solidariedade que lhes tinham oferecido quando
estes estavam a desabrochar para a vida: exige´o a obediência ao mandamento
divino que ordena honrar o pai e a mãe (cf. Ex 20, 12; Lv 19, 3). Mas há
mais... O idoso não há´de ser considerado apenas objecto de atenção,
solidariedade e serviço. Também ele tem um valioso contributo a prestar ao
Evangelho da vida. Graças ao rico património de experiência adquirido ao longo
dos anos, o idoso pode e deve ser transmissor de sabedoria, testemunha de
esperança e de caridade. Se é verdade que « o futuro da humanidade passa pela
família »,122 tem´se de reconhecer que as actuais condições sociais, económicas
e culturais frequentemente tornam mais árdua e penosa a tarefa da família ao
serviço da vida. Para poder realizar a sua vocação de « santuário da vida »,
enquanto célula de uma sociedade que ama e acolhe a vida, é necessário e
urgente que a família como tal seja ajudada e apoiada. As sociedades e os
Estados devem assegurar todo o apoio necessário, mesmo económico, para que as
famílias possam responder de forma mais humana aos próprios problemas. Por seu
lado, a Igreja deve promover incansavelmente uma pastoral familiar capaz de
ajudar cada família a redescobrir, com alegria e coragem, a sua missão no que
diz respeito ao Evangelho da vida. « Comportai´vos como filhos da luz » (Ef 5,
8): para realizar uma viragem cultural 95. « Comportai´vos como filhos da luz.
(...) Procurai o que é agradável ao Senhor, e não participeis das obras
infrutuosas das trevas » (Ef 5, 8.10´11). No contexto social de hoje, marcado
por uma luta dramática entre a « cultura da vida » e a « cultura da morte »,
importa maturar um forte sentido crítico, capaz de discernir os verdadeiros
valores e as autênticas exigências. Urge uma mobilização geral das consciências
e um esforço ético comum, para se actuar uma grande estratégia a favor da vida.
Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida: nova, porque em
condições de enfrentar e resolver os problemas inéditos de hoje acerca da vida
do homem; nova, porque assumida com convicção mais firme e laboriosa por todos
os cristãos; nova, porque capaz de suscitar um sério e corajoso confronto
cultural com todos. A urgência desta viragem cultural está ligada à situação
histórica que estamos a atravessar, mas radica´se sobretudo na própria missão
evangelizadora confiada à Igreja. De facto, o Evangelho visa « transformar a
partir de dentro e fazer nova a própria humanidade »; 123 é como o fermento que
leveda toda a massa (cf. Mt 13, 33) e, como tal, é destinado a permear todas as
culturas e a animá´las a partir de dentro,124 para que exprimam a verdade
integral sobre o homem e sua vida. Tem´se de começar por renovar a cultura da
vida no seio das próprias comunidades cristãs. Muitas vezes os crentes, mesmo
até os que participam activamente na vida eclesial, caiem numa espécie de
dissociação entre a fé cristã e as suas exigências éticas a propósito da vida,
chegando assim ao subjectivismo moral e a certos comportamentos inaceitáveis.
Devemos, pois, interrogar´nos, com grande lucidez e coragem, acerca da cultura
da vida que reina hoje entre os indivíduos cristãos, as famílias, os grupos e
as comunidades das nossas Dioceses. Com igual clareza e decisão, teremos de
individuar os passos que somos chamados a dar para servir a vida na plenitude
da sua verdade. Ao mesmo tempo, devemos promover um confronto sério e profundo com
todos, inclusive com os não crentes, sobre os problemas fundamentais da vida
humana, tanto nos lugares da elaboração do pensamento, como nos diversos
âmbitos profissionais e nas situações onde se desenrola diariamente a
existência de cada um.
96. O primeiro e fundamental passo para realizar esta viragem cultural consiste
na formação da consciência moral acerca do valor incomensurável e inviolável de
cada vida humana. Suma importância tem aqui a descoberta do nexo indivisível
entre vida e liberdade. São bens inseparáveis: quando um é violado, o outro
acaba por o ser também. Não há liberdade verdadeira, onde a vida não é acolhida
nem amada; nem há vida plena senão na liberdade. Ambas as realidades têm,
ainda, um peculiar e natural ponto de referência que as une indissoluvelmente:
a vocação ao amor. Este, enquanto sincero dom de si,125 é o sentido mais
verdadeiro da vida e da liberdade da pessoa. Na formação da consciência,
igualmente decisiva é a descoberta do laço constitutivo que une a liberdade à
verdade. Como disse já várias vezes, o desarraigar a liberdade da verdade
objectiva torna impossível fundar os direitos da pessoa sobre uma base racional
sólida, e cria as premissas para se afirmar, na sociedade, o arbítrio
desenfreado dos indivíduos ou o totalitarismo repressivo do poder público.126
Então é essencial que o homem reconheça a evidência primordial da sua condição
de criatura que recebe de Deus o ser e a vida como dom e tarefa: só admitindo
esta inata dependência no seu ser, pode o homem realizar em plenitude a vida e
a liberdade própria e, simultaneamente, respeitar em toda a sua profundidade a
vida e a liberdade alheia. É sobretudo aqui que se manifesta como, « no centro
de cada cultura, está o comportamento que o homem assume diante do mistério maior:
o mistério de Deus ».127 Quando se nega Deus e se vive como se Ele não
existisse ou de qualquer modo não se tem em conta os seus mandamentos, então
facilmente se acaba por negar ou comprometer também a dignidade da pessoa
humana e a inviolabilidade da sua vida.
97. À formação da consciência está estritamente ligada a obra educativa, que
ajuda o homem a ser cada vez mais homem, introdu´lo sempre mais profundamente
na verdade, orienta´o para um crescente respeito da vida, forma´o nas justas
relações entre as pessoas. De modo particular, é necessário educar para o valor
da vida,a começar das suas próprias raízes. É uma ilusão pensar que se pode
construir uma verdadeira cultura da vida humana, se não se ajudam os jovens a
compreender e a viver a sexualidade, o amor e a existência inteira no seu
significado verdadeiro e na sua íntima correlação. A sexualidade, riqueza da
pessoa toda, « manifesta o seu significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de
si no amor ».128 A banalização da sexualidade conta´se entre os principais
factores que estão na origem do desprezo pela vida nascente: só um amor
verdadeiro sabe defender a vida. Não é possível, pois, eximir´nos de oferecer,
sobretudo aos adolescentes e aos jovens, uma autêntica educação da sexualidade
e do amor, educação essa que requer a formação para a castidade, como virtude
que favorece a maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar o significado
« esponsal » do corpo. A obra de educação para a vida comporta a formação dos
cônjuges sobre a procriação responsável. No seu verdadeiro significado, esta
exige que os esposos sejam dóceis ao chamamento do Senhor e vivam como fiéis
intérpretes do seu desígnio: este cumpre´se com a generosa abertura da família
a novas vidas, permanecendo em atitude de acolhimento e de serviço à vida,
mesmo quando os cônjuges, por sérios motivos e no respeito da lei moral,
decidem evitar, com ou sem limites de tempo, um novo nascimento. A lei moral
obriga´os, em qualquer caso, a dominar as tendências do instinto e das paixões
e a respeitar as leis biológicas inscritas na pessoa de ambos. É precisamente
este respeito que torna legítimo, ao serviço da procriação responsável, o
recurso aos métodos naturais de regulação da fertilidade: estes têm´se
aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista científico e oferecem
possibilidades concretas para decisões de harmonia com os valores morais. Uma
honesta ponderação dos resultados conseguidos deveria fazer ruir preconceitos
ainda demasiado difusos e convencer os cônjuges, bem como os profissionais da
saúde e da assistência social, sobre a importância de uma adequada formação a
tal respeito. A Igreja está agradecida àqueles que, com sacrifício pessoal e
dedicação frequentemente ignorada, se empenham na pesquisa e na difusão de tais
métodos, promovendo ao mesmo tempo uma educação dos valores morais que o seu
uso supõe. A obra educativa não pode deixar de tomar em consideração, ainda, o
sofrimento e a morte. Na realidade, ambos fazem parte da experiência humana, e
é vão, para além de ilusório, procurá´los reprimir ou ignorar. Ao contrário,
cada um deve ser ajudado a compreender, na concreta e dura realidade, o seu
mistério profundo. Também a dor e o sofrimento têm um sentido e um valor,
quando são vividos em estreita ligação com o amor recebido e dado. Nesta
perspectiva, quis que se celebrasse anualmente o Dia Mundial do Doente, fazendo
ressaltar « a índole salvífica da oferta do sofrimento, que, vivido em comunhão
com Cristo, pertence à essência mesma da redenção ».129 Até a morte, aliás, não
é de forma alguma aventura sem esperança: é a porta da existência que se abre
de par em par à eternidade e, para aqueles que a vivem em Cristo, é experiência
de participação no mistério da sua morte e ressurreição.
98. Em resumo, podemos dizer que a viragem cultural, aqui desejada, exige de
todos a coragem de assumir um novo estilo de vida que se exprime colocando, no
fundamento das decisões concretas — a nível pessoal, familiar, social e
internacional —, uma justa escala dos valores: o primado do ser sobre o ter,130
da pessoa sobre as coisas.131 Este novo estilo de vida implica também a
passagem da indiferença ao interesse pelo outro, a passagem da recusa ao seu
acolhimento: os outros não são concorrentes de quem temos de nos defender, mas
irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários; hão´de ser amados por si mesmos;
enriquecem´nos pela sua própria presença. Na mobilização por um nova cultura da
vida, que ninguém se sinta excluído: todos têm um papel importante a
desempenhar. Ao lado da tarefa das famílias, é particularmente valiosa a missão
dos professores e dos educadores. Deles está em larga medida dependente a
possibilidade de os jovens, formados para uma autêntica liberdade, saberem
preservar dentro de si e espalhar ao seu redor ideais autênticos de vida, e
saberem crescer no respeito e ao serviço de cada pessoa, em família e na
sociedade. Também os intelectuais muito podem fazer para construir uma nova
cultura da vida humana. Responsabilidade particular cabe aos intelectuais
católicos, chamados a estarem activamente presentes nas sedes privilegiadas da
elaboração cultural, ou seja, no mundo da escola e das universidades, nos
ambientes da investigação científica e técnica, nos lugares da criação
artística e da reflexão humanista. Alimentando o seu génio e acção na seiva
límpida do Evangelho, devem comprometer´se ao serviço de uma nova cultura da
vida, através da produção de contributos sérios, documentados e capazes de se
imporem pelos seus méritos ao respeito e interesse de todos. Precisamente nesta
perspectiva, instituí a Pontifícia Academia para a Vida, com a missão de «
estudar, informar e formar acerca dos principais problemas de biomedicina e de
direito, relativos à promoção e à defesa da vida, sobretudo na relação directa
que eles têm com a moral cristã e as directrizes do Magistério da Igreja ».132
Um contributo específico há´de vir das Universidades, em particular católicas,
e dos Centros, Institutos e Comissões de bioética. Grande e grave é a
responsabilidade dos profissionais dos mass´media, chamados a pugnarem por que
as mensagens, transmitidas com tamanha eficácia, sejam um verdadeiro contributo
para a cultura da vida. Importa, por isso, apresentar exemplos altos e nobres
de vida e dar espaço aos testemunhos positivos e por vezes heróicos de amor pelo
homem; propor, com grande respeito, os valores da sexualidade e do amor, sem
contemporizar com nada daquilo que deturpa e degrada a dignidade do homem. Na
leitura da realidade, hão´de recusar´se a pôr em destaque tudo o que possa
inspirar ou fazer crescer sentimentos ou atitudes de indiferença, desprezo ou
rejeição da vida. Na escrupulosa fidelidade à verdade dos factos, eles são
chamados a conjugar num todo a liberdade de informação, o respeito por cada
pessoa e um profundo sentido de humanidade.
99. Nessa viragem cultural a favor da vida, as mulheres têm um espaço de
pensamento e acção singular e talvez determinante: compete a elas fazerem´se
promotoras de um « novo feminismo » que, sem cair na tentação de seguir modelos
« masculinizados », saiba reconhecer e exprimir o verdadeiro génio feminino em
todas as manifestações da convivência civil, trabalhando pela superação de toda
a forma de discriminação, violência e exploração. Retomando as palavras da
mensagem conclusiva do Concílio Vaticano II, também eu dirijo às mulheres este
premente convite: « Reconciliai os homens com a vida ».133 Vós sois chamadas
atestemunhar o sentido do amor autêntico, daquele dom de si e acolhimento do
outro, que se realizam de modo específico na relação conjugal, mas devem ser
também a alma de qualquer outra relação interpessoal. A experiência da
maternidade proporciona´vos uma viva sensibilidade pela outra pessoa e
confere´vos, ao mesmo tempo, uma missão particular: « A maternidade comporta
uma comunhão especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher.
(...) Este modo único de contacto com o novo homem que se está formando, cria,
por sua vez, uma atitude tal para com o homem — não só para com o próprio
filho, mas para com o homem em geral — que caracteriza profundamente toda a
personalidade da mulher ».134 Com efeito, a mãe acolhe e leva dentro de si um
outro, proporciona´lhe forma de crescer no seu seio, dá´lhe espaço,
respeitando´o na sua diferença. Deste modo, a mulher percebe e ensina que as
relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da outra pessoa,
reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém do facto mesmo de ser pessoa e
não de outros factores, como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a
saúde. Este é o contributo fundamental que a Igreja e a humanidade esperam das
mulheres. E é premissa insubstituível para uma autêntica viragem cultural. Um
pensamento especial quereria reservá´lo para vós, mulheres, que recorrestes ao
aborto. A Igreja está a par dos numerosos condicionalismos que poderiam ter
influído sobre a vossa decisão, e não duvida que, em muitos casos, se tratou de
uma decisão difícil, talvez dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito
ainda não está sarada. Na realidade, aquilo que aconteceu, foi e permanece
profundamente injusto. Mas não vos deixeis cair no desânimo, nem percais a
esperança. Sabei, antes, compreender o que se verificou e interpretai´o em toda
a sua verdade. Se não o fizestes ainda, abri´vos com humildade e confiança ao
arrependimento: o Pai de toda a misericórdia espera´vos para vos oferecer o seu
perdão e a sua paz no sacramento da Reconciliação. Dar´vos´eis conta de que
nada está perdido, e podereis pedir perdão também ao vosso filho que agora vive
no Senhor. Ajudadas pelo conselho e pela solidariedade de pessoas amigas e
competentes, podereis contar´vos, com o vosso doloroso testemunho, entre os
mais eloquentes defensores do direito de todos à vida. Através do vosso
compromisso a favor da vida, coroado eventualmente com o nascimento de novos
filhos e exercido através do acolhimento e atenção a quem está mais carecido de
solidariedade, sereis artífices de um novo modo de olhar a vida do homem.
100. Neste grande esforço por uma nova cultura da vida, somossustentados e
fortalecidos pela confiança de quem sabe que oEvangelho da vida, como o Reino
de Deus, cresce e dá frutos abundantes (cf. Mc 4, 26´29). Certamente é enorme a
desproporção existente entre os meios numerosos e potentes, de que estão
dotadas as forças propulsoras da « cultura da morte », e os meios de que
dispõem os promotores de uma « cultura da vida e do amor ». Mas nós sabemos que
podemos confiar na ajuda de Deus, para Quem nada é impossível (cf. Mt 19, 26).
Com esta certeza no coração e movido de pungente solicitude pela sorte de cada
homem e mulher, repito hoje a todos aquilo que disse às famílias, empenhadas em
suas difíceis tarefas por entre as ciladas que as ameaçam: 135 é urgente uma
grande oração pela vida, que atravesse o mundo inteiro. Com iniciativas
extraordinárias e na oração habitual, de cada comunidade cristã, de cada grupo
ou associação, de cada família e do coração de cada crente eleve´se uma súplica
veemente a Deus, Criador e amante da vida. O próprio Jesus nos mostrou com o
seu exemplo que a oração e o jejum são as armas principais e mais eficazes
contra as forças do mal (cf. Mt 4, 1´11), e ensinou aos seus discípulos que
alguns demónios só desse modo se expulsam (cf. Mc 9, 29). Então, encontremos
novamente a humildade e a coragem de orar e jejuar, para conseguir que a força
que vem do Alto faça ruir os muros de enganos e mentiras que escondem, aos
olhos de muitos dos nossos irmãos e irmãs, a natureza perversa de
comportamentos e de leis contrárias à vida, e abra os seus corações a
propósitos e desígnios inspirados na civilização da vida e do amor. «
Escrevemo´vos estas coisas para que a vossa alegria seja completa » (1 Jo 1,
4): o Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens
101. « Escrevemo´vos estas coisas, para que a vossa alegria seja completa » (1
Jo 1, 4). A revelação do Evangelho da vida foi´nos confiada como um bem que
há´de ser comunicado a todos: para que todos os homens estejam em comunhão
connosco e com a Santíssima Trindade (cf. 1 Jo 1, 3). Nem nós poderíamos viver
em alegria plena, se não comunicássemos este Evangelho aos outros, mas o
guardássemos apenas para nós. O Evangelho da vida não é exclusivamente para os
crentes: destina´se a todos. A questão da vida e da sua defesa e
promoção não é prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força extraordinária
da fé, aquela pertence a cada consciência humana que aspira pela verdade e vive
atenta e apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida, existe seguramente um
valor sagrado e religioso, mas de modo algum este interpela apenas os crentes:
trata´se, com efeito, de um valor que todo o ser humano pode enxergar, mesmo
com a luz da razão, e, por isso, diz necessariamente respeito a todos. Por
isso, a nossa acção de « povo da vida e pela vida » pede para ser interpretada
de modo justo e acolhida com simpatia. Quando a Igreja declara que o respeito
incondicional do direito à vida de toda a pessoa inocente — desde a sua
concepção até à morte natural — é um dos pilares sobre o qual assenta toda a
sociedade, ela « quer simplesmente promover um Estado humano. Um Estado que
reconheça como seu dever primário a defesa dos direitos fundamentais da pessoa
humana, especialmente da mais débil ».136 O Evangelho da vida é para bem da
cidade dos homens. Actuar em favor da vida é contribuir para o renovamento da
sociedade, através da edificação do bem comum. De facto, não é possível
construir o bem comum sem reconhecer e tutelar o direito à vida, sobre o qual
se fundamentam e desenvolvem todos os restantes direitos inalienáveis do ser
humano. Nem pode ter sólidas bases uma sociedade que se contradiz radicalmente,
já que por um lado afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a
paz, mas por outro aceita ou tolera as mais diversas formas de desprezo e
violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da
vida pode fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade como a
democracia e a paz. De facto, não pode haver verdadeira democracia, se não é
reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se respeitam os seus direitos. Nem
pode haver verdadeira paz, se não se defende e promove a vida, como recordava
Paulo VI: « Todo o crime contra a vida é um atentado contra a paz,
especialmente se ele viola os costumes do povo (...), enquanto nos lugares onde
os direitos do homem são realmente professados e publicamente reconhecidos e
defendidos, a paz torna´se a atmosfera feliz e geradora de convivência social
».137 O « povo da vida » alegra´se de poder partilhar o seu empenho com muitos
outros, de modo que seja cada vez mais numeroso o « povo pela vida », e a nova
cultura do amor e da solidariedade possa crescer para o verdadeiro bem da
cidade dos homens.
CONCLUSÃO
102. Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o olhar volta a
fixar´se no Senhor Jesus, o « Menino nascido para nós » (cf. Is 9, 5), a fim de
n´Ele contemplar « a Vida » que « se manifestou » (1 Jo 1, 2). No mistério
deste nascimento, realiza´se o encontro de Deus com o homem e tem início o
caminho do Filho de Deus sobre a terra, caminho esse que culminará com o dom da
vida na Cruz: com a sua morte, Ele vencerá a morte e tornar´Se´á para a
humanidade princípio de vida nova. Quem esteve a acolher « a vida » em nome e
proveito de todos, foi Maria, a Virgem Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém
laços pessoais estreitíssimos com o Evangelho da vida. O consentimento de
Maria, na Anunciação, e a sua maternidade situam´se na própria fonte do
mistério daquela vida, que Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10, 10). Através
do acolhimento e carinho que Ela prestou à vida do Verbo feito carne, a vida do
homem foi salva da condenação à morte definitiva e eterna. Por isso, « como a
Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe de todos os que renascem para a vida.
Ela é verdadeiramente a Mãe da Vida que faz viver todos os homens; ao gerar a
Vida, gerou de certo modo todos aqueles que haviam de viver dessa Vida ».138 Ao
contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o sentido da própria
maternidade e o modo como é chamada a exprimi´la. Ao mesmo tempo, a experiência
materna da Igreja entreabre uma perspectiva mais profunda para compreender a
experiência de Maria, qual modelo incomparável de acolhimento e cuidado da
vida. « Apareceu um grande sinal no Céu: uma mulher revestida de Sol » (Ap 12,
1): a maternidade de Maria e da Igreja
103. A relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja manifesta´se
claramente no « grande sinal » descrito no Apocalipse: « Apareceu um grande
sinal no céu: uma mulher revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e
uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça » (12, 1). Neste sinal, a Igreja
reconhece uma imagem do próprio mistério: apesar de imersa na história, ela
está consciente de a transcender, porquanto constitui na terra « o germe e o
princípio » do Reino de Deus.139 Tal mistério, a Igreja vê´o realizado, de modo
pleno e exemplar, em Maria. É Ela a mulher gloriosa, na qual o desígnio de Deus
se pôde actuar com a máxima perfeição. Aquela « mulher revestida de Sol » —
assinala o Livro do Apocalipse — « estava grávida » (12, 2). A Igreja está plenamente
consciente de trazer em si o Salvador do mundo, Cristo Senhor, e de ser chamada
a dá´Lo ao mundo, regenerando os homens para a própria vida de Deus. Mas não
pode esquecer que esta sua missão tornou´se possível pela maternidade de Maria,
que concebeu e deu à luz Aquele que é « Deus de Deus », « Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro ». Maria é verdadeiramente a Mãe de Deus, a Theotokos, em cuja
maternidade é exaltada, até ao grau supremo, a vocação à maternidade inscrita
por Deus em cada mulher. Assim Maria apresenta´se como modelo para a Igreja,
chamada a ser a « nova Eva », mãe dos crentes, mãe dos « viventes » (cf. Gn 3,
20). A maternidade espiritual da Igreja só se realiza — também disto está
ciente a Igreja — no meio das ânsias e « dores de parto » (Ap 12, 2), isto é,
em perene tensão com as forças do mal, que continuam a sulcar o mundo e a
dominar o coração dos homens, que opõem resistência a Cristo: « N´Ele estava a
Vida e a Vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas, mas as trevas
não a acolheram » (Jo 1, 4´5). À semelhança da Igreja, também Maria teve de
viver a sua maternidade sob o signo do sofrimento: « Este Menino está aqui
(...) para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma, a fim
de se revelarem os pensamentos de muitos corações » (Lc 2, 34´35). Nas palavras
que Simeão dirige a Maria, já no alvorecer da existência do Salvador, está
sinteticamente representada aquela rejeição de Jesus — e com Ele a rejeição de
Maria —, que culmina no Calvário. « Junto da cruz de Jesus » (Jo 19, 25), Maria
participa no dom que o Filho faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá´O, gera´O
definitivamente para nós. O « sim » do dia da Anunciação amadurece plenamente
no dia da Cruz, quando chega para Maria o tempo de acolher e gerar como filho
cada homem feito discípulo, derramando sobre ele o amor redentor do Filho: «
Então Jesus, ao ver sua mãe e junto dela, o discípulo que Ele amava, Jesus
disse a sua mãe: ´Mulher, eis aí o teu filho´ » (Jo 19, 26). « O dragão
deteve´se diante da mulher (...) para lhe devorar o filho que estava para
nascer » (Ap 12, 4): a vida ameaçada pelas forças do mal
104. No Livro do Apocalipse, o « grande sinal » da « mulher » (12, 1) é
acompanhado por « outro sinal no céu »: « um grande dragão vermelho » (12, 3),
que representa Satanás, potência pessoal maléfica, e conjuntamente todas as
forças do mal que agem na história e contrariam a missão da Igreja. Também
nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de facto, a hostilidade das
forças do mal é uma obstinada oposição que, antes de tocar os discípulos de
Jesus, se dirige contra a sua Mãe. Para salvar a vida do Filho daqueles que O
temem como se fosse uma perigosa ameaça, Maria tem de fugir com José e o Menino
para o Egipto (cf. Mt 2, 13´15). Assim, Maria ajuda a Igreja a tomar
consciência de que a vida está sempre no centro de uma grande luta entre o bem
e o mal, entre a luz e as trevas. O dragão queria devorar « o filho que estava
para nascer » (Ap 12, 4), figura de Cristo, que Maria gera na « plenitude dos
tempos » (Gal 4, 4) e que a Igreja deve continuamente oferecer aos homens nas
sucessivas épocas da história. Mas é também, de algum modo, figura de cada
homem, de cada criança, sobretudo de cada criatura débil e ameaçada, porque —
como recorda o Concílio — « pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu´Se
de certo modo a cada homem ».140 Precisamente na « carne » de cada homem,
Cristo continua a revelar´Se e a entrar em comunhão connosco, pelo que a
rejeição da vida do homem, nas suas diversas formas, é realmente rejeição de
Cristo. Esta é a verdade fascinante mas exigente, que Cristo nos manifesta e
que a sua Igreja incansavelmente propõe: « Quem receber um menino como este, em
meu nome, é a Mim que recebe » (Mt 18, 5); « Em verdade vos digo: Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes »
(Mt 25, 40). « Não mais haverá morte » (Ap 21, 4): o esplendor da ressurreição
105. A anunciação do anjo a Maria está inserida no meio destas expressões
tranquilizadoras: « Não tenhas receio, Maria » e « Nada é impossível a Deus »
(Lc 1, 30.37). Na verdade, toda a existência da Virgem Mãe está envolvida pela
certeza de que Deus está com Ela e A acompanha com a sua benevolência
providente. O mesmo se passa também com a existência da Igreja que encontra «
um refúgio » (cf. Ap 12, 6) no deserto, lugar da provação mas também da
manifestação do amor de Deus pelo seu povo (cf. Os 2, 16). Maria é uma mensagem
de viva consolação para a Igreja na sua luta contra a morte. Ao mostrar´nos o
seu Filho, assegura´nos que n´Ele as forças da morte já foram vencidas: « Morte
e vida combateram, mas o Príncipe da vida reina vivo após a morte ».141 O
Cordeiro imolado vive com os sinais da paixão, no esplendor da ressurreição. Só
Ele domina todos os acontecimentos da história: abre os seus « selos » (cf. Ap
5, 1´10) e consolida, no tempo e para além dele, o poder da vida sobre a morte.
Na « nova Jerusalém », ou seja, no mundo novo para o qual tende a história dos
homens, « não mais haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, por que as
primeiras coisas passaram » (Ap 21, 4). Como povo peregrino, povo da vida e
pela vida, enquanto caminhamos confiantes para « um novo céu e uma nova terra »
(Ap 21, 1), voltamos o olhar para Aquela que é para nós « sinal de esperança
segura e consolação ».142
Ó Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo´Vos a causa da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presunta compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da vida.
Alcançai´lhes a graça de o acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Março, solenidade da Anunciação
do Senhor,
do ano 1995, décimo sétimo de Pontificado.