CARTA ENCÍCLICA DE JOÃO XXIII
AD PETRI CATHEDRAM
CONHECIMENTO DA VERDADE,
RESTAURAÇÃO DA UNIDADE
E DA PAZ NA CARIDADE
Aos Veneráveis irmãos
patriarcas, primazes, arcebispos e bispos e outros ordinários do lugar em paz e
comunhão com a Sé Apostólica e a todo o clero e fiéis do orbe católico.
INTRODUÇÃO
A Igreja em perene
juventude: motivos de
consolação e esperança
1. Desde que fomos elevado,
não por mérito nosso, à Cátedra de São Pedro, constitui para nós lição e
conforto recordar o sentimento geral, sem limites de raça ou ideologia, que se
manifestou no mundo, por ocasião do falecimento do nosso imediato predecessor.
E os mesmos efeitos produz em nós pensar no espetáculo que admiramos a seguir à
nossa subida ao supremo pontificado, quando as multidões, cheias de confiante
expectativa, voltaram para nós as suas almas e corações sem se deixarem
impressionar com outros acontecimentos nem com as graves dificuldades e
angústias da vida. O que mostra com toda a clareza que a Igreja Católica se perpetua
com perene juventude e é bandeira levantada sobre as nações (cf. Is 11,12). É
também fonte de viva luz e de suave amor para todos os povos.
2. Há para nós outro motivo
de consolação. Queremos referir-nos tanto aos vastos aplausos com que foi acolhido
o anúncio da celebração do Concílio Ecumênico, do Sínodo Diocesano de Roma, da
atualização do Código de Direito Canônico e da próxima promulgação do novo
Código para a Igreja de rito oriental; referimo-nos também à esperança
universal de que estes acontecimentos possam levar todos a maior e mais
profundo conhecimento da verdade, a salutar renovação dos costumes cristãos e à
restauração da unidade, da concórdia e da paz.
3. Agora, esses três bens,
isto é, a verdade, a unidade e a paz que devem ser promovidos e alcançados
segundo o espírito da caridade, serão o argumento desta nossa primeira Carta
Encíclica dirigida a todo o orbe católico, por nos parecer que é isso, no
momento presente, o que mais pede de nós o mandato apostólico que recebemos. O
Espírito Santo nos assista do alto ao escrevermos, e a vós ao lerdes. Dócil ao
impulso da divina graça, possa cada um compreender o que queremos e conseguir o
que é anelo de todos, apesar dos preconceitos e das não poucas dificuldades e
obstáculos.
PRIMEIRA PARTE
A VERDADE
O CONHECIMENTO DA VERDADE, ESPECIALMENTE A REVELADA
4. A causa e a raiz de
todos os males que, por assim dizer, envenenam os indivíduos, os povos e as
nações, e tantas vezes perturbam o espírito de muitos, está na ignorância da
verdade. E não só na ignorância, mas às vezes até no desprezo e no temerário
afastamento dela. Daqui erros de toda a espécie, que penetram como peste nas
profundezas da alma e se infiltram nas estruturas sociais, desorganizando tudo,
com grave ruína dos indivíduos e da sociedade humana. Mas Deus dotou-nos duma
razão capaz de conhecer as verdades naturais. Seguindo a razão, seguimos ao
próprio Deus, que é o autor dela e ao mesmo
tempo legislador e guia da nossa vida; mas, se por loucura ou preguiça, ou,
pior ainda, por má vontade, nos afastamos do reto uso da razão, apartamo-nos ao
mesmo tempo do sumo bem e da lei moral.
Como dissemos, ainda que
possamos atingir com a razão as verdades naturais, contudo, este conhecimento -
sobretudo no que se refere à religião e à moral - nem todos podem facilmente
consegui-lo; e, se o conseguem, muitas vezes vem misturado com erros. Além
disso, as verdades, que ultrapassam a capacidade natural da razão, não podemos
de modo nenhum atingi-las sem a ajuda duma luz sobrenatural. Por isso o Verbo
de Deus, que "habita a luz inacessível" (1Tm 6,16), com imenso amor e
compação do gênero humano "fez-se carne e habitou entre nós" (Jo
1,14), para iluminar "todo o homem que vem a este mundo" (Jo 1,9) e
conduzir todos, não só à plenitude da verdade, mas também à virtude e à eterna
bem-aventurança. Todos estão, portanto, obrigados a abraçar a doutrina do
Evangelho. Uma vez rejeitada, vacilam os próprios fundamentos da verdade, da
honestidade e da civilização.
A verdade do
Evangelho conduz à vida eterna
5. Como é evidente,
trata-se duma questão gravíssima inseparávelmente ligada com a nossa salvação
eterna. Aqueles que, como adverte o Apóstolo das gentes, estão "sempre
aprendendo mas sem jamais poder atingir o conhecimento da verdade" (2 Tm
3,7), e negam à razão humana a possibilidade de chegar a qualquer verdade certa
e segura, e rejeitam as verdades reveladas por Deus, necessárias para a
salvação eterna: esses infelizes estão bem longe da doutrina de Jesus Cristo e
do pensamento do mesmo Apóstolo das gentes, que exorta a "alcançar todos
nós à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus.. Assim não
seremos mais crianças, joguete das ondas, agitados por todo vento de doutrina,
presos pela artimanha dos homens, e da sua astúcia que nos induz ao erro. Mas,
seguindo a verdade em amor cresceremos em tudo em direção àquele que é a
Cabeça, Cristo, cujo corpo, em sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de
toda junta e ligadura, com a operação harmoniosa de cada uma das suas partes,
realiza o seu crescimento para a sua própria educação no amor" (Ef
4,13-l6).
Os deveres da
imprensa quanto à verdade
6. Aqueles que, com
temerária ousadia, impugnam de propósito a verdade conhecida, e, falando,
escrevendo e atuando, usam as armas da mentira para atrair o favor do povo
simples e plasmar a seu modo a alma dos jovens, ignaro e mole como a cera, que
abuso enorme não cometem, que obra tão reprovável não realizam!
7. Não podemos deixar de
exortar a que apresentem a verdade com diligência, cautela e prudência, especialmente todos aqueles
que, por meio de livros, revistas e jornais, de que hoje há tanta abundância,
exercem influxo tão grande na alma dos leitores, sobretudo dos jovens, e na
formação das suas opiniäes e costumes. Esses têm o dever gravíssimo de propagar
não a mentira, o erro, as imoralidades, não o que leva à desonestidade, mas sim
somente o verdadeiro, e tudo o que leva ao bem e à virtude.
8. Com grande tristeza
vemos verificar-se hoje o que já deplorava o nosso predecessor de feliz memória
Leão XIII, isto é, "serpear a mentira com audácia... em grossos volumes e
em livrinhos, nas efêmeras páginas dos jornais e na publicidade teatral";
(1) e vemos também com grande tristeza "livros e jornais que se imprimem
para mofar da virtude e nobilitar o vício".(2)
O rádio, o cinema e a televisão
9. Hoje deve porém
juntar-se a tudo isso, como bem sabeis, veneráveis irmãos e diletos filhos, o
rádio, o cinema e a televisão, cujos espetáculos podem facilmente seguir-se
mesmo dentro de casa. Destes meios podem surgir o estímulo ao bem e à
honestidade, e até à prática da virtude cristã, mas infelizmente, sobretudo
para a juventude, servem não raro de incentivo aos maus costumes, à corrupção,
ao engano do erro e a uma vida licenciosa. Para neutralizar, pois, com todo o
cuidado e diligência, o mau influxo destes meios perigosos, que se vai
difundindo cada vez mais, é preciso recorrer às armas da verdade e da
honestidade. À imprensa má e mentirosa ‚ preciso contrapor a boa e
verdadeira. Às transmissäes de rádio e aos espetáculos cinematográficos e
televisivos, tornados instrumentos de erro e de corrupção, é preciso contrapor
outros em defesa da verdade e dos bons costumes. Assim, estas invenções
recentes, que tanto podem como incentivo ao mal, tornar-se-ão para o homem
instrumentos de bem e ao mesmo tempo meios de honesta distração; e o remédio
virá da mesma fonte donde muitas vezes nasce o veneno.
O indiferentismo
religioso
10. Não faltam também os
que, sem impugnarem de propósito a verdade, tomam uma atitude de negligência e
sumo descuido, como se Deus não nos tivesse dado a razão para procurar e
alcançar a verdade. Este reprovável modo de proceder conduz, quase
espontâneamente, à afirmação absurda de que todas as religiões se equivalem,
sem nenhuma diferença entre a verdade e o erro. "Este princípio - para
usar palavras do mesmo nosso predecessor - leva necessariamente à ruína de
todas as religiões, especialmente da católica, que, sendo a única verdadeira
entre todas, não pode sem grandíssima ofensa ser colocada no mesmo plano que as
outras". (3) Além disso, negar toda a diferença entre coisas tão
contraditórias, pode levar à ruinosa conclusão de excluir todas as religiões na
teoria e na prática. Como poderia Deus, que é a própria verdade, aprovar ou
tolerar a indiferença, a negligência e a apatia daqueles que, em questões de
que depende a salvação eterna de todos, não fazem nenhum caso nem se importam
de procurar e encontrar as verdades necessárias, nem prestar a Deus o culto que
lhe é devido?
11. Hoje tanto empenho e
diligência se põem no estudo e no progresso do saber humano, e a nossa época
bem se pode gloriar das admiráveis conquistas alcançadas na investigação
científica. Então, por que não se há de pôr igual empenho, até mesmo maior, na
aquisição segura daquele saber que diz respeito, não já a esta vida terrena e
caduca, mas à celeste que nunca terá fim? Só quando tivermos alcançado a
verdade que deriva do Evangelho, e que deve traduzir-se na prática da vida, só
então a nossa alma poderá gozar a tranqüila posse da paz e alegria; alegria
imensamente superior à que pode vir dos descobrimentos da ciência e daquelas
maravilhosas invenções de hoje, que todos os dias são exaltadas, e elevadas,
por assim dizer, até às estrelas.
SEGUNDA PARTE
UNIDADE, CONCÓRDIA E PAZ
A VERDADE PRESTA NOTÁVEIS SERVIÇOS À CAUSA DA PAZ
12. Da consecução plena,
íntegra e sincera da verdade deve necessariamente seguir-se a união dos
espíritos, dos propósitos e das ações. De fato, qualquer contraste e desacordo
encontra a sua primeira causa no fato de a verdade não ser conhecida ou, pior
ainda, mesmo conhecida, ser rejeitada por causa das vantagens que muitas vezes
se esperam das falsas opiniões, ou por causa daquela reprovável cegueira que
leva os homens a justificar os próprios vícios e más ações.
13. É pois necessário que
todos, tanto os indivíduos como aqueles que têm nas mãos a sorte dos povos,
amem sinceramente a verdade, se querem gozar aquela concórdia e aquela paz, as
únicas que podem garantir a verdadeira prosperidade pública e particular.
14. De modo especial
exortamos à concórdia e paz os supremos chefes das nações. Colocados acima dos
conflitos entre os Estados, nós que abraçamos todos os povos com igual caridade
e não nos deixamos levar por nenhuma ambição de domínio político nem por
qualquer desejo de bens terrenos, ao falarmos de assunto de tamanha
importância, pensamos que merecemos ser julgados e ouvidos com serenidade pelos
homens de todas as nações.
Deus criou os homens
irmãos
15. Deus criou os homens,
não inimigos, mas irmãos. Deu-lhes a terra para a cultivarem com o trabalho e
suor, afim de que todos e cada um gozem dos seus frutos e tirem dela quanto
precisam para o sustento e as necessidades da vida. As diversas nações não
passam de comunidades de homens, isto é, de irmãos, que devem tender, unidos
fraternalmente, não só para o fim próprio de cada uma, mas também para o bem
comum de toda a família humana.
16. De resto esta vida
mortal não se há de considerar só em si mesma ou como se a finalidade dela
fosse o prazer. Se ela leva à dissolução do corpo do
homem, prepara e dispõe também para a vida imortal, para a pátria onde
viveremos eternamente.
17. Tiradas da alma do
homem esta doutrina e esta consoladora esperança, desabam todas as razões de
viver. Levantam-se nas almas, fatalmente, as paixões, as lutas e as discórdias,
que ninguém poderá dominar eficazmente. Deixa de brilhar a oliveira da paz, mas
chameja a chama da discórdia. A sorte do homem torna-se quase igual à dos seres
privados de razão; e por vezes essa sorte é ainda pior, pois, sendo dotado do
poder de raciocinar, tem também a possibilidade de, abusando desse poder, cair
nos abismos do mal, o que infelizmente acontece muitas vezes; e pode chegar,
como outrora Caim, a manchar a terra com sangue fraterno e com gravíssimo
crime.
18. Se portanto queremos -
e quem não o há de querer? - reconduzir as ações humanas ao caminho da justiça,
é necessário, primeiro que tudo, reconduzir a razão e a vontade a estes
princípios.
19. Se nos dizemos e somos
realmente irmãos, se temos todos a mesma sorte na vida presente e na futura,
como é possível tratarmos os outros como adversários e inimigos? Por que os
havemos de invejar, alimentar ódios e preparar armas de morte contra os nossos
irmãos? Já se combateu demais entre os homens. Já demasiados jovens, na flor da
idade, derramaram o próprio sangue. Já existem demasiados cemitérios de mortos
nas guerras, a lembrar a todos, com voz severa, que estabeleçam por fim a
concórdia, a unidade e a paz justa.
20. Pense portanto cada um,
não no que os divide, mas no que os pode unir na mútua compreensão e recíproca
estima.
União e concórdia
entre os povos
21. Somente se se procura
deveras a paz e não a guerra - como se deve fazer - e se tende com comum e
sincero esforço para a concórdia fraterna entre os povos, só então será
possível compreender os interesses públicos e compor bem as divergências. E
poder-se-á assim chegar, de comum acordo e com os meios oportunos, à suspirada
e harmoniosa união, pela qual os direitos de cada Estado à liberdade, longe de
serem conculcadas por outros, sejam perfeitamente garantidos. Aqueles que
oprimem os outros e os despojam da sua liberdade, não podem sem dúvida
contribuir para tal união. Como vem a propósito aqui o que afirmou o nosso
sapientíssimo predecessor de feliz memória Leão XIII: "Para refrear a
ambição, a cobiça dos bens alheios e a rivalidade, que são os maiores
incentivos à guerra, nada vale mais que as virtudes cristãs, a justiça em
primeio lugar". (4)
22. E se os povos não
chegam a esta união fraterna, fundada necessariamente na justiça e alimentada
pela caridade, a situação mundial manter-se-á muito tensa. Por isso os homens
sensatos deploram justamente uma situação tão incerta, que deixa em dúvida se
nos encaminhamos para uma paz sólida e verdadeira, ou se corremos com extrema
cegueira para nova e terrível guerra. Com extrema cegueira, dissemos; se de
fato - o que Deus não queira - houver de rebentar nova guerra, tal ‚ o poder
das armas monstruosas dos nossos dias, que não restaria para todos os povos -
vencedores e vencidos - senão imensa devastação e universal ruína.
23. Por isso suplicamos a
todos, mas em especial aos governantes, que meditem nisto com atenção diante de
Deus juiz, e que procurem aplicar corajosamente todos
os meios, que possam levar à necessária união. Esta unidade de intenções que,
segundo dissemos, é indispensável também para o aumento da prosperidade de
todos os povos, só poderá ser restaurada quando, pacificados os ânimos e
salvaguardados os direitos de cada um, brilhar em toda a parte a liberdade
devida aos cidadãos, às nações, aos Estados e à Igreja.
União e concórdia
entre as classes sociais
24. Além disso, é
absolutamente necessário restaurar também, entre as várias classes sociais, a
mesma concórdia que se deseja entre os povos e as nações. Se isto não
acontecer, podem surgir, como já se vai vendo, ódios e discórdias recíprocas;
donde surgirão desavenças, desequilíbrios sociais e até por vezes excídios, e,
acrescente-se a isso, uma progressiva diminuição da riqueza e uma crise da
economia pública e particular. Já o mesmo predecessor nosso observava
justamente: "Quis Deus que, na comunidade do convívio humano, houvesse
desigualdade de classes, mas ao mesmo tempo relações amigáveis de
equidade". (5) Com efeito, "como no corpo os vários membros se
conciliam entre si e formam aquela harmônica combinação que se chama simetria,
do mesmo modo a natureza exige que, no convívio civil..., as classes se
integrem mutuamente e pela colaboração levem a um justo equilíbrio. Uma não
pode passar sem a outra; não pode subsistir o capital sem o trabalho, nem o
trabalho sem o capital. A concórdia produz a beleza e a ordem das coisas".
(6) Quem ousa portanto negar a diversidade das classes sociais contradiz a
própria ordem da natureza. Quem se opõe a esta amigável e indispensável
cooperação entre as mesmas classes contribui para arruinar e dividir a
sociedade humana, com grave perturbação e dano do bem público e particular.
Observava com razão o nosso predecessor Pio XII de imortal memória: "Num
povo digno deste nome, todas as desigualdades que não derivam do arbítrio, mas
da própria natureza das coisas - desigualdades de cultura, de haveres e de
posição social, sem prejuízo, é claro, da justiça e da caridade mútua - não se
opõem à existência dum autêntico espírito
de fraternidade".(7) Podem, cada classe e as várias categorias de
cidadãos, defender os próprios direitos, conquanto que o façam não pela
violência, mas legitimamente, sem invadir os direitos alheios também eles
inderrogáveis. Todos são irmãos; portanto todas as questões devem compor-se
amigavelmente e com mútua caridade fraterna.
Alguns sinais de
apaziguamento
25. Devemos reconhecer, o
que ‚ de bom auspício, que de algum tempo a esta parte vigora, aqui e além, uma
situação menos tensa entre as várias categorias sociais, como já observava o
nosso imediato predecessor falando deste modo aos católicos da Alemanha:
"A tremenda catástrofe da última guerra, que desceu tão duramente sobre
vós, trouxe pelo menos este benefício: em vários meios - vencidos os
preconceitos e o egoísmo de grupo - os contrastes das classes estão mitigados,
e os homens aproximaram-se mais uns dos outros. A miséria comum ‚ para todos
mestra salutar, embora amarga, de disciplina".(8)
26. Na realidade, hoje
estão um pouco diminuídas as distâncias entre as classes; estas não podem já
reduzir-se a um dualismo de blocos contrapostos, um do capital e outro do
trabalho. Apresenta-se, pelo contrário, a multiplicidade de grupos, mais
abertos a todos os cidadãos. Os mais preparados e hábeis têm a possibilidade de
subir mesmo às primeiras posições. No que respeita mais diretamente o mundo do
trabalho, é consolador pensar naqueles movimentos nascidos recentemente, que
tornam mais humanas as condiçäes dos operários no âmbito da empresa e outros
campos do trabalho, num plano não exclusivamente econômico mas mais elevado e
mais digno.
Reflexões acerca de
importantes problemas no campo do trabalho
27. Todavia falta ainda
percorrer muito caminho. Existem desigualdades, demasiados motivos de atrito
entre setor e setor, fundados às vezes no conceito imperfeito e nem sempre de
todo justo do direito de propriedade, como o defendem aqueles que procuram
desmedidamente satisfazer o próprio egoísmo. Acrescenta-se a isso o doloroso
fenômeno do desemprego, que em muitos causa graves angústias, fenômeno que, ao
menos de momento, os rápidos progressos da técnica moderna no campo da produção
poderiam agravar ainda mais. Assunto este que levou o nosso predecessor de
feliz recordação Pio XI a dizer com amargura: "Vemos forçados à inércia e
reduzidos à indigência extrema, juntamente com as suas famílias, tantos e
tantos trabalhadores honestos e ativos, que só desejam ganhar honradamente com
o suor do rosto esse pão, que todos os dias pedem ao Pai do céu, segundo a
ordem divina. Os seus gemidos comovem o nosso coração e fazem-nos repetir, com
a mesma ternura de piedade, a queixa do coração amorosíssimo do Divino Mestre a
respeito de tantos que desfalecem de fome: 'Tenho
compaixão da multidão'" (Mc 8,2). (9)
28. Se, portanto, como é
dever de todos, queremos e procuramos a mútua harmonia das classes, através do
esforço público e particular e da coordenação de corajosas iniciativas, é
preciso trabalharmos quanto possível para que todos, mesmo os de mais humilde
condição, possam, com o trabalho e o suor da fronte, procurar o necessário para
a vida e prover segura e honestamente ao futuro próprio e dos seus. Tanto mais
que as condições dos nossos dias oferecem inúmeras comodidades, de que não é lícito
excluir as classes menos abastadas.
29. Exortamos todos aqueles
que têm maiores responsabilidades nas empresas e dos quais depende a sorte e às
vezes até a própria vida dos operários, a que não avaliem o trabalhador só do
ponto de vista econômico, nem se limitem ao reconhecimento de seus direitos
relativos ao salário, mas respeitem também a dignidade de sua pessoa e mais
ainda considerem como irmãos. Esforcem-se também por que os operários
participem cada vez mais nos lucros da empresa e se sintam, não estranhos a
ela, mas co-interessados na sua vida e progressos. Isto dizemos, movidos do
desejo de que se institua uma harmonia sempre maior entre os direitos e os
deveres recíprocos das categorias que formam o mundo do trabalho, e para que as
respectivas organizações profissionais "não sejam tomadas como arma
exclusivamente destinada à guerra defensiva e ofensiva, que provoca reações e
represálias, não como inundação que alaga e divide, mas como ponte que
une".(10) Deve-se sobretudo prover a que ao progresso econômico
corresponda não menor progresso no campo dos valores espirituais, como pede a
dignidade de cristãos e até de simples homens. Que aproveitará ao trabalhador
conseguir melhorias econômicas cada vez maiores e alcançar um nível de vida
mais elevado, se houver de perder ou descurar os bens superiores da alma
imortal? As perspectivas em vista só se poderão realizar pela aplicação da
doutrina social da Igreja, e se todos "procurarem alimentar em si e
acender nos outros, grandes e pequenos, a caridade, senhora e rainha de todas
as virtudes. Pois a suspirada salvação deve ser principalmente fruto de grande
efusão da caridade; daquela caridade cristã que resume em si todo o Evangelho,
e que, pronta sempre a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais seguro
contra o orgulho e o egoísmo do século; dela traçou São Paulo o divino retrato
com estas palavras: 'A caridade é paciente, é benigna: não busca os seus
próprios interesses; tudo sofre; tudo suporta"' (l Cor 13,4-7).(11)
União e concórdia no
seio das famílias
30. Finalmente exortamos
instante e paternalmente todas as famílias a que procurem alcançar e reforçar
aquela união e concórdia, a que convidamos os povos, os governantes e todas as
classes sociais. Se não há paz, união e concórdia nas famílias, como poderá
havê-la na sociedade civil? Esta ordenada e harmônica união, que deve sempre
reinar dentro das paredes domésticas, nasce do vínculo indissolúvel e da
santidade própria do matrimônio cristão e contribui imensamente para a ordem,
progresso e o bem-estar de toda a sociedade civil. O pai faça, por assim dizer,
as vezes de Deus no lar e oriente, não só com a autoridade, mas também com o
exemplo. A mãe, com a delicadeza da alma e a virtude, procure educar forte e
suavemente os filhos; para com o marido seja boa e afetuosa; e com ele prepare
os filhos, dom preciosíssimo de Deus, para uma vida honesta e religiosa. Os
filhos, por sua vez, sejam sempre obedientes aos pais, como devem, amem-nos,
consolem-nos e, sendo necessário, ajudem-nos. Dentro das paredes domésticas
reine aquela caridade que abrasava a Sagrada Família de Nazaré, floresçam todas
as virtudes cristãs, domine a união dos corações, e brilhe o exemplo duma vida
honesta. Não aconteça nunca - como pedimos ardentemente a Deus - que seja
perturbada tão bela, suave e necessária concórdia; quando a instituição cristã
da família vacila, quando são negados ou violados os mandamentos do Divino
Redentor sobre este ponto, então desabam os fundamentos da civilização, a
sociedade civil corrompe-se e corre grave perigo com prejuízos incalculáveis
para todos os cidadãos.
TERCEIRA PARTE
UNIDADE DA IGREJA
MOTIVOS DE ESPERANÇA BASEADOS NA ORAÇÃO DE JESUS CRISTO
31. Falemos agora daquela
unidade que de modo especialíssimo nos toca e está intimamente relacionada com
o oficio pastoral que Deus nos contou: referimo-nos à unidade da Igreja.
32. Todos sabem que o nosso
divino Redentor fundou uma sociedade que deverá ser una até ao fim dos séculos:
"Eis que estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos"
(Mt 28,20), e que para o alcançar Jesus Cristo dirigiu ao Pai do Céu uma
fervorosa oração, que foi sem dúvida aceita e ouvida pela sua reverência (cf.
Hb 5,7). É a seguinte: "Sejam todos um como tu, ó Pai, o és em mim e eu em
ti, para que sejam também eles um em nós" (Jo 17,21). Esta oração dá-nos e
confirma-nos a doce esperança de que finalmente todas as ovelhas, que não
pertencem a este redil, venham a sentir o desejo de a ele voltar; de maneira
que, segundo as palavras do Divino Redentor, "haverá um só redil e um só
Pastor" (Jo 10,16).
33. Profundamente animados
por esta suavíssima esperança, anunciamos publicamente o nosso propósito de
convocar um Concílio Ecumênico, em que hão de participar os sagrados pastores
do orbe católico para tratarem dos graves problemas da religião, principalmente
para se conseguirem o incremento da fé católica e a saudável renovação dos
costumes no povo cristão e para a disciplina eclesiástica se adaptar melhor às
necessidades dos nossos tempos. Sem dúvida constituirá maravilhoso espetáculo
de verdade, unidade, e caridade; espetáculo que, ao ser contemplado pelos que
vivem separados desta Sé Apostólica, os convidará, como esperamos, a buscar e
conseguir a unidade pela qual Cristo dirigiu ao Pai do Céu a sua fervorosa
oração.
Aspirações de unidade
nas diversas comunidades separadas
34. Consola-nos saber que
nestes últimos tempos se foi criando no seio de não poucas comunidades,
separadas da Sé Apostólica, certo movimento de simpatia pela fé e pelas
instituições católicas e se originou e foi sempre crescendo a estima para com
esta Sé Apostólica, caindo os preconceitos com o estudo da verdade. Sabemos,
além disso, que a maior parte dos cristãos, ainda que separados de nós e entre
si, têm realizado congressos e organizado conselhos para se unirem: tudo isto mostra o veemente desejo que os impele a
chegarem ao menos a certa unidade.
A unidade da Igreja
desejada pelo Divino Redentor
35. Sem dúvida o nosso
Divino Redentor fundou sua Igreja baseando-a e construindo-a em solidíssima unidade;
e se - ponhamos a hipótese absurda - o não tivesse feito, teria realizado uma
coisa caduca e contraditória pelo menos no futuro, à semelhança do que se dá
com os sistemas filosóficos que, abandonados ao arbítrio das várias opiniäes
humanas, com o decorrer dos tempos vão nascendo um dos outros, se transformam e
desaparecem sucessivamente. Ninguém pode deixar de ver quanto isto repugna à
doutrina de Jesus Cristo que "é o caminho, a verdade e a vida" (Jo
14,6).
36. Esta unidade,
veneráveis irmãos e amados filhos, que, segundo dissemos, deve ser não coisa
vã, incerta e instável, mas sólida, firme e segura, (12) se falta às outras
comunidades cristãs, não falta à Igreja Católica, como pode ver quem
diligentemente a contemplar. Esta unidade manifesta-se por três notas
distintivas: unidade de doutrina, de governo e de culto; e é tal, que se torna
visível a todos, de maneira que todos a podem reconhecer e abraçar; é tal esta
unidade, que, por vontade do seu Divino Fundador, todas as ovelhas se podem
nela reunir num só redil e sob um só Pastor. Desta maneira, todos os filhos
serão chamados à única casa paterna, estabelecida sobre o fundamento de Pedro,
pois ‚ preciso procurar reunir fraternalmente todos os povos, como no único
Reino de Deus, reino, cujos súditos, unidos entre si na terra pela concórdia do
espírito, gozarão um dia a eterna bemaventurança no céu.
Unidade da fé
37. A Igreja Católica manda
crer fiel e firmemente tudo o que Deus revelou, isto é, o que está contido na
Sagrada Escritura e na Tradição tanto oral como escrita e, no decurso dos
séculos, desde o tempo dos apóstolos foi estabelecido e definido pelos Sumos
Pontífices e pelos legítimos Concílios Ecumênicos. Sempre que algu‚ém se afastou desta verdade, a Igreja com a sua materna
autoridade não deixou de o chamar repetidamente ao reto caminho. Pois sabe
muito bem e defende que há uma só verdade e que não podem admitir-se
"verdades" contrárias entre si; faz sua a afirmação do Apóstolo das
gentes: "Nada podemos contra a verdade, mas pela verdade" (2Cor
13,8). 38. Há porém não poucos pontos em que a Igreja Católica deixa liberdade
de discussão aos teólogos, porque se trata de coisas não de todo certas e
também porque, como notava o celebérrimo escritor inglês, Cardeal João Henrique
Newman, tais disputas não quebram a unidade da Igreja, mas pelo contrário levam
a maior e mais profunda inteligência dos dogmas, pois aplanam e tornam mais
seguro o caminho para este conhecimento; da oposição de várias sentenças sai
sempre nova luz. (l3) Mas é preciso manter também a norma comum que, expressa
com palavras diversas, se atribui a diferentes autores: nas coisas necessárias,
unidade; nas duvidosas, liberdade; em todas, caridade.
Unidade de governo
39. Haver na Igreja
Católica unidade de governo é coisa que todos vêem. Como os fiéis estão
sujeitos aos sacerdotes, e os sacerdotes aos Bispos "postos pelo Espírito
Santo para reger a Igreja de Deus" (At 20,28); assim, todos e cada um dos sagrados pastores estão sujeitos ao romano
pontífice, como a quem deve ser considerado sucessor daquele Pedro, que nosso
Senhor Jesus Cristo pôs como pedra e fundamento da sua Igreja (cf. Mt 16,18),
com o poder de desligar e ligar na terra (cf. Mt 16,19), de confirmar os seus
irmãos (cf. Lc 22,32) e de apascentar o rebanho inteiro (Jo 21,15-17).
Unidade de culto
40. Quem ignora que a
Igreja Católica, desde o tempo dos Apóstolos e pelo decurso dos séculos, teve
sempre sete sacramentos, nem mais nem menos, recebidos de Jesus Cristo como
herança sagrada, os quais ela distribui em todo o orbe católico, para alimento
da vida sobrenatural dos fiéis? E quem ignora que nela se celebra um só
sacrifício, o Eucarístico, em que o próprio Cristo, nosso Salvador e Redentor,
de modo incruento mas real, como outrora pregado na cruz do Calvário, se imola
cada dia por nós todos, e difunde misericordiosamente sobre nós os tesouros
infinitos da sua graça? Por isso, com muita razão notou S. Cipriano: "Não
é lícito estabelecer outro altar e um novo sacerdócio, além do único altar e do
único sacerdócio".(14) O que não impede, como todos sabem, que na Igreja
Católica existam e estejam aprovados diversos ritos, por meio dos quais ela
brilha mais bela, como filha do Sumo Rei, na variedade dos seus ornamentos (cf.
Sl 44,15). 41. Para que todos cheguem a essa unidade verdadeira e concorde, o
sacerdote católico, ao oferecer o sacrifício eucarístico, oferece a hóstia
imaculada pedindo primeiramente a Deus clementíssimo: "pela tua Santa
Igreja Católica", suplicando que "a purifiques, guardes, unas e
dirijas em toda a terra; juntamente com teu servo o nosso Papa e todos os que,
fiéis à verdadeira doutrina, cultivam a fé‚ católica e apostólica".(15)
Paterno convite à
unidade
42. Oxalá este maravilhoso
espetáculo de unidade, que honra e distingue a Igreja Católica, estas súplicas,
com que pede a Deus a mesma unidade para todos, comovam e motivem salutarmente
o vosso espírito, o vosso, dizemos, daqueles que estais separados desta Sé
Apostólica.
43. Permiti que vos
chamemos com viva saudade irmãos e filhos. Deixai-nos alimentar a esperança do
vosso regresso que desejamos com afeto muito paternal. A vós nos dirigimos com
a mesma solicitude pastoral e as mesmas palavras com que o Bispo de Alexandria,
Teófilo, se dirigia aos seus irmãos e filhos quando um doloroso cisma dilacerava
a túnica inconsútil da Igreja: "Caríssimos, participantes da mesma vocação
celeste, imitemos cada um segundo as próprias possibilidades, imitemos a Jesus,
guia e consumador da nossa salvação. Abracemos aquela humildade que eleva o
espírito, aquela caridade que nos une a Deus e aquela fé sincera nos divinos
mistérios. Fugi da divisão, evitai a discórdia... mantende-vos em mútua
caridade: ouvi Cristo que diz: Conhecerão todos que sois meus discípulos, se
vos amardes uns aos outros".(16)
44. Reparai: quando vos
convidamos com amor para a unidade da Igreja não vos chamamos para casa alheia,
mas para a própria, para a casa comum e paterna. Permiti-nos portanto esta
exortação, que vos fazemos amando-vos a todos "nas entranhas de Jesus
Cristo" (Fl 1,8). Recordai-vos dos vossos pais, "que vos disseram a
palavra de Deus; e considerando o fim da sua vida, imitai a sua fé" (Hb
13,7). A gloriosa falange dos Santos, que cada um dos vossos povos transpôs
para o céu, sobretudo aqueles Santos, que, por meio dos seus escritos,
transmitiram abundantemente e explicaram a doutrina de Jesus Cristo, parecem
convidar-vos, com o exemplo da própria vida, à unidade com esta Sé Apostólica,
à qual a vossa comunidade cristã esteve por tantos séculos unida salutarmente.
45. Dirigimo-nos pois como
a irmãos a todos aqueles que estão separados de nós, usando as palavras de S.
Agostinho que diz: "Queiram ou não, são nossos irmãos. Só deixarão de ser
irmãos nossos se deixarem de dizer: Pai nosso".(17) "Amemos Deus nosso
Senhor, amemos a sua Igreja; ele como Pai, ela como mãe; ele como Senhor, ela
como a sua escrava; pois somos filhos da mesma escrava. Mas este matrimênio
encontra a sua coesão na grande caridade; ninguém ofende um e merece do outro.
Que te aproveita não ofender o Pai se ele defende a mãe ofendida?...
Conservai-vos, portanto, caríssimos, conservai-vos todos unanimemente unidos a
Deus pai e à mãe Igreja".(18)
Necessidade de
orações especiais
46. Nós, portanto, para
conservação da unidade da Igreja e aumento do redil de Cristo e do seu reino
elevamos súplicas à benegnidade divina, dispensadora da luz celeste e de todos
os bens, e exortamos também a orarem com perseverança todos os nossos irmãos e
filhos em Cristo. O bom êxito do futuro Concílio Ecumênico, mais que da humana
atividade e diligência, depende das ardentes orações elevadas por todos à
porfia. Para elevarem estas súplicas a
Deus, convidamos com afeto também aqueles que, embora não sendo deste redil,
prestam a Deus a devida honra e sinceramente procuram obedecer aos seus
preceitos.
47. Aumente e coroe esta
esperança e estes nossos votos a oração sacerdotal de Cristo: "Pai Santo,
guarda no teu nome aqueles que me deste, para que sejam uma só coisa, como
nós... Santifica-os na verdade: a tua palavra ‚ verdade... Não peço por eles
só, mas também por aqueles que por meio da sua palavra hão de crer em mim...
para que sejam perfeitos na unidade..." (Jo 17,11.17.20.21.23).
Da concorde união dos
espíritos nascem a paz e a alegria
48. Esta oração renovamo-la
juntamente com o mundo católico a nós unido; e fazemo-lo não só animados da
viva chama de amor para com todos os povos, mas também com espírito de sincera
humildade evangélica. Conhecemos a pequenez da nossa pessoa, que Deus, não
pelos nossos méritos, mas por oculto desígnio seu, se dignou elevar à dignidade
de Sumo Pontífice. Por isso, a todos os nossos irmãos e filhos separados desta
Cátedra de Pedro, repetimos as palavras: "Eu sou José, vosso irmão"
(Gn 45,4). Vinde; "compreendei-nos" (2Cor 7,2); não queremos outra
coisa, não desejamos outra coisa, não pedimos a Deus outra coisa senão a vossa
salvação, a vossa eterna felicidade. Vinde; desta suspirada unidade e
concórdia, que deve ser alimentada pela caridade fraterna, nascerá grande paz;
aquela paz "que supera todo o entendimento (Fl 4,7), porque desce do céu;
aquela paz que, por meio do concerto angélico sobre o seu presépio, Cristo
anunciou aos homens de boa vontade (cf. Lc 2,4), e que depois da instituição da
Eucaristia como sacramento e sacrifício, deu com estas palavras:
"Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo dá
" (Jo 14,27). Paz e alegria; sim também a alegria porque aqueles que
pertencem real e eficazmente ao corpo místico de Cristo, que é a Igreja
Católica, participam daquela vida, que da Cabeça divina deriva para todos os
membros. Esta fará que todos os que obedecem aos preceitos e mandamentos do
nosso Redentor possam gozar já nesta existência mortal aquela alegria que é o
penhor e anúncio da eterna felicidade do céu.
A paz na alma deve
ser operosa
49. Mas esta paz, esta
felicidade, enquanto percorremos o árduo caminho nesta terra de exílio, é ainda
imperfeita. Não é paz completamente tranqüila, de todo serena. É paz operosa,
não ociosa nem inerte. Sobretudo é paz militante contra todo o erro, mesmo que
dissimulado sob aparências de verdade, contra o atrativo e seduções do vício, e
contra toda a espécie de inimigos da alma, que procuram enfraquecer, manchar e
arruinar os bons costumes ou a nossa fé católica; e também contra os ódios,
rivalidades, dissídios que a podem quebrar ou lacerar. Por isso, o Divino
Redentor nos deu e recomendou a sua paz.
50. A paz, portanto, que
devemos procurar e esforçar-nos por conseguir, deve ser a paz que não cede ao
erro, que não se compromete de nenhum modo com fautores do erro, que não se
entrega aos vícios e que evita toda a discórdia. É paz que exige, da parte dos
que a desejam, a pronta renúncia às comodidades e vantagens próprias por causa
da verdade e da justiça, segundo a recomendação evangélica: "Procurai
primeiro o reino de Deus e a sua justiça..." (Mt 6,33).
51. A Bem-aventurada Virgem
Maria, Rainha da paz, a cujo Coração Imaculado o nosso predecessor Pio XII, de
imortal recordação, consagrou o gênero humano, consiga de Deus - como lhe pedimos fervorosamente - unidade concorde, paz
verdadeira, operosa e militante, tanto aos nossos filhos em Cristo como a todos
aqueles que, embora separados de nós, não podem deixar de amar a verdade, a
unidade e a concórdia.
QUARTA PARTE
EXORTAÇÕES PATERNAIS
Aos bispos
52. Queremos agora com
afeto paternal dirigir-nos a cada uma das várias categorias de pessoas na
Igreja Católica. E em primeiro lugar "a nossa palavra dirige-se a
vós" (2Cor 6,11), veneráveis irmãos no Episcopado, da Igreja Oriental e
Ocidental, que, como guias do povo cristão, suportais juntamente conosco,
"o peso do dia e do calor" (cf. Mt 20,12). Conhecemos a vossa
diligência; conhecemos o zelo apostólico com que procurais cada um no seu
território promover, fortalecer e estender a todos o Reino de Deus. Mas
conhecemos tambêm as vossas angústias, conhecemos a tristeza que vos aflige por
causa de tantos filhos que se afastam, enganados pelas falsas aparências dos
erros; por causa da pobreza, que às vezes, impede às obras católicas de se desenvolverem
entre vós; mas principalmente por causa da falta de sacerdotes, insuficientes
em muitos lugares para as necessidades cada vez maiores. Confiai porém naquele,
do qual vem "toda a dádiva excelente e todo o dom perfeito" (Tg
1,17); confiai em Jesus Cristo, dirigi-lhe súplicas fervorosas; sem ele
"nada podeis fazer" (Jo 15,5); mas com a sua graça pode cada um de
vós repetir aquela sentença do Apóstolo das gentes: "Tudo posso naquele
que me conforta" (Fl 4,13).
"Satisfaça Deus todos
os vossos desejos conforme as suas riquezas com a glória, em Cristo Jesus"
(Fl 4,19), de modo que possais colher messe abundante e frutos copiosos do
campo cultivado com o vosso trabalho e suor.
Ao clero
53. Dirigimo-nos com ânimo
paterno também àqueles que militam em cada uma das classes do clero; quer sejam
vossos próximos colaboradores, veneráveis irmãos, nas cúrias diocesanas; quer
nos seminários vos prestem o serviço tão importante de instruir e educar a
juventude eleita, chamada ao serviço de Deus; quer nas grandes cidades, nas
vilas ou nas aldeias longínquas e solitárias, exerçam o cargo de pároco, tão
difícil hoje, tão árduo e tão pesado. Procurem os mesmos - perdoem-nos se lho
recordamos, pois esperamos que não será necessário - procurem mostrar-se
respeitadores e obedientes ao seu Bispo, segundo as palavras de Santo Inácio de
Antioquia: "Sujeitai-vos ao Bispo como a Jesus Cristo... É necessário,
como já praticais, nada fazerdes sem o Bispo"; (19) "pois quem é de
Deus e de Jesus Cristo está com o Bispo".(20) Lembrem-se ainda de que não
têm apenas um cargo público, mas de que são principalmente ministros das coisas
sagradas; por isso não ponham limite nos trabalhos, nas perdas de tempo e de
bens materiais, nos gastos e nas incomodidades próprias, quando se trata de
ilustrar as mentes com a luz divina, de, com o auxílio do alto e da caridade
fraterna, dobrar as vontades obstinadas, e finalmente de promover e propagar o
pacífico Reino de Jesus Cristo. Mais que no seu próprio esforço e trabalho
confiem na graça divina, implorando-a todos os dias com orações fervorosas e
instantes.
Aos religiosos
54. Saudamos também com
coração de pai os religiosos que, tendo abraçado os vários estados de perfeição
evangélica, vivem segundo as leis peculiares dos seus Institutos e obedecem a
seus Superiores. Exortamo-los a que se dêem com toda a dedicação e forças a
realizar aquilo que os seus Fundadores se propuseram ao dar-lhes as regras; de
modo especial os exortamos a que fervorosamente se dêem à oração, às obras de
penitência, à formação e educação da
juventude, e ao alívio daqueles que de qualquer modo se vêem a braços com
necessidades ou angústias.
55. Sabemos muito bem que
não poucos desses estimados filhos, por causa das circunstâncias presentes,
muitíssimas vezes são chamados ao trabalho pastoral, com vantagem da religião e
da virtude cristã. A estes - embora esperemos que não precisem de nossa
admoestação - exortamo-los insistentemente a que aos grandes méritos, que
distinguiram as suas Ordens ou Institutos religiosos no passado, acrescentem a
glória de corresponder de bom grado às necessidades presentes do povo,
colaborando muito zelosamente com os outros sacerdotes, na medida das próprias
possibilidades.
Aos missionários
56. A nossa mente voa agora
para junto daqueles que deixaram a casa paterna e a pátria amada, e, sofrendo
graves incômodos e superando grandes dificuldades, partiram para terras
estrangeiras, e agora labutam naqueles longínquos campos de trabalho, para
ensinar aos gentios a verdade evangélica e a virtude cristã, a fim de que em
todos os povos "se propague a palavra de Deus e seja glorificada" (2
Ts 3,1). A eles está confiada, sem dúvida, missão importante em que devem
colaborar todos os cristãos segundo as suas forças, quer com orações, quer
dando auxílio material. Talvez nenhuma iniciativa seja tão agradável a Deus
como esta que está intimamente ligada com a obrigação comum de propagar o Reino
de Deus. Estes arautos do Evangelho consagram inteiramente a sua vida a Deus,
para que a luz de Jesus Cristo ilumine todo o homem que vem a este mundo (cf.
Jo 1,9), para que a graça divina penetre e afervore as almas de todos e os leve
sobrenaturalmente a viver vida digna, culta e cristã. Esses missionários não
procuram os seus interesses, mas os de Jesus Cristo (cf. Fl 2,21) e, seguindo
generosamente a voz do Divino Redentor, podem aplicar a si mesmos a sentença do
Apóstolo das gentes: "Nós desempenhamos as funções de embaixadores de
Cristo" (2Cor 5,20) e "embora vivendo na carne, não militamos segundo
a carne" (2Cor 10,3). A região a que se dirigiram para levar a luz da
verdade evangélica consideram-na como segunda pátria e estimam-na com amor
operoso; e embora cada um ame muito a sua terra querida, a sua própria diocese
ou Instituto religioso, compreende e tem por certo que a este deve ser
preferido o bem da Igreja universal, que se há de servir em primeiro lugar e
com todos os meios.
57. Desejamos que todos
estes amados filhos - e todos aqueles que naquelas regiões ajudam generosamente
os missionários como catequistas ou de outro modo - saibam que estão presentes
de modo especialíssimo ao nosso coração e que nós rezamos todos os dias por
eles e pelas suas atividades; e que nós confirmamos também com a nossa
autoridade e com igual amor tudo quanto os nossos predecessores de feliz
memória, especialmente Pio XI (21) e Pio XII (22), oportunamente estabeleceram
em suas Encíclicas.
Às religiosas
58. Nem queremos passar
aqui em silêncio a respeito das virgens que pelos votos se consagraram a Deus
para a ele só servirem e pelas místicas núpcias estarem intimamente unidas ao
esposo divino. Elas - ou se entreguem à vida retirada nos claustros rezando e
fazendo penitência ou se dediquem às obras externas do apostolado - não só
podem cuidar muito mais facilmente da sua salvação, mas podem ainda ajudar
muito a Igreja, tanto nas nações cristãs, como nas terras longínquas onde não
brilhou ainda a luz do Evangelho. Oh! quanto não fazem estas religiosas! Oh!
quantas e quão altas coisas realizam, que ninguém mais pode levar a cabo com a
mesma dedicação virginal e maternal! E isso não em um mas em muitos campos de
atividade: no ensino e educação da juventude; nas catequeses paroquiais; nos
hospitais, onde podem cuidar dos enfermos e elevar-lhes as almas até Deus; nos
asilos de velhos que podem tratar com caridade paciente, alegre e
misericordiosa, sugerindo-lhes de modo admirável e suave desejos da vida
eterna; finalmente nos orfanatos e hospitais infantis, fazendo as vezes de mães
e tratando com amor materno esses órfãos ou abandonados que não têm pai nem mãe
que os alimente, beije e abrace. As religiosas prestam ótimos serviços à Igreja
Católica, à educação cristã e à prática das obras de misericórdia, mas também à
sociedade civil; e conquistam uma coroa incorruptível que lhes será dada um dia
no céu.
À Ação Católica e a todos os colaboradores no apostolado
59. Mas, como bem sabeis,
veneráveis irmãos e diletos filhos, as necessidades dos homens no campo
católico são hoje tão grandes e tão variadas, que o clero, os religiosos e as
religiosas parecem insuficientes para as satisfazer.
Além disso, aos sacerdotes,
aos religiosos e às religiosas não está aberto o acesso a todas as categorias
de pessoas, e nem todos os caminhos lhes são acessíveis, pois muita gente os
desconhece ou os evita, ou até, infelizmente, os despreza e aborrece.
60. Também por este grave e
doloroso motivo, já os nossos predecessores chamaram os leigos para as fileiras
do pacífico exército da Ação Católica, com a providencial intenção de estes
virem ajudar a jerarquia eclesiástica no apostolado; aquilo que esta não pode
fazer nas circunstências atuais, estes homens e mulheres católicos fazem-no
generosamente, colaborando com os sagrados pastores e obedecendo-lhes sempre. E
para nós grande consolação considerar o trabalho realizado até agora, mesmo em
terras de missões, por estes auxiliares dos Bispos e dos sacerdotes. Acorreram
de todas as idades e condições sociais, e labutaram com zelo e boa vontade para
tornar conhecida a todos a verdade e para fazer sentir a todos o convite e
atração da virtude.
61. Mas fica-lhes ainda
vastíssimo campo de trabalho; são muitíssimos aqueles que precisam do seu
exemplo luminoso, e do seu trabalho apostólico. Pretendemos tratar noutra
ocasião, de modo mais amplo e completo, deste assunto que julgamos de
gravíssima e suma importância. Entretanto alimentamos a esperança certa de que
os militantes nas fileiras da Ação Católica ou nas inúmeras pias associações
que florescem na Igreja, continuarão com toda a diligência tão necessária
atividade: quanto maiores são as necessidades deste nosso tempo, tanto maiores
devem ser os esforços, os cuidados, as diligências e o zelo. Estejam
inteiramente unidos, porque, como muito bem sabem, a união faz a força; deixem
de lado opiniäes particulares, sempre que se trate da causa da Igreja Católica,
a qual deve ser a suprema e a mais importante de todas; e isto não somente no
que diz respeito à doutrina sagrada, mas também às normas disciplinares da
Igreja, normas que devem ser respeitadas sempre por todos. Em fileiras
cerradas, e sempre unidos pela obediência à jerarquia católica, avancem para
novas conquistas, sempre maiores; não se poupem a trabalhos, nem fujam de
incômodos para fazer triunfar a causa da Igreja.
62. Mas, para que isto se
consiga, procurem antes de tudo - como sem dúvida já estão persuadidos que deve
ser - deixar-se impregnar da doutrina cristã, intelectual e moral. Só
então serão capazes de dar aos outros aquilo que tiverem adquirido com o
auxílio da graça divina. Dirigimos esta recomendação em primeiro lugar aos
adolescentes e jovens. Eles têm generosidade que facilmente se inflama pelos
nobres ideais, mas precisam mais do que ninguém de prudência, moderação e
obediência aos Superiores. A estes amadíssimos filhos, esperança da Igreja, nos
quais pomos tanta confiança, chegue a expressão viva da nossa gratidão e do
nosso paternal afeto.
Aos aflitos e
atribulados
63. Agora parecem subir até
nós os gemidos dos que sofrem no corpo ou no espírito, ou se encontram em tais
angústias econômicas que nem possuem uma casa digna de homens, nem encontram
trabalho para ganhar os meios de sustentação para si próprios e para os filhos.
Estas lamentações impressionam vivamente e comovem nosso coração, e, em
primeiro lugar, queremos comunicar aos doentes, aos entrevados e aos velhos
aquele conforto que vem do alto. Lembrem-se de que não temos aqui idade
permanente, mas que buscamos a futura (cf. Hb 3,14); lembrem-se que as dores
desta vida mortal, que purificam, elevam, e nobilitam a alma, nos podem dar
alegria eterna no céu; lembrem-se de que o Divino Redentor, para lavar-nos das
manchas dos nossos pecados e purificar-nos, sofreu a morte de cruz e suportou
de boa mente injúrias, suplícios e aflições crudelíssimas. Assim como ele,
também nós todos somos chamados da cruz à luz, segundo a sua palavra: "Se
alguém quiser vir após mim, abnegue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os
dias, e siga-me" (Lc 9,23); e terá um tesouro imperecível no céu (cf. Lc
12,23).
64. Desejamos além disso -
e estamos convencidos de que esta nossa exortação terá bom acolhimento - que os
sacrifícios espirituais e corporais constituam não só degraus para cada um dos
que sofrem para subir ao céu, mas contribuam também para a expiação dos pecados
alheios, para o regresso ao seio da Igreja daqueles que dela infelizmente se
separaram, e para o triunfo do nome cristão.
Aos pobres
65. Os mais desprovidos de
bens materiais, que se queixam de grande pobreza, saibam antes de mais nada que
nós sentimos grande dor com esta sorte que têm. E isto não só porque desejamos
com coração paterno que a virtude cristã da justiça tenha a devida aplicação na
questão social, e dirija e informe as relações mútuas das classes, mas também
porque muito nos custa que os inimigos da Igreja abusem facilmente das injustas
condições das pessoas necessitadas para atraí-las do seu lado com promessas
enganosas e ilusões falsas.
66. Saibam estes nossos
caríssimos filhos que a Igreja não é inimiga deles nem lhes desconhece os
direitos; mas que os protege como mãe amorosa, e prega e inculca no campo
social tal doutrina e tais normas que, se forem inteiramente postas em prática,
farão desaparecer todo o gênero de injustiça e levarão a distribuição melhor e
mais justa dos bens; (23) e também se fomentará uma colaboração amigável entre
as várias classes, e cada indivíduo, poderá considerar-se e ser de fato
concidadão duma mesma comunidade e irmão duma mesma família. E, se
considerarmos com serenidade os melhoramentos que nos últimos tempos
conseguiram os que vivem do trabalho diário, devemos confessar que isso se deve
principalmente à eficaz atividade dos católicos na questão social, segundo as
sábias normas e repetidas exortações dos nossos predecessores. Aqueles,
portanto, que se dedicam a defender os direitos das classes mais abandonadas,
já têm normas certas e seguras na doutrina social cristã; se estas se puserem
devidamente em prática, oferecerão o meio de chegar a uma justa solução de
todos os problemas. Nunca devem pois os cristãos dirigir-se aos propugnadores
de doutrinas condenadas pela Igreja; é bem verdade que estes os atraem com
falsas promessas, mas, onde quer que têm o governo na mão, tentam arrancar das
mentes dos cidadãos o bem supremo das consciências - isto é, a fé cristã, a
esperança cristã e os mandamentos cristãos - e debilitam ou destroem
inteiramente aquilo que em nossos dias os homens civilizados justamente
exaltam, a saber, a liberdade e a verdadeira dignidade devida à pessoa humana;
e até procuram destruir os próprios fundamentos da civilização cristã. Portanto
aqueles que querem permanecer fiéis a Cristo têm obrigação grave de consciência
de evitar de todos os modos estes erros, já condenados pelos nossos
predecessores, especialmente Pio XI e Pio XII de feliz recordação, e nós
igualmente condenamos.
67. Sabemos que não poucos
dos nossos filhos, menos favorecidos pela fortuna ou acabrunhados pela miséria,
muitas vezes se queixam de nem todos os preceitos cristãos sobre a questão
social terem sido até agora postos em prática. É pois necessário trabalharem
com todo o empenho - não só os particulares, mas principalmente os governos -
para que quanto antes, embora aos poucos, seja posta inteiramente em prática a
doutrina social cristã, que os nossos predecessores tantas vezes, tão ampla e
sapientemente, expuseram e estabeleceram e nós confirmamos. (24)
Aos refugiados e
emigrantes
68. Não estamos menos
preocupado com a sorte daqueles que, pela necessidade de procurar sustento ou
pelas tristes condições de suas pátrias, e pelas perseguições contra a
religião, foram obrigados a abandonar a terra natal. Quantos e quão grandes
males e desventuras não devem estes sofrer, arrancados ao seu meio e à casa
paterna e obrigados muitas vezes a viver na aglomeração das grandes cidades ou
dos grandes centros industriais, com um teor de vida completamente novo e
muitas vezes corruptor. Por causa dessas condições, freqüentemente acontece que
muitos passam por crises perigosas e vão pouco a pouco afastando-se das sãs
tradições religiosas da própria pátria. Acresce que muitas vezes os esposos são
forçosamente separados um do outro, bem como os pais dos filhos, debilitando-se
os laços e relaçäes da vida doméstica, não sem prejuízo da união da família.
69. Acompanhamos com
coração paterno o trabalho dedicado e operoso daqueles sacerdotes, que, inflamados
no amor de Jesus Cristo e obedecendo às normas e aos desejos da Santa Sé, como
exilados voluntários, não poupam esforços para atender quanto podem ao bem
espiritual e social destes filhos, fazendo-lhes sentir em toda a parte a
caridade da Igreja, tanto mais presente e eficaz, quanto mais eles precisam de
seu cuidado e auxílio.
70. De modo semelhante,
temos presente e apreciamos os esforços realizados por várias nações nesta
causa tão importante e também as iniciativas tomadas recentemente no campo
internacional, para se resolver quanto antes este gravíssimo problema.
Confiamos que tudo isso não só ajudará a conceder, com mais facilidade, maior
entrada aos emigrantes, mas também a restabelecer a sociedade doméstica de pais
e filhos; só esta poderá defender eficazmente o bem religioso, moral e
econômico dos emigrantes, não sem benefício dos países que os recebem.
À Igreja perseguida
71. Enquanto exortamos
todos os nossos filhos em Cristo a evitar os erros funestos, capazes de
destruir a religião e a sociedade humana, vêm-nos à memória tantos veneráveis
irmãos no episcopado, e diletos sacerdotes e fiéis, que se encontram no exílio,
ou foram lançados em prisões ou campos de concentração, porque não quiseram
faltar ao seu dever episcopal ou sacerdotal nem apostatar da fé católica.
72. Não queremos ofender a
ninguém, antes pelo contrário queremos dar a todos o nosso perdão implorando o
perdão de Deus. Mas a responsabilidade do nosso dever sagrado exige que
protejamos, quanto podemos, os direitos desses irmãos e desses filhos, pedindo
insistentemente que seja concedida a cada um a liberdade legítima, que é devida
a todos, portanto também à Igreja de Deus. Os que seguem realmente a verdade e
a justiça, e procuram o bem de todos os homens e países, não negam a liberdade,
não a sufocam nem a oprimem; não precisam de recorrer a estes meios. Por isso,
jamais se pode conseguir o verdadeiro progresso dos cidadãos por meio da força,
da opressão dos espíritos e das consciências.
73. Principalmente se deve
ter por certo o seguinte: descurando ou oprimindo os sagrados direitos de Deus
e da religião, cedo ou tarde tremem e desabam os fundamentos da sociedade
humana. Já o notava com agudeza o nosso predecessor de imortal memória, Leão
XIII: "Segue-se... que a força das leis diminui e toda autoridade
enfraquece, se repudiamos a regra suprema e eterna dos preceitos e das
proibições de Deus". (25) Com essa sentença concorda a palavra de Cícero:
"Vós, ó pontífices... cingis mais eficazmente a cidade com a religião do
que com as muralhas".(26)
74. Considerando tudo isto,
com o coração cheio de tristeza abraçamos a todos e a cada um daqueles que são
impedidos de praticar a religião e muitas vezes "são perseguidos por amor
da justiça" (Mt 5,10) e por causa do reino de Deus. Compartilhamos as suas
dores, angústias e sofrimentos, e dirigimos preces ao céu para que desponte
finalmente para eles a aurora de tempos melhores. Unam-se a nós nesta prece
todos os nossos irmãos e filhos; e suba a Deus misericordioso, de todos os
ângulos da terra, um coro imenso de súplicas, que faça descer abundante chuva
de graças sobre estes membros doloridos do corpo místico de Cristo.
Exortações finais
75. Não pedimos somente
orações aos nossos caríssimos filhos, pedimos-lhes também aquela renovação da
vida cristã que, mais do que as próprias oraçäes, é capaz de nos tornar Deus
propício, a nós e aos nossos irmãos. Com prazer repetimos a vós todos as
palavras elevadas e belíssimas do Apóstolo das gentes: "...Tudo o que é
verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou que de qualquer
modo mereça louvor... o que aprendestes e herdastes, isso praticai" (Fl
4,8). "Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo" (Rm 13,14). Isto é:
"Vós, como eleitos de Deus, santos e amados, revesti-vos de sentimento de
compaixão, de bondade, humildade, mansidão, longanimidade, suportando-vos uns
aos outros e perdoando-vos mutuamente... Mas, sobre tudo isso, revesti-vos da
caridade, que é o vínculo da perfeição. E reine nos vossos corações a paz de
Cristo, à qual fostes chamados em um só corpo" (Cl 3,12-15).
76. Se portanto alguém teve
a desgraça de se afastar do Divino Redentor por causa de suas faltas e pecados,
pedimos-lhe encarecidamente que volte àquele que é o "Caminho, a Verdade e
a Vida" (Jo 14,6); e se alguém está tíbio, frouxo, remisso e negligente,
renove a sua fé e com a ajuda da graça divina alimente e consolide a virtude;
finalmente se alguém, com o auxílio de Deus "é justo, justifique-se mais:
e se é santo, santifique-se mais" (Ap 22,11).
77. Uma vez que hoje são
tantos os que precisam de conselho, bom exemplo e também de auxílio por causa
das condições tristíssimas em que se encontram, praticai todos, segundo as
vossas forças e meios, as obras de misericórdia, que são muito agradáveis a
Deus.
78. Se todos vos
esforçardes por fazer tudo isso, brilhará com nova luz na Igreja o que está
escrito tão belamente dos cristãos na Carta a Diogneto: "Estão na carne,
mas não vivem segundo a carne. Moram na terra, mas têm a pátria no céu.
Observam as leis existentes, mas com o seu teor de vida superam as leis... São
ignorados, e são condenados; levados à morte, recebem vida. São mendigos, e
enriquecem a muitos; têm falta de tudo, e tudo lhes sobra. São desonrados, e
nas desonras recebem glórias; perdem a fama, e recebem testemunho da própria
justiça. São censurados e bendizem; são tratados afrontosamente, e prestam
honras. Quando fazem o bem, são castigados como malfeitores; enquanto são
castigados, alegram-se como quem recebe nova vida. Numa palavra: O que é a alma
no corpo, isto são os cristãos no mundo".(27) Nestas belíssimas frases, há
coisas que se podem aplicar de modo especial aos cristãos da chamada Igreja do
silêncio. Por eles devemos todos de modo especialíssimo pedir a Deus, como
recomendamos insistentemente ainda há pouco nas alocuções na Basílica de S.
Pedro no dia de Pentecostes e na solene adoração da festa do Sacratíssimo
Coração de Jesus.(28)
79. Esta renovação da vida
cristã, esta vida virtuosa e santa, desejamo-la a todos vós e pedimos
constantemente a Deus que vo-la conceda não só aos que perseveram firmes na
unidade da Igreja, mas também àqueles que se esforçam por entrar nela, trazidos
pelo amor da verdade e pela vontade sincera.
84. Seja preparação e
penhor das graças do céu a bênção Apostólica, que vos damos a cada um de vós,
veneráveis irmãos e diletos filhos, com paternal e vivo afeto.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 29 de junho, festa dos SS. Apóstolos Pedro e Paulo, no ano de 1959, primeiro do nosso Pontificado.
JOÃO PP XXIII
Notas
1. Carta Saepenumero
considerantes. Acta Leonis XIII 3 (1883), p. 262.
2. Epist. Exeunte iam
anno: Acta Leonis XIII 8 (1888), p. 396.
3. Encíclica Humanum
Genus; Acta Leonis XIII 4 (1884), p.
53.
4. Epist. Praeclara
gratulationis: Acta Leonis XIII 14 (1894) p. 210.
5. Epist. Permoti Nos:
Acta Leonis XIII 15 (1895), p. 259.
6. Encíclica Rerum
Novarum: Acta Leonis XIII 11 (1891),
p.109.
7. Radiomensagem Natalícia
de 1944. Discursos e radiomensagens de S.S Pio XII, vol. 6, p. 239. AAS
37(1945), p.14.
8. Radiomensagem ao 73°
Congresso dos Católicos alemães. Ibid., vol. XI, p 189; AAS 41 (1949),
p. 460.
9.AAS 23 (1931), pp.
393-394.
10. "Por uma sólida
ordem social". Discursos e radiomensagens de S.S. Pio XII, vol. 7,
p. 350.
11. Carta Inter graves; Acta
Leonis XIII 11(1891), pp.143-144.
12. Cf. Pio XI, Encíclica Mortalium
animos. De vera religionis unitate fovenda. AAS 20(1928), p. 5s.
13. Cf. J. H. Newman, Difficulties
of Anglicans, vol. 1, lect. X, p. 261s.
14. Epist. 43, 5,
Corp. Vind. III, 2, 594; cf: Epist. 40: PL 4, 345.
15. Cânon da Missa.
16. Cf. Hom. in mysticam
caenam: PG 77,1027.
17. S. Aug., In Ps.
32 Enarr. 2, 29: PL 36, 299.
18. Idem, In Ps. 82 Enarr.
2, 14: PL 37,1140.
19. Funk, Patres
Apostolici I, 243-245; cf PG 5, 675.
20. Ibidem 267; cf: PG 5,
699.
21. Encíclica Rerum
Ecclesiae: AAS 18(1826), p. 65s.
22. Encíclica Evangelii
Praecones: AAS 43(1951), p. 497ss; e Encíclica Fidei Donum: AAS
49 (1957), p. 225ss.
23. Cf. Encíclica Quadragesimo Anno; AAS 23(1931), pp.196-198.
24. Cf. Pio XII, Discurso
aos membros das Associações Cristäs dos Trabalhadores Italianos, 11 de
março de 1945: AAS 37 (1945), pp. 71-72.
25. Epist. Exeunte iam
anno, Acta Leonis XIII 8 (1888), p. 398.
26. De Natura Deorum
III, 40.
27. Funk, Patres Apostolici,
I, 399-401: PG 2,1174-1175.
28. Cf. AAS 51(1959), p.
420; L'Osservatore Romano, 18/19 de maio e 7 de junho de 1959.