Entrevista com o Arcebispo Dom Mauro Piacenza, Secretário da Congregação para o Clero.

 

1. Na Quinta-feira Santa a Igreja celebra a Instituição da Eucaristia e do Sacerdócio. O que une estreitamente estas duas realidades que Cristo confiou à sua Igreja?

 

No mistério do sacrifício eucarístico – afirma o Concílio Vaticano II – os sacerdotes exercem sua função principal. Não se pode entender o sacerdote sem a Eucaristia, nem poderia existir a Eucaristia sem o sacerdote. Segue-se que o sacerdote não pode realizar-se plenamente se a Eucaristia não constitui realmente o centro e a raiz de sua vida. Todo o esforço diário do sacerdote deve ser irradiação da Celebração Eucarística.

 

2. O que significa hoje, para o sacerdote, fazer memória do gesto do “lava-pés”, ou seja, servir?

 

Para o sacerdote, o modo de prolongar a verdade do sacrifício litúrgico, convertendo-o em sacrifício de sua vida, é “servir”. O sacerdote não se pertence a si mesmo. Está a serviço do Povo de Deus, sem limites de horário, nem de calendário. Não é um funcionário, nem um empregado, mas um “consagrado”, um “Cristo” de Deus. O povo não vive em função do sacerdócio; é o sacerdote que vive em função do povo, em sua totalidade, sem jamais limitar seu serviço a um pequeno grupo. O sacerdote não pode escolher um lugar que o agrade, os métodos de trabalho que considere mais adequados, segundo a sua maneira de ser, as pessoas que lhe pareçam mais simpáticas, os horários mais cômodos, os divertimentos – ainda que sejam legítimos – quando tomam o tempo e as energias de sua missão pastoral específica. A missão remete a uma identidade, e a identidade remete à missão: iluminam-se reciprocamente.

 

3. O que um sacerdote tem a “oferecer” à humanidade?

 

O sacerdote – é comovedor pensar – está sempre presente na Igreja; em todos os tempos, pela força do Espírito Santo, é instrumento essencial da permanência e da vida da Igreja. Como Cristo, o sacerdote oferece à humanidade um grande benefício: a inquietude. A inquietude que é o santo temor de Deus.

 

4. As circunstâncias atuais são particularmente complexas. Como devem ser afrontadas?

 

Quando pensamos nas circunstâncias atuais e na necessidade de prepararmo-nos para afrontá-las, creio que o melhor método para responder às necessidades humanas é o de ser sacerdote segundo o Coração de Cristo. Se dirigimos um olhar para a história, vemos que, apesar de serem muito numerosas as mudanças no mundo, na sociedade, sempre é idêntico o desafio fundamental de ser radicalmente sacerdotes semelhantes a Cristo.

Como demonstra a história, a Igreja pode resistir a todos os ataques, a todos os assaltos que possam lançar contra ela, as forças políticas, econômicas e culturais, mas não poderia resistir ao perigo que deriva do esquecimento das palavras de Cristo: “Vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo”. É o mesmo Jesus quem assinala as consequências deste esquecimento: “Se o sal se desvirtua, como o mundo se preservará da corrupção?

Com efeito, para que serveria um sacerdote tão assimilado ao mundo que se mimetizara com ele e já não fosse fermento transformador? Diante de um mundo anêmico de oração e de adoração, de verdade e de justiça, o sacerdote é antes de tudo o homem da oração, da adoração, do culto, da celebração dos santos mistérios, “diante dos homens, em nome de Cristo”. A melhor contribuição que pode dar o sacerdote à causa da justiça e da paz, é continuar sendo sempre um homem de Deus.

 

5. Neste dia se renovam as promessas sacerdotais. Quais são os compromissos mais urgentes e atuais que um sacerdote deveria renovar diante de Deus e dos irmãos?

 

Creio que o primeiro compromisso é o de ser testemunha, entendido etimológicamente como martírio: um compromisso missionário motivado com a certeza renovada de que Cristo normalmente vem a nós somente “na” Igreja e “pela” Igreja, a qual prolonga Sua presença no tempo.

Deve-se recordar que a Igreja somente poderá evangelizar autenticamnete as realidades “naturais” se não renuncia a sua identidade sobrenatural. Custe o que custar, deve seguir sendo o que é: realidade transcendente e mistério.

É difícil, mas estimulante. A Igreja tem a tarefa “negativa” de livrar o mundo do ateísmo, e a missão “positiva” de satisfazer a necessidade irrenunciável que tem o homem, de modo consciente ou inconsciente, de realizar-se, ou seja, de ser santo.

E aqui entra o sacerdote. É aqui onde intervém como um emissário de Deus para saciar a sede ardente de uma humanidade sempre em busca.

 

6. O sacerdote celebra a Eucaristia “in persona Christi”. Como pode um sacerdote ser digno dessa responsabilidade?

 

Só Deus, em sua misericórdia, pode “fazer dignos” os homens de uma tarefa tão extraordinária, inclusive inaudita. O sacerdote é a imagem do Salvador: deve tratar de assemelhar-se o mais possível a Ele, deve estar disposto a dar-se, a entregar-se totalmente, de corpo e alma, vontade e coração, ao serviço de Cristo e, portanto, dos irmãos. A totalidade da oblação a Deus é a garantia da totalidade do serviço aos irmãos, é a garantia da dinâmica missionária, como a castidade garante o caráter esponsal e a grande paternidade. Em tudo isso, não se pode dar um “não”, mas um “sim” grande e libertador.

Esta é a chave para entender as promessas de obediência, de castidade vivida no celibato, no compromisso de um caminho de desprendimento das coisas, das situações, de si mesmos; no clima de uma fraternidade sacerdotal intensa e sacramental. Tudo isso se compreende se existe um grande amor, na lógica gozosa da entrega. O sacerdote jamais terá uma crise de identidade, nem de solidão, nem de frustração cultural se, resistindo à tentação de confundir-se com a multidão anônima – em sua intenção, em sua retidão moral e em seu estilo –, não se separa jamais do altar do sacrifício do Corpo e do Sangue de Cristo.

 

7. Qual deve ser a correta relação entre fiéis leigos e sacerdotes?

 

Devem ser irmãos em meio aos irmãos, ainda que com funções essencialmente diversas. Com efeito, alguns são chamados a ser padres e outros não, mas todos certamente são chamados à santidade em Cristo.

 

8. Hoje se fala muito de celibato sacerdotal. O que se pode dizer a este respeito?

 

Com relação ao sagrado celibato, encontramo-nos diante de um ícone particularmente significativo do bom Pastor, que não guarda nada para si, mas que dá tudo pelo bem do rebanho. Uma atenta reflexão cristológica permite apreciar a oportuna conveniência de associar esta prática de vida ao estado sacerdotal.

Poderíamos dizer que desde os tempos Apostólicos até os nossos dias existe uma significativa continuidade na doutrina do Magistério sobre o celibato. Certamente, desta riqueza deriva uma exigência de radicalidade evangélica, que favorece de modo especial o estilo de vida “esponsal”. Brota da configuração do sacerdote com Jesus Cristo através do sacramento da Ordem. O sacerdote é chamado a levar uma vida de imitação de Cristo que o eleva ao nível dos conselhos evangélicos: a continência perfeita, a exemplo da virgindade de Cristo, lhe permite exercer mais plenamente a caridade pastoral, até o ponto de que se pode ver no sacerdote um outro Cristo, “alter Christus”.

 

9. E a tão discutida solidão do sacerdote?

 

A Igreja assiste hoje a uma dissolução cada vez mais acentuada dos vínculos entre as pessoas, em todos os âmbitos sociais. Precisamente tende-se a conceber a família como um lugar de passagem ou de relações pactuais, mas sempre revocáveis. É lógico que a figura do sacerdote celibatário sofra o impacto destas inumeráveis solidões. Igualmente torna-se necessário colocar no centro da vida cristã autênticas comunidades familiares, capazes de dar esperanças e de fazer brilhar o dom da comunhão, e sua fecundidade, também necessitamos sacerdotes que saibam mostrar a fecundidade da comunhão, a fecundidade comunitária de sua “solidão” virginal.

A iniciativa da Congregação para o clero, de fazer uma grande “corrente” de adoração eucarística mundial pelos sacerdotes, deve interpretar-se também a partir da perspectiva essencialmente sobrenatural de comunhão. Certamente servirá aos sacerdotes como fonte inesgotável e divina de energias missionárias, mas também servirá aos fiéis leigos para que recuperem a verdade sobre o sacerdócio ministerial católico, que de forma alguma pode se reduzir a um mero “funcionarismo pastoral”, tão somente acolhido pela sua importância social que possa ter. E não é lícito generalizar, atribuindo a todo o clero, aquilo que corresponde a responsabilidade de uma pequena parte.

 

10. Como se explica a crise de vocações na sociedade atual?

 

Sempre que se fala de “crise de vocações”, igualmente quando se fala de “crise do matrimônio”, deve-se pensar com mais precisão, em uma crise que está na raiz e que origina as demais: a crise de fé.

Existe um dado real que todos podem constatar: os jovens, quando se lhes abrem, com fé na graça, os amplos horizontes da integridade do seguimento de Cristo, respondem em grande número e com autêntico entusiasmo, mas quando se tenta reduzir a identidade do sacerdote e do ministério pastoral, não se sentem motivados e se produz uma progressiva deserção. Às vezes constata-se, com muita tristeza, a decadência e se buscam soluções que não são mais que premissa da decadência em si mesma.

Falta a humildade da verdade: saber reconhecer os próprios erros. Falta a coragem de saber colocar em evidência também as opções que não deram fruto ou que produziram uma devastação. Portanto, não há que se justificar, escondendo-se por detrás do pretexto de “novas estruturas”. Só se pode propor uma terapia quando se faz um diagnóstico claro, sem compaixão. É preciso pedir, pedir e pedir, para que não se caia no que diz o Salmo 134: “Têm olhos e não podem ver; têm ouvidos e não podem ouvir”, com a certeza de que Deus nunca abandonará a sua Igreja e não permitirá que lhe faltem pastores “segundo seu Coração”.