FRANCISCO FAUS
MARIA, A MÃE DE JESUS
QUADRANTE
São Paulo
Copyright © 1987 Quadrante, Sociedade de Publicações
Culturais
Capa: José C. Prado
Impressão: Press-Grafic, São Paulo
Ilustração da capa: Ghirlandaio, A coroação da Virgem,
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MARIA NA
PERSPECTIVA DE DEUS
UM TESTAMENTO DE CRISTO
Faltam apenas alguns minutos para que Cristo, no
alto da Cruz, entregue a sua alma ao Pai. Seu olhar inclina-se para baixo e
busca primeiro os olhos de sua Mãe; depois, desvia-se para João, o discípulo
amado. Os seus lábios esforçam-se por articular umas poucas palavras. Jesus
está exausto, agonizante, mas quer falar. A sua voz enfraquecida esforça-se por
dizer exatamente o que o Filho de Deus, naquele momento em que se consuma a
Redenção dos homens, está querendo dizer.
Vendo Jesus a sua Mãe e junto dela o discípulo
que ele amava, disse à sua Mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois disse ao
discípulo: Eis aí a tua Mãe. E, desta hora em diante, o discípulo a levou para
sua casa
(Jo 19, 26-27).
É da maior importância perceber o que Cristo,
nessa hora, realmente quis afirmar. O seu pensamento humano tinha toda a
lucidez do pensamento divino; e, por sua vez, essas derradeiras palavras, pouco
antes de morrer, possuíam a força de uma mensagem precisa, que devia ficar
gravada sem equívocos, pois expressava uma “última vontade” de Deus feito
homem. Qual foi, portanto, o sentido dessa dupla afirmação: “Eis a tua Mãe” e “eis
o teu filho”?
Para o compreendermos com exatidão, pode ser
conveniente que pensemos primeiro naquilo que Jesus não disse. Poderia, por
exemplo, ter pedido a João: “Cuida da minha Mãe, toma conta dela”. Mas não o
disse, e seria pouco explicável que a sua intenção se polarizasse apenas nisso –
o cuidado material da Mãe –, tendo em conta que Maria, conforme sabemos pelo
Evangelho, tinha perto dela parentes próximos, que eventualmente a podiam
atender, e nos consta que em parte já o estavam fazendo (cfr Mc 3, 31).
Também não teria sido lógico que, com as
palavras “Eis aí o teu filho”, quisesse colocar o discípulo sob o amparo de uma
nova mãe adotiva, Maria. É bem conhecido, pelo Evangelho, que o discípulo amado
tinha a mãe viva, Salomé, que esta era uma das santas mulheres que fielmente
seguiam Jesus (cfr Mc 15, 40-41), e que, além disso, zelava maternalmente, até
exageradamente, pelos seus filhos Tiago e João, ao ponto de ter pedido a Cristo
que lhes concedesse os primeiros lugares no seu Reino (cfr. Mt 20, 20 e segs.).
Fica excluído, por isso, que na sua última hora
Jesus tenha pretendido resolver apenas, ou principalmente, problemas relativos
ao futuro da Mãe ou do discípulo. Resta então uma só hipótese, a que se
depreende das palavras de Jesus, tal como João – que escreve no Evangelho as
suas recordações vividas – as compreendeu.
João era, na agonia de Jesus, o único discípulo
que se encontrava ao pé da Cruz. E é precisamente com essa palavra – “discípulo”
– que se designa a si mesmo. Entende que a sua condição de discípulo de Jesus
vale mais do que o seu nome e a sua ascendência. Naquele momento, com efeito,
ele era acima de tudo “o discípulo”, aquele que encarnava e, por assim dizer,
representava todos os discípulos, mais ainda, todos os homens resgatados na
Cruz pelo divino Mestre e chamados a segui-Lo.
Sendo assim, a intenção de Cristo
torna-se transparente. Está proclamando uma nova e sobrenatural maternidade,
atribuída por Deus a Maria sobre todos os chamados a ser discípulos do
Redentor. É a clara expressão da Vontade de Deus, que confere a Maria – dentro
dos planos da Salvação – uma maternidade de ordem espiritual sobre todos os
homens e, especialmente, sobre aqueles que, por serem “discípulos”, têm em
Jesus, o Filho de Maria, o Primogênito entre muitos irmãos (Rom 8, 29).
Toda a vinculação da alma cristã com Maria se
resume, assim, nos laços de uma relação filial: “Eis a tua Mãe”. Ora, a
filiação – como a maternidade – é um vínculo real e também, inseparavelmente,
um sentimento; e o sentimento, mais do que a razão, atinge o coração, aquelas
fibras secretas e íntimas da afetividade que a razão só muito a custo consegue
penetrar.
Tendo a devoção a Maria – o amor filial a Maria –
raízes fundas e próprias no coração dos cristãos, é natural que extravase com
freqüência naqueles modos e “razões do coração” que – como dizia Pascal – “a
razão não conhece”. E é também explicável que esse amor filial, ao desabrochar
ao ritmo pouco esquematizado do afeto, se expresse em transbordamentos cordiais
e detalhes espontâneos, que façam estremecer os moldes mentais um tanto
geométricos do pensamento racionalista. Seria muito difícil chegar a ter autêntico
acesso a uma mãe pela via do raciocínio filosófico ou da lógica estreita e bem
comportada.
Sem dúvida é por isso – melhor, por não ter
compreendido isso – que alguns se escandalizam com o que julgam “exageros”
católicos da devoção a Maria. Quem é que não conta no seu histórico com a
lembrança de uma conversa – talvez de uma discussão – com um amigo protestante
de boa fé, que recriminava à Igreja Católica os “absurdos” da devoção a Maria? –
Vocês, os católicos, fazem da devoção a Nossa Senhora uma idolatria; será que
não percebem que esse culto a Maria chega a ser uma verdadeira superstição? Até
parece que colocam Maria num plano de igualdade ou mesmo acima de Cristo,
esquecendo-se de que só Ele é o Salvador, o único Mediador entre Deus e os
homens...
Vez por outra, todos tivemos de tentar
esclarecer invectivas deste tipo. Na realidade, a única coisa que essas
censuras pretendem afirmar é que a Igreja Católica, com a devoção a Maria –
santuários, rezas, velas, procissões, imagens em todas as igrejas, nos lares,
etc. – se teria afastado da pureza do Evangelho, introduzindo no cristianismo
uma excrescência espúria, ou no mínimo um exagero supersticioso, que toldaria,
se não desvirtuaria, a autenticidade evangélica da fé cristã.
É possível que, ao surgirem essas questões, nos
tenhamos esforçado por aduzir as nossas razões em favor da devoção a Maria. Se
eram apenas razões pessoais, mal fundamentadas, pouco peso podiam ter. Na
realidade, o que afinal importa não é o que nós, católicos ou protestantes, possamos
pensar ou dizer particularmente a respeito da Mãe de Jesus. O que é
absolutamente decisivo é o que Deus pensa e diz de Maria. Estas páginas
pretendem ser, sobretudo, uma escuta atenta e serena precisamente disso: que
nos diz Deus sobre Maria? O que é que Ele afirma sobre o papel de Maria na
salvação dos homens?
Uma vez colocado assim o problema, é natural que
se levante uma pergunta: como é que nós podemos sabê-lo? Se Deus não tivesse
falado, certamente não o poderíamos. Acontece, porém, que Deus falou. Se há um
ponto de absoluta coincidência entre todos os cristãos, católicos ou não, é que
a Bíblia contém a palavra de Deus, e que essa palavra se tornou plena na
Palavra – no Verbo – que se fez carne, isto é, em Jesus Cristo e no seu
Evangelho. É nele, portanto, que deve ser buscada e achada a resposta, antes de
mais nada. Qualquer esclarecimento válido deve mergulhar aí as suas raízes e
deduzir daí as suas conclusões.
DEUS FALA DE MARIA
É um fato que o Evangelho fala relativamente
pouco da Mãe de Jesus. Os textos mais extensos circunscrevem-se,
principalmente, à concepção, nascimento e infância de Cristo. No entanto, se o
Evangelho fala pouco, ao mesmo tempo diz muito.
Não acompanharemos aqui passo a passo todos os “evangelhos
de Maria”. Debruçar-nos-emos apenas sobre alguns textos evangélicos, guiados
pelo desejo de captar o que acima se mencionava: que nos diz Deus de Maria? O
que é que Ele pensa e quer dela? Simultaneamente, guiar-nos-á o propósito de
verificar se a devoção a Maria, tal como a vivem os fiéis católicos, está em
sintonia com a vontade de Deus. Para este fim, parece-nos especialmente
esclarecedor, como ponto de partida, meditar a narração de São Lucas sobre a
Visitação de Maria a sua prima Santa Isabel.
Quando Maria se encaminhou à casa de Isabel,
ainda soavam nos seus ouvidos e no seu coração os ecos da mensagem da
Anunciação. No seu seio, o Verbo – a segunda Pessoa da Santíssima Trindade – já
se fizera carne. Ela era mãe e, em seu corpo virginal, trazia Deus feito homem,
formava-lhe um corpo.
Por uma alusão incidental do Anjo Gabriel na
Anunciação, Maria tomou conhecimento de que também Isabel, tua parenta,
concebeu um filho na sua velhice; e este é o sexto mês daquela que se dizia
estéril (Lc 1,36).
A sua reação imediata foi pensar que Isabel
precisaria de ajuda. E é por isso que vai sem demora oferecer o seu auxílio à
prima idosa, que se preparava para a primeira experiência da maternidade: Levantando-se
Maria, foi com pressa às montanhas, a uma cidade de Judá. Entrou em casa de
Zacarias e saudou Isabel (Lc 1, 39-40).
Até aqui, o Evangelho apresenta uma cena de
delicada caridade. Mas, a partir desse momento da narrativa, a cena familiar do
encontro das duas mulheres eleva-se a um plano diverso, ganhando uma
significação inesperada. Deus intervém. São Lucas descreve o que se passou com
os acentos do imprevisto: “Aconteceu”, diz. Passou-se algo que não era
esperado. Aconteceu que, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, o menino
saltou no seu ventre e Isabel ficou repleta do Espírito Santo. Exclamou ela em
alta voz e disse... (Lc 1, 41-42).
Não há a menor dúvida de que o Evangelho mostra
neste texto que Deus vai falar por boca de Isabel. Vai falar como o fizera
pelos Profetas, cheios do Espírito Santo; e todos sabemos que a voz dos
Profetas era a voz de Deus: Deus falou outrora muitas vezes e de muitos
modos aos nossos pais pelos Profetas – assim começa a Epístola aos Hebreus
(1, 1). Agora dispõe-se a falar de novo.
Pensando bem, o que é que seria lógico esperar
dos lábios de Isabel, quando o Espírito Santo a invade – a ela e ao filho que
traz nas entranhas –, inundando-a da alegria de receber em sua casa o Salvador
de que Maria é portadora, o Messias esperado por séculos e séculos a fio, o
próprio Deus habitando entre os homens?
Em princípio, seria razoável esperar que,
perante um fato de tal transcendência, Isabel – movida pelo Espírito Santo –
entoasse um cântico de adoração e de agradecimento ao Deus, Senhor de céus e
terra, que se dignava chegar a sua casa. Diante da presença do Deus vivo, tudo
se obscurece, todas as criaturas passam a um segundo plano, como sombras que,
quando muito, refletem tenuemente os raios do Sol divino.
Certamente Isabel louva o seu Senhor e exulta
nEle em alegre agradecimento. Mas a verdade é que todas as palavras que
pronuncia são – do começo ao fim – um louvor e uma glorificação de Maria. É
Deus quem fala por ela – precisamos repisá-lo –, e em conseqüência essas
palavras inspiradas expressam o que Deus nosso Senhor “pensa” e “quer dizer”
daquela que escolheu como Mãe.
Prestemos atenção ao texto do Evangelho: ...Isabel
ficou repleta do Espírito Santo. Exclamou ela em alta voz e disse: Bendita és
tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde me é dado que a
mãe do meu Senhor venha ter comigo? Porque logo que a voz da tua saudação
chegou aos meus ouvidos, o menino saltou de alegria no meu ventre.
Bem-aventurada a que acreditou, porque se hão de cumprir as coisas que da parte
do Senhor lhe foram ditas (Lc 1, 41-45). Cada palavra, cada frase, tem um
peso.
Se acompanharmos o ritmo das expressões de
Isabel, na sua seqüência linear, perceberemos logo que começam com um louvor a
Maria, que identifica a Virgem com a mulher abençoada por Deus de uma forma
única entre todas as mulheres; e que se segue um louvor a Cristo, mas a Cristo
contemplado através de Maria, precisamente como filho dela: “bendito o fruto do
teu ventre”. Esta é a primeira palavra que Deus profere sobre Nossa Senhora por
intermédio de Isabel.
Lê-se a seguir uma segunda frase, cujo
significado é este: a proximidade de Maria, a presença e a conversa com a
Virgem, é um bem, é uma bênção para a alma a quem Ela se chega. “Donde me é
dado que a mãe do meu Senhor venha ter comigo?” Isabel sente-se beneficiada por
um dom imerecido. Não se limita a agradecer à sua parenta a atenção que está
tendo com ela; se se sente honrada, para além de todo o merecimento, é porque
recebeu a visita da “Mãe do meu Senhor”. É isto justamente o que a comove: que,
diante dos seus olhos, está a Mãe de Deus, e a Mãe de Deus é portadora das
bênçãos do céu.
Esta referência emocionada de Isabel ao dom, ao
benefício recebido pela visita da Mãe do seu Senhor, torna-se ainda mais
explícita e clara nas palavras que profere a seguir, com a fluência de um
cântico: “Porque logo que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, o
menino saltou de alegria no meu ventre”.
Só entenderemos cabalmente esta frase se não
esquecermos que, pouco antes, São Lucas já se referira a um duplo efeito – um
duplo dom – produzido pelas palavras de “saudação” proferidas por Maria: por um
lado, a alegria sobrenatural de João Batista, que saltou no seio de sua mãe;
por outro, a efusão do Espírito Santo na alma de Isabel. É da maior importância
perceber que esse duplo dom, conforme diz o Evangelho, tenha sido concedido por
Deus em virtude da presença de Maria.
O texto, com efeito, expressa uma autêntica
relação de causalidade entre a chegada de Maria, a voz de Maria, e os
dons divinos derramados na alma de Isabel e do seu filho. Tudo aconteceu “apenas
Isabel ouviu a voz de Maria”, “logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos”,
e aconteceu “por isso”. Aqui não se está falando de sentimentos ou de reações
emocionais subjetivas – do estado psicológico provocado humanamente pela visita
de Maria –, mas de uma iniciativa divina, de uma ação direta de Deus sobre
Isabel – “ficou repleta do Espírito Santo” –, que o Evangelho vincula a Maria
como causa instrumental. Deus agiu por intermédio dEla.
Também encerram uma grande riqueza as últimas
palavras pronunciadas por Isabel. Trata-se de um novo louvor: “Bem-aventurada a
que acreditou, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor lhe
foram ditas”. Se esta frase não se encontrasse no Evangelho, provavelmente
acharíamos excessivo o que ela diz. Surpreendentemente, Isabel – Deus por ela –
afirma sem ambigüidades que “as coisas que da parte do Senhor foram ditas a
Maria” se cumprirão porque Ela acreditou.
Ora, o que é que são essas coisas ditas da parte
do Senhor, senão as que pouco antes o Anjo Gabriel anunciara à Virgem? Darás
à luz um filho..., será grande, será chamado Filho do Altíssimo..., reinará
sobre a casa de Jacó eternamente, e o seu Reino não terá fim (Lc 1, 31-32).
Sem dúvida, as “coisas que foram ditas” são, nem mais nem menos, o plano divino
da Redenção da humanidade através da Encarnação, Morte e Ressurreição de Jesus
Cristo.
Então, também é fora de dúvida que Isabel afirma
que este plano se há de cumprir porque Maria acreditou, isto é, porque
abraçou com fé e confiança plenas o convite de Deus para ser a Mãe do Redentor.
Isto significa que Deus, em seus desígnios imperscrutáveis, quis fazer
depender a Redenção da humanidade, de algum modo, da colaboração de Maria.
Por outras palavras, Deus quis contar com a Virgem Santíssima, não como
simples instrumento passivo, mas como parte ativa e colaboradora livre da obra
da Redenção.
Estas considerações simples abrem-nos desde já
como que uma janela, através da qual podemos contemplar o mistério de Maria a
partir da perspectiva de Deus, e, simultaneamente, permitem-nos avaliar –
segundo a mesma perspectiva – o sentido da devoção que o povo cristão dedica a
Maria Santíssima. Na verdade, esses “pensamentos” de Deus são verdadeiros focos
de luz, que iluminam por dentro os mistérios da vida e da vocação de Nossa Senhora.
A VOCAÇÃO
PARA A MATERNIDADE DIVINA
A CHEIA DE GRAÇA
O louvor que o Espírito Santo inspirou a Isabel –
“Bendita és tu entre as mulheres...” – vem ecoando ao longo dos séculos nos
lábios dos cristãos, todas as vezes que recitam a Ave-Maria. Antes,
porém, desse louvor, esses mesmos lábios dirigem a Maria outras palavras, que
também são de Deus: “Cheia de graça!”
Qual foi a grande “bênção” de Maria Santíssima,
aquela que a faz “bendita entre todas as mulheres”? Por que é Ela chamada “cheia
de graça”?
No centro do mistério da vida de Maria,
encontra-se a sua divina maternidade. Deus a escolheu para ser a Mãe do seu
Filho, do Redentor dos homens. Esse é o grande dom com que Deus abençoou a
Virgem: a sua vocação de Mãe de Jesus Cristo.
O Evangelho relata que um dia – alegre e
esperançado como uma nova alvorada do mundo – Deus quis revelar a Maria essa
sua escolha. A narração de São Lucas tem um encanto delicado: o Anjo Gabriel,
enviado por Deus à humilde casa de Nazaré, entrando onde ela estava,
disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo. A Virgem sentiu-se
perturbada ao ouvir essas palavras, e o mensageiro do céu a tranqüilizou: Não
temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás no teu
ventre, e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Este será grande,
será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai
Davi; reinará sobre a casa de Jacó eternamente, e o seu Reino não terá fim
(Lc 1, 26-33).
Através das palavras do Anjo, descortina-se aos
olhos de Maria o plano de Deus a seu respeito. Deus, por assim dizer,
manifesta-lhe aquilo que eternamente “sonhara” para Ela. Neste “sonho” da
Santíssima Trindade, estava previsto o aparecimento de uma mulher, “cheia de
graça”, que haveria de surgir no mundo como a aurora da Salvação, a luz de um
novo amanhecer que anunciaria e traria aos homens o Sol verdadeiro, o Salvador,
que – como diz São João – ilumina todo o homem que vem a este mundo (Jo
1, 9).
Já nos primórdios da humanidade, quando o pecado
dos nossos primeiros pais cavava um abismo entre o homem e Deus, o Senhor
contrapunha ao mal do pecado o seu desígnio de Salvação: um “projeto” amoroso
de Deus, fruto da sua infinita misericórdia, para resgatar e reerguer o homem,
e atraí-lo de novo a si.
Pois bem, nesse projeto “acalentado” pelo amor
eterno de Deus, já desde o começo estava presente Maria. Assim fala Deus à
serpente, a Satanás, após a queda original: Porei inimizades entre ti e a
mulher, entre a tua descendência e a dela; esta te esmagará a cabeça (Gên
3, 15). Com estas palavras, Deus opõe ao Inimigo a imagem futura de uma “mulher”
irreconciliavelmente enfrentada com o demônio e o pecado. Nela, Satanás jamais
terá parte alguma.
Voltemos à Anunciação. Neste momento, Deus
dirige-se a Maria – por intermédio do Anjo – denominando-a, já no começo, “cheia
de graça”. Tem-se feito notar que, no texto original do Evangelho, o Anjo, para
dizer “cheia de graça”, emprega uma só palavra (kekharitoméne), e que
essa palavra tem o valor de um “nome novo” atribuído por Deus à Virgem[NOTA DE
REFERÊNCIA: João Paulo II, Enc. Redemptoris Mater, n. 8;]. Seria como
que o nome “verdadeiro” com que o Senhor a designa e define. Para traduzi-lo
adequadamente na nossa língua, teríamos que recorrer a perífrases: “a que foi
cumulada de graça e mantém essa plenitude”, “a que foi feita gratíssima a Deus”,
“a muito amada por Deus”.
Deus Nosso Senhor, cumulando Maria de graça,
preparou-a desde o primeiro instante da sua existência para ser a digna Mãe do
seu Filho, a nova “Arca da Aliança”, toda pura e santa, capaz de acolher em seu
seio a santidade infinita de Deus.
Maria foi escolhida e predestinada por um ato do
amor eterno de Deus. E o amor de Deus é sempre criador; comunica às criaturas a
sua bondade, fá-las participar da vida divina, da graça. O amor de Deus por
Maria foi único, e a Ela comunicou os seus dons também de modo único: em
plenitude. Por isso Ela é a “cheia de graça”. Bem podemos dizer que, em
toda a história da humanidade – sem mencionarmos a alma de Jesus –, a alma de
Maria foi a única em que o Amor de Deus agiu plenissimamente e sem o
menor entrave. Com toda a razão foi dito, por isso, que Maria é a “obra prima
de Deus”[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, 2ª.
ed., Quadrante, São Paulo, 1979, págs. 229 ss.;].
“Cheia de graça”: este é o seu “verdadeiro nome”[NOTA
DE REFERÊNCIA: Enc. Redemptoris Mater, n. 8;]. Lê-se numa homilia do
Papa Paulo VI: “O aparecimento de Nossa Senhora no mundo (...) foi como o
abrir-se sobre a terra, toda coberta da lama do pecado, da mais bela flor que
jamais desabrochou no vasto jardim da humanidade: era o nascimento da criatura
humana mais pura, mais perfeita, mais digna da definição que o próprio Deus
tinha dado ao homem quando o criou: imagem de Deus, semelhança de Deus. Maria
nos restitui a imagem da humanidade perfeita”[NOTA DE REFERÊNCIA: Paulo VI, Homilia,
08.09.1964;].
Em Maria, tudo é graça. Jamais pairou sobre Ela
a sombra, sequer, do pecado. Foi toda de Deus desde o primeiro instante da sua
existência, de modo que a sua alma pura não conheceu nem a mancha do pecado
original nem mancha alguma de pecado pessoal.
O dogma da Imaculada Conceição de Maria
Santíssima outra coisa não fez senão explicitar uma das conseqüências dessa “plenitude
de graça” que não tem no Evangelho restrição alguma de tempo nem de momento: “Por
uma graça e um privilégio especial de Deus todo-poderoso – reza a definição
dogmática de Pio IX, em 8 de dezembro de 1854 – e em atenção aos méritos de
Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, a bem-aventurada Virgem Maria foi
preservada de toda a mancha de pecado original desde o primeiro instante da sua
concepção”[NOTA DE REFERÊNCIA: Pio XI, Bula Ineffabilis Deus; in
Denzinger, Enchiridion Symbolorum, V. Herder, Friburgo-Barcelona, 1955,
n. 1641;].
Maria Santíssima sabe que Deus fez nEla “coisas
grandes”, e essas grandezas são motivo para que Ela glorifique a Deus,
reconhecendo, com uma humildade cheia de alegria, que Ele pôs os olhos na
baixeza da sua serva (Lc 1, 48-49). Tudo é puro dom de Deus, e Maria o
agradece comovida.
Ora, se tudo é dom de Deus, qual foi a parte de
Maria? Ter-se-ia Ela limitado a uma função de receptora passiva de tão grandes
graças? A cena evangélica da Anunciação nos dá a resposta a essas perguntas:
Maria correspondeu à chamada e às graças que a acompanhavam com uma
aceitação amorosa e uma entrega total. A semente da graça encontrou na sua alma
o solo acolhedor e fértil onde frutificar.
Não esqueçamos que Deus sempre quer contar com a
liberdade das criaturas. O anúncio do Anjo a Maria, ao mesmo tempo que
desvendava os planos de Deus sobre Ela, tinha o delicado acento de um convite.
Maria correspondeu livremente com total fidelidade: Eis aqui a escrava do
Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1, 38).
Essas palavras – “faça-se”, “sim” – mostram-nos
maravilhosamente a alma de Maria. Voltada inteiramente para Deus, Ela é um “sim”
perfeito ao Senhor, pronunciado com o coração, com os lábios e com as ações,
sem a menor restrição nem limite. Há uma abertura completa da alma a Deus, que
permite que o Espírito Santo, o Artista divino, modelador das almas, faça
daquela criatura a sua obra perfeita.*
Quantas coisas não fez Deus depender do “sim” de
Maria! Desse “sim” dependeu o próprio “sonho” divino a respeito de Nossa
Senhora. Pela sua fidelidade, Ela foi sempre, exatamente, como Deus a queria; e
na sua alma inteiramente disponível à ação da graça divina, arraigaram e
cresceram as virtudes que são o fruto maduro da santidade: a fé, a esperança, o
amor, a humildade, a fortaleza, a mansidão...
Ao mesmo tempo, do seu “sim” dependeu o “projeto”
divino da Redenção. Tão logo Maria disse “faça-se” – com amorosa liberdade –, o
Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14). A partir desse instante,
– para evocar as palavras do velho Simeão –, graças a Maria, os nossos olhos
viram a salvação (cfr. Lc 2, 30).
Por último, quando Maria disse “sim” na
Anunciação, não só começou a ser a Mãe de Deus, como começou a ser a Mãe
daqueles a quem Cristo iria infundir a vida sobrenatural, tornando-os seus “irmãos”
e membros do seu Corpo (cfr. Rom 8, 29 e I Cor 12, 27).
Este último aspecto convida-nos a aprofundar um
pouco mais no mistério da maternidade de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe.
A VIRGEM-MÃE
Penetremos, por uns momentos, num lar cristão. A
família reunida está rezando. Cadenciadamente, sucedem-se as Ave-Marias do
terço, como as notas de um cântico. “Cheia de graça, o Senhor é convosco,
bendita sois vós...” E também, como o refrão de uma canção: “Santa Maria, Mãe
de Deus...”
Enquanto esses corações tornam a invocar Maria
com a exclamação maravilhada de Isabel – “a Mãe do meu Senhor!” –, quase com
certeza nem imaginam que, por trás dessa doce expressão – Mãe de Deus –,
estão latejando os ecos apaixonados da mais antiga manifestação de devoção a
Maria de toda a história do cristianismo.
Todo o amor tem horas de paz e horas de
sobressalto. Nas horas tranqüilas, flui como um rio copioso e manso. Nos
momentos em que esse amor é agredido de qualquer forma, o coração “salta”, quer
para defendê-lo com ardor, quer para externá-lo com paixão.
Foi isto o que sucedeu com o amor por Maria no
coração dos cristãos dos primeiros séculos. Já nos alvores do cristianismo, a
figura da Mãe de Jesus era uma amável presença no dia-a-dia dos fiéis. Belo
testemunho dessa presença é a imagem mural da Virgem com o Menino, em clara
referência à profecia de Isaías sobre a Virgem-Mãe (Is 8, 8; Mt 1, 22-23),
desenhada por um devoto “grafiteiro” nas catacumbas de Priscilla, em Roma.
Porém, muito cedo – já a partir dos fins do
século I – houve quem tentasse desvirtuar com interpretações heréticas o
ensinamento transparente do Evangelho sobre a maternidade de Maria. É verdade
que os primeiros ataques foram desferidos diretamente contra o Filho, e só em
conseqüência agrediam a Mãe. Mas é um fato também que a reação dos primeiros
cristãos mostrou que, para eles, o amor a Maria estava indissoluvelmente unido
ao amor a Jesus Cristo.
Esses ataques começaram através dos “ebionitas”,
uma seita semi-cristã de raízes judaicas, que se recusava a admitir que Cristo
fosse Filho de Deus, gerado pelo Espírito Santo no seio de uma Virgem. Uma
velha heresia, que os racionalismos e os ceticismos de todas as épocas não
deixam de desempoeirar.
Para os ebionitas, Jesus teria nascido como
qualquer outro homem: fruto da união de um homem e de uma mulher; no caso, de
Maria e de José. Portanto, para eles, Cristo não seria de modo algum a segunda
pessoa da Santíssima Trindade, que se encarnou “por obra do Espírito Santo” (Mt
1, 18), isto é, não seria Deus verdadeiro, mas apenas um homem. Em
conseqüência, Maria não seria a Virgem Mãe de Deus.
Quase ao mesmo tempo, a literatura cristã dos
séculos II e III via-se invadida por uma multidão de escritos de seitas
denominadas “gnósticas”. Procedentes de ambientes e influências sincretistas –
judaísmo, filosofia neoplatônica, etc. –, esses grupos proclamavam praticamente
o contrário dos anteriores: negavam a humanidade de Cristo. Nosso Senhor jamais
teria sido homem verdadeiro, e por isso a afirmação de São João de que “o Verbo
se fez carne” (Jo 1, 14) careceria de sentido real. Tais doutrinas ensinavam
que Jesus era um ser exclusivamente espiritual de origem divina – embora
distinto de Deus –, o qual teria vindo à terra através de uma Mãe
Virgem, Maria, mas com um corpo irreal, fictício, aparente, que eles
denominavam “corpo psíquico”[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. José A. de Aldama, María
en la patrística de los siglos I y II, BAC, Madrid, 1960, págs. 33 ss.;].
É evidente que, ao negar-se a humanidade de
Cristo, ficava automaticamente anulada a verdadeira maternidade de Maria. Nossa
Senhora não teria formado um Filho em suas entranhas – sangue do seu sangue –,
mas teria sido apenas o canal de passagem de um ser espiritual. Como dizia um
dos representantes dessas seitas gnósticas, Ptolomeu, Jesus ter-se-ia limitado
a “passar por Maria como a água passa por um conduto”[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr.
Aldama, op. cit., pág. 47;].
A fé e o amor dos primeiros cristãos estavam
atingidos em cheio. E reagiram com força. Em face desses dois erros, os
pastores e o povo fiel responderam reafirmando e vincando vigorosamente duas
verdades essenciais do mistério de Maria Santíssima: que Ela foi verdadeira Mãe
de Cristo; e que não concebeu por obra de varão, mas por obra de Deus, mantendo
intacta a sua virgindade.
Estamos perante as primeiras manifestações
coletivas da fé e da piedade marianas. Manifestações que já em fins do século I
e no século II ficam plasmadas, esculpidas, com admirável nitidez, nos textos
das mais antigas “profissões de fé” – o Credo – das igrejas cristãs: “Creio em
Jesus Cristo, Filho de Deus, que nasceu pelo Espírito Santo da Virgem Maria”: natus
est de Spiritu Sanctu ex Maria Virgine[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. Justo
Collantes, La fe de la Iglesia Católica, BAC, Madrid, 1984, págs.
280-286;].
A fé da Igreja – de todos os fiéis – era assim
fixada em formulações cristalinas.
Em primeiro lugar, Cristo é verdadeiro Homem,
porque nasceu realmente de Maria, ex Maria Virgine. Maria é sua
Mãe. Já o afirmara São Paulo, escrevendo aos Gálatas: Quando chegou a
plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de uma mulher (Gal 4,
4).
Em segundo lugar, Jesus Cristo é Filho de Deus:
nasceu do Espírito Santo, e a sua Mãe não concebeu de varão, mas foi
Virgem: de Maria Virgem. Já no começo do seu Evangelho, São Mateus
declara sobriamente: Maria achou-se tendo concebido do Espírito Santo
(Mt 1, 18).
Mais explicitamente ainda o ensina São Lucas, o
evangelista que obteve de Maria as confidências das coisas que Ela “guardava no
seu coração” (cfr. Lc 2, 51). Quando o Anjo anuncia a Maria que “conceberá em
seu seio e dará à luz um Filho”, a Virgem responde com um pedido de
esclarecimentos: Como se fará isto, pois eu não conheço varão?
Maria não duvida do que o Anjo lhe anuncia da parte de Deus. Mas precisa de uma
explicação sobre “como se fará isso”. Estas palavras não teriam sentido algum,
se a Virgem tivesse o projeto de realizar com José, com quem “estava desposada”,
a constituição de uma união matrimonial como qualquer outra. Se Maria as pronunciou,
foi porque tinha oferecido a Deus a sua virgindade, e possuía a consciência de
que Deus queria e aceitava esse oferecimento para sempre. Por isso, não lhe foi
fácil compreender como era possível que o mesmo Deus que a queria Virgem, a
quisesse também Mãe. A resposta do Anjo dissipou todas as dúvidas: O
Espírito Santo descerá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua
sombra; por isso, o santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus
(cfr. Lc 1, 31-38). Desde o século I, a fé cristã entendeu que era uma verdade
divinamente revelada que Maria foi virgem antes do parto, no parto e depois do
parto[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. Aldama, op. cit., págs. 81 ss.;].
Estas são as verdades do Evangelho. Esta é a fé
que os nossos irmãos dos primeiros séculos abraçavam com toda a sua alma, tal
como o haveriam de fazer todos os que fielmente os seguiriam no decorrer da
história.
Houve ainda um novo capítulo nessas “reações da
fé e do coração”. Esse terceiro capítulo desenvolveu-se cerca de dois séculos
mais tarde.
Desta vez tratou-se de um teólogo de Antioquia,
Nestório, que fora elevado à sede patriarcal de Constantinopla. Um belo dia,
começou a pregar alto e bom som contra a maternidade divina de Maria. Dizia
Nestório que Maria não deveria ser chamada “Mãe de Deus”, mas apenas “Mãe de
Cristo”. Por quê? Porque o teólogo em questão achava necessário “dividir”
Cristo, distinguindo nele duas “personalidades” diferentes, que – segundo
afirmava – só estariam justapostas uma à outra: a humana e a divina. Por outras
palavras, Cristo seria uma pessoa humana, à qual se teria unido – associado –
uma pessoa divina. Conclusão: somente a pessoa humana seria filho de Maria. Com
isso, além de desvirtuar o mistério de Cristo, recusava-se a proclamar que
Maria é, verdadeiramente, “a Mãe do meu Senhor”, a Mãe de Deus.
A reação dos fiéis, hierarquia e povo cristão,
não se fez esperar. Brotou com o ímpeto de um incêndio, reafirmando em uníssono
a verdade revelada por Deus: Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade que,
sem deixar de ser Deus, assumiu nas entranhas virginais de Maria a natureza
humana. NEle há uma só Pessoa, a divina, e duas naturezas
distintas – humana e divina – unidas num só ser pessoal. Maria é,
portanto, verdadeira Mãe de Deus, porque é a Mãe de uma Pessoa que é Deus.
Nenhuma mãe é apenas mãe do corpo do filho – embora só tenha gerado o corpo –,
mas é mãe do filho inteiro, de alguém, de uma pessoa – mãe de
João, de Antônio, de Clara... –. Da mesma maneira, Maria é a Mãe de Jesus, que
é uma Pessoa, uma pessoa divina. Por isso, é verdadeira Mãe de Deus.
Esta foi a verdade reafirmada e definida, em 22
de junho de 431, pelo Concílio de Éfeso em que a heresia de Nestório foi
condenada. É comovente ler a carta de São Cirilo de Alexandria, que foi a alma
desse Concílio, relatando o que aconteceu na cidade de Éfeso nesse dia de
verão: ao anoitecer, uma autêntica multidão atirou-se às ruas, depois que os
bispos reunidos acabaram de proclamar a verdade da fé e de condenar o hereje.
Inflamado de entusiasmo, o povo acompanhou os Padres conciliares até os seus
domicílios, com tochas acesas e cânticos, aclamando em grandes vozes: Theotókos,
Theotókos!, o que quer dizer: Mãe de Deus, Mãe de Deus![NOTA DE REFERÊNCIA:
São Cirilo de Alexandria, Epistolae, XXIV; in Migne, Patrologia
Graeca, 77, 138;].
O amor a Maria arrebatou os corações dos fiéis,
esfuziantes de ternura. Os ecos daquela noite memorável em Éfeso não se
extinguiram nem se extinguirão jamais. Hoje, como ontem, como sempre, brotará
das fibras mais íntimas da alma dos cristãos a alegria de dizer, saboreando-a,
essa verdade de fé: “Santa Maria, Mãe de Deus...”
A MÃE DO
REDENTOR
Considerávamos nas páginas anteriores o fato da
maternidade divina de Maria: Ela é verdadeira Mãe de Deus. Agora vamos dar mais
um passo, adentrando no mistério dessa maternidade e procurando ver o seu
alcance, as suas dimensões.
Vimos que Maria não foi meramente receptora
passiva das graças e dons de Deus. Foi “chamada” por Deus para ser a Mãe do Seu
Filho, e correspondeu ao chamado com um amor livre e uma entrega total. Poderia
ter recusado. Não o fez. Pela sua livre e completa correspondência, quis
ser Mãe. “Jesus nasceu – escreve Guitton – do consentimento de Maria”[NOTA DE
REFERÊNCIA: Jean Guitton, A Virgem Maria, Tavares Martins, Porto, 1959,
pág. 233;].
Não há dúvida de que Deus, querendo a resposta
livre de Maria, mostrou que desejava contar com a sua cooperação para
realizar a Redenção da humanidade. O Concílio Vaticano II, na Constituição Lumen
Gentium, expressa com clareza este desígnio de Deus: “É com razão que os
Santos Padres consideram Maria não como um mero instrumento passivo, mas
julgam-na cooperando para a salvação humana com livre fé e obediência. Pois
Ela, como diz Santo Irineu, «obedecendo, fez-se causa de salvação tanto para si
como para todo o gênero humano»[NOTA DE REFERÊNCIA: Concílio Vaticano II,
Const. Lumen Gentium, n. 56;].
Esta colaboração de Maria não ficou limitada ao
momento do “faça-se”, no dia da Anunciação, mas acompanhou todas as etapas da
vida e da missão salvadora de Cristo, “desde o momento da sua conceição
virginal até o momento da sua morte”[NOTA DE REFERÊNCIA: Const. Lumen
Gentium, n. 57;].
A VIDA OCULTA DE CRISTO
Pensemos, primeiro, na infância de Jesus.
Foi um período em que Deus confiou o seu Filho inteiramente aos cuidados de
Maria. Dela Jesus dependia em tudo, como qualquer criança depende de sua mãe:
da sua solicitude, do seu amor, da sua dedicação. Podemos até dizer que,
falando humanamente, Jesus Menino subsistia ao amparo da maternidade de Maria.
E foi no clima desse amor materno – e do aconchego dado também pelo amor de São
José – que o Menino cresceu e se desenvolveu.
Mas, já na infância o papel de Maria vai além
dessa dedicação materna. Por acaso já reparamos que foi precisamente a Virgem
Santíssima quem, pela primeira vez, manifestou Jesus aos homens como seu
Salvador? É um fato. A graça de Cristo em favor dos homens começou a atuar no
mundo pelas mãos de Maria. Foi aos pés de Nossa Senhora que desabrochou a fé
dos pastores e dos Magos, os primeiros adoradores daquele recém-nascido que,
como anunciaram os Anjos na noite de Natal, “é o Cristo, o Senhor” (Lc 2, 11).
Como é significativo que Deus tenha disposto que
os primeiros encontros das almas com Jesus ocorressem através da Mãe! Vislumbra-se
aí um desígnio divino, que o Evangelho irá explicitando cada vez mais.
Ainda na infância de Cristo, é também Maria –
acompanhada por seu esposo castíssimo, São José – quem apresenta Jesus no
Templo de Jerusalém, oferecendo-o a Deus Pai. A apresentação do Menino vem a
ser como um prenúncio da oferenda definitiva do Filho que Maria irá fazer
trinta e três anos depois, ao pé da Cruz. No momento da apresentação, o
Espírito Santo já vaticina à Mãe, através das palavras proféticas de Simeão,
esta última e radical oferenda: Uma espada – uma espada de dor – transpassará
a tua alma (cfr. Lc 2, 22-35).
À infância de Jesus une-se, perfazendo trinta
anos, a vida oculta no lar de Nazaré. Trinta anos! É a maior parte da
vida do Senhor. Um longo período em que Cristo já está a salvar-nos. Porque
esse período de vida oculta não foi um compasso de espera, sem relevo nem
transcendência. Nesses anos, Jesus, vivendo junto de Maria e de José, estava
redimindo a humanidade. Cada um dos seus atos, cada um dos seus gestos tinha
infinito valor redentor. Pois bem, na vida oculta – como causa alegria
considerar esta verdade! –, Cristo nos salva justamente cumulando de amor e de
sentido divino as pequenas coisas da existência cotidiana: a vida em família,
de que a Mãe é o centro; o trabalho na oficina de José; o descanso e as
pequenas alegrias e sacrifícios do cotidiano..., enchendo de luz divina o
caminho por onde discorre a vida da imensa maioria dos homens[NOTA DE
REFERÊNCIA: cfr. Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, Quadrante, São
Paulo, 1975, págs. 14-15;].
Mas, se prestarmos atenção ao que o Evangelho
nos relata sobre a vida oculta, descobriremos ainda algo mais. Como é que o
Evangelho resume a atitude interior de Jesus ao longo desses trinta
anos? De uma maneira muito simples, mas carregada de ensinamentos. São Lucas
define com três palavras essa atitude: Era-lhes submisso (Lc 2, 51).
Quanto não diz esta breve frase! O Filho de Deus, o próprio Deus feito homem,
quis passar a maior parte da sua vida obedecendo a Maria e a José – numa
voluntária e amorosa submissão – e deixando-se guiar por eles.
Sejam quais forem as conseqüências espirituais
que se possam deduzir disto – e são muitas –, basta-nos agora sublinhar duas
realidades: por um lado, Jesus Cristo quis ligar, vincular estreitamente
a maior parte da sua vida terrena à vida de sua Mãe; por outro, decidiu – se
nos é permitido falar assim – dar um enorme peso à vontade de sua Mãe, até o
ponto de, como dizíamos, ter vivido trinta anos fazendo-lhe caso,
obedecendo-lhe. Esta disposição de obediência de Cristo à Mãe é de
grande importância para compreendermos o papel que Deus quis atribuir a Maria.
A
VIDA PÚBLICA
A vida oculta de Jesus – envolta na normalidade
do cotidiano no lar de Nazaré – teve, contudo, o seu termo. Com a idade de
trinta anos, Cristo inicia uma nova etapa, completamente diferente: sai aos
campos, às ruas e praças, prega a Boa Nova, faz milagres, rodeia-se de
multidões... É a vida pública.
Aparentemente, há uma ruptura radical com a sua
anterior forma de existência. E também parece quebrar-se de maneira quase
completa o encanto vivido no lar de Nazaré. Quem lê o Evangelho depara na vida
pública com a ausência quase total de Maria. Teria Ela encerrado a sua missão?
Não seria isso o que Jesus já teria insinuado aos doze anos, quando ficou no
Templo, separando-se de seus pais? Após três dias de procura aflita, quando
Maria e José reencontram o Menino conversando no Templo com os doutores da Lei,
a Mãe pergunta-lhe com ansiedade: Filho, por que procedeste assim conosco?
A resposta parece prenunciar que a futura missão do Messias deverá realizar-se
com completa independência da Mãe: Por que me procuráveis? Não sabíeis que
devo ocupar-me nas coisas de meu Pai? (cfr. Lc 2, 41-52). Será que essas
palavras excluem a Mãe de Jesus da sua vida pública, quando o Filho de Deus se
ocupa plenamente nas coisas de seu Pai?
Todas estas interrogações exigem que prestemos
uma particular atenção a tudo o que o Evangelho nos diz sobre Maria ao longo da
nova etapa que se abre na vida de Cristo com o seu ministério público.
DIMENSÕES DA MATERNIDADE
DE MARIA
Tem-se afirmado com muita freqüência que o
Evangelho mariano por excelência é o de São Lucas. Nele, com efeito,
encontramos a maior parte das informações que possuímos sobre a infância e a
vida oculta de Cristo. No entanto, parece que não falta razão aos que, sem
diminuírem em nada o valor ímpar das passagens marianas de São Lucas, pensam
que é o Evangelho de São João que penetra com maior profundidade no mistério de
Maria.
No Evangelho de João, não encontramos nenhuma
referência – a não ser muito indireta – às primeiras etapas da vida de Cristo.
Após elevar-se, no prólogo, até às alturas da contemplação do mistério de Deus
feito homem, João passa logo em seguida a narrar episódios da vida pública do
Senhor. Que nos diz acerca de Maria?
Se prestarmos atenção, perceberemos que as
contadas referências que João faz à Virgem Santíssima não são, primordialmente,
narrações de passagens da “vida de Maria”. João focaliza Maria apenas em alguns
momentos de grande significação em que Ela está presente na missão de Jesus.
Descreve esses momentos – esses fatos – no estilo sóbrio e objetivo que
caracteriza todos os Evangelhos, mas a sua narração, sem dúvida alguma, vai
além dos fatos: capta e transmite-nos uma “mensagem”.
Percebe-se, nesses textos do seu Evangelho, que
João compreendeu – e quer fazer entender aos seus leitores – a importância
atribuída por Deus à colaboração de Maria nas etapas mais decisivas da missão
salvadora de Cristo. São aqueles três anos em que Jesus se volta – e é da maior
relevância atentar para isto – de maneira direta e total para os homens
necessitados de salvação: anunciando-lhes que se completou o tempo e o Reino
de Deus está próximo (Mc 1, 15), atraindo-os para a luz da Verdade e
entregando-se na Cruz para o seu resgate.
Duas importantes cenas marianas emolduram, como
intensos pontos de luz, o começo e o final da vida pública de
Cristo no Evangelho de São João: o milagre das bodas de Caná, e as palavras
dirigidas por Jesus a Maria e ao discípulo amado do alto da Cruz.
Antes de focalizarmos com algum vagar essas
cenas, podemos adiantar que é a partir do início da vida pública que vemos
desvendar-se com a maior clareza uma especial “dimensão” da maternidade de
Maria. Até o fim da vida oculta, essa maternidade concentrava-se
primordialmente – quase exclusivamente – no Filho, em Jesus. Mal começa a vida
pública, porém, contemplamos essa maternidade alargando-se, abrindo-se para os
homens que Jesus veio salvar. Vai-se revelando assim mais plenamente a maternidade
espiritual de Nossa Senhora em relação a todos e cada um dos homens[NOTA DE
REFERÊNCIA: Enc. Redemptoris Mater, n. 21;]. As duas passagens-chave de
São João, antes citadas, projetam esclarecimentos decisivos sobre esta dimensão
da maternidade de Nossa Senhora.
MARIA EM CANÁ DA
GALILÉIA
Quando Jesus, juntamente com sua Mãe, foi
convidado às bodas de Caná, era ainda muito recente a vocação dos Apóstolos. Já
começavam a acompanhar o Mestre e, conforme o costume da época, foram
convidados também para o casamento (cfr. Jo 2, 2).
A cena é conhecida. Num dado momento da ruidosa
festa campesina, fica faltando vinho. Ninguém o percebe. Ninguém, a não ser
Maria. Com delicada intuição, pressente que a alegria dos esposos pode ficar
toldada por uma imprevidência. Maria faz “seu” o problema, assume-o com
sensibilidade materna, com um interesse impregnado de coração. E não hesita em
falar confiadamente a Jesus: Não têm vinho.
As suas palavras não são um simples comentário
preocupado, mas encerram um discreto pedido. Assim o entende Jesus, quando lhe
responde: Que importa isso a mim e a ti, mulher? Ainda não chegou a minha
hora.
A nossa lógica bem-comportada subscreveria as
palavras de Jesus. Elas têm a aparência de uma compreensível e amável censura a
um pedido saído do coração, mas pouco razoável.
Maria, no entanto, não as entende assim. E Ela é
quem tem a sintonia mais perfeita com a alma do Filho. Por isso, não duvida em
solicitar imediatamente aos que servem: Fazei tudo o que Ele vos disser.
Mostra saber que será escutada, sem que para isso possa ser obstáculo a
dificuldade muito ponderável mencionada por Jesus: “Não chegou a minha hora”.
O atendimento de Jesus ao pedido da Mãe não
demora. Sob o olhar sorridente de Maria, Cristo manda aos servidores que encham
de água seis grandes recipientes de pedra. Ordena-lhes depois que tirem a água
já convertida em vinho e a apresentem ao mestre-sala, que não sai do seu
assombro por julgar que os donos da festa tinham deixado o bom vinho guardado
até agora.
A cena termina com um comentário de João: Este
primeiro milagre, fê-lo Jesus em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória, e
os seus discípulos creram nele (cfr. Jo 2, 1-11).
Falávamos há pouco da “mensagem” encerrada no
fato que se acaba de sintetizar. Ela aparece aí de maneira muito clara. É
patente que Maria está ativamente presente no começo do ministério
público de Cristo, e está presente de uma forma central, não marginal.
Prestemos atenção:
* É por intercessão dEla que Cristo adianta
misteriosamente a “hora” de iniciar os seus milagres, que serão “sinais” (cfr.
Jo 6, 26) da sua divindade e testemunhos visíveis da veracidade da sua
doutrina.
* É por intercessão dEla que este primeiro
sinal faz com que os discípulos creiam em Jesus.
* Finalmente, manifesta-se nesse instante a
disposição de Jesus de acolher todos os pedidos que, mesmo em coisas pouco
relevantes – “não têm vinho” –, cheguem a Ele por intermédio da solicitude
da Mãe, que se mostra amorosamente atenta às necessidades espirituais e
materiais dos homens, seus filhos.
“Maria – comenta a propósito desta cena João
Paulo II – põe-se de permeio entre o seu Filho e os homens na realidade das
suas privações, das suas indigências, dos seus sofrimentos. Põe-se de permeio,
isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe,
consciente de que como tal pode – ou antes, “tem o direito de” – fazer
presentes ao seu Filho as necessidades dos homens (...) E não é tudo: como Mãe,
deseja também que se manifeste o poder messiânico do Filho, ou seja, o seu
poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras humanas, a libertar o
homem do mal que, sob diversas formas e diversas proporções, faz sentir o peso
na sua vida”[NOTA DE REFERÊNCIA: ib.;].
Contemplando esta passagem do Evangelho, a
imaginação evoca algumas das cenas mais simples da piedade popular, que por
vezes escandalizam os “sábios”. Como num filme, focalizamos mentalmente os
rostos enxutos, requeimados pelo sol do sertão, de um grupo de romeiros que
acaba de descer do ônibus na esplanada do Santuário de Aparecida. Os devotos,
entrando na basílica, cravam o olhar esperançado no retrato da Mãe, a pequenina
imagem de barro escurecido. E, de cada coração, eleva-se uma súplica: pelas
necessidades cotidianas, pela saúde, pela volta ao bom caminho do marido, de um
filho... “Dai-nos a bênção, ó Mãe querida!” Eles sabem por dentro, têm a
certeza, de que – assim como em Caná – a Virgem Santa não deixará de dizer ao
Filho: “Não têm...”. E o Filho a atenderá, o Filho lhe “obedecerá”... Não é
evidente a sintonia existente entre a sincera devoção popular e o Santo
Evangelho?
Em Caná, Cristo disse com atos, mais expressivos
do que as palavras, que, na realização da sua obra salvadora em favor dos
homens, deseja que ocupe um lugar de destaque a mediação maternal de sua
Mãe. Não era necessário que fosse assim, mas Deus quis que assim fosse.
Maria tem verdadeiramente uma função de mediação
materna entre Cristo e os homens. Não é certamente uma função autônoma, nem
obscurece o fato incontestável de que Jesus Cristo é o único Mediador
propriamente dito entre Deus e os homens (cfr. I Tim 2, 5). Mas, mesmo assim,
fica em pé a existência de uma autêntica mediação de Maria, subordinada mas
entranhadamente unida à mediação de Cristo[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. Const. Lumen
Gentium, n. 62;].
A mediação de Maria está nos desígnios de Deus.
Não foi imaginada pela devoção dos cristãos, em épocas mais ou menos tardias.
Pelo contrário, foi sendo descoberta pela fé, cada vez com maior
profundidade, como um tesouro escondido, o que é muito diferente.
Bem entendia esta verdade São Bernardo, o “trovador
da Virgem”, quando pregava que Maria é “o aqueduto que, recebendo a plenitude
da própria fonte do coração do Pai, no-la faz acessível... Com o mais íntimo,
pois, da nossa alma, com todos os afetos do nosso coração e com todos os
sentimentos e desejos da nossa vontade, veneremos Maria, porque esta é a
vontade daquele Senhor que quis que tudo recebêssemos por Maria”[NOTA DE
REFERÊNCIA: São Bernardo, Sermo in Nativitate B. V. Mariae; in Migne, Patrologia
Latina, 183, 437, ns. 4 e 7;].
Antes de concluirmos o comentário às bodas de
Caná, detenhamo-nos por uns instantes a olhar outras riquezas dessa cena.
Tem sido observado, e com razão, que nessa
passagem de Caná se encontram as únicas palavras dirigidas por Maria aos
homens que o Evangelho registra: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5).
Aí está o sentido da mediação de Maria: levar as almas para Cristo, mover os
corações dos homens a aderir à vontade de Cristo e a “fazê-la” de fato: “tudo
o que Ele vos disser”.
Ao mesmo tempo, aí se compreende qual é o eixo
da verdadeira devoção a Nossa Senhora, e o teste da sua autenticidade. A
autêntica devoção a Maria sempre conduz a Cristo. É função do amor maternal de
Maria “gerar” constantemente “irmãos” de seu Filho, que se disponham a viver
até às últimas conseqüências a verdade e a vida que Jesus lhes oferece.
Por isso, a devoção a Maria Santíssima não só
não afasta ou desvia as almas da união com Cristo pela fé e pelo amor – e nisso
reside a essência da vida cristã –, mas a facilita sobremaneira, tornando-a
mais acessível e mais suave, e também mais eficaz. “A Jesus, sempre se vai e se
«volta» por Maria”[NOTA DE REFERÊNCIA: Josemaría Escrivá, Caminho, 6ª.
ed., Quadrante, São Paulo, 1983, n. 495;]. “A nossa alma – diz São Luís Maria
Grignion de Montfort – só encontrará Deus em Maria... Só Deus habita nela e,
longe de reter uma alma para si, Ela – muito ao contrário – a impele para Deus
e a une a Ele”[NOTA DE REFERÊNCIA: Traité de la vraie dévotion à la Sainte
Vierge, Ed. Secrétariat de Marie Médiatrice, 4ª. ed., Lovaina, 1952,
cap. I, art. 1;].
DO ALTO DA CRUZ
Caná é o início da vida pública de Cristo. O
sacrifício da Cruz é o seu fecho e a sua culminação. Procuremos agora
aproximar-nos do coração de Maria e tentemos captar o que “Maria guardava no
coração” naquela hora em que a salvação da humanidade se consumava por meio do
sacrifício redentor de Jesus Cristo.
São João descreve a presença de Maria ao pé da
Cruz, junto das santas mulheres, com uma palavra cheia de têmpera: stabat.
Literalmente, significa “estar firme, de pé”. Mas o termo indica muito mais do
que um simples modo de permanecer. A expressão original empregada pelo
Evangelho sugere um conteúdo moral, isto é, que Maria acompanhava o sofrimento
do Filho com fortaleza de alma; e que, no seu coração, não só havia inteireza,
mas adesão.
Nessa “hora” definitiva, em que o Filho dá a
vida para a salvação de muitos (Mt 20, 28), a atitude espiritual de Maria é
exatamente a mesma que no dia da Anunciação: fiat, “faça-se”. Adesão
incondicional, plena, à vontade de Deus, e concretamente ao plano salvífico que
Cristo está realizando no mundo, plano no qual Ela foi chamada a colaborar da
forma mais estreita.
Podemos dizer que o fiat, a união com a
vontade de Deus – como já mencionávamos anteriormente – é a alma de Maria.
Aquilo que faz dela a Mãe, no sentido mais profundo, não é apenas nem
primariamente o fato de ter gerado fisicamente Jesus, mas de se ter unido
perfeitamente à vontade de Deus em cada um dos instantes da vida e da missão do
Filho.
Lembremo-nos de que, certo dia, quando uma
mulher da multidão louvou em voz alta o ventre que te trouxe e os peitos que
te amamentaram, Jesus lhe respondeu: Antes bem-aventurados os que ouvem
a palavra de Deus e a põem em prática (Lc 11, 27-28). Teria com isso
desviado de Maria o louvor espontâneo daquela mulher? Não, sem dúvida, pois
porventura não foi a Virgem quem melhor ouviu e cumpriu a palavra de Deus? Com
essas palavras, Cristo mostrava de fato qual é a mais profunda razão para
louvá-la. Análogo sentido se deve ver no comentário, frio e distante na
aparência, feito por Jesus certa vez em que lhe advertiram que sua Mãe acabava
de chegar: Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, e
minha irmã, e minha mãe (Mc 3, 35).
Ao pé da Cruz, a adesão de Maria à vontade
divina atinge o seu cume. A Virgem Santa conhecia bem – como todo o judeu
piedoso – as profecias que, de um fundo de séculos, prenunciavam o Messias como
“Servo sofredor”, que seria levado à morte como manso cordeiro conduzido ao
sacrifício: pelas suas chagas, todos nós seríamos curados (cfr. Is 53, 1-7).
Por isso, ao dizer “faça-se” ao Anjo, Ela aceitara o destino do seu Filho.
Quando o apresentou no Templo a Deus Pai – já o lembrávamos antes –, o seu
gesto foi uma antecipação do oferecimento definitivo que iria fazer ao pé da
Cruz, aceitando a Paixão e a Morte de seu Filho pela nossa salvação; mais
ainda, oferecendo voluntariamente – com a alma transpassada de dor e numa
completa generosidade – o sacrifício de Jesus por nós, Maria – por amor a Deus
e por amor aos homens necessitados de redenção – aceitou morrer de dor, no
íntimo da sua alma, juntamente com Cristo. Uniu-se assim ao seu sacrifício
redentor e assumiu-o como próprio. Por isso é chamada Corredentora.
Foi, de fato, na Cruz que Cristo, dando a sua
vida, mereceu para nós a vida divina da graça. O seu holocausto de Amor, por
ter um valor infinito – divino –, é uma inesgotável fonte de méritos em favor
dos homens. Pois bem, o Salvador quis associar tão intimamente a sua Mãe
bendita ao sacrifício da Redenção que a Igreja pode afirmar que Maria mereceu
com “mérito de conveniência” – como se diz na linguagem teológica – todas as
graças que Jesus nos mereceu por justiça na Cruz[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. São
Pio X, Enc. Ad diem illum, de 02.02.1904; in Enchiridion Symbolorum,
cit., n. 1978a;]. Ela é, também por este título, a “Mãe da divina graça”. A
vida sobrenatural, que brota copiosamente da Cruz, também é, de alguma maneira,
vida dEla, vida que recebemos por Ela: isso a torna mais
profundamente a nossa Mãe.
Convém lembrar ainda que Jesus Cristo, com os
seus padecimentos, pagou – expiou, satisfez – pelos nossos pecados: Fostes
resgatados – escreve São Pedro – (...) pelo precioso sangue de Cristo,
como de um cordeiro imaculado e sem mancha (I Pedr. 1, 18-19). A Virgem
Imaculada, unindo-se totalmente aos sofrimentos do Filho – com os mesmos sentimentos
de Cristo Jesus (cfr. Fil 2, 5) – aceitou, com amor imenso, pagar
também Ela com a sua própria dor pelos nossos pecados. Junto da Cruz, entregou
a sua alma, fundida com o sacrifício de Jesus, pela nossa salvação[NOTA DE
REFERÊNCIA: cfr. Const. Lumen Gentium, n. 58;].
A dilacerante agonia do seu coração, junto do Crucificado,
foi então como que um novo parto – desta vez com dor –, através do qual
Maria nos deu à luz espiritualmente. Não se trata de uma frase poética, mas de
uma inefável realidade: todos e cada um de nós nascemos de Maria naquele
momento. Aí, perto da árvore da Cruz, Ela se tornou plenamente a “nova Eva”, a
nova e verdadeira “mãe dos viventes”, como gostava de repetir a piedade mariana
dos primeiros séculos[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. Aldama, op. cit., págs.
264 ss.].
EIS O TEU FILHO
Logo após as palavras pronunciadas por Cristo na
Cruz – “eis a tua Mãe”, “eis o teu filho” –, conta o Evangelho que desta
hora em diante, o discípulo a levou para sua casa (Jo 19, 27).
Esse “discípulo” – já o víamos no começo destas
páginas – representava todos os discípulos: os que na altura seguiam Jesus e
todos os homens chamados depois a segui-Lo, fazendo parte do Povo de Deus que é
a Igreja.
O fato de o discípulo ter assumido ao pé da
letra a “filiação” a Maria, “levando-a para sua casa”, reflete bem a intenção
de Cristo – que João compreendeu – de que a Igreja, a que São Paulo chama o
Corpo de Cristo (Col 1, 18), tivesse a sua existência inseparavelmente
unida à Mãe de Jesus. Ela é a Mãe da Cabeça deste Corpo – de Cristo –, e é a
Mãe dos membros deste Corpo, que somos nós. É a Mãe da Igreja, do “Cristo total”,
como gostava de dizer Santo Agostinho.
Na mente de Deus, portanto, a Igreja é concebida
também como uma família, como um lar que tem uma Mãe. No centro dessa família,
pulsa o Coração da Virgem e nela irradia o aconchego da sua maternidade.
É muitíssimo significativo que a Igreja tenha
nascido no dia de Pentecostes, quando os discípulos e as santas mulheres
estavam reunidos – em união de corações e de preces – com Maria, a Mãe de
Jesus (At 1, 14). São Lucas, o evangelista que melhor captou o papel de
Maria no começo da vida do Redentor, é o mesmo que nos Atos dos Apóstolos
sublinha a presença central de Nossa Senhora nos começos da vida da Igreja,
mostrando que a Igreja recebeu o Espírito Santo – a sua alma divina – estando
aglutinada como uma família em volta da Virgem Santíssima.
O CORAÇÃO DE
MARIA
NO TEMPO E NA ETERNIDADE
Havia de chegar, porém, um dia em que a presença
de Maria já não seria visível para os olhos dos seus filhos. Deus a chamou a
Si. João, o discípulo-filho por excelência, a vislumbrará então gloriosa – Mãe,
sempre Mãe – no céu. Assim descreve a sua visão no livro do Apocalipse: Depois,
apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, com a lua debaixo
dos pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Estava grávida e clamava
com dores de parto... (Apoc 12, 1-2).
Adivinha-se nesta imagem celeste a Virgem-Mãe,
aquela que víamos associada ao sacrifício de Jesus, dando à luz com dor os
filhos de Deus. A visão de São João mostra-nos que, desde que foi glorificada
no céu – Rainha coroada de estrelas –, Maria continua a ser Mãe de todos os
homens, dos filhos de Deus e irmãos de Jesus Cristo, até o fim dos séculos.
Uma das mais doces verdades da nossa fé é o
mistério da Assunção de Nossa Senhora em corpo e alma aos céus. A cheia de
graça, a que nunca pecou, não podia ficar sujeita à corrupção da morte,
estabelecida por Deus como castigo do pecado. Por isso, a Igreja definiu
solenemente – expressando uma verdade que, desde tempos antiqüíssimos, era
patrimônio da fé do povo cristão – que “a Imaculada Mãe de Deus, sempre Virgem
Maria, completado o curso da sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à
glória do Céu”[NOTA DE REFERÊNCIA: Pio XII, Const. Ap. Munificentissimus
Deus, de 01.11.1950, in Enchiridion Symbolorum, cit., n. 2333;].
Eis a consoladora verdade: a nossa Mãe Santa
Maria, na glória do céu, está agora junto da Trindade Santíssima em corpo e
alma. Compreendemos bem o que isto significa? Quer dizer que Maria vive no
céu a cuidar de nós, a olhar-nos, a interceder por nós, com o mesmo coração,
com os mesmos sentimentos e com os mesmos afetos que tinha na terra. Não é um
puro espírito. É uma Mãe humana, glorificada, mas plenamente humana.
Agora, junto de Deus, Ela contempla – na luz da glória divina – todos e cada um
dos seus filhos, em todos e cada um dos momentos da sua existência, e olha
por eles: nas horas de alegria e de dor, nos transes difíceis, nos tempos
de solidão, na suas quedas e nos seus reerguimentos... Não há um passo da nossa
vida, não há um latejar do nosso coração, que não esteja sendo acompanhado
amorosamente pelo Coração humano da nossa Mãe. E não há um passo que não esteja
sendo assumido – visto e sentido como algo próprio – por esse Coração.
Contemplando este mistério delicado, Mons.
Escrivá aponta-nos uma das suas conseqüências: “Surge assim em nós, de forma
espontânea e natural, o desejo de procurarmos a intimidade com a Mãe de Deus,
que é também a nossa Mãe; de convivermos com Ela como se convive com uma pessoa
viva, já que sobre Ela não triunfou a morte, antes está em corpo e alma junto
de Deus Pai, junto de seu Filho, junto do Espírito Santo”[NOTA DE REFERÊNCIA:
Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, cit., pág. 187;]. É nesse clima
de intimidade filial que discorre a devoção a Nossa Senhora.*
A DEVOÇÃO A MARIA
SANTÍSSIMA
O nosso relacionamento, a nossa intimidade com
Maria é essencialmente filial. O vínculo filiação-maternidade “determina
sempre – como lembra a Encíclica Redemptoris Mater – uma relação
única e irrepetível entre duas pessoas: da mãe com o filho e do filho
com a mãe”[NOTA DE REFERÊNCIA: Enc. Redemptoris Mater, n. 45;]. E a
medula desse vínculo, evidentemente, é o amor.
Por isso, só perguntando-nos pelas
características que tornam autêntico esse amor é que descobriremos os traços da
verdadeira devoção a Maria Santíssima. Com isso, perceberemos também
melhor o que Deus quis que representasse para nós o imenso dom que nos
fez, dando-nos Maria como Mãe.
Comecemos pelos aspectos dessa devoção que se
nos impõem de maneira mais imediata. Um cristão que vive de fé sabe que Maria o
ama e o auxilia com carinho de Mãe. Sabe-a voltada maternalmente
para ele. É natural que, dessa certeza, flua espontaneamente uma sincera afeição
filial. “Nada convida tanto ao amor – comenta São Tomás – como a
consciência de sentir-se amado”[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. São Tomás de Aquino, Summa
contra gentes, IV, XXIII;]. A devoção mariana manifesta-se, por isso, em
mil expressões, delicadas e fervorosas, de carinho de filho: no tom afetuoso da
oração que dirigimos a Ela, na alegria de visitá-la nos lugares onde se quis
fazer especialmente presente, nos muitos pormenores íntimos do coração, que o
pudor vedaria externar.
Juntamente com esse afeto filial, e
impregnando-o intimamente, brota também espontaneamente um sentimento de
profunda confiança. “Nunca se ouviu dizer – reza uma bela oração
atribuída a São Bernardo – que algum daqueles que tivesse recorrido à vossa
proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por
Vós desamparado”.
Esta certeira confiança dos fiéis exprimiu-se
num leque multicolorido de invocações marianas, que traduzem a segura
experiência do coração cristão: Mãe de misericórdia, Virgem poderosa, Auxílio
dos cristãos, Consoladora dos aflitos, Onipotência suplicante... Era essa a
confiança que fazia Dante escrever estes preciosos versos: Donna, se' tanto
grande e tanto vali, / che qual vuol grazia e a te non ricorre, / sua disianza
vuol volar sanz'ali; “Senhora, és tão grande e tanto podes, que para quem
quer graça e a ti não recorre, o seu desejo quer voar sem asas”[NOTA DE
REFERÊNCIA: Dante Alighieri, Divina Comédia, Par. XXXIII, 13-15;].
Amor e confiança. Trata-se de sentimentos com
fortes raízes no coração. Ora é bem sabido que os afetos do coração possuem
muitas vezes uma sutil ambivalência: são sentimentos que a custo se equilibram
na difícil passarela onde o amor beira sempre o egoísmo. Não é raro que os
muito sentimentais sejam também muito egoístas.
Por isso, se a devoção a Maria não estivesse
fundamentada nos alicerces da fé – da doutrina – e da caridade, poderia
deslizar imperceptivelmente para os declives do egoísmo. Tal coisa aconteceria
no caso de uma devoção meramente sentimental – não animada por desejos de
entrega e de amor operante – que, embora cheia de efusões de ternura, não
incidisse fortemente na vida para modificá-la. Mais facilmente ainda se daria
essa deturpação se a devoção mariana se reduzisse a um simples recurso para
alcançar uma “proteção” ou uns “favores” meramente interesseiros.
Esses desvios, contudo, não se darão se o nosso
amor filial a Maria entrar, como deve, em sintonia com o seu amor maternal.
Pensemos que o coração da nossa Mãe, “cheia de
graça”, é uma fornalha ardente de caridade, de amor a Deus e aos homens. Nele
se encontra, em medida quase infinita, a caridade derramada pelo Espírito Santo
(cfr. Rom 5, 5).
Isto significa que quem se aproximar dEla com um
coração reto e sincero se sentirá necessariamente impelido para o amor a Deus e
ao próximo. Este é o segredo divino da devoção a Maria. Foi de fato para nos
facilitar a entrega a esse duplo amor – o mandamento que resume todos os outros
– que Deus, em sua misericórdia, quis dar-nos Maria como Mãe.
É por isso que a devoção a Maria, bem vivida, é
sempre como um sopro – fecundo, cálido e suave – que acende o amor na alma,
inflama a generosidade e move a abraçar sem reservas a vontade de Deus.
“Se procurarmos Maria, encontraremos Jesus”, diz
Mons. Escrivá, fazendo-se eco da tradição cristã[NOTA DE REFERÊNCIA: Josemaría
Escrivá, É Cristo que passa, cit., pág. 190;]. No fundo de tudo o que a
Virgem Santíssima sugere ao coração dos homens, sempre pulsam as suas palavras
em Caná: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. A verdadeira devoção é, por isso,
radicalmente “cristocêntrica” – conduz a Cristo –, é “teocêntrica”. Nossa
Senhora vive e faz viver em função de Jesus. Não pode haver aí nem
sombra de “idolatria”.
Ao mesmo tempo, é claro que, se Maria nos leva a
Jesus, indefectivelmente nos aproxima também dos nossos irmãos, que são irmãos
de seu Filho e filhos dEla. Ela é a Mãe comum que nos faz sentir fraternalmente
vinculados em Cristo, membros da família de Deus (cfr. Ef 2, 19), e nos
desperta na alma ânsias de doação e de serviço aos outros. O Coração de Maria
infunde calor e força ao amor dos irmãos.
Como vemos, se a Virgem Santíssima nos auxilia –
e esta é a sua missão maternal –, é única e exclusivamente para nos colocar
mais plenamente em face das exigências da nossa vocação cristã. É com este fim
que Ela intercede por nós junto de Deus e distribui as graças que o Senhor
colocou em suas mãos. Mesmo os favores maternos que Ela nos obtém em pequenas
coisas – como em Caná – são incentivos de carinho que nos ajudam a agradecer e
a retribuir a Deus as suas bondades. Em qualquer caso, Ela estende a sua mão
para nos elevar – suave e fortemente – até à meta da nossa vocação cristã, que
é a santidade.
Com razão se pode afirmar, por isso, que o amor
de Maria por seus filhos é simultaneamente doce e exigente. “Nossa Senhora, sem
deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar os seus filhos em face de suas
precisas responsabilidades. Aos que dEla se aproximam e contemplam a sua vida,
Maria faz sempre o imenso favor de os levar até a Cruz, de os colocar bem
diante do exemplo do Filho de Deus. E nesse confronto em que se decide a vida
cristã, Maria intercede para que a nossa conduta culmine com uma reconciliação
do irmão menor – tu e eu – com o Filho primogênito do Pai”[NOTA DE REFERÊNCIA:
Josemaría Escrivá, ib., pág. 195;].
A Jesus “se vai” por Maria, e a Jesus “se volta”
por Ela, diz Caminho[NOTA DE REFERÊNCIA: Josemaría Escrivá, Caminho,
cit., n. 495;]. Quando, ao rezar a Ave-Maria, nós lhe pedimos “rogai por nós,
pecadores”, fazemo-lo com a consciência de que demasiadas vezes nos afastamos
de Deus e, como o filho pródigo, precisamos voltar para a casa do Pai.
Maria torna suave, também, e esperançado esse
retorno. Não é verdade que, perto da Mãe, nos tornamos a sentir crianças?
Despojamo-nos da nossa triste armadura de adultos, forjada pelo orgulho, pela
vergonha ou pela decepção. E então o fardo das nossas misérias já não nos
esmaga. Com Maria, sentimo-nos crianças reanimadas pela ternura da Mãe, alegres
por descobrir que, para um filho pequeno, sempre é possível levantar-se, sempre
é possível recomeçar, sempre é hora de esperar. Ela é a porta perpetuamente
aberta na Casa do Pai.
A Estrela da manhã, a Estrela do mar,
a nossa Mãe, guia-nos por toda a estrada da vida, passo a passo, na bonança e
na tormenta, nos avanços e nas quedas, até alcançarmos o repouso definitivo no
coração do Pai. Nunca percamos de vista que “foi Deus quem nos deu Maria: não
temos o direito de rejeitá-la, antes pelo contrário, devemos recorrer a Ela com
amor e com alegria de filhos”[NOTA DE REFERÊNCIA: Josemaría Escrivá, É
Cristo que passa, cit., pág. 189;].
Há um antigo adágio teológico que diz: De
Maria numquam satis, isto é, “nunca diremos o bastante de Maria”. Nestas
páginas, tentamos aproximar-nos do esplendor do mistério de Maria. Pudemos
captar apenas alguns dos seus fulgores. Mas, para alcançarmos uma luz mais
plena, devemos imitar a Santíssima Virgem, procurando como Ela “guardar,
meditando-as no coração” (cfr. Lc 2, 51), todas as coisas que Deus nos quis
dizer acerca de Maria. Então compreenderemos cada vez melhor por que a Igreja
aplica a Nossa Senhora estas palavras do livro dos Provérbios: Aquele que me
achar encontrará a Vida e alcançará do Senhor a salvação (Prov 8, 35).
ÍNDICE
MARIA NA
PERSPECTIVA DE DEUS
Um testamento
de Cristo
Deus fala de
Maria
A VOCAÇÃO
PARA A MATERNIDADE DIVINA
A cheia de
graça
A Virgem-Mãe
A MÃE DO
REDENTOR
A vida oculta
de Cristo
A vida
pública
Dimensões da
maternidade de Maria
Maria em Caná
da Galiléia
Do alto da
Cruz
Eis o teu
filho
O CORAÇÃO DE
MARIA
No tempo e na
eternidade
A devoção a
Maria Santíssima
MARIA, A MÃE
DE JESUS
O culto a Maria foi desde os primórdios do
cristianismo a marca de contraste da plenitude da fé. Já nos primeiros séculos
se atacava o papel de Nossa Senhora, ao atacar o mistério de Cristo, Deus perfeito
e homem perfeito. E com o surgimento do protestantismo, a marginalização da Mãe
de Deus era uma pincelada a mais no quadro da ruptura com a fé verdadeira. Nos
nossos dias, alguns voltam a subestimar o culto à Virgem, considerando
superadas, ou mesmo alienantes, as práticas tradicionais da devoção mariana.
Francisco Faus, já conhecido pelos leitores
destes cadernos, oferece-nos nestas páginas um ponto de partida seguro para
compreendermos o lugar que Maria ocupa na fé e na vida cristã. Cingindo-se aos
textos evangélicos, vai à procura não do que cada um possa pensar da Virgem,
mas do que Deus pensou dEla; não do lugar que o sentimento ou os tempos
lhe atribuem, mas daquele que Deus lhe reservou nos seus planos de
Salvação.
Assim se vê qual a linha dos desígnios de Deus
para Aquela que, desde o “faça-se” incondicional da Anunciação até esse outro “sim”
silencioso no instante supremo do Calvário, estava chamada a ser a Mãe de Deus
e a Mãe dos homens, a Mulher revestida de sol, com a lua a seus pés, que esmagaria
a cabeça da serpente.
Maria na eternidade é a mesma humilde donzela de
Nazaré que já em Belém dava a conhecer o Filho de Deus aos homens e que hoje e
sempre nos continua a levar maternalmente até Ele, aconselhando-nos em nossos
anseios e carências, como aos criados das bodas de Caná, se não lhe faltarmos
com o nosso afeto filial: “Fazei tudo o que Ele vos disser”.