A
PREGUIÇA
FRANCISCO
FAUS
3ª edição
QUADRANTE
São Paulo 2003
Copyright © 2003 Quadrante,
Sociedade de Publicações Culturais
A PREGUIÇA
Um curso de doutrina
católica. O conferencista entra na sala, senta-se à mesa e, encarando o
público, anuncia: – Hoje, vamos falar sobre a preguiça.
Imediatamente um
sorriso percorre o auditório, e os presentes entreolham-se com regozijo. Talvez
tenha sido também um sorriso a primeira reação do leitor ao ler o título deste
caderno, e é possível que tenha folheado rapidamente as páginas e examinado o
índice com divertida curiosidade.
Podemos ter a certeza
de que nada disso teria acontecido se o tema fosse outro. Por exemplo: o
orgulho, a ira, a inveja. Todos eles são assuntos que trazem o nome de um dos
sete pecados capitais. Por que será então que só a preguiça, dentre os sete,
nos faz sorrir?
Os pecados ou vícios
capitais têm este nome – “capitais” – precisamente por serem cabeças (capita,
em latim) de muitos outros vícios e pecados. São como que as raízes que o
egoísmo lança no mais profundo da alma, e que fazem irromper, como plantas
peçonhentas, múltiplas ramificações.
Não é preciso insistir
muito, por exemplo, acerca dos efeitos, dos ramos amargos da soberba:
discórdias, arrogância, ódios e desprezos, humilhações... Nada disso, certamente, faz sorrir ninguém.
Da mesma forma, ninguém
se regozija ao pensar nos frutos azedos da ira (brigas, agressões, divisões,
injúrias) ou nos da inveja (críticas ácidas, deslealdades, inquietações
constantes) ou ainda na ruína da saúde ou do lar, que com freqüência é o
resultado das desordens da gula (embriaguez), da avareza e da luxúria.
Mas quando pensamos nas
ramificações da preguiça, não conseguimos apagar de todo aquele sorriso
inicial. Parecem ter qualquer coisa de cômico, e ousaríamos dizer até de
simpático: correrias matutinas rumo ao emprego, por não se ter acordado na hora
certa; cenas de comedieta italiana entre a mulher e o marido, que se
entrincheira na poltrona e no jornal para não ter que ajudar; artes de “cola”
em estudantes pouco afeiçoados ao trabalho...
Certamente podemos
avistar alguns ramos mais retorcidos da preguiça, perante os quais o sorriso
murcha: vidas atoladas na mediocridade, por não terem sabido esforçar-se e
trabalhar a sério; constante instabilidade de empregos no profissional
irresponsável; amarguras causadas por filhos cuja educação os pais
descuraram... Tudo isto nada tem de engraçado.
Pois bem, é isto,
precisamente, o que nos pode ajudar a entender o que significa o vício capital
da preguiça, vício de fundo – como os outros seis pecados capitais – que,
brotando da raiz do egoísmo, corrói a grandeza moral do homem.
As confusões, neste
tema, procedem de que, de modo imediato, a palavra preguiça nos sugere pensar
naquilo que, benevolamente, costumamos chamar de preguicinhas. Parecem-nos
apenas minúcias, fragilidades próprias da condição humana, sempre desculpáveis.
Mas, entre as pequenas preguiças e a preguiça sem diminutivos, vai uma grande
distância.
O QUE E A PREGUIÇA?
Existe uma definição
muito simples de preguiça, com a qual é fácil concordar: “a resistência ao
esforço e ao sacrifício”. Com efeito, o preguiçoso não tem um ideal de
perfeição esforçada, mas de facilidade. Mais do que o bem, move-o a vantagem.
Podendo seguir uma linha cômoda, não se esforçará por subir a encosta íngreme
do aprimoramento, da perfeição.
O preguiçoso
contentar-se-á com “despachar’ as tarefas e responsabilidades, sem se importar
em deixá-las acabadas. E, à força de se poupar egoistamente ao esforço, chegará
a tornar-se um virtuose na arte lamentável de contornar os deveres, de “dar um
jeito” – como se diz popularmente – e de outras tantas manhas da moleza.
Será que percebemos o
vírus oculto, que anda emboscado por trás dessas atitudes e comportamentos? É,
nem mais nem menos, a fuga do ideal – da perfeição –, a deserção do amor. E
essa constatação é importante para penetrarmos no âmago da preguiça como pecado
capital.
Há duas formas
possíveis de situar-se perante a vida e as suas responsabilidades:
–– pode-se encará-la
como uma missão – grande, bela e árdua –, que Deus propõe a cada um de seus
filhos, e pela qual vale a pena gastar as melhores energias;
–– ou pode-se encará-la
com a mentalidade do aproveitador. Para este, o que importa é passar bem,
usufruir os prazeres da vida, fazer o imprescindível e não complicar-se.
Assemelha-se a um mata-borrão que, quanto mais absorve – quanto mais a sua alma
se embebe de egoísmo –, mais se estraga. É característica desses tais “o
comodismo, a falta de vibração, que impelem a procurar o mais fácil, o mais
agradável, o caminho aparentemente mais curto, mesmo à custa de concessões no
caminho da fidelidade a Deus”1.
Com muito acerto
escreveu um filósofo cristão dos nossos dias que “a preguiça significa, antes
de mais nada, que o homem renuncia à altura da sua dignidade: não quer ser
aquilo que Deus quer que seja”2. E, nesta dolorosa renúncia, se destrói.
Desistir dos ideais é
desistir de sermos “nós mesmos”. Porque cada um de nós só pode realizar-se de
verdade na medida em que luta por ajustar-se àquilo que Deus lhe propõe como
meta na vida. Ou porventura pensamos que Deus, Pai e Amor, Sabedoria infinita,
nos lançou no mundo às cegas, sem ter em sua mente um plano para nós?
Furtar-se a este plano
de Deus, que é a sua Vontade e o nosso Ideal, é a mais radical das frustrações.
Na vida, o que nos desencanta não são as pequenas ambições insatisfeitas – no
plano do sucesso e do dinheiro, por exemplo –, mas os ideais abandonados ou
atraiçoados. Deus ofereceu-nos uma oportunidade, e nós a recusamos. Quantas
vezes Eu quis – dizia Cristo com lágrimas, contemplando Jerusalém – e tu não
quiseste! (Mt 23, 37).
UMA PISTA PARA
DESMASCARAR A PREGUIÇA
Ouvi contar há tempo, a
um homem de Deus, a história verídica de um pastorzinho que todos os dias
acompanhava o pai, ajudando-o a conduzir o gado para o pasto. Queimava-o o sol
e cansavam-no as longas caminhadas, um dia após outro. Aconteceu que chegaram à
fazenda uns estudantes para passar as férias. Acordavam tarde, passeavam
longamente, prolongavam conversas à sombra das árvores.
Um dia, um desses
estudantes, no meio de um passeio vespertino, aproximou-se do garoto, que
voltava cansado do pastoreio.
– “Você – perguntou –,
que gostaria de ser quando crescer?”.
A resposta, após um
relance ao moço e outro à boiada, não se fez esperar:
– “Eu gostaria de ser
ou estudante ou boi”. Não andava pelas alturas, aquele menino. Queria uma vida
cômoda: o dolce far niente do estudante em férias ou a paz do boi ruminando no
pasto. Mas será que nós andamos por maiores elevações? Uma das formas mais
comuns da preguiça, sem diminutivo, é justamente a repugnância pelas alturas
espirituais e morais. É o que poderíamos chamar a ambição da mediocridade.
Quer-se é viver bem, mas sem exageros de esforço nem loucuras de idealismo. Ser
bom, ser um “cristão médio”, com a sua dose medida de religião, vá lá. Mas
levar o cristianismo a sério e em plena coerência com a fé, isso considera-se
fanatismo.
É muito interessante
verificar que a sabedoria dos antigos, já desde os primeiros séculos do cristianismo,
ao enfocar a preguiça, contemplava quase que exclusivamente o seguinte
conteúdo: a resistência a atingir a altura espiritual e moral própria de um
filho de Deus, de um cristão.
Na linguagem clássica
cristã (de Cassiano a São Tomás de Aquino, passando por São Gregório Magno), o
vício capital da preguiça era designado com o nome de acédia. A acédia é
fundamentalmente uma tristeza, uma tristeza ácida e fria – daí o nome –, que
invade a alma ao pensar nos bens espirituais – na virtude, na bondade, no amor
a Deus e ao próximo –, precisamente porque não são fáceis de alcançar nem de
conservar. Exigem esforço, renúncia, sacrifício. E o egoísmo se defende. A
repugnância que sente por tudo quanto é abnegação e doação generosa vai criando
depósitos azedos no coração, e acaba transferindo para Deus e para os próprios
bens árduos que Deus pede uma fria antipatia, que pode terminar em aversão: “um
tédio que acabrunha”, diz São Tomás3.
É natural que estes
mesmos autores insistam no fato de que a acédia se opõe frontalmente àquilo que
é a essência da perfeição cristã: o amor. A preguiça detesta o que o amor
abraça, entristece-se com o que alegra o amor.
É possível que já
tenhamos tido, alguma vez, a experiência desse tipo de tristeza, ao pensar em
Deus e nos ideais cristãos, e nos tenhamos perguntado: por que Cristo exige de
todos os seus seguidores que se neguem a si mesmos e tomem a cruz (cfr. Mt 16,
24)? Por que insiste na necessidade de perder a vida – de entregá-la – para
achá-la (cfr. Jo 12, 25)? Por que assinala como lei áurea do cristianismo um
amor ao próximo tão exigente, que deve ser um constante “servir e dar a vida’
pelos outros (cfr. Mc 10, 5)? Não seria mais agradável um programa suave, sem
cruzes nem renúncias, feito de bondades descomprometidas?
É bem possível que, sem
reparar, tenhamos fixado como ideal de vida a honestidade hipócrita do fariseu
– não mato, não roubo, pago o dízimo –, aliada à frase que se esgrime como uma
fórmula de auto-canonização: “Não faço mal a ninguém”.
Basta uma leitura
superficial dos Evangelhos para concluir que isso não basta. Sede perfeitos,
assim como vosso Pai celestial é perfeito (Mt 5, 48). O primeiro de todos os
mandamentos é este: amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a
tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é
este: amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mc 12, 29-31).
Quem quiser seguir a
Cristo tem que renunciar à vida fácil. Não se pode entrar no Reino de Deus sem
um empenho esforçado: O reino dos Céus – diz Cristo – é arrebatado à força e
são os violentos (os que lutam energicamente) que o conquistam (Mt 11, 12).
Iludem-se os homens
quando pensam que levar Deus a sério vai perturbar-lhes a vida, metendo-os num
calvário de compromissos, exigências e complicações. Quando, na realidade, o
que complica e estraga a vida, com a maior perturbação que existe – o vazio –,
é exatamente o contrário: o medo de levar Deus a sério, a apreensão que faz
fugir dos compromissos do ideal cristão.
Nunca é por ter-se dado
ou sacrificado que um homem se esvazia, mas por ter-se poupado. E dolorosa como
uma queimadura a constatação de que os anos vão passando e o vazio vai
aumentando. São duras certas horas de solidão, em que parece que o coração
reclama: – “Não sei o que está acontecendo comigo, falta-me alguma coisa e não
sei dizer o que é”.
A única coisa que
acontece é que não vivemos a “nossa” vida – o que ela deveria ser –, mas um
substitutivo rebaixado ou uma falsificação. Somente seremos felizes quando
realizarmos a Vontade de Deus a nosso respeito, porque só então é que nos
encontraremos a nós mesmos.
Aqui temos, pois, uma
primeira pista para descobrir a preguiça de fundo: a renúncia à altura. Assim
resume Pieper, com traços vigorosos, essa atitude: “A preguiça, como pecado
capital, é a renúncia mal-humorada e triste, estupidamente egoísta, do homem à
“nobreza que obriga” de ser filhos de Deus”4.
UMA SEGUNDA PISTA
Se a palavra
“bitolado”, da nossa linguagem familiar, tem algum sentido, este sentido
adquire feições, olhos e mãos nos personagens – habitantes de minúsculos
asteróides – que o Pequeno Príncipe5 visita na sua viagem sideral.
O acendedor-de-lampiões
vive num mundo reduzido a um lampião esguio, que deve acender e apagar sem
descanso, a cada volta do seu asteróide. O bêbado povoa solitariamente um
pequenino mundo concentrado na obsessão por garrafas cheias e garrafas vazias.
Para o rei, viver é poder dizer de boca cheia (quando pode): “Ordeno-te”.
Acontece que o planeta
Terra está povoado por inúmeros “homens de asteróide”. Pessoas muito
atarefadas, mas inteiramente polarizadas em uma ou duas ocupações, a que
reduzem, na prática, todo o seu “mundo”.
Começávamos estas
páginas referindo-nos aos que sorriem, ao ouvirem falar de preguiça. Mas esses
mesmos – talvez sejamos nós – sentir-se-ão muito aborrecidos se a referência à
preguiça lhes for espetada com endereço pessoal: – “Você é um preguiçoso!”. Uma
onda quente de revolta subirá à cabeça e à garganta: – “Eu, preguiçoso? Mas se
não tenho nem um minuto livre, se trabalho sem folga nem férias... Precisaria,
em todo o caso, é de um pouco mais de descanso...”.
Uma pessoa pode ser
ocupadíssima... e ter uma profunda preguiça, a preguiça do homem “bitolado”,
isto é, daquele que reduziu o ideal, a vida e o dever a apenas um ou dois asteróides.
Estes podem ser, para um homem, o trabalho profissional e o cuidado das
condições materiais da família; ou, se se trata de uma mãe de família, a
atenção do lar e dos filhos, e um emprego de meio-período que permita reforçar
o orçamento familiar; ou ainda, no caso do modesto estudante, a freqüência às
aulas, acrescida do serviço num banco.
Todas essas pessoas,
trabalhadoras e responsáveis, podem estar padecendo, sem saberem disso, a
doença da preguiça setorial. Há setores da vida em que realmente se empenham,
produzindo muito; mas há outros, muitas vezes mais importantes, que deixam
abandonados como o campo do preguiçoso de que fala a Bíblia: Passei perto da
terra do preguiçoso, junto à vinha de um homem insensato: eis que por toda a
parte cresciam abrolhos, urtigas cobriam o solo e o muro de pedra estava por
terra (Prov 24, 30).
Não há dúvida de que o
quadro completo da missão de um homem ou de uma mulher não se esgota na
profissão e na família, por mais que estes sejam setores importantíssimos, primordiais,
da sua vida. Deve haver algo mais. Por acaso pode considerar-se realizado
alguém que deixou completamente estéril, ou quase, o campo das suas relações
com Deus e da sua formação cristã? Pode pensar que cumpre a sua missão aquele
que vive de costas para as necessidades espirituais e materiais do próximo?
Seria muito cômodo
anestesiar a consciência, pensando: “Não perco tempo, trabalho muito, vivo para
o lar...”, e fazer desses deveres mais ou menos bem cumpridos um sedativo para
a alma, esquecida dos outros deveres que não cumpre: deveres para com Deus,
deveres sociais, responsabilidades em face dos problemas da comunidade humana.
Sempre paira sobre os cristãos mornos o que alguém denominou “o perigo das
coisas boas”6: deixar-nos embalar pela satisfação de umas tantas coisas boas
que já fazemos, para acobertar o vazio de outras tantas coisas boas que não
fazemos, e deveríamos fazer.
Não é infreqüente,
neste ponto, ouvir comentários como o do homem casado que se gaba da luta
extenuante que se impõe para sustentar a família, mas não se apercebe de que,
desculpando-se com a fadiga do trabalho, nem sequer toma conhecimento do dever
de educar os filhos, de conversar com eles, de formá-los. Não raro, é o mesmo
tipo de pai que estufa o peito ao contar com quanto sacrifício conseguiu dar
aos filhos estudos em colégios de nível; e, ao mesmo tempo, nada fez para lhes
proporcionar uma boa formação religiosa e moral, muito mais importante que um
brilhante aprendizado de álgebra, biologia ou história.
Essas deficiências são
reais e freqüentes. É possível que, ao reconhecê-las, sintamos desejos de
retrucar: “Tudo isso é certo, mas onde encontrar tempo para tantas coisas? O
meu tempo não dá para mais...”.
Como um comentário
desse tipo parece objetivo, será oportuno abordar um outro aspecto da preguiça,
que pode esclarecer essas aparentes contradições.
AS MÁSCARAS DA PREGUIÇA
Estamos, nestas
páginas, deixando de lado as modalidades mais grosseiras da preguiça – sombra e
água fresca –, para concentrar a atenção na preguiça sutil, de fundo, que –
como já sabemos – pode estar unida a uma grande boa vontade, a muitas ocupações
e até à agitação.
Pois bem, uma das
características dessa sutil preguiça é a sua rara habilidade – verdadeiro
“engenho e arte” – para se desculpar ou se justificar.
A preguiça mostra-se
uma artista consumada no uso de diversas máscaras, com as quais se disfarça,
apresentando por fora o rosto do dever cumprido, da laboriosidade ou da
responsabilidade.
Vale a pena, por isso,
passar a examinar algumas das máscaras mais comuns de que a preguiça costuma
valer-se.
A máscara da atividade.
Antes nos referíamos ao espanto com que pessoas de grande atividade questionam
a acusação de preguiça: “Eu, preguiçoso?”. E esquecem-se de que o ativismo, o
fato de ter o dia atulhado de ocupações e tarefas e agitado pela “correria”,
pode ser um grande álibi da preguiça.
“Não tenho um minuto
livre”, repete-se constantemente. A vida parece um quebra-cabeças, cujas peças
jamais se poderão encaixar, porque o tempo é limitado. “Eu bem que quereria
fazer tudo, arranjar tempo para toda a gama dos deveres, mas infelizmente não
posso”.
Não posso. Estas
palavras não são novas. Lembram-nos alguma coisa muito antiga, uma parábola
saída dos lábios de Cristo.
Um homem deu uma grande
ceia e convidou a muitos. A parábola começa com uma clara luz: Deus é esse
“homem”, que prepara um grande convite de Amor – uma vida de Amor na terra e
depois na eternidade –, e chama à porta dos corações dos homens: Vinde, tudo já
está preparado. Está pronto o plano que preparei para ti, a missão que te
proponho realizar no mundo.
Mas o convite do Amor
não obtém resposta: Todos à uma começaram a escusar-se. Todos. E deram as suas
razões, razões objetivas e cheias de sensatez: Comprei um campo e preciso ir vê
lo; rogo-te que me dês por escusado. Disse outro: Comprei cinco juntas de bois
e vou experimentá-las; rogo-te me dês por escusado. Disse também um outro:
Casei-me e por isso não posso ir (Lc 14, 16-20).
E o retrato falado dos
nossos não-posso: não podemos assumir determinadas responsabilidades e deveres
cristãos... porque andamos muito ocupados.
O Senhor não aceita as
desculpas. Para Ele não passam de enganos, máscaras da preguiça, que foge de
maiores compromissos de amor porque não quer complicações. O pai de família –
acrescenta o Evangelho – ficou irado (Lc 14, 21). Uma expressão forte, que
convida à reflexão. Deus não aceita as nossas desculpas, e isto porque o
não-posso, a maior parte das vezes, significa simplesmente um não-quero.
A preguiça começa por
não querer pensar. Há deveres sobre os quais – por medo do sacrifício – “nem se
cogita”. Arremedando a frase “viver é muito perigoso” do protagonista de Grande
Sertão: Veredas 7, poderíamos dizer que, para alguns, “pensar é muito
perigoso”. Resistem a enfrentar seriamente alguns deveres, porque podem vir a
impor-se-lhes como uma obrigação de consciência. Por isso, preferem tapar a
vista com um pano – a afirmação prévia de que “não dá” –, antes de terem sequer
começado a refletir.
Deus, pelo contrário,
diz que dá. Tudo aquilo que é expressão da vontade divina, do ideal do cristão,
é possível. Depende da nossa boa vontade, ou melhor, da nossa vontade boa,
disposta a abraçar e a amar, sem regatear sacrifícios, a vontade de Deus.
Todos temos a
experiência de que o nosso querer torna-se poderoso quando há um verdadeiro
interesse, ou quando há um verdadeiro amor.
É surpreendente
verificar o que acontece, por exemplo, core certas pessoas agoniadas pela
“absoluta falta de tempo”. Um belo dia, o amigo, aflito pelo excesso de
trabalho, comunica-nos com expressão radiante: – “Sabe que estou fazendo um
curso de alemão? É ótimo. São só quatro dias por semana, das sete às dez da
noite. E, depois, é quase certo que vou arranjar um emprego numa
multinacional... O ouvinte sente vontade de dizer: “Mas, se há um mês você me
disse que não tinha nem meia hora por semana para ensinar o catecismo a seus
filhos, e que lhe seria quase impossível conseguir cinco minutos diários para
ler o Evangelho...”.
Produziu-se um milagre,
por obra e graça do interesse. Quem não “podia” fazer o que, na realidade, não
interessava ao seu coração egoísta, agora pode dedicar sem problemas 12 horas
semanais à gramática alemã.
Será preciso lembrar os
“milagres” que, neste mesmo âmbito do tempo, é capaz de realizar o amor? Uma
pessoa apaixonada cria tempo, inventa-o, multiplica-o... e acaba “encontrando”
tempo para estar com quem ama.
Seria muito bom que
cada um de nós revisasse, sinceramente, o que há por trás dos nossos não-posso.
Não demoraríamos a descobrir, com evidência, que se trata de uma falta de
interesse ou de uma falta de amor. Não vai ficando, assim, mais clara a
estreita relação da preguiça com o "amor do bem" de que tanto falam
os. clássicos cristãos?
A máscara da ordem.
Para começar, não nos esqueçamos de que a ordem é uma virtude, e de que essa
virtude é arma específica de combate contra a preguiça. Sobre a virtude da
ordem, falaremos mais na segunda parte. Agora, detenhamo-nos na ordem viciada,
que se transforma em máscara da preguiça.
Para isso, pode
ajudar-nos reparar em que há dois possíveis tipos de ordem, a que poderíamos
chamar, respectivamente, ordem defensiva e ordem oblativa.
Ordem defensiva. Há
pessoas que fazem da ordem uma armadura de defesa pessoal. São muito
organizadas, até nos mínimos detalhes. Aproveitam bem o tempo. Mas o seu
esquema é intocável. Fabricaram para si uma espécie de trilho de aço, por onde
deslizam mecanicamente, e não toleram que nada interfira com os planos que
traçaram, tão egoístas e tão cômodos.
Pobre da irmãzinha
caçula que se atreva a pedir esclarecimentos sobre um teorema ao irmão mais
velho, modelo de seriedade escolar, durante o sacrossanto “horário de estudo”.
Que se cuide também a esposa ousada, que timidamente peça ao marido que se
desvie um instante e pare na quitanda, afastando-o do trilho da sua intocável
rotina. Ou o filho, que sente necessidade de comentar com o pai um
acontecimento importante de que acaba de ser protagonista, enquanto o pai está
realizando a sagrada tarefa de colar-se ao televisor, porque, após um dia
estafante, “tem o direito de descansar um pouquinho” (um pouquinho, que podem
ser horas e horas inúteis diante do aparelho).
A ordem não pode ser
uma barricada defensiva, para ter a vida mais tranqüila. A ordem que é virtude,
é um meio para assegurar uma entrega mais perfeita ao cumprimento dos deveres
de cada dia, deveres que, sem ordem, sem previdência, sem uma seqüência
prudente e organizada, ficariam esquecidos ou prejudicados.
Essa é a ordem oblativa
(de oblação: oferenda, doação). Uma ordem que é reflexo da disposição generosa
do coração: quer fazer e dar-se mais e melhor. Por isso, quando fora da ordem
prevista se apresenta a oportunidade de fazer coisas de mais valor – e que há
de mais valioso do que dar-se, com amor, ao próximo? –, a alma generosa não
hesita: sai do seu trilho, e atende a esse apelo do amor com alegria. Segue a
ordem de Deus – a que Deus vai sugerindo –, consciente de que é melhor do que a
sua, sem ver interferências, sobrecargas ou perturbações nesses chamados
divinos que lhe modificam os planos.
A máscara do cansaço.
Além da máscara da falsa ordem, a preguiça utiliza-se habilmente da máscara do
cansaço, para proclamar com a consciência tranqüila: “– Não posso mais, não
agüento mais.” A fim de percebermos melhor os contornos dessa máscara,
penetremos por uns instantes – a título de exemplo – na intimidade de um
apartamento imaginário, após o expediente de trabalho.
O chefe de família
chegou, curvado sob o fardo do dia, com uma palidez que inspira compaixão e uma
carranca que sugere distâncias. Desaba na poltrona, pega no jornal e sussurra
com um fio de voz: “Estou exausto., podia trazer-me os óculos?”. Nessa mesma
hora toca o telefone, e a custo o protagonista se arrasta até o aparelho: –
“Alô! . . . Como é? Mas vocês arranjaram mesmo o campo do Clube Tal? E eles vão
ligar a iluminação! ... Não, não! É para já, vou voando!”.
Num instante, a família
descobre, espantada, que o chefe do lar tem as faculdades do Superman: um novo
homem dinâmico surge na sala, apanha chuteiras e outros apetrechos, e se atira
ao elevador, enquanto comenta brincalhão: – “Neste time de amigos, há um senhor
de 65 anos que corre o tempo todo pelo campo. Idade não é documento...”.
A câmera indiscreta
poderia ter focalizado também a dona de casa, e a cena filmada seria muito
parecida, apenas com a diferença de que o incentivo, em vez de ser um bom jogo
de futebol, poderia ser “uma liquidação de roupas literalmente fabulosa e a
preços incríveis”. Bastaria esta frase mágica para fazê-la deixar de lado
muitos cansaços.
O cansaço é uma coisa
muito especializada. Sempre que se pensa nele, é muito conveniente perguntar:
“Cansaço, para que coisas?”. Porque todos somos especialistas em determinados
cansaços – cansaço “para” rezar, estudar, atender os desejos dos outros,
responder cartas, etc. –, que não passam de máscaras da preguiça.
E é que, ao lado da
fadiga real, produzida pela sobrecarga de verdadeiros esforços, há uma outra
fadiga, um outro cansaço, produzido pelo afrouxamento da fibra moral. Este
último – a fadiga da alma – é o cansaço que invade os que cumprem os deveres de
má vontade, sem amor; é o cansaço dos que vivem reclamando por tudo e por nada,
sonhando sempre com situações ideais que jamais irão dar-se; dos que não querem
sacrificar-se; dos preguiçosos, em suma, daqueles a quem o bem, o amor e o
dever enfastiam, porque exigem sacrifício.
A máscara dos bons
desejos. Na Bíblia, no livro dos Provérbios, encontra-se uma frase breve, que
tem muita substância: Os desejos matam o preguiçoso (Prov 21, 25).
Existem preguiças que
se manifestam por uma recusa sumária: não quero, não posso. Mas há outras que
se enfeitam com as vestes dos bons desejos, desejos ineficazes, que nunca
chegam a traduzir-se em realidades.
Não é que a pessoa “não
queira”. Mas também não “quer”. Somente deseja. Quer e não quer o preguiçoso,
diz ainda o livro dos Provérbios (Prov 13, 4).
O desejo-máscara é mais
um truque da preguiça para enganar a consciência. Aos imperativos da
consciência – deves fazer, deves dar mais, deves enfrentar isto ou aquilo –, a
preguiça responde, com aparente sinceridade: “Sim, é mesmo, eu desejaria tanto
fazer isso tudo...”.
Se prestarmos atenção,
perceberemos que o tempo verbal que a preguiça prefere é o condicional –
quereria, desejaria –, nunca o presente – quero! já há muitos séculos, um dos
mais antigos teólogos da Idade Média, Ràbano Mauro, formulava a seguinte
definição da preguiça: “torpor da mente, que negligencia começar a prática do
bem”8.
Desejos condicionais.
As “condições” que impedem o tempo presente, e portanto a ação, costumam ser de
dois tipos.
Em primeiro lugar, o
bom desejo esbarra com a chamada “falta de jeito”. Nós, que somos habitualmente
tão vaidosos, e prezamos as nossas qualidades acima do seu valor, subitamente
nos sentimos invadidos por uma estranha humildade: “Gostaria tanto de fazer
meditação bem feita, de realizar apostolado, de difundir a doutrina cristã, mas
infelizmente não tenho jeito, não nasci para isso”.
Alguém um tanto rude
sentir-se-ia tentado a comentar: não é falta de jeito, é falta de vergonha. Mas
como isso é menos delicado, será melhor dizê-lo de outra forma: é falta de
vontade, de sinceridade.
Todos temos “jeito” –
ou podemos ganhar “jeito” – para as virtudes, para o bem, para as coisas que
pessoalmente Deus nos pede. Nesta matéria, pode-se dizer também que a função
cria o órgão. Basta começar, basta iniciar sinceramente o esforço, e a
capacidade aparece. Será maior ou menor, mas sempre será útil e eficaz.
Principalmente porque Deus não deixa nunca de auxiliar a quem se esforça com
boa vontade. Também os antigos mestres da teologia cunharam um adágio a esse
respeito: “Deus não nega a graça a quem faz o que dele depende”.
Em segundo lugar, tão
perigosa como a “falta de jeito” é a desculpa de quem sempre espera pela
situação, a época ou as circunstâncias ideais para levar à prática os seus bons
desejos.
Esse afirma com
convicta persuasão que quer, que quer mesmo. Agora, porém, não é o momento
propício para levar à prática o desejo. Quando mudarem as circunstâncias e
houver condições favoráveis, então sim.
“Agora – diz o
preguiçoso – estou com tantos problemas na cabeça, que se pegasse num livro de
formação cristã, com o propósito de dedicar todas as noites quinze minutos à
sua leitura, não aproveitaria nada. Quando esta azáfama acalmar, então...”.
“Agora – afirma outro
–, ainda não me sinto em condições de fazer uma boa confissão. Deixe que eu
amadureça, fortaleça as minhas resoluções, que ganhe mais certeza de não
reincidir, e então...”. Então? Esquece-se de que não há nada tão forte e eficaz
quanto a graça do Sacramento da Penitência, para robustecer a vontade com o
vigor da graça divina, e permitir a superação dos problemas.
“Agora? – perguntará um
terceiro –. Será que não percebe que estou sob a pressão do cursinho e os
apertos do vestibular? Vamos deixar para o ano que vem, porque agora não
conseguiria levar a sério a tarefa que me propõe...”.
Agora! Acontece, porém,
que o tempo real se chama sempre agora. Quem adia, recusa. O tempo ideal, o
momento realmente bom, não chega jamais para o preguiçoso.
São transparentes,
neste sentido, os seguintes pensamentos do livro Caminho: “Amanhã! Algumas
vezes, é prudência; muitas vezes, é o advérbio dos vencidos”. “Porta-te bem
‘agora’, sem te lembrares de ‘ontem’, que já passou, e sem te preocupares com o
‘amanhã’, que não sabes se chegará para ti”. “...’Agora’ não é demasiado
cedo... nem demasiado tarde”9.
Uma grande parte da
nossa vida se evapora em desejos irrealizados, porque a preguiça faz confundir
o tempo propício com o tempo cômodo. Tempo propício, tempo oportuno, é o que
Deus vai marcando. Quando Ele nos inspira um bom desejo, quando acende uma nova
luz na alma, esse é o momento propício para começar – quanto antes –, porque é
a hora da graça divina. Protelar o começo, à espera do momento mais cômodo, é
matar oportunidades e garantir esterilidades.
Só quando nos
convencermos de que o “bom momento” é quase sempre o “mau momento” – aquele que
a nossa preguiça julga mau – é que cumpriremos a Vontade de Deus e produziremos
frutos. Com muita sensatez, São Gregório Magno sentenciava: “Quando não
queremos fazer oportunamente as coisas que podemos, pouco depois, quando
queremos, já não podemos mais”10.
Um relance em
perspectiva para a parcela de vida que já gastamos, talvez possa ajudar-nos a
compreender a importância da prontidão na realização dos bons desejos. Um
balanço do passado pode fazer-nos entender o perigo de que a vida vá ficando
como um grande quarto de despejo, em cujas prateleiras se amontoam, como
frascos quebrados, inúmeros bons desejos que a preguiça inutilizou.
E com estas
considerações, pomos um ponto final ao exame das máscaras da preguiça.
Resta-nos agora mudar o ângulo das nossas reflexões, e perguntarmo-nos pelos
remédios da preguiça. Naturalmente, o remédio de todo o vício é sempre uma
virtude. Qual é, então, a virtude específica que se opõe à preguiça?
DILIGENCIA
O ANTIDOTO DA PREGUIÇA
Se abrirmos o pequeno
catecismo da nossa Primeira Comunhão, é quase certo que encontraremos uma
pergunta acerca dos pecados capitais, seguida da lista dos seus sete nomes. E,
a seguir, uma outra pergunta esclarecerá quais são as virtudes opostas aos
vícios capitais. Nessa segunda pergunta, estarão impressas certamente estas
três palavras: contra preguiça, diligência.
A diligência é o
antídoto específico da preguiça. Onde a preguiça cava um abismo, a diligência
ergue uma montanha. E o que é a diligência?
Georges Chevrot, no seu
livro sobre “As pequenas virtudes do lar”, reproduz, com muito bom humor, o
seguinte diálogo. Um garoto, ouvindo falar em diligência, mostra logo com um
brilho nos olhos a sua sabedoria histórico-cinematográfica: – “A diligência –
diz – era uma carruagem puxada por cavalos, que se usava no faroeste antes de
haver automóveis...
– “Muito bem, meu
rapaz, você sabe muito – retruca o pai –; também deve saber que lhes foi dado
esse nome porque iam muito depressa. Para a época, evidentemente”11.
Os pais quase sempre
têm razão. Mas, neste caso, o pai da história, ao aprofundar na explicação, deu
uma pequena escorregadela.
Pode ser que, àqueles
trambolhos rolantes, acostumados a fugir dos índios nos desertos do Arizona,
tivessem dado o nome de diligência em homenagem à sua rapidez. Mas o que é
certo é que a palavra diligência, na sua origem, nada tem a ver compressa ou
velocidade.
Na realidade,
diligência é uma palavra que vem diretamente do verbo latino diligere, que
significa amar. De modo que, na língua-mãe do Lácio, diligens (diligente)
significava aquele que ama.
Isto é da maior
importância para o tema que nos ocupa. Dizíamos que a acédia – a preguiça – é o
contrário do amor, pelo fato de sentir aversão e tristeza por aquilo mesmo que
atrai e alegra o amor: o bem, mesmo que seja árduo e difícil.
Em confronto com a
preguiça, a virtude da diligência consiste no carinho, alegria e prontidão
(coisa diferente da pressa) com que pensamos no bem e nos prontificamos a
realizá-lo da melhor maneira possível.
Poucas descrições da
diligência existem, mais ricas de conteúdo, do que a contida numa das homilias
de Mons. Escrivã, que transcrevemos a seguir:
“Quem é laborioso
aproveita o tempo (...). Faz o que deve e está no que faz, não por rotina nem
para ocupar as horas, mas como fruto de uma reflexão atenta e ponderada. Por
isso é diligente. O uso normal dessa palavra – diligente – já nos evoca a sua
origem latina. Diligente vem do verbo diligo, que significa amar, apreciar,
escolher alguma coisa depois de uma atenção esmerada e cuidadosa. Não é
diligente quem se precipita, mas quem trabalha com amor, primorosamente”12.
Se quiséssemos retratar
o anti-preguiçoso típico, é bem provável que imaginássemos a figura de um
personagem acelerado e febril, um incansável trabalhador impelido por uma sorte
de movimento contínuo. E, no entanto, não é assim. É mais fácil encontrar agitados
entre os preguiçosos que entre os diligentes. Paradoxalmente, a diligência está
– num certo sentido – mais perto do “devagar”, e a preguiça mais perto do
“depressa”. Mas esse “certo sentido” precisa de uma explicação.
Reparemos que as
palavras de Mons. Escrivã, acima citadas, esclarecem que uma pessoa é diligente
quando aproveita o tempo “como fruto de uma reflexão atenta e ponderada”;
recordam, ao mesmo tempo, que só há amor – diligência – quando se sabe
“apreciar, escolher alguma coisa depois de uma atenção esmerada e
cuidadosa", e concluem alertando: "Não é diligente quem se
precipita”.
Muitas pessoas oferecem
a imagem de um ativismo desenfreado. Não param um instante. Vão de cá para lá,
assoberbados de tarefas, numa incessante corrida atrás do tempo, que sempre se
lhes torna escasso. As ocupações os envolvem como que num redemoinho. lá não
são donos de si mesmos. A sua atividade – ativismo, deveria chamar-se –
domina-os como um cavalo sem freio, do qual perderam completamente as rédeas.
Lembram a história
daquele oficial de artilharia, inexperiente nas lidas da equitação, que certa
vez quis fazer uma experiência: pediu um cavalo, acomodou-se como pôde na sela
e olhou na direção noroeste, para a localidade aonde desejava dirigir-se. Meia
hora depois, no mais perfeito rumo sudeste, um grupo de oficiais observa o
trotezinho desajeitado do cavalo e o olhar espavorido do colega que se lhe
agarra ao pescoço, e indagam com ar brincalhão: – “Para onde é que você está
indo?” – “Eu – responde o atribulado cavaleiro – ia para tal lugar, mas não sei
para onde é que este cavalo me está levando...”.
Muitos cavaleiros da
agitação poderiam dizer a mesma coisa. Donas de casa que parecem uma
Maria-fumaça sem breque, descendo descontroladas a ladeira do dia, sacolejadas
por tarefas, saídas, telefonemas, problemas de escola, pagamentos, etc.,
literalmente arrastadas para o abismo de um permanente nervosismo e uma
canseira atordoada. Ou profissionais tensos, em constante disparada, sem tempo
para pensar, cuja alma de robô faz deles, mais do que trabalhadores,
devoradores de tempo, autênticos “cronófagos”.
Homens e mulheres desse
estilo não são diligentes. São apenas agitados. Não percebem que, por trás do
seu vaivém descontrolado e fatigante, estão sendo atacados por uma forma
perniciosa de preguiça: a preguiça espiritual, a preguiça mental.
“O nosso século –
escreve Jacques Leclercq – orgulha-se de ser o da vida intensa, e essa vida
intensa não é senão uma vida agitada, porque o sinal do nosso século é a
corrida, e as mais belas descobertas de que se orgulha não são as descobertas
da sabedoria, mas da velocidade. E a nossa vida só é propriamente humana se
nela há calma, vagar, sem que isto signifique que deva ser ociosa (...).
Acumular corridas e mais corridas não é acumular montanhas, mas ventos”13.
A DILIGENCIA EXIGE
CALMA
A mão que segura e
governa as rédeas da atividade é a reflexão. Só quem pensa serenamente nos seus
deveres, na maneira de conjugá-los, nas prioridades que entre eles deve
estabelecer, nos passos necessários para executá-los, é que possui o governo da
ação e do tempo. Esse saberá aproveitar diligentemente cada um dos seus dias, e
não será uma marionete puxada aos solavancos pelas cordas do nervosismo e da
imprevidência.
Lima atividade madura e
eficaz exige – como a planta necessita da terra em que se enraíza – o solo
fecundo da serenidade e da meditação. É preciso que aprendamos a parar e a
perguntar-nos: Por que estou fazendo as coisas? Como é que as estou fazendo?
Atiro-me cegamente numa correnteza de ocupações desordenadas? Estou fazendo
realmente o que devo e do melhor modo?
Quando alguém se
questiona assim, o impulso instintivo da preguiça será voltar à carga e
repetir: “Não tenho tempo, não posso parar, não consigo um mínimo de
tranqüilidade, o tumulto das ocupações não me ‘deixa’ meditar...”.
Na verdade, quem não
nos deixa meditar é a preguiça. É mais fácil escorregar pelo tobogã da rotina,
mesmo que seja uma rotina febril, do que ter a coragem de se enfrentar consigo
próprio, agarrar com firmeza o leme da vida e controlar energicamente o rumo da
navegação.
É por isso que a
diligência pressupõe uma “atenção esmerada e cuidadosa” para “apreciar” o valor
dos deveres a cumprir, e para os “escolher” conscientemente, “como fruto de uma
reflexão atenta e ponderada”.
O homem moderno é pobre
em interioridade. A ação não lhe nasce de dentro. Medita pouco e quer abranger
muito. Então é quase inevitável que num dado momento, talvez quando já chegou
longe demais, se lhe tornem claras, como um soco na consciência, as palavras de
Santo Agostinho: “Corres bem, mas fora do caminho”.
Contaram-me certa vez a
história de um homem de idade avançada, que dedicara a vida a uma brilhante
atividade empresarial. Chegou a aposentadoria, e um dia – para matar o tempo –
pegou no catecismo elementar de um de seus netinhos. Abriu a primeira página e
começou a ler: “Quem é Deus?”... E depois: “Para que foi criado o homem? O
homem foi criado para conhecer, amar e servir a Deus neste mundo...”. Duas
grossas lágrimas rolaram-lhe pela face: “– A minha vida foi vazia. Fiz muitas
coisas, mas esqueci-me da única que valia a pena”.
Talvez para que essa
lição não fosse tardiamente aprendida é que Jesus dirigiu a Marta, em Betânia,
aquela afetuosa censura: Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com
muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a melhor
parte, que não lhe será tirada (Lc 10, 39 ss).
E, qual era a melhor
parte, que Jesus contra punha ao ativismo inquieto de Marta e aos seus
queixumes? Era a atitude de sua irmã Maria, tal como a descreve essa passagem
do Evangelho de São Lucas: Maria, sentada aos pés do Senhor, ouvia a sua
palavra.
É evidente que Jesus
não censura o trabalho de Marta – Ele que amou tanto o trabalho no lar de
Nazaré –, nem sugere substituí-lo por uma pura passividade contemplativa. O que
faz é marcar claramente a diferença que existe entre “muitas coisas” e “uma só
coisa necessária”.
A todos, Deus nos pede
que façamos muitas coisas. Mas a única verdadeiramente necessária é que nos coloquemos
sinceramente junto d’Ele – muitas vezes – e escutemos o que tem a dizer-nos.
Assim, as “muitas coisas” unificam-se em “uma só coisa”: trabalhar cumprindo a
Vontade de Deus.
Todos deveríamos ter,
fossem quais fossem as nossas ocupações, uns minutos diários de calma e
recolhimento para parar, pensar, orar e procurar enxergar o melhor modo – o que
esteja mais de acordo com Deus – de organizarmos e realizarmos as nossas
tarefas.
MEDITAR PARA AGIR
“Faz o que deves”, para
um cristão, não é o simples imperativo do dever, da obrigação. É a Vontade do
seu Senhor. O que é que Deus quer que eu faça em primeiro lugar? Quais são as
tarefas prioritárias no dia de hoje, aos olhos de Deus? Isto é o que interesa,
o verdadeiramente “necessário”.
Pensando friamente no
dever, poderíamos chegar todos os dias à noite e acalmar a consciência,
dizendo-nos: “Não fiz outra coisa senão trabalhar”, seja na fábrica ou no
escritório, no lar, na escola ou onde quer que se cumpra a obrigação cotidiana.
Em face de Deus, porém,
as coisas são diferentes. O Senhor nunca vai sugerir-nos que abandonemos ou
descuidemos as nossas obrigações. Mas freqüentemente, se soubermos escutá-lo,
dirá: hoje, o que é prioritário para ti é dar o passo decisivo para te
reconciliares com o teu marido, e acabar de vez com esse mutismo causado pelo
teu orgulho ferido; hoje, não deixes de procurar, lá no escritório, um momento
propício para conversar com esse colega que anda cada vez mais desorientado e
precisa de uma palavra amiga que o encaminhe; hoje, aproveita o intervalo do
almoço, e vai consultar com um sacerdote esse problema de consciência que te
atormenta, e cuja resolução já adiaste demais; hoje, começa a pôr em prática o
propósito de te levantares antes, de rezar a oração da manhã com pausa e ler umas
palavras do Evangelho, que sejam luz para o coração ao longo do dia...
Mas essa voz, essas
“palavras” do Senhor, só podem ser ouvidas – é preciso insistir neste ponto –
se soubermos recolher-nos em silêncio na presença de Deus, pensar sinceramente
na nossa vida e fazer oração.
Todos os cristãos
deveríamos estabelecer e manter – e defender como algo de sagrado – pelo menos
dez ou quinze minutos diários dedicados à meditação e ao exame da vida na
presença de Deus: de manhã, antes de iniciar as atividades; ou pouco antes de
recolher-nos para descansar; ou aproveitando a possibilidade de visitar uma
igreja numa hora
tranqüila, quando o
silêncio do templo convida ao diálogo íntimo com Deus... Porque é nesses
momentos que a alma, com a graça divina, se torna transparente, se liberta da
terrível força centrífuga do ativismo, e consegue voltar para o seu centro,
esse “centro da alma” de que falam os místicos, onde se encontra com Deus. Para
quem quer escutá-lo, aí Deus sempre fala.
E a voz de Deus – como
antes lembrávamos – é a que nos esclarece as prioridades e ajuda a
hierarquizar, pela ordem de importância, os deveres a cumprir. Assim, estamos
em condições de “escolher” com “atenção esmerada e cuidadosa”. Passamos a ser
diligentes.
É importante, neste
ponto, perceber que o fato de um dever ser prioritário não significa, via de
regra, que se lhe tenha que dedicar maior quantidade de tempo. Há duas maneiras
de dar prioridade a alguma obrigação, sem necessidade de prejudicar o tempo
exigido pelas ocupações habituais.
Em primeiro lugar,
vive-se uma tarefa como prioritária quando se dá importância primária à
qualidade com que se realiza. Assim, a um homem que deve trabalhar por longas
horas para sustentar a família, Deus muitas vezes lhe sugerirá: no dia de hoje,
é prioritário dar ouvidos às preocupações da tua esposa, dedicar uma palavra de
estímulo àquele filho. Isto não significa que Ele nos peça um tempo de que não
dispomos. Pede-nos, sim, que, dentro do pouco tempo disponível, demos maior
qualidade – qualidade de carinho, de intensidade de interesse, de afabilidade –
ao relacionamento com os da nossa casa. E isto é sempre possível.
Há ainda uma segunda
maneira de dar prioridade a um dever, cuja importância percebemos meditando na
presença de Deus: a prioridade cronológica. Não a que consiste – repitamos de
novo – em lhe dedicar longo tempo. Mas a que consiste em fazê-lo quanto antes.
Pensemos, a esse
respeito, na facilidade com que empurramos para depois deveres que certamente
julgamos primordiais. Temos consciência de que alguma coisa é importante e não
pode ser largada; mas iludimo-nos, dizendo: “Mais tarde”; ou então: “Logo que
me sobrar um pouco de tempo”. Infelizmente, esse tipo de reações é freqüente
quando se trata de deveres para com Deus: missa dominical, oração, etc., ou de
deveres relacionados com o serviço do próximo.
Seria lamentável que
reservássemos para esses deveres, que consideramos importantes – e que são
ressonâncias de apelos divinos –, somente as sobras do tempo. No entanto, é
isto o que fazemos com freqüência: deixar o refugo do nosso tempo para as
exigências do amor de Deus e do amor ao próximo. E aí não há diligência, porque
não há amor. A diligência acha sempre o modo de preservar as precedências. A
diligência ama o antes e detesta o depois.
A DILIGENCIA EXIGE
ORDEM
Estabelecer prioridades
é uma das formas mais nobres da virtude da ordem: é a ordem da mente e do
coração. Nos parágrafos anteriores, examinamos a necessidade de hierarquizar
conscienciosamente o conjunto dos nossos deveres, abrindo espaços para todos e
garantindo-lhes as precedências.
Mas, para além dessa
ordenada hierarquia de preferências, o homem diligente caracteriza-se pela
prática da ordem no seu sentido mais simples e corriqueiro: a organização das
atividades e do tempo dentro dos horários de cada dia, a adequada planificação.
Falar nessas palavras –
organização, planificação – evoca de imediato, nos tempos que correm, a frieza
empresarial da produtividade e da eficiência. Parecem soluções muito boas para
a indústria e o comércio, e muito ruins para o coração.
Será possível falar-se
em planejamento e medições de horário quando se trata de coisas de amor?
Porque, no fundo, é de coisas de amor que estamos falando. Ter um horário fixo
para rezar ou para ler um livro de espiritualidade, reservar tempos e horários
certos para trabalhos apostólicos... tudo isto não soa a constrangimento,
formalismo e abafamento da espontaneidade do espírito?
Muitos pensam assim, e
isso acontece porque não compreendem o verdadeiro sentido da virtude da ordem,
uma virtude que precisa ser resgatada dos preconceitos que a desmerecem. Se não
a reabilitarmos no nosso mundo de valores, veremos como a espontaneidade do
amor e dos bons propósitos se desvanecerá em ilusões e omissões. Vejamos um
pouco mais de perto este tema.
Dizíamos nas páginas
anteriores que existe uma ordem negativa, a que chamávamos ordem defensiva. Não
passa da carapaça com que se protege o egoísta. Bem sabemos que essa ordem pode
tornar-se doentia e atingir requintes de neurose, de mania. Talvez já tenhamos
conhecido pessoas que ficavam transtornadas porque alguém – esposa, filho,
empregada – tinha tido a ousadia de deslocar em poucos centímetros a posição
exata que um livro devia ocupar na mesa do escritório. Da mesma forma que não
faltam os que dramatizam qualquer interferência que lhes altere o horário de
sono, ou o fim de semana cuidadosamente planejado. Isto não é virtude, é doença
ou egoísmo. Como não é virtude a ordem dos escravos da eficiência, que sobre o
altar da “produtividade” ou do “sucesso” profissional sacrificam Deus, a saúde,
a família e as amizades.
A virtude da ordem é
outra coisa: por ser uma das faces da diligência, é uma maneira de praticar o
amor.
Se nos perguntássemos
pelos traços mais essenciais do amor, com certeza todos nós coincidiríamos em
dois deles:
– primeiro: amar é
querer bem, o que significa, por um lado, querer mesmo, querer de verdade; e,
por outro, querer fazer o bem e tornar feliz – ou agradar – a pessoa amada;
– segundo: amar é dar,
ou melhor, dar-se. Não é a procura interesseira de si mesmo, através do prazer,
das satisfações ou das compensações obtidas dos outros.
Procuremos aplicar
estas idéias, simples e transparentes, a dois exemplos vivos, que ilustram o
que é a ordem nascida da diligência.
Um homem está habituado
a viver à margem do lar. Mulher e filhos vêem chegar todas as noites um fugaz
visitante cansado e mal-humorado, que só deseja não ser incomodado. Chega
tarde, não por necessidade, mas porque se entretém inutilmente com o serviço,
ou prolonga o expediente em conversas de bar com os amigos.
Um belo dia sente a voz
da consciência. Compreende que não está dando amor aos seus. E resolve fazer
uma pequena modificação importante: encerrar o trabalho na hora certa e chegar
a casa, no máximo, até às 18:00 horas, para assim dedicar-se mais à família.
Faz o propósito e o cumpre. Pois bem, este ato de ordem é um ato de amor:
porque quer sinceramente o bem dos outros, e concretiza o modo de dar-se.
Vejamos um segundo
exemplo: um estudante (um desses católicos “comuns”, que vai à Missa “quando
dá”) entende num dado momento a importância da oração. Como é possível – diz de
si para si – amar a Deus e não falar com Ele, não ter um mínimo de intimidade.
Antes, pensava vagamente que a oração era uma coisa boa, e estava disposto a
fazê-la – como tantos outros – “quando tiver vontade”, “quando sentir” ...
Agora, quer mesmo fazer oração, e reserva para isso um tempo diário, fixo e
determinado. Porque quer mesmo, define um horário que garanta esse seu querer.
Com isto, já está começando a amar, e o seu amor será mais completo quando se
determinar a dar a Deus todos os dias, sem falta, esse pedaço do seu tempo –
uns minutos de oração –, sem calcular se gosta ou tem vontade, pensando só em
agradar a Deus.
Convençamo-nos de que a
ordem e a disciplina que a ordem estabelece – quando brotam da meditação, da
oração – não asfixiam o idealismo, a paixão nobre ou o amor. Pelo contrário,
canalizam-nos e os efetivam. Naturalmente, desde que a paixão nobre, o amor e o
ideal existam e sejam uma força poderosa da alma. A ordem está a serviço dessa
força, não a substitui.
Como são traiçoeiras as
faltas de ordem, essas “preguicinhas” que tanto nos fazem sorrir. Parecem coisa
de nada, e podem vir a ser coisa de muito. Um simples atraso, um descuido, um
adiamento escorado numa boa desculpa... são outros tantos modos de fazer
murchar os melhores propósitos e os mais belos ideais. Basta uma “pequena
preguiça” na hora de levantar, para que a oração ou a comunhão sejam
abandonadas, ou para que o trabalho seja enfrentado atabalhoadamente e sem
garra.
Façamos um plano de
vida, bem meditado e bem distribuído, que crie canais efetivos para todos os
nossos desejos de fazer o bem; vivamos fielmente esse plano, e então
entenderemos por experiência o sentido destas palavras: “Quando tiveres ordem,
multiplicar-se-á o teu tempo e, portanto, poderás dar maior glória a Deus,
trabalhando mais a seu serviço”14.
A LABORIOSIDADE, IRMÃ
DA DILIGÊNCIA
“Trabalhando mais”. As
palavras que acabamos de citar fazem pensar num dos aspectos mais essenciais da
diligência: a virtude da laboriosidade, que é como uma irmã gêmea da
diligência.
Chama-se laborioso
àquele que ama o trabalho, e por isso se esforça por trabalhar muito e bem. É
fácil perceber que a laboriosidade é um dos flancos da diligência mais
vulneráveis à preguiça. Porque o preguiçoso foge do trabalho como de um
castigo, esquecido de que, já nas suas primeiras páginas, a Bíblia ensina que o
trabalho é uma grande missão confiada por Deus ao homem – sua “imagem” e seu
“colaborador” –, desde o dia da sua criação: Para isso – lemos no Gênesis –
Deus colocou o homem no paraíso, para que trabalhasse (Gên 3, 19). As penas e
fadigas do trabalho são conseqüência do pecado, mas o trabalho não.
O preguiçoso encara o
trabalho como um fardo, do qual procura livrar-se quanto antes e de mil modos
possíveis. Com essa mentalidade, é inevitável que o trabalho esteja crivado de
inconstâncias e imperfeições, e que os dias se encham de tristes horas
suportadas ou perdidas.
Não é laborioso quem
trabalha frivolamente; quem cumpre as tarefas levianamente, sem atenção nem
esmero; quem interrompe o trabalho com qualquer desculpa, pontilhando os
horários de serviço de contínuos parênteses de vazio (beber um gole de água,
esticar um telefonema, hora do cafezinho); quem começa muitas coisas e nunca
termina nenhuma, incapaz que é de colocar a “última pedra”15 em nenhum dos seus
empreendimentos; quem deixa a imaginação divagar e, nas asas da fantasia, sonha
com grandes realizações ideais ao passo que “desgraça” as ocupações reais.
“Trabalhemos muito e
bem”16: eis o lema da laboriosidade, que se completa com outro princípio de
ação: “Faz o que deves e está no que fazes”17.
O que entendemos por
“muito trabalho”, por “trabalhar muito”...? Sobre o “peso” do trabalho, a
preguiça não se cansa de nos enganar, suscitando queixumes e auto-compaixão:
“Trabalho muito, trabalho demais, como é dura a vida”. Talvez fosse bom
levarmos a sério o ditado brincalhão, que alguma vez teremos lido na traseira de
um caminhão: “A vida é dura para quem é mole”. Reconheçamos honestamente que,
com ordem e empenho, todos podemos fazer mais, muito mais do que fazemos.
O laborioso aprende a
“espremer” o seu tempo, com garbo e com garra. É questão de querer. “Que
esperas, pois, para aproveitar conscienciosamente todos os instantes? (...).
Aconselho-te que consideres se esses minutos que te sobram ao longo do dia –
bem somados, perfazem horas! – não obedecem à tua desordem ou à tua
poltronice”18.
Faz o que deves e está
no que fazes. Mediante a virtude da ordem, fazemos o que devemos. A
laboriosidade nos leva também a “estar” no que fazemos.
“Estar” nas tarefas
significa dedicar-lhes os cinco sentidos, todas as potências: inteligência,
vontade... Significa vencer habitualmente a divagação e o espírito rotineiro.
Uma coisa é “trabalhar” – realizar algo de acordo com as nossas possibilidades
– e outra muito diferente, embora seja infelizmente freqüente, é “liquidar” os
encargos de qualquer maneira.
Um excelente exercício,
para ajudar-nos a cair na conta da nossa falta de laboriosidade, poderia ser
perguntar-nos: esta tarefa, é minha mesmo? Muitas vezes deveríamos responder:
não, não é minha, porque é anônima, é uma tarefa superficial que qualquer um
poderia ter feito. Não traz a minha marca, porque não me entreguei a ela com
toda a minha capacidade e iniciativa. Naturalmente, a “nossa marca” não é a da
frívola originalidade, mas a marca inconfundível da nossa diligência, do nosso
amor.
O DILIGENTE TEM ALMA DE
ARTISTA
“Não é diligente quem
se precipita – recordávamos acima –, mas quem trabalha com amor,
primorosamente”19.
É possível imaginar
alguma coisa feita diligentemente, que esteja mal acabada? Qualquer trabalho ou
realização, levados a cabo com amor, são obras “acabadas” ou, como se diz
familiarmente, “caprichadas”. A imperfeição grosseira é uma denúncia clamorosa
da falta de amor.
Não é em vão que, na
linguagem comum, se utilizam algumas significativas expressões: é uma coisa
muito trabalhada – diz-se –, é uma peça lavrada com primor. É sugestivo que, de
uma coisa realizada com esmero muito especial, se diga simplesmente que foi
“trabalhada”; e que se aplique aos requintes da arte manual o verbo “lavrar”,
que deriva da palavra latina “laborare”, trabalhar.
Por trás dessas expressões,
oculta-se como que um sexto sentido, a intuir que a laboriosidade envolve a
idéia da perfeição amorosa em tudo o que se faz.
Com efeito, a
diligência – a laboriosidade – sabe “acabar” as coisas, porque sabe fazê-las
por amor – por amor a Deus e aos outros – e com amor.
Se fizermos uma revisão
da tapeçaria formada pelos nossos deveres cotidianos, poderemos por acaso dizer
que essa tapeçaria está “trabalhada” como uma obra de arte?
Existem, por exemplo,
lares bons, mas muito pouco “trabalhados”, porque a rotina e a indelicadeza
foram tomando conta deles – não houve renovação – como ferrugem implacável.
Existem deveres profissionais pouco “trabalhados”, porque foram deslizando para
um monótono cumprimento, uma burocrática repetição de serviços. Existem
práticas religiosas pouco “trabalhadas”, porque não se renovou a fé que as
acalentava alimentando-a com uma intensa formação – ou porque cristalizaram em
devoções formalistas e práticas mecânicas. Existem paternidades muito pouco
“trabalhadas”, porque sobre o amor dos pais depositou-se a poeira do costume,
abafando afetos e dedicações.
Em todos estes casos, o
amor e o entusiasmo foram-se congelando entre as mãos da rotina. Cederam
passagem a mil pequenos descuidos, grosserias e imperfeições, aparentemente sem
importância, e com isso perderam a força da renovação, isto é, da vida.
Uma tarefa feita por
inércia, sem carinho, não é só uma tarefa inacabada e imperfeita, é um corpo
sem alma. Só o amor cria e renova. “Na simplicidade do teu trabalho habitual,
nos detalhes monótonos de cada dia, tens que descobrir o segredo – para tantos
escondido – da grandeza e da novidade: o Amor”20.
A dupla força motriz da
alma do cristão – o amor a Deus e o amor ao próximo – é poderosa para “renovar
a face da terra” e conseguir o milagre de expulsar a rotina da vida cotidiana.
Cada dia pode ser uma estréia, cada esforço um gesto inédito. “Toda hora o
barro se refaz – diz Guimarães Rosa –, Deus ensina”21.
Sim, Deus ensina que,
para Ele, “nenhuma ocupação é em si mesma grande ou pequena. Tudo adquire o
valor do Amor com que se realiza”, e por isso é possível – e nisso consiste a
aventura cotidiana do cristão – “transformar a prosa desta vida em
decassílabos, em poesia heróica”22.
Santo Agostinho dizia,
com uma expressão muito viva, que dilectio vacare non potest, o amor não pode
parar, não pode tomar férias. Pois bem, uma pessoa de fé e de amor tem sempre o
coração em movimento, como um coração de artista, alegremente inquieto e
criativo.
Nunca o artista se
sente satisfeito com a obra realizada. Sempre sonha em ir além. E este sonho
ativa-lhe o engenho e movimenta-lhe o braço. Elabora por dentro, cria, recria,
e se entrega ao trabalho com fervor, sem medir cansaços nem fadigas. Seu braço
pode extenuar-se, mas o seu coração canta. Assim deve ser o cumprimento
diligente dos deveres de um cristão.
Se porventura
percebemos que, no íntimo de nós, está abafada essa alma de artista, se caímos
na conta de que a rotina está estreitando o seu cerco, afunilando sonhos,
crestando ilusões, cobrindo antigos entusiasmos com a pátina de uma canseira
triste, é necessário prestar muita atenção: há um sinal de alarme avisando-nos
de que já caímos, ou estamos à beira de cair numa lastimável preguiça, a
preguiça do coração, o tédio da falta de amor.
Precisaremos, então,
abrir bem os olhos da alma para enxergar que a rotina, a desilusão e o cansaço
não são devidos – como tendemos a imaginar – ao acúmulo de tarefas, nem à
repetição monótona das mesmas, nem ao desestímulo provocado por incompreensões
dos que convivem ou trabalham conosco. Pelo contrário, são o efeito de uma
doença da alma, que desaprendeu de amar, e por isso vê tudo cinza e sente tudo
insosso.
Quando acordamos para a
única coisa necessária (Lc 10, 42), voltando-nos decididamente para Deus, haverá
uma reviravolta. Tudo, até os menores detalhes do cotidiano, mudará de sentido.
Onde antes víamos muros – muralhas de deveres apertando como paredes de um
cárcere – passaremos a ver janelas abertas para o infinito. E onde antes a
rotina nos fechava num beco, agora se rasgará uma estrada.
Não se trata de simples
imagens. O amor de Deus – o impulso da graça divina – muda tudo, como o sol
transforma as sombras noturnas em paisagem colorida. Guiado pela fé e o amor, o
coração cristão aprende a descobrir, em cada pequeno dever, em cada um dos
esforços necessários para a execução das tarefas cotidianas, uma oportunidade –
cada dia renovada – de se dar mais, de servir melhor, de alcançar um novo grau
de perfeição, de expressar uma generosidade mais alegre... E isto porque
aprendeu a captar, nos pequenos pormenores do dia-a-dia, o convite de Deus.
Aquele que me segue não andará nas trevas, porque terá a luz da vida (Jo 8,
12).
Aquelas mesmas
realidades cansadas que a preguiça fazia murchar, a diligência cristã vem
revigorar com viço inesgotável. Quem ama, ensina São João, é transladado da
morte para a vida (1 Jo 3, 14). Depende de nós. Não é poupando-nos que
encontraremos vida e felicidade, mas dando-nos mais e mais. Quanto mais
generoso for o sacrifício e mais profunda a entrega, mais impetuosamente
brotará a alegria, como um sinal da plenitude da vida.
Afinal, não é esta uma
das mais límpidas e preciosas lições que Cristo nos deixou? Quem quiser guardar
a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de Mim, a
encontrará (Mt 16, 25).
PONTOS DE REFLEXÃO
Nesta matéria, como em
tantas outras que configuram o ideal cristão, o que custa não é tanto aceitar
as idéias, mas levá-las à prática. Uns poucos pontos concretos podem ajudar a
ver o ângulo por onde começar e... continuar.
* Compreendo que uma
das maiores manifestações da preguiça em mim é a indiferença ou apatia na luta
contra os meus defeitos? Concretizo as ocasiões em que devo enfrentar as minhas
inclinações erradas: onde, quando, como?
* Sou consciente de que, sem um plano de vida
diário, a minha vida será uma coleção inútil de vagos desejos de ser um bom
cristão? Nesse plano, estabeleço com prioridade qualitativa um tempo dedicado à
oração, à leitura do Evangelho, a uma visita ao Santíssimo Sacramento, ao exame
de consciência?
* Faço o que devo, hoje
e agora? Percebo que, muitas vezes, esse “hoje e agora” consiste em enfrentar
uma tarefa desagradável, custosa ou espinhosa, humilde ou mesmo humilhante –
mas que terá o sabor alegre e fecundo do dever cumprido e da caridade de
Cristo? Vejo que o tempo da graça é agora?
* O meu dia é agitado
ou sereno, o meu trabalho arrastado ou intenso, desleixado ou competente e bem
acabado? Procuro espremer o minuto de sessenta segundos?
* Habituo-me, no meio
das minhas ocupações, a buscar o olhar divino, que me dê paz e ânimo para
cumprir o dever de cada momento, que torne a minha jornada uma tarefa do
coração, e não a escória do egoísmo, o subproduto do orgulho, a claudicação
perante o comodismo?
* Omito-me na educação
religiosa dos filhos? Omito-me em conversar com os amigos e colegas sobre Deus
e a prática da vida cristã? Omito-me nas obras de misericórdia que estejam ao
meu alcance? É a minha vida um conjunto de omissões?
* Queixo-me do excesso
de trabalho? Não percebo que, quando tiver mais ordem, multiplicar-se-á o meu
tempo? Lembro-me daquele claro pensamento (cfr. Sulco, n. 238): “Basta-me ter
diante de mim um Crucifixo para não me atrever a falar dos meus
sofrimentos...”?
NOTAS
(1) Josemaría Escrivã,
E Cristo que passa, Quadrante, São Paulo, 1975, pág. 6;
(2) Josef Pieper, in: LeclercqPieper, De La vida serena, 3a. ed.,
Rialp, Madrid, 1965, pág. 75;
(3) São Tomás de Aquino, Suma Teológica, IMI, q. 31, a. 1;
(4) Josef Pieper, Las virtudes fundamentales, Rialp, Madrid, 1976,
pág. 395;
(5) Antoine de
Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, 25a. ed., Ed. Agir, Rio de janeiro, 1983,
pág. 37 e segs.;
(6) Salvatore Canals,
Reflexões espirituais, Quadrante, São Paulo, 1985, pág. 137;
(7) João Guimarães
Rosa, Grande Sertão: Veredas, 3a. ed., Livraria José Olympio, Rio de janeiro,
1963, passim;
(8) Rabano Mauro, De
ecclesiastica disciplina, livro 111o.; cfr. S. Th., II-II, q. 35, a. 1;
(9) Josemaría Escrivá,
Caminho, 6a. ed., Quadrante, São Paulo, ns. 251, 253 e 254;
(10) São Gregório
Magno, Regula pastoralis, parte III, cap. XV; in: Obras, BAC, Madrid, 1958,
pág. 174;
(11) Georges Chevrot,
As pequenas virtudes do lar, Quadrante, São Paulo, 1984, pág. 74;
(12) Josemaría Escrivá,
Amigos de Deus, 2a. ed., Quadrante, São Paulo, 1979, pág. 64;
(13) Jacques Leclercq,
in: De La vida serena, págs. 19 e 20;
(14) Caminho, n. 80;
(15) Caminho, n. 42;
(16) Josemaría Escrivá,
Sulco, Quadrante, São Paulo, 1987, n. 497;
(17) Caminho, n. 815;
(18) Sulco, n. 509;
(19) Amigos de Deus,
pág. 64;
(20) Sulco, n. 489;
(21) João Guimarães
Rosa, Corpo de baile, 2a. ed., Livraria José Olympio, Rio de janeiro, 1960,
pág. 513;
(22) Sulco, ns. 487 e
500.
INDICE
A PREGUIÇA 2
O que é a preguiça? 3
Uma pista para desmascarar a
preguiça 4
Uma segunda pista 6
As máscaras da preguiça 8
DILIGENCIA 14
O antídoto da preguiça 14
A diligência exige calma 17
Meditar para agir 19
A diligência exige ordem 20
A laboriosidade, irmã da
diligência 23
O diligente tem alma de artista 24
Pontos de reflexão 27