FRANCISCO
FAUS
A SABEDORIA
DA CRUZ
QUADRANTE
São Paulo
2001
Copyright © 2001
QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais
Capa
José C. Prado
Ilustração da
capa
Cristo, de Giovanni
Bellini (1430?-1516).
Museu Poldi
Pezzoli, Milão
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QUADRANTE,
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A LOUCURA DA CRUZ
UM COMPANHEIRO
INSEPARÁVEL
O sofrimento acompanha-nos, passo a passo, no caminho da vida. É um
companheiro assíduo e inseparável: sofrimento físico, sofrimento moral, doença,
decepção, frustração, perda... O sofrimento pode ser um grande amigo ou um
terrível inimigo, pois tem o poder de edificar ou destruir, de enriquecer ou
despojar. Tudo depende de como o encaramos, do “sentido” que somos capazes de
lhe dar.
A sombra da cruz – do sofrimento e do sacrifício – faz-nos estremecer.
Custa-nos entendê-la e, ainda mais, custa-nos aceitá-la. Por que o sofrimento?
Por que o sacrifício? Todos nós já fizemos provavelmente essas perguntas, uma
ou muitas vezes na vida. E todos sabemos que, quer perguntemos quer não, quer
aceitemos a cruz ou nos revoltemos contra ela, continuará a fazer parte deste
mundo e da vida de cada um de nós. Em nada pode ajudar-nos fazer meras
especulações sobre o sofrimento baseadas em hipóteses irreais: “Se não
existisse o sofrimento...”, “Deus não deveria permitir o sofrimento...”, “Se
Deus é Pai, por que nos deixa sofrer?”... A realidade é que o sofrimento existe
e que Deus o permite. Por isso, só poderemos encontrar um “sentido”, uma ajuda,
se fizermos as perguntas sobre a dor dentro do quadro da vida real: “O
sofrimento existe, sempre existiu e continuará a existir. Eu tenho-o na minha
vida. Que sentido tem? Que faço com ele? Que devo fazer com ele?”
Podemos fazer muitas coisas. Há pessoas que, perante as cruzes da vida,
se asfixiam na revolta e no desespero. Queixam-se, amarguram-se, arrasam-se. Às
vezes, autodestroem-se.
Há outras pessoas que, com os mesmos ou maiores sofrimentos, amadurecem,
ganham sabedoria e virtude, aprendem a ver e a amar as coisas e as pessoas de
uma maneira nova. E, no meio da dor, têm uma vida cheia de paz, de grandeza e
de fecundidade.
Há, pois, um mau modo e um bom modo de
encarar o sofrimento. Este último é o que, em linguagem cristã, chamamos a sabedoria da cruz (cfr. 1 Cor 1, 25).
A DOR QUE SORRI
Nunca me esquecerei de um pequeno episódio da vida real, que pode ser
contado em poucas linhas. Faz bastantes anos, alguém visitou no hospital um
colega de trabalho, jovem, atacado por uma doença incurável e muito dolorosa.
Mesmo sem poder disfarçar algum trejeito de dor, o doente sorria sempre, estava
alegre e falava de maneira serena e otimista, de tal modo que confortava e
reanimava os que o iam visitar. Comentou-lhe o amigo:
– Fico contente de ver que os médicos conseguiram aliviar um pouco a sua
dor...
– Não conseguiram – respondeu o outro com simplicidade –. Mas eu rezo
sempre, e digo a Deus: Sofro porque me dói, sorrio
porque Te amo.
Esta frase tão breve parece-me que encerra uma sabedoria mais profunda – sabedoria da cruz – do que as páginas de muitos
livros. E é preciso reconhecer que há livros excelentes que abordam com seriedade
e altura o sentido humano e cristão do sofrimento; em horas em que as dores
físicas ou morais apertam, podem trazer-nos luz e consolo. Mas, se queremos aprender a fundo a ciência
da cruz, creio que só existem duas cátedras que no-la podem ensinar,
na prática, e metê-la no coração: a cátedra da experiência cristã – da própria
e da alheia, sobretudo a dos santos – e a cátedra divina da Sagrada Escritura,
da Palavra de Deus. Nestas páginas, por isso, não se esperem raciocínios
filosóficos sobre a dor, mas apenas uma busca sincera das palavras de Deus e a
evocação da experiência viva dos santos.
O QUE JÓ APRENDEU
Jó é o máximo sofredor do Antigo Testamento. Desde o começo do Livro de Jó, aparece-nos como um homem de fé
forte e integridade de conduta. A dor abate-se sobre ele como uma montanha que
desaba: perde todos os filhos e todos os bens, perde a saúde e a honra, fica
como um mendigo leproso que apodrece solitário no monturo.
E qual foi a reação de Jó? Não foi uma. Foram duas, uma após a outra.
A primeira foi a reação de um autêntico adorador de Deus, de um homem de
fé inabalável, que nos deixa boquiabertos: O
Senhor deu, o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor [...]. Aceitamos a felicidade da mão de Deus; não
devemos também aceitar a infelicidade? (Jó 1, 21 e 2, 10).
A segunda reação foi a própria de um homem sincero, acostumado a falar
com Deus de coração aberto. Reduzido a um trapo, Jó recebe a visita de três
amigos, penalizados, aos quais se une depois um quarto. Todos eles tentam
“explicar-lhe” com muitos argumentos o porquê da avalanche brutal dos seus
sofrimentos, interpretando-os fundamentalmente como um ato de justiça de Deus,
que estaria assim punindo Jó por culpas que ele não percebeu ou não reconhece.
Assumem, assim, a função de “advogados defensores de Deus”, um papel que o
Senhor Deus não lhes havia confiado.
Diante dessa interpretação simplista e distorcida, Jó se insurge:
revolta-se, brada, prorrompe em lamentos dilacerantes, increpa Deus e convoca-o
para “discutir” com ele; seus gritos chegam a raiar a blasfêmia. Mas, na
realidade, são os brados sinceros e agoniados de um homem de fé absoluta, que
não entende o que está acontecendo. Jó crê em Deus acima de tudo no mundo, e
não pode imaginar que Ele seja injusto e o castigue como se fosse culpado por
crimes que não cometeu. Os amigos escandalizam-se da sua fala. Mas Jó insiste.
E, no fim, quando a discussão atinge o clímax, Deus em pessoa intervém. E o que
faz o Senhor? Depois de repreender Jó pelos seus excessos verbais, dá-lhe razão,
concorda com meu servo Jó e indigna-se
contra os amigos sabichões, que se metem a dar lições sobre o que não sabem.
Com palavras faiscantes de poesia, Deus mostra a Jó e aos amigos
indiscretos quão longe estão de compreender os planos da sabedoria, da justiça
e da bondade de Deus:
Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? [...]
Quem fechou com portas o mar,
quando brotou do seio maternal,
quando lhe dei as nuvens por vestimenta
e o enfaixava com névoas tenebrosas? [...]
Algum dia na vida deste ordens à manhã?
Indicaste à aurora o seu lugar?
(Jó 38, 4 e segs.)
Também Jesus teve que desfazer certa vez as interpretações erradas que os
seus Apóstolos faziam sobre o sofrimento. São João conta-nos uma cena que
presenciou em Jerusalém: Caminhando, viu Jesus um
cego de nascença. Os seus discípulos indagaram dele: – Mestre, quem pecou, este
homem ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: – Nem este pecou,
nem seus pais, mas foi assim para que nele se manifestassem as obras de Deus. Logo
a seguir, fez o milagre de abrir os olhos àquele homem (Jo 8, 1-7).
A primeira coisa que os discípulos pensaram foi que o sofrimento era um
castigo, como os amigos de Jó. Nós também. Aparece um sofrimento inesperado,
uma doença, um revés, e logo nos queixamos: “Por que Deus faz isto comigo? Por
que me castiga? Eu não mereço este sofrimento!”
Sempre que pensamos assim, não entendemos que, em muitíssimos casos, a
dor, nesta terra, não é um castigo de Deus, mas tem outra finalidade, mais
profunda, divina e positiva: É para que se
manifestem as obras de Deus. Os caminhos de Deus não são os nossos
caminhos: Meus pensamentos não são os vossos
(Is 55, 8). Nós partimos do preconceito de que a dor é um mal e só pode ser
castigo, e Deus não pensa assim.
Sim, a dor tem um papel misterioso e altíssimo nos planos divinos, é algo
que ultrapassa de longe os esquemas mentais e as perspectivas dos humanos. Foi
por isso que Deus deu razão a Jó, o homem reto que não aceitava explicações
baratas nem lógicas surradas. Jó acabou percebendo o que Deus queria dizer, e
por isso calou-se, pôs a mão na boca, e
reconheceu: Falei, sem compreendê-las, maravilhas
que me superam e que não conheço (Jó 39, 34 e 42, 3).
Em matéria de dor, a atitude mais sábia é a de Jó: calar-se, ser humilde
e ouvir a Deus.
“TIRA AS SANDÁLIAS”
É verdade. Há certas questões fundamentais da vida de que só podemos
aproximar-nos com imenso respeito, dispostos antes de tudo a escutar com
reverência o que Deus tem a dizer-nos. Penso, concretamente, que há três
realidades – o Amor, a Dor e a Morte – que pedem, antes de nos chegarmos a
elas, que inclinemos a cabeça e façamos como Moisés, quando Deus o interpelou
do meio da sarça ardente: Tira as sandálias dos
teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa (Êx
3, 5). Amor, Dor e Morte são terra sagrada,
abismos que sempre nos produzirão
vertigem, porque são território de Deus.
Nestas páginas, tentaremos debruçar-nos um pouco sobre o abismo da Dor.
Procuraremos entrar nele com respeito e veneração, com o desejo, acima de tudo,
de ouvir algumas das verdades sobre o
sofrimento que Deus quis fazer chegar até nós, seus filhos. Há, com efeito,
muitas páginas da Bíblia que iluminam, como fachos de luz, o mistério do
sofrimento; sobretudo páginas do Novo Testamento, em cujo cume se ergue, como
farol deslumbrante, a Cruz de Jesus Cristo.
Como aprendizes de Deus, pois,
procuraremos meditar com simplicidade essas mensagens divinas, detendo-nos
especialmente em três delas, que podemos enunciar assim:
Primeira: o diabo detesta a Cruz.
Segunda: Deus ama a Cruz e salva-nos por meio da Cruz.
Terceira: a Cruz – o sofrimento e o sacrifício – pode e deve ser uma
fonte de bênçãos divinas na nossa vida.
A cada um desses temas vamos dedicar um capítulo desta obra. Mas antes
será útil fazer um esclarecimento prévio sobre a terminologia que empregaremos.
Atendo-nos a um modo de escrever habitual entre os autores cristãos,
escreveremos cruz (com minúscula) ao
referir-nos aos sofrimentos e sacrifícios da vida, mas não daremos nunca a essa
palavra o sentido pejorativo com que alguns falam das suas cruzes como de fardos insuportáveis.
Outras vezes, escreveremos Cruz (com
maiúscula): nestes casos, estaremos a referir-nos à Cruz de Cristo, e também –
em alguns casos – às nossas dores e sacrifícios, quando os unimos à Cruz de
Jesus e procuramos sofrer com Ele (cfr.
Rom 8, 17).
O DIABO E A CRUZ
UMA CENA DESCONCERTANTE
Já vimos, numa noite fechada, o súbito clarão de um relâmpago? Num
instante, a paisagem emerge das sombras, envolta em luz azulada, e
distinguem-se nitidamente as coisas que a noite deixava ocultas. É o que
poderíamos chamar um choque de luz.
Pois bem, vamos assistir agora a um choque de luz, potente e assustador
como um relâmpago, que foi um dos primeiros clarões que Cristo projetou sobre o
mistério da Cruz. Para nós, será a primeira lição sobre a sabedoria da Cruz, que estas páginas desejariam
ajudar a desvendar.
Caminhava Jesus com os Apóstolos e uma turba de discípulos, quando pela
primeira vez anunciou a sua Paixão, que já estava próxima: Começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do
homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos sumos sacerdotes e pelos escribas,
fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias. E falava-lhes abertamente
dessas coisas (Mc 8, 31-32).
Esse anúncio deixou perplexos os que o escutavam. Nunca tinham ouvido
Jesus mencionar a Cruz. Até então, seguir Cristo fora para eles uma aventura
empolgante, com multidões que se encantavam com as palavras do Mestre, que lhe
confiavam os seus padecimentos, que eram favorecidas com milagres espantosos:
cegos que viam, leprosos que ficavam limpos, mortos – como a filha de Jairo –
que ressuscitavam...
De súbito, um balde de água fria lhes é despejado na alma. O que Jesus
dizia era incompreensível. Não falara Ele constantemente do Reino de Deus que
vinha instaurar nesta terra? Não mostrara o seu poder divino sobre as doenças,
sobre os demônios, sobre os ventos e as tempestades? Não reduzira ao silêncio
os seus detratores, mostrando uma superioridade divina sobre eles? Que sentido
tinha então anunciar-lhes que tinha de padecer
muito, ser rejeitado, morrer?
O coração de Pedro não agüentou. Simão Pedro, o discípulo emotivo e
espontâneo, o homem de confiança de Jesus, agarrou o Senhor pelo braço, levou-o
para um lado e – diz o Evangelho – começou a
repreendê-lo: Que Deus não o permita, Senhor! Isso não te acontecerá! (Mc
8, 32; Mt 16, 22).
Era o coração a falar pela boca. Pedro não suportava pensar nem no
sofrimento nem na morte do Mestre. Repelia, horrorizado, a possibilidade de que
esses males viessem algum dia a ser realidade. Mas ainda estavam no ar essas
suas palavras ditadas pelo carinho, quando, de repente, a cena foi rasgada por
um raio inesperado: Jesus, voltando-se para ele,
disse-lhe: Para trás, Satanás! Tu és para mim um escândalo; teus pensamentos
não são os de Deus, mas os dos homens! (Mt 16, 23)
Ouvimos isso e ficamos desconcertados. Por mais que queiramos manter um
respeito reverente por todas as palavras de Cristo, não conseguimos evitar a tentação
de achar que dessa vez Jesus foi duro demais, exagerou.
A SOMBRA DO DIABO
Deixemos passar essa primeira impressão (nós somos emotivos como Pedro) e
procuremos refletir serenamente sobre a cena. Perceberemos então que as
palavras duras de Jesus não são um exagero, mas um alerta tremendamente urgente
e necessário.
Sim, essas palavras fortes de Cristo são necessárias para que nós não nos
desencaminhemos; eu diria que são especialmente necessárias no nosso mundo
atual. Por quê?
A razão é que o veemente protesto de Pedro, sem ele o saber nem
suspeitar, foi diabólico: foi o eco quase perfeito da terceira tentação com que Satanás assaltara
Cristo, no fim dos quarenta dias de oração e jejum no deserto, quando o Filho
de Deus se dispunha a iniciar a sua pregação. O diabo propusera a Jesus reinar
sobre o mundo sem necessidade de passar pela Cruz: Todos
estes reinos te darei se, prostrando-te diante de mim, me adorares (Mt
4, 9). “Rendendo-te a mim – vinha a dizer o diabo –, poderás triunfar e reinar
sem sofrer”.
A repreensão de Pedro a Jesus era um eco involuntário dessa voz
diabólica. Por isso Cristo reagiu com as mesmas palavras com que repelira o
Inimigo: Para trás, Satanás! (Mt 4, 10
e 16, 23).
Lembremo-nos de que, quando o Filho de Deus entrou no mundo, o anjo
Gabriel anunciou a Maria que o Filho que dela ia nascer receberia de Deus o trono de seu pai Davi, e que o seu Reino não teria fim (cfr. Lc 1, 32-33).
Ora, Jesus é Rei – Eu para isso nasci e vim
ao mundo, dirá a Pilatos (Jo 18, 37) –, mas é Rei de um Reino
espiritual, sobrenatural, que não é deste mundo
(Jo 18, 36), porque é o Reino da Graça e da Vida, do Amor e da felicidade
eterna na Casa do Pai (Jo 14, 2). Por
desígnio da Santíssima Trindade, Cristo vinha conquistar e instaurar esse
Reino, mediante a sua imolação redentora na Cruz. Era com a Cruz que se ia
realizar a nossa salvação, essa salvação que Satanás não podia suportar.
Pedro, o bom Pedro, na sua ignorância afetuosa, fazia sem querer o jogo
do Inimigo. Jesus tirou-o do engano, com a rude violência amorosa com que se
resgata do mar alguém que se está afogando.
O JOGO DO DIABO NÃO
ACABOU
Mas não achemos que este jogo do diabo acabou. Ainda em vida de Cristo,
voltou à carga. São Lucas refere-nos que, após o fracasso das tentações no
deserto, o demônio apartou-se dele até outra
ocasião (Lc 4, 13). Essa outra ocasião
foi a hora da Paixão, a própria hora da Cruz. No Horto de Getsêmani, Jesus teve
de lutar no seu íntimo – numa agonia que o fez suar sangue – porque a sua
humanidade tremia perante a Cruz e sentia a tentação
de evitar os sofrimentos indizíveis da Paixão. No fim desse combate, triunfou o
seu amor à vontade do Pai e o seu amor por nós, o seu anseio de nos redimir
lavando os nossos pecados com o seu sangue: Pai!
...Não se faça o que eu quero, mas o que tu queres (Mc 14, 36).
A investida na Paixão, porém, não foi a última... Nunca o diabo deixará
de combater a Cruz. Sempre tentará enganar os homens com argumentos falaciosos,
servindo-se da habilidade de tergiversar que lhe é própria. Não é à toa que
Cristo o qualificou de mentiroso e pai da mentira
(Jo 8, 44).
Hoje, mente talvez mais do que nunca. Dá a impressão até de que os
séculos transcorridos lhe deram experiência e, se é possível pensar assim,
aprendeu a mentir com mais argúcia, agressividade e aprumo, tanto que às vezes
parece – só parece, graças a Deus – que o ouvimos cantar vitória e gritar: “Por
fim consegui banir a Cruz!”
Uma das grandes mentiras atuais
do diabo, no seu combate contra a Cruz, consiste em convencer o mundo de que felicidade
é igual a prazer, consiste em identificar
felicidade e prazer, o que constitui uma das maiores falsidades que
se possam imaginar. Com essa perspectiva, no mundo só existiria um mal, que seria o sofrimento;
só haveria um inimigo a ser combatido com todas as armas da ciência e da
técnica, da psicologia e da dialética: a dor, o sacrifício, a cruz. O novo deus
pagão é o prazer.
FELICIDADE E PRAZER
Quem conhece um mínimo de História, sabe que, durante milênios, tanto os
mais elevados espíritos pagãos como os cristãos – no Ocidente e no Oriente –
chegaram à certeza de que a autêntica felicidade só podia encontrar-se na virtude, no bem,
na realização do ideal divino sobre o homem.
Os homens e as mulheres falhavam, pecavam, cometiam crimes, eram muitas
vezes mesquinhos; mas em nenhum momento se apregoou ou se pensou que o mal residisse no sofrimento ou no sacrifício; o
mal estava, sim, na falta de virtude, na falta de valores, na mentira, no
desregramento, na escravidão da alma às paixões baixas, em suma, no mal moral,
no pecado.
Todos os heróis admirados e propostos como modelo à juventude eram homens
e mulheres capazes de grandes sacrifícios, de generosas renúncias, de heróicos
sofrimentos por uma causa, por um ideal que se identificava sempre com a verdade e o bem,
e nunca com a auto-satisfação hedonista ou o interesse egoísta. Este era o
comum denominador dos grandes personagens bíblicos – Moisés, Davi, Judite,
Ester... –, dos heróis pagãos – Aquiles, Penélope, Enéias, Dido... – e dos
heróis cristãos, quer se tratasse de mártires, de virgens enamoradas de Deus,
de grandes servidores dos pobres; quer de modelos de cavaleiro cristão, como o
rei São Luís da França ou El-Rei Dom Sebastião; ou os heróis lendários como Sir
Lancelot, Tirant lo Blanc e o louco e genial Dom Quixote de la Mancha. O
espelho da grandeza era a virtude. E a virtude não só tolerava, mas exigia o
sofrimento heróico, paciente, e o sacrifício desinteressado, até chegar à
entrega – sem um arrepio – da própria vida.
Agora, essa página de milênios parece estar sendo rasgada em muitos
ambientes, para grande satisfação de Satanás. Na chamada modernidade, o pai da mentira – pelos seus mil
porta-vozes – pontifica na mídia, na televisão, na Internet, no cinema, nas
revistas, nas letras das canções, nas aulas dos colégios, cursinhos e
faculdades, nos consultórios psicológicos, psiquiátricos ou astrológicos, e a
toda a hora diz, proclama, prega, como quem define um dogma de fé
incontrovertível: “Abaixo a cruz, apaguemos a cruz, deletemos
o sofrimento, o sacrifício sem gosto, desprezemos o sacrifício sem o
prazer da ambição, do poder, da posse, da vaidade corporal, da vaidade
profissional, da vaidade esportiva. Sejamos felizes, meus senhores, e
convençamo-nos de que a felicidade não está nas balelas do bem nem da virtude –
isso já era! –, mas no Prazer, que é o
nosso único e verdadeiro bem, o nosso único e verdadeiro deus”.
Com estes parâmetros começa infelizmente muitas vezes a formação de muitas crianças, que os pais não se
atrevem a contrariar (comem o que querem, assistem aos programas de tv que
querem, navegam na Internet como querem, falam grosso a quem querem, vestem
como querem, sujam o que querem...); que pais e professores não ousam limitar, disciplinar, por medo de que sofram e
fiquem com raiva ou traumatizadas.
Assim crescem muitos adolescentes, sem um mínimo de ordem, de
autodomínio, de capacidade de sacrifício e de renúncia, sem condições de fazer
algo de que não gostem ou que não sintam, pois, como todos dizem, isso não
seria autêntico. Assim se abalançam a um sexo sem amor nem finalidade,
desumanizado e bestial, em que o prazer é a única regra, e já não há respeito,
nem ideal, nem amor, nem limites para as mais aberrantes e degradantes
experiências.
E como a experiência do prazer é ávida e insaciável, nunca se chega ao
limite. É preciso tentar também as drogas, mergulhar no álcool, sentir a
embriaguez de jogos suicidas: racha, roleta-russa, etc. A vida egoísta, sem a
finalidade de um bem, acaba
devorando-se a si mesma.
Chega depois a idade adulta, e se manifestam então um homem ou uma mulher
que, mesmo quando estão profissionalmente preparados, se revelam incapazes de
assumir o sacrifício e de enfrentar a cruz que é necessária para edificar uma
família, para ter e educar filhos, para ser fiéis, para ser honestos no
trabalho, para compreender e suportar com paciência os defeitos dos colegas...
Chegou a idade adulta e, como no conto de fadas, um dedo de criança invisível
aponta para eles e diz: O rei está nu!
Está nu, está despreparado, carente de virtudes, de amor à verdade e ao bem, de
algo que não seja o prazer e a satisfação autista do seu eu.
Mas é justamente nesta cultura sem Cruz que se dá, em proporções nunca
vistas na História, o máximo índice per capita
de tristeza, de solidão, de tédio, de mau humor, de necessidade de fuga, de
escravidão aos vícios e paixões, de violência, de desrespeito ao próximo, de
vazio.
“A gente – diagnosticava mons. Escrivá em São Paulo, em 1974 – está
triste. Fazem muito barulho, cantam, dançam, gritam – mas soluçam. No fundo do
coração, só têm lágrimas: não são felizes, são desgraçados”1.
No mesmo sentido, o Papa João Paulo II referia-se incisivamente a essa
situação numa alocução de 18 de junho de 1991: “Não é difícil, mesmo para um
observador que fique apenas no nível da psicologia e da experiência, descobrir
que a degradação no campo do prazer e do amor é proporcional ao vazio que
deixam no homem as alegrias que enganam e defraudam, procuradas naquilo que São
Paulo chamava as «obras da carne»: Fornicação, impureza,
libertinagem [...], bebedeiras, orgias
e coisas semelhantes (Gál 5, 19.21). A estas alegrias falsas podem
acrescentar-se, e às vezes vão juntas, as que se procuram na posse e no uso
desenfreado da riqueza, no exibicionismo do luxo e na ambição de poder”.
AS DUAS SABEDORIAS
Contemplando as conseqüências da rejeição da Cruz, entende-se melhor o
que Cristo acrescentou, depois de repelir a sugestão bem-intencionada de Pedro:
Tu és para mim um escândalo; teus pensamentos não
são de Deus, mas dos homens (Mt 16, 23).
Conforme a expressão original do Evangelho, o que nesta frase se traduz
por pensamento significaria
propriamente o sentido profundo das coisas,
a sabedoria no sentido bíblico. Por isso, é como se Cristo tivesse dito a
Pedro: “Não captas, não tens interiormente o saber e o sabor das coisas de
Deus, mas das dos homens”, só percebes as coisas mundanas.
É uma constante, na palavra de Deus no Novo Testamento, contrapor duas
sabedorias: a humana ou carnal, que procede das más paixões instigadas pelo
Inimigo (cfr. Tg 3, 15); e a de Deus, que procede do Espírito Santo. Se há um
ponto em que estas duas sabedorias se separam mais claramente, esse ponto é a
Cruz.
São Paulo expressa-o com nitidez: A
linguagem da Cruz é loucura para os que se perdem, mas, para os que se salvam,
é uma força divina [...]. Os judeus
pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria; mas nós pregamos Cristo
crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos; mas para os
eleitos – quer judeus quer gregos –, é força de Deus e sabedoria de Deus (1
Cor 1, 18.22-25).
É sobre esta sabedoria de Deus, e especificamente sobre a sabedoria da Cruz, que desejaríamos refletir
aqui um pouco. E o faremos – como dizíamos acima – procurando sobretudo ouvir o
que Deus veio dizer-nos por meio da Cruz.
DEUS E A CRUZ
POR QUE A CRUZ?
Temos pousado muitas vezes o olhar sobre imagens de Cristo crucificado.
Todos nós, cristãos, já meditamos nas dores que dilaceraram o corpo e a alma do
Senhor. E é natural que nos tenhamos perguntado: “Por que a Cruz, por que essa
Cruz terrível? Era necessário tanto sofrimento do Filho de Deus para a redenção
da humanidade?”
A resposta é: “Não”. Todos os teólogos, todos os exegetas, todos os
santos, dizem-nos que teria bastado o menor ato amoroso de Cristo, dotado de
valor infinito – por ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem –, para reparar por
todos os pecados do mundo. Diante da Cruz de Cristo, estamos, pois – como
afirmávamos acima –, num “território de Deus”, num abismo de Dor, que a nossa
lógica humana é incapaz de penetrar plenamente. Aos santos, esse abismo causava
vertigens, vertigens amorosas, como contam que acontecia com São Francisco de
Assis, extasiado diante de um crucifixo:
Era prudente esse amor, meu Salvador,
Que te fez descer até à terra? [...]
Esse amor teu que me endoidece assim
Roubou-te a tua Sabedoria.
Esse amor que me faz desfalecer
Roubou-te a tua Onipotência.
O Poverello de Assis ficava
santamente desvairado ao contemplar a loucura de
Deus de que fala São Paulo, que está acima da sabedoria dos homens.
Embora nós não “entendamos” essa loucura, vamos procurar ouvir a Deus –
como ficamos de fazer – e assim poderemos vislumbrar, pelo menos, três grandes
verdades sobre a Cruz de Cristo, que estão inseparavelmente unidas, de tal modo
que é difícil falar de uma delas sem mencionar as outras duas:
– O Filho de Deus sofreu e morreu na Cruz para nos salvar.
– O sofrimento e a morte de Cristo na Cruz foram um ato indescritível do
amor de Deus.
– Na Cruz, este amor de Deus transformou o sofrimento em vida e redenção.
UM MISTÉRIO DE SALVAÇÃO
Na profissão de fé cristã, afirmamos solenemente que Jesus Cristo, Filho
Unigênito de Deus, por nós homens e pela nossa
salvação, desceu dos Céus, encarnou-se no seio da Virgem Maria e se
fez homem, por nós foi crucificado, padeceu e foi
sepultado, ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos céus2...
É uma verdade da nossa fé que São Paulo considerava básica, fundamental: Transmiti-vos, em primeiro lugar – escreve aos
de Corinto – o que eu mesmo recebi: que
Cristo morreu pelos nossos pecados...
(1 Cor 15, 1). É uma verdade constantemente proclamada no Novo Testamento3.
Repisemos – agora usando palavras de São Tomás de Aquino – que “essa
verdade, isto é, que Cristo morreu por nós, é de tal modo difícil, que a nossa
inteligência pode apenas apreendê-la, mas de modo algum descobri-la por si
mesma [...]. A graça e o amor de Deus para conosco são tão grandes, que Ele fez
por nós mais do que podemos compreender”4.
É assim mesmo. Mas, embora não compreendamos esse mistério, captamos um
pouco dele; e esse pouco, mesmo sendo imperfeito, é uma forte luz para nós. Uma
vez que sabemos – porque Deus o revelou – que Ele escolheu a Cruz para nos
salvar, podemos entrever alguma coisa dos motivos, das “razões” dessa escolha
divina, guiados pelo que o próprio Deus nos manifesta.
A primeira “razão” que se ilumina é a seguinte: só Cristo, como Filho
Unigênito – Deus e homem – podia tomar sobre si os pecados de todos os homens
com “um amor para com o Pai que superasse o mal de todos os pecados”5, com um amor infinitamente maior que a
maldade. Não só quis, por assim dizer, pagar o preço suficiente pelos nossos
pecados (teria bastado uma gota do seu sangue), mas submergir todo o pecado,
todo o mal do mundo – passado, presente e futuro – na
plenitude do seu amor, imenso como um oceano sem limites, e
autenticado pela prova de fogo do sofrimento.
Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco – diz São João, o Apóstolo –: em que enviou
o seu Filho unigênito ao mundo, para que por Ele vivamos [...]. Nisto conhecemos o amor: Ele [Jesus] deu a
sua vida por nós [...]. Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não
somente pelos nossos, mas pelos de todo o mundo (1 Jo 4, 9; 3, 16 e
2, 2).
Podemos, deste modo, dizer que Jesus na Cruz é o “abraço amoroso de Deus”
que envolve, protege e salva os seus filhos perdidos, manchados e feridos de
morte pelo pecado. Cristo, que veio salvar o que
estava perdido (cfr. Lc 19, 10), interpõe-se entre os nossos pecados
e o castigo que mereciam; por assim dizer, deixa que se arremessem ferozmente
contra Ele todos os crimes, todos os males, todas as perversidades de todos os
homens, e assume-os como se fossem próprios, para expiá-los. O pecado parece
derrubar, destruir, aniquilar Jesus, mas é Ele quem o vence pelo amor,
lavando-o com o seu sangue. Depois, triunfante, ressuscitará para a nossa justificação (Rom 4, 25), derramará
copiosamente a graça do Espírito Santo nos nossos corações (cfr. Rom 5, 5), e
abrir-nos-á as portas da felicidade eterna.
Foi Ele – profetizara Isaías – que carregou sobre si as nossas enfermidades e carregou com
as nossas dores [...]. Por nossas
iniqüidades é que foi ferido, por nossos pecados é que foi torturado. O castigo
que nos havia de trazer a paz caiu sobre ele, e por suas chagas fomos curados (Is
53, 4-5).
“Para transmitir ao homem o rosto do Pai – diz João Paulo II –, Jesus
teve não apenas de assumir o rosto do homem, mas de tomar também o «rosto» do
pecado: Aquele que não havia conhecido o pecado,
Deus o fez pecado por nós para que nos tornássemos nele justiça de Deus
(2 Cor 5, 21)”6.
A CRUZ ATINGE AS RAÍZES
DO MAL
Demos mais um passo. Também podemos perceber, em segundo lugar, que é
precisamente por meio da Cruz que Deus “atinge as raízes
do mal, que se embrenham na história do homem e das almas humanas”7.
Qual foi, e continua a ser, a raiz primeira do mal, do pecado? O orgulho,
o egoísmo. O pecado dos nossos primeiros pais foi – revela-nos a Bíblia – um
pecado de orgulho e de desobediência (cfr. Gên 3, 1 e segs.). Todos os nossos
pecados, no fundo, consistem nisso mesmo: em virar as costas a Deus, em
desobedecer ao que o seu amor nos pede e voltar-nos para nós mesmos, como se
fôssemos o centro de tudo – sereis como deuses (Gên
3, 5) –, movidos pelo egocentrismo orgulhoso e cobiçoso.
Essa foi a raiz do pecado. E a raiz da entrega de Cristo na Cruz, qual
foi? São Paulo dá-nos a resposta: foi a humildade e a obediência do Filho de
Deus. Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até
à morte, e morte de Cruz (Fil 2, 8). Com o seu amor salvador, Cristo
foi até ao fundo do mal e aplicou-lhe, como médico divino, o remédio na própria
raiz. Ao orgulho, princípio de todo o pecado (Ecl
10, 15), aplicou o remédio da sua humildade: um Deus-homem que se humilha. À
desobediência, aplicou o remédio da obediência: um Deus-homem que cumpre a
vontade do Pai até à morte, até à Cruz.
Com expressão que faz pensar, a Carta aos Hebreus afirma que Cristo, apesar de Filho de Deus, aprendeu a obedecer por aquilo que
sofreu, e, uma vez atingida a perfeição, tornou-se, para todos os que lhe
obedecem, fonte de salvação eterna (Hebr 5, 8-9). Enquanto homem,
Cristo fez a experiência da obediência humana. No desafio da Cruz, lutou por
unir a sua vontade à do Pai. Essa obediência fê-lo atingir a perfeição do sacrifício redentor com que reparou
a desobediência de Adão e as nossas desobediências. Assim
como, pela desobediência de um só [Adão],
muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só [Cristo], muitos se tornaram justos (Rom 5, 19).
UM MISTÉRIO DE AMOR
Cristo, ao sofrer, faz a vontade do Pai, acabamos de vê-lo. Com isso,
estamos prontos para assomar o olhar a mais uma abertura que nos permitirá
alcançar de Deus novas luzes sobre o mistério da Cruz.
No Horto das Oliveiras, antes de padecer a Paixão, Cristo reza ao Pai: Abá, Pai! Tudo te é possível; afasta de mim este cálice.
Contudo, não se faça o que eu quero, mas o que tu queres (Mc 14,
34-36).
Jesus é homem, e sente profunda repugnância pelo sofrimento. Mas o
coração de Cristo encerra todo o Amor – todo o Amor divino num coração humano –
e por isso quer acima de tudo o que o
Pai quer, que é a nossa salvação. A palavra querer
tem aqui a dupla riqueza de sentido que possui na nossa língua. Por um lado,
significa o ato íntimo da vontade livre, não forçada; por outro, expressa o
bem-querer, o ato de amor. Ambos os sentidos estão presentes na alma de Cristo.
Cristo quis a Cruz, livremente.
Desejou-a com ardor: Com um batismo de sangue
tenho que ser batizado, e como trago o coração apertado até que ele se realize!
(Lc 12, 50). A Cruz não caiu de repente sobre Ele, como uma árvore que se
atravessa inesperadamente no caminho. Ele amou-a livremente, ofereceu-se a ela,
abraçou-a. “Com que amor se abraça – comenta mons. Escrivá – ao lenho que Lhe
há de dar a morte!”8
O seu Sacrifício redentor foi, pois, plenamente voluntário. A Cruz foi o
seu altar, e Jesus encaminhou-se para ela como Sacerdote, a fim de se oferecer
a si mesmo como Vítima (cfr. Hebr 7, 27). Cristo
amou-nos e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável
odor (Ef 5, 1).
“A morte do Salvador – diz São Francisco de Sales – foi rigoroso
holocausto que Ele próprio ofereceu ao Pai para a nossa redenção; ainda que as
dores e padecimentos da sua paixão tenham sido tão graves e fortes que qualquer
outro mortal teria sucumbido a eles, a Jesus não lhe teriam dado morte se Ele
não o tivesse consentido, e se o fogo do seu amor infinito não tivesse
consumido a sua vida. Ele foi, pois, sacrificador de si mesmo; ofereceu-se ao
Pai e imolou-se no amor”9.
Para que não tivéssemos disso a menor dúvida, pouco antes da Paixão Jesus
disse de modo explícito ao povo, em Jerusalém, que o seu sacrifício era um ato
de doação: Eu dou a minha vida [...]. Ninguém ma tira; sou eu que a dou por mim mesmo
(Jo 10, 17-18). E, na Última Ceia, atualizando já antecipadamente o mistério da
Paixão – que deixou perenemente presente no mistério da Eucaristia –, deu-nos o seu Corpo e Sangue: o meu corpo, que vai ser entregue por vós; o meu sangue,
que vai ser derramado por vós (Lc 22, 19-20).
Vemos, pois, que Deus ama a Cruz porque nos ama a nós; e é mediante a
Cruz que quer manifestar-nos patentemente a infinita grandeza do seu amor.
“Cristo sofre e morre por amor – escreve Javier Echevarría –. O Pai envia
o Filho para que, ao entregar a sua vida, dê testemunho definitivo do amor, e
flua dEle, da Cruz, o Espírito Santo que tornará possível a nossa fé e, com
esse dom divino, a salvação [...]. Deus é o Deus do amor e da vida: um Deus que
vence o pecado, o desamor e a morte que do desamor deriva, precisamente com o
seu Amor, e nos faz renascer dessa forma para uma vida nova que não terá fim”10.
MISTÉRIO DE AMOR SEM FIM
Vamos dar outro passo na nossa reflexão. E começaremos pelas palavras que
São João usa para sintetizar o que aconteceu na Última Ceia e na Paixão de
Jesus: Tendo amado os seus que estavam no mundo,
amou-os até o fim (Jo 13, 1).
Amar até o fim significa que, no
caminho da sua entrega por nós na Cruz, Jesus seguiu todas as etapas, sem
deixar uma só, e chegou até o final. As penúltimas palavras que pronunciou na
Cruz foram: Tudo está consumado (Jo 19,
30), antes de clamar: Pai, nas tuas mãos entrego o
meu espírito! (Lc 23, 46).
Mas amar até o fim também
significa que Cristo, na Cruz, nos amou sem limite algum, sem recuo algum, sem
poupar-se em nada, até ao máximo extremo.
Nada limitou o seu amor. Não se deteve em barreiras, não o arredou
nenhuma dor, nenhum sacrifício, nenhum horror. Acima do seu bem-estar, da sua
honra, da sua vida, colocou a salvação dos que amava, de cada um de nós.
Já pensamos no que é um amor ilimitado? Um amor que não depende de nada,
nem exige nada, para se dar por inteiro? O amor de Cristo começa sem que nós o
tenhamos amado, não é retribuição, é puro dom; e chega até ao extremo ainda que
nós não correspondamos, melhor dizendo, no meio de uma brutal falta de
correspondência. Nisto consiste o amor
– esclarece São João –: não em termos nós amado a
Deus, mas em que Ele nos amou primeiro e enviou o seu Filho para expiar os
nossos pecados (1 Jo 4, 10).
A meditação da Paixão, neste sentido, é transparente. Nenhum sofrimento
físico aparta Jesus da Cruz. Basta que contemplemos – como numa seqüência
rápida de planos cinematográficos – Jesus preso, amarrado, arrastado
indignamente, esbofeteado, açoitado até a sua carne se converter numa pura
chaga, coroado de espinhos, esfolado e esmagado sob o peso da Cruz, cravado com
pregos ao madeiro, torturado pela dor, pela sede, pelo esgotamento... Nada o
detém na sua entrega amorosa.
Podemos projetar também – em flashes
consecutivos – a seqüência dos seus sofrimentos morais, e perceber que tampouco
conseguiram afastá-lo de chegar até ao fim. É caluniado, ridicularizado,
julgado iniquamente, condenado injustamente; alvo de dolorosa ingratidão, de
hedionda traição; é ferido pela infidelidade, pela falta de correspondência dos
que amava e escolhera como Apóstolos; é atingido pelas troças mais grosseiras,
pelos insultos mais ferinos, por escarros e tapas no rosto... Nada o faz
recuar, nem sequer a última humilhação, pois não o deixaram morrer em paz, e
desrespeitaram com zombarias e insultos os últimos instantes da sua agonia. Os
que passavam perto da Cruz sacudiam a cabeça e
diziam: “Se és o Filho de Deus, desce da cruz!” Os príncipes dos sacerdotes, os
escribas e os anciãos também zombavam dele: “Ele salvou a outros e não pode
salvar-se a si mesmo! Se é rei de Israel, desça agora da cruz e creremos nele;
confiou em Deus, que Deus o livre agora, se o ama...” (Mt 27,
39-43).
Esta doação sem limites de Cristo é o Amor
que nos salva, o caminho que Ele quis escolher para nos livrar do
mal, afogando-o em si – no seu Amor – como num abismo. Ao mesmo tempo, é um
contínuo apelo ao nosso amor. “Quem não amará o seu Coração tão ferido? –
perguntava São Boaventura –. Quem não retribuirá o amor com amor? Quem não
abraçará um Coração tão puro? Nós, que somos de carne, pagaremos amor com amor,
abraçaremos o nosso Ferido, a quem os ímpios atravessaram as mãos e os pés, o
lado e o Coração. Peçamos que se digne prender o nosso coração com o vínculo do
seu amor e feri-lo com uma lança, pois é ainda duro e impenitente”11.
OLHAR PARA CRISTO
Se, sem tirar o olhar de Cristo na Cruz, nos perguntássemos agora: “O meu
amor tem fim? Onde é que costuma
naufragar o meu amor a Deus e o meu amor aos outros?” – creio que teríamos de
responder: “Naufraga à beira da Cruz”.
A repugnância pelo sofrimento, o medo do sacrifício, a resistência à
doação generosa, paralisam o nosso amor e acabam por apagá-lo.
Hoje, infelizmente, podemos apanhar do chão milhares de amores, de
afetos, de compromissos de fidelidade, de ideais generosos, que acabaram
atirados por terra como um buquê de flores murchas.
E tudo porque a vida – porque Deus –, num dado momento, nos pediu q ue nos déssemos um pouco mais, que
renunciássemos um pouco mais, que tolerássemos pacientemente um pouco mais, que
perdoássemos (que é “dar”) um pouco mais, e não o soubemos fazer. Muitas vezes
acabou vencendo, infelizmente, o Inimigo, aquele que nunca deixa de insinuar,
na hora da crise ou da dificuldade: “Para que sofrer? O importante é viver a
vida, aproveitar a vida. Não precisa sacrificar-se mais. Não precisa agüentar
mais. Procure-se a si mesmo. Você tem direito aos seus gostos, à sua
«realização», ao seu prazer, à sua liberdade sexual! Viva a sua vida!” E assim,
afastando-os da Cruz, consegue que muitos amores definhem antes de terem sequer
começado a amadurecer.
Se vemos algo disso na nossa vida – mesmo que seja só um começo dessas
crises –, pensemos que está na hora de pegarmos a balança, a fita métrica e a
tabela que carregamos no coração (os medidores mesquinhos do nosso calculismo
egoísta), e lançá-las ao fundo do mar, antes de que elas nos lancem no atoleiro
da infelicidade terrena e eterna.
O SOFRIMENTO
TRANSFIGURADO
Finalmente, procuremos dirigir o olhar para mais uma luz do mistério da
Cruz.
João Paulo II põe em relevo essa luz com estas frases profundas: “Por
obra de Cristo, o sentido do sofrimento mudou
radicalmente [...]. É necessário descobrir nele a potência
redentora, salvadora, do amor. O mal do sofrimento, no mistério da redenção de
Cristo, fica superado e de todas as maneiras transformado: converte-se na força
para a libertação do mal, para a vitória do bem.
“À luz desta verdade – prossegue o Papa –, todos os que sofrem podem sentir-se
chamados a participar da obra da redenção realizada por meio da Cruz.
Participar da Cruz de Cristo significa acreditar na potência salvífica do
sacrifício que todos os fiéis podem oferecer junto com o Redentor”12.
Cristo não suprimiu o sofrimento: assumiu-o, fê-lo seu. Não eliminou o
sofrimento, mas transfigurou-o em meio e expressão de amor e de redenção.
Deixou-o no mundo, não como um lastro mortal, mas como uma fonte de vida e de
alegria.
Ao lermos estas palavras que recolhem os fulgores da verdade cristã,
talvez sintamos de novo aquela vertigem ante o “abismo da Dor” a que nos
referimos várias vezes.
Se for assim, olhemos de novo para Cristo e repassemos tudo o que
estivemos considerando até agora. Tenhamos presente que – como ensina a Igreja
– “o Filho de Deus, pela sua Encarnação, se uniu de certo modo a cada homem”13, a cada um de nós. Dizer isto não é exagero
nem retórica; pelo contrário, nós, os cristãos, podemos afirmar, com alegre
convicção, que Cristo está unido aos nossos sofrimentos como se fossem seus.
Ele sofre conosco, une a nossa dor à sua dor na Cruz, e quer ajudar-nos a
transformar os nossos padecimentos – dando-lhes o mesmo sentido que aos dEle –
num tesouro de amor, de graça, de salvação, de gozo (cfr. Rom 8, 17-18).
Por isso, quando sentirmos o peso do sofrimento, e talvez nos
perguntemos: “Por que Deus, que é bom, me deixa sofrer assim?”, fitemos Jesus
na Cruz e digamos: “O meu Deus não é um Deus longínquo, que contempla fria ou
indiferentemente as dores dos homens. Não está olimpicamente fechado na sua
glória bem-aventurada, para lá das estrelas. Se fosse assim, seria difícil não
nos sentirmos confusos, desolados e até revoltados. Mas não, o meu Deus é Jesus
Cristo, é nEle que eu creio. E Cristo compartilhou conosco todas as nossas
dores, quis conhecê-las todas, quis prová-las todas. Ele sabe. Ele me entende.
Ele me acompanha. No sofrimento, Ele está, mais do que nunca, perto de mim. No
sofrimento, eu posso estar, mais do que nunca, unido a Ele”.
Então, ao encararmos o abismo da Dor – sobretudo quando o nosso
sofrimento for mais intenso –, em vez de vermos um buraco negro ameaçador,
contemplaremos o rosto de Cristo, e perceberemos que nos olha com ternura, nos
anima e – sorrindo – nos faz entender, como aos discípulos após a Ressurreição,
que o sofrimento por Ele transfigurado é a porta que – juntamente com Ele – nos
conduz para o Amor eterno, para a Alegria, para a Glória (cfr. Lc 24, 26).
Então, nenhum sofrimento nos parecerá grande demais, e poderemos dizer
com São Paulo que a nossa leve e momentânea
tribulação prepara-nos, para além de toda e qualquer medida, um peso eterno de
glória (2 Cor 4, 17); encontraremos a paz na dor, e proclamaremos
com alegria: Tenho como coisa certa que os
sofrimentos do tempo presente nada são, em comparação com a glória que se há de
revelar em nós (Rom 8, 18).
NÓS E A CRUZ
Primeira parte: o sofrimento
SEGUIR OS PASSOS DE
CRISTO
Mais uma vez, disponhamo-nos a escutar o que Deus nos quer dizer sobre o
mistério da Cruz. Agora, sobre a Cruz na nossa
vida, sobre os nossos sofrimentos.
Cristo sofreu por vós –
escrevia São Pedro –, deixando-vos o exemplo, para
que sigais os seus passos (1 Pe 2, 21). O espírito com que Cristo
abraçou a Cruz – sobre a qual acabamos de meditar – é o modelo do espírito com que
nós, os cristãos, devemos receber o sofrimento.
Já considerávamos que, na própria dor da Cruz, Cristo via a vontade do
Pai. Por isso, no Horto das Oliveiras rezava dizendo Abá, Pai! Seja feita a tua vontade! (Mt 26, 42). Suava um
suor de sangue, porque lhe custava padecer; mas, ao mesmo tempo, entregava-se
com amor ardente à vontade do Pai.
Os bons imitadores de Cristo entregam-se assim à vontade de Deus, na hora
dos grandes e dos pequenos sofrimentos. O seu exemplo ilumina também o sentido
que a dor deve ter na nossa vida.
Em 1535, São Tomás More, ex-chanceler da Inglaterra – um dos três homens
mais cultos da Europa do século XVI –, foi condenado à morte pelo rei Henrique
VIII, por se ter recusado a trair a sua fidelidade à Igreja Católica. Estando
prisioneiro na Torre de Londres, já próximo do martírio, escreveu umas linhas à
sua filha Margareth, que a Igreja recolhe com veneração na Liturgia das Horas:
“Minha querida Margareth, estou absolutamente convencido de que, sem culpa
minha, Deus não me abandonará. Por isso, com inteira esperança e confiança
entrego-me todo a Ele [...]. Tem, pois, bom ânimo, minha filha, e não fiques
tão preocupada com o que me possa acontecer neste mundo. Nada poderá acontecer
que Deus não queira. E tudo o que Ele quer, mesmo que nos pareça mau, é na
verdade realmente ótimo”14.
Esse mesmo abandono confiante na vontade do Pai adejava na alma do
Bem-aventurado Josemaría Escrivá[NOTA DE RODAPÉ: O leitor observará que, nestas
páginas, cito com muita freqüência o Bem-aventurado Josemaría Escrivá. Tenho
vários motivos para fazê-lo, e um deles é bem poderoso: foi dele, especialmente
do convívio com ele, que aprendi o valor da Cruz, o amor à Cruz, a alegria da
Cruz. Quem me dera que, com a ajuda de Deus, conseguisse viver pelo menos uma pouquinho
dessa sabedoria da Cruz que ele
praticou e ensinou.], um homem de Deus que saboreou até ao fundo o cálice da
dor: “Foi perseguido, falsamente acusado e caluniado em público. Eu próprio –
dizia o pe. Antônio Rodilla – tive que desfazer embustes diante de bispos
[...]. Havia ferocidade e pertinácia na perseguição”15.
Mons. Escrivá, todas as vezes em que os grandes sofrimentos se abatiam
sobre ele, depois de perdoar de coração e de rezar pelos perseguidores,
punha-se de joelhos diante do sacrário, dirigia-se a Jesus presente na
Eucaristia e repetia com fé transida de amor esta oração: “Faça-se, cumpra-se,
seja louvada e eternamente glorificada a justíssima e amabilíssima Vontade de
Deus sobre todas as coisas. – Assim seja. Assim seja”. Ficava com uma imensa
paz e uma serena alegria. Acrescentava outras vezes: “Jesus, o que Tu
«quiseres»..., eu o amo”. E depois podia transmitir a sua experiência: “A
aceitação rendida da Vontade de Deus traz necessariamente a alegria e a paz, a
felicidade na Cruz. – Então se vê que o jugo de Cristo é suave e o seu fardo
não é pesado”. E tinha força moral para declarar aos que o ouviam: “Quero que
sejas feliz na terra. – Não o serás se não perdes esse medo à dor. Porque,
enquanto «caminhamos», na dor está precisamente a felicidade”16.
A DOR QUE É FONTE DE PAZ
Mas nem todos sofrem assim. Há muitos que deixam que a dor lhes destrua o
amor – pelo menos, que destrua o amor a Deus – e a alegria.
Faz alguns anos, no espaço de um mês, tive que ficar muito perto de dois
grandes sofrimentos: dois casos de pais que haviam perdido um filho adolescente
de maneira repentina e trágica. Conversei longamente com o primeiro e, uns
trinta dias mais tarde, com o outro.
O primeiro afundara-se numa dor insuportável, que lhe abalou os alicerces
da vida e lhe asfixiou a fé. Repetia depois, ao longo dos anos, num desabafo
amaríssimo e cheio de rancor, que a sua vida tinha perdido o sentido, que não
sabia se Deus existia ou não, mas que pouco lhe importava, porque já o tinha
“apagado” e não queria saber mais dEle. Fechado na sua solidão desesperada,
definhava e tornava difícil a existência dos que conviviam com ele.
O segundo pai sofreu tanto como o primeiro. Mas não permitiu que o
sofrimento lhe vendasse os olhos nem se encapsulou na sua dor. No meio das
lágrimas, fixou com força o olhar da alma em Cristo crucificado e, unido a Ele,
rezou: Pai, seja feita a vossa vontade! Dentro
do seu coração dizia: “Não entendo essa tua vontade, Pai, mas creio em Ti,
espero em Ti, amo-Te acima de todas as coisas”.
No velório, ver esse pai – e a mãe igualmente, com o mesmo espírito –
rezar junto do corpo do filho não causava constrangimento, mas comunicava uma
serenidade superior a qualquer paz que se possa experimentar nesta terra, e
elevava todos os circunstantes para Deus, cuja presença lá se apalpava. Era uma alegria insólita e poderosa,
misturada com uma dor muito forte, que se apresentava como um enigma aos olhos
dos frios e dos descrentes. Era mesmo um lampejo da sabedoria
da Cruz.
“ENTENDER” E “SABER”
Como esse segundo pai, nós também muitas vezes não “entendemos” o
sofrimento – já o víamos –, e é natural. É difícil compreender a doença
incurável, a incapacitação física, a ruína psicológica dos que amamos, o
desastre econômico... Não “entendemos”, mas... “sabemos” – com a certeza
indestrutível da fé – que Deus é Pai, que Deus é
amor (1 Jo 4, 8) e, portanto – como diz com cálido otimismo São
Paulo –, nós sabemos que Deus faz concorrer todas
as coisas para o bem daqueles que o amam (Rom 8, 28); faz concorrer para
o bem, muito especialmente, os sofrimentos que Ele mesmo nos envia, ou os que
Ele permite, ainda que os não queira, porque causados pela maldade dos homens.
Então, essa nossa fé – dom precioso de Deus que não queremos extinguir –
permite-nos o paradoxo inefável de sofrer e ter paz, de sofrer e manter no
íntimo da alma uma misteriosa e fortíssima alegria, uma imorredoura esperança.
Assim sofreu Cristo na Cruz, como escreve o Papa João Paulo II na sua Carta No início do terceiro milênio, comentando que não
é fácil compreender “como Jesus pôde viver simultaneamente a união profunda com
o Pai, por sua natureza fonte de alegria e beatitude, e a agonia até o grito de
abandono”. E acrescenta que essa realidade – que parece desafiar a inteligência
dos teólogos – é compreendida pela íntima sintonia e a experiência viva dos
santos. Cita, a propósito, Santa Catarina de Sena, que ouvia Deus Pai dizer-lhe
que as almas santas “imitam o Cordeiro imaculado, meu Filho Unigênito, que na
Cruz se sentia feliz e atormentado”, e Santa Teresinha, que escrevia à
Superiora: “Nosso Senhor, no Horto das Oliveiras, gozava de todas as alegrias
da Trindade, e todavia a sua agonia não era menos atroz. É um mistério; mas
posso assegurar-lhe que compreendo alguma coisa desse mistério a partir do que
sinto em mim mesma”17.
Os que se entregam nas mãos de Deus Pai sentem que a Cruz se lhes torna
doce – “uma Cruz sem Cruz”18 – e os
inunda de uma suavidade amável. Escutam e escutarão sempre as palavras de
Cristo, que nos diz na hora da dor: Vinde a mim,
vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai o meu jugo
sobre vós e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis
repouso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu peso é leve (Mt
11, 28-30).
E chegarão a exclamar, como Santa Teresa de Ávila: “Ó Senhor, o caminho
da Cruz é o que reservais aos vossos amados!”19
A DOR QUE FAZ AMADURECER
Num conto intitulado O espelho,
João Guimarães Rosa descreve, simbolicamente, uma experiência que os místicos
cristãos conhecem em profundidade.
O protagonista da estória
empreende a aventura de descobrir o seu verdadeiro rosto – o seu autêntico eu – num espelho-símbolo. Tenta depurar a sua
figura de tudo o que é superficial, animal, passional e espúrio, e acaba não
vendo nada: “Eu não tinha formas, rosto?” Prosseguindo na experiência, só “mais
tarde, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes”, quando “já amava – já
aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria”, é que começou a ver-se como
o esboço inicial de um menino que emergia do vazio, isto é, viu o seu rosto
verdadeiro que começava a nascer. No
final da estória, o protagonista
pergunta-se: “Você chegou a existir?”20
O escritor lembra-nos, com isso, que a pessoa que não sofreu não aprendeu
a amar de verdade; e que a pessoa que não aprendeu a amar não amadureceu;
pode-se dizer que ainda não está “feita”, ainda não “existe”.
Nós... “existimos”? Somos aquele
que deveríamos ser, aquele que Deus espera de nós? A resposta – sim ou não –
dependerá quase sempre de como sabemos sofrer. Tem muita razão o poeta quando
diz: “As pessoas que não conhecem a dor são como igrejas sem benzer”21.
Deus “faz-nos” com o sofrimento, modela-nos como um escultor, dá-nos a
qualidade de um verdadeiro homem ou mulher, de um verdadeiro filho de Deus. A
Cruz – poderíamos dizer – é a grande ferramenta formativa de Deus.
Três meses antes de morrer, mons. Escrivá fazia um rápido balanço da sua
vida, e resumia: “Um olhar para trás... Um panorama imenso: tantas dores,
tantas alegrias. E agora tudo alegrias, tudo alegrias... Porque temos a
experiência de que a dor é o martelar do Artista, que quer fazer de cada um,
dessa massa informe que nós somos, um crucifixo, um Cristo, o alter Christus [o outro Cristo] que temos de
ser”22.
Essa visão essencialmente cristã é a que lhe inspirou sempre a pregação
sobre a dor, baseada na sua própria experiência de alma enamorada de Deus: “Não
te queixes, se sofres – escrevia –. Lapida-se a pedra que se estima, que tem
valor. Dói-te? – Deixa-te lapidar, com agradecimento, porque Deus te tomou nas
suas mãos como um diamante... Não se trabalha assim um pedregulho vulgar”23. Por isso, mons. Escrivá não entendia que
se falasse da Cruz com tristeza, de modo queixumento e com ares de vítima.
Todos os anos, no dia primeiro de janeiro, anotava no seu calendário litúrgico
um lema espiritual para o período que se iniciava. Muitas vezes, esse lema foi:
In laetitia, nulla dies sine Cruce! (Com
alegria, nenhum dia sem Cruz!).
Deus sempre nos faz bem por meio da Cruz, seja qual for, quando nós o
“deixamos” fazer. Assim como nos salvou pela Cruz, assim também nos aperfeiçoa
e nos santifica por meio da Cruz. Não exclusivamente mediante a Cruz – também
nos santificam muitas alegrias, trabalhos que amamos, carinhos que nos enriquecem...
–, mas certamente não sem ela.
A DOR QUE NOS PURIFICA
A Cruz, o sofrimento, purifica-nos. O sofrimento abre-nos os olhos para
panoramas de vida maiores, mais verdadeiros e mais belos. O sofrimento
ajuda-nos a escalar os cumes do amor a Deus e do amor ao próximo.
São inúmeras as histórias de homens e mulheres que, sacudidos pelo
sofrimento, acordaram: adquiriram uma nova visão – que antes era impedida pela
vaidade, pela cobiça e pelas futilidades – e perceberam, com olhos mais puros,
que o que vale a pena de verdade na vida é Deus que nunca morre, nem trai, nem
quebra; descobriram que nEle se acha o verdadeiro amor pelo qual todos ansiamos
e que nenhuma outra coisa consegue satisfazer; entenderam que o que importa são
os tesouros no Céu, que nem a traça rói
nem os ladrões arrebatam (cfr. Mt 6, 20); e perceberam, enfim, que os outros
também sofrem, e por isso decidiram-se a esquecer-se de si mesmos e a
dedicar-se a aliviá-los e ajudá-los a bem sofrer.
É uma lição encorajadora verificar que, na vida de São Paulo, as
tribulações se encadeavam umas às outras, sem parar, mas nunca o abatiam. É que
ele não as via como um empecilho, mas como graças de Deus e garantia de
fecundidade, de modo que podia dizer de todo o coração: Trazemos sempre em nosso corpo os traços da morte de Jesus,
para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo (2 Cor
4, 10). E ainda: Sinto alegria nas fraquezas, nas
afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por
amor de Cristo; porque quando me sinto fraco, então é que sou forte!
(2 Cor 12, 10). E até mesmo, com entusiasmo: Nós
nos gloriamos das tribulações, pois sabemos que a tribulação produz a
paciência; a paciência, a virtude comprovada; a virtude comprovada, a
esperança. E a esperança não desilude, porque o amor de Deus foi derramado nos
nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rom 5, 3-5). É
o retrato perfeito da alma que se agiganta no sofrimento, que se deixa abençoar
pela Cruz.
Outro exemplo muito significativo. Uma perseguição injusta dos seus
próprios confrades arrastou São João da Cruz a um cárcere imundo. Todos os dias
era chicoteado e insultado. Mal comia. Suportava frios e calores
estarrecedores. Para ler um livro de orações, tinha que erguer-se nas pontas
dos pés sobre um banquinho e apanhar um filete de luz que se filtrava por um
buraco do teto. Pois bem, foi nesses meses de prisão, num cubículo infecto, que
ganhou o perfeito desprendimento, alcançou um grau indescritível de união com
Deus e compôs, inundado de paz, a Noite escura da
alma e o Cântico espiritual,
obras que são consideradas dois dos cumes mais altos da mística cristã. E, uma
vez acabada a terrível provação, quando se referia aos seus torturadores,
chamava-os, com sincero agradecimento, “os meus benfeitores”.
As histórias de mulheres e de homens santos que se elevaram na dor
poderiam multiplicar-se até o infinito: mães heróicas, mártires da caridade...
Daria para encher uma biblioteca só a vida dos mártires do século XX, como São
Maximiliano Kolbe, que na sua cruz – na injustiça do campo de concentração
nazista, nos tormentos, na morte – achou e soube dar o amor e a vida com
alegria.
A DOR QUE NOS “CHAMA”
Mas estamos a falar dos mártires, dos grandes sofrimentos dos santos, e
não devemos esquecer que também são a Cruz, a santa Cruz, as contrariedades,
dores, doenças, injustiças e mil outros padecimentos menores que Deus envia ou
permite na nossa vida diária, para nos santificar.
Vai-nos ajudar a pensar nisto uma frase incisiva de mons. Escrivá,
comentando a passagem da Paixão de Cristo em que os soldados obrigaram Simão
Cireneu, que passava por ali, a carregar a Cruz de Jesus: “Às vezes, a Cruz
aparece sem a procurarmos: é Cristo que pergunta por nós”24.
A maior parte das “cruzes” aparece-nos sem as termos procurado. São as
moléstias físicas ou psíquicas; são os aborrecimentos que surgem no mundo do
nosso trabalho; são as dificuldades e aflições econômicas, o desemprego, a
insegurança...; ou então os sofrimentos que surgem no convívio habitual com a
família: asperezas de caráter do marido ou da mulher, desgostos com os filhos,
parentes desabusados ou intrometidos, indelicadezas, ofensas...
Todo o tipo de sofrimento nos interpela. Que resposta lhe damos? Não
poucas vezes, a nossa reação espontânea é a irritação, o protesto, ou a
aflição, a tristeza, o desânimo. Há corações que não sabem sofrer, ficam
perdidos diante dos sofrimentos cotidianos, e sucumbem esmagados por umas
“cruzes” que sentem como se fossem uma laje que os asfixia, quando Deus lhas
oferece como asas para voar.
Deveriam lembrar-se do mau ladrão. Junto de Jesus crucificado, deixou-se
arrastar pelo ódio à Cruz. Morreu contorcendo-se e espumando de raiva na sua
cruz inútil. Pelo contrário, o bom ladrão soube descobrir na sua cruz uma
escada que lhe serviu para chegar a Cristo e subir ao Céu (cfr. Lc 23, 39-43).
Não vale a pena contorcer-se e protestar. Assim, Deus não nos poderá
“trabalhar”. “Sofreremos mais e inutilmente”25,
e nenhum proveito tiraremos da dor.
Qualquer sofrimento nos interpela, dizíamos. Também Cristo foi
interpelado, na Cruz, por todo o tipo de sofrimento, por cada um daqueles
padecimentos com que o feriram os nossos pecados. E como respondeu? De cada
ferida que recebia, brotava um ato de amor e uma virtude. Esse é o exemplo para
o qual devemos olhar.
Acusado com mentiras revoltantes, responde com a mansidão. Provocado
maldosamente, responde com o silêncio. A cada chicotada, a cada espinho que lhe
fere a cabeça, a cada prego que lhe atravessa as mãos e os pés, responde com a
paciência; a cada ofensa, responde com o perdão; a cada escarro, a cada
bofetada, responde com a humildade; a cada bem que lhe tiram (sangue, pele,
honra, roupas), responde dando; à rejeição dos homens, responde entregando-se
totalmente por eles.
A CRUZ QUE ENSINA A AMAR
Sim, cada uma das nossas dores traz uma mensagem de Cristo que pergunta por nós. Do alto da Cruz,
Ele olha-nos pessoalmente, chama-nos com carinho pelo nosso nome e
pergunta-nos: “Não queres aprender a sofrer comigo? Não queres transformar a tua
dor em amor? Não queres ter um sofrimento santificador?”
Quando nos decidiremos a isso? Quando perceberemos essas interrogações
afetuosas, essas sugestões da graça de Deus? “Perante esse pequeno desaforo –
diz-nos Deus –, por que não respondes com um silêncio paciente e humilde como o
meu, sem ódio nem discussões? Se te custa agüentar o caráter daquela pessoa,
por que não te esforças por viver melhor a compreensão e a desculpa amável?
Quando alguém te ofende, por que – sem deixares de defender serenamente o que é
justo – não te esforças por perdoar, como Deus te perdoa?”
E, assim, quando as dores físicas ou morais – os desgostos, as decepções,
os fracassos, os fastios, o tédio, a solidão, a depressão... – nos acabrunham,
a voz cálida de Cristo crucificado convida-nos a ser generosos e a subir um
degrau na escada do amor: a crescer na mansidão, na bondade e na grandeza de
alma; a aumentar a confiança em Deus; a ser mais desprendidos dos êxitos, do
bem-estar e das posses materiais; sobretudo, a meter-nos mais decididamente na
fogueira de amor que é o coração de Cristo, com desejos inflamados de
corresponder, de desagravá-lo, de imitá-lo, de unir-nos ao seu Sacrifício
redentor. Todos esses sentimentos tornam grande a alma cristã.
Queremos fazer este aprendizado cada vez melhor? Meditemos com freqüência
a Paixão de Jesus. É uma prática espiritual que, ao longo dos séculos,
alimentou o amor e a generosidade de milhões de cristãos. Leiamos muitas vezes
os relatos detalhados da Paixão, que os quatro Evangelhos conservam como um
tesouro; ou livros que comentem piedosamente a Paixão e Morte de Cristo; e
fiquemos contemplando essas cenas, representando-as com a imaginação,
“metendo-nos” nelas e dialogando com o Senhor.
“Queres acompanhar Jesus de perto, muito de perto?... Abre o Santo
Evangelho e lê a Paixão do Senhor. Mas ler só, não: viver. A diferença é
grande. Ler é recordar uma coisa que passou; viver é achar-se presente num
acontecimento que está ocorrendo agora mesmo, ser mais um naquelas cenas.
Deixa, pois, que o teu coração se expanda, que se coloque junto do Senhor”26...
Procuremos proceder assim, porque então choraremos os nossos pecados, que
rasgaram tão dolorosamente o corpo e a alma de Cristo; teremos ânsias de
reparar esses nossos males, oferecendo ao Senhor os nossos sofrimentos com
espírito de penitência; e as nossas dores hão de parecer-nos pequenas em
comparação com as de Jesus: “O que vale, Jesus, diante da tua Cruz, a minha;
diante das tuas feridas, os meus arranhões? O que vale, diante do teu Amor imenso,
puro e infinito, esse pesadume de nada que me puseste às costas?”27
E ainda chegaremos mais longe. Desejaremos identificar-nos com Cristo,
para “redimir” com Ele, para salvar o mundo com Ele.
A CRUZ QUE FAZ
“CO-REDIMIR”
Há umas palavras de São Paulo que encerram um grande mistério, ou seja,
que encerram uma verdade muito sobrenatural e profunda sobre a vida nova do
cristão. Meditemo-las: Agora me alegro nos
sofrimentos suportados por vós. Completo na minha carne o que falta às
tribulações de Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja (Col 1, 24).
A rigor, nada falta à Paixão de Cristo, pois o sacrifício de Jesus
mereceu infinitamente a redenção de todos os crimes e pecados do mundo. Mas o
Senhor quis que os cristãos, membros do seu Corpo Místico, pudessem associar-se
ao seu sofrimento redentor, unindo a Ele os seus próprios padecimentos.
Na Carta Apostólica já antes citada sobre o Sentido
cristão do sofrimento, o Papa João Paulo II desenvolve uma bela
reflexão sobre esta verdade: “O Redentor sofreu em lugar do homem e em favor do
homem. Todos os homens têm a sua participação na
Redenção. E cada um dos homens é também chamado
a participar daquele sofrimento por meio do qual se realizou a
Redenção; é chamado a participar daquele sofrimento por meio do qual foi
redimido também todo o sofrimento humano. Realizando a Redenção mediante o
sofrimento, Cristo elevou ao mesmo
tempo o sofrimento humano ao nível da Redenção.
Por isso, todos os homens, com o seu sofrimento, podem tornar-se participantes
do sofrimento redentor de Cristo”28.
E, mais adiante, glosando a frase de São Paulo que agora meditamos, o
Papa complementa essa reflexão: “O sofrimento de Cristo criou o bem da Redenção
do mundo. Este bem é em si mesmo inexaurível e infinito. Ninguém lhe pode
acrescentar coisa alguma. Ao mesmo tempo, porém, Cristo, no mistério da Igreja,
que é o seu Corpo, em certo sentido abriu o seu próprio sofrimento redentor a
todo o sofrimento humano. Na medida em que o homem se torna participante dos
sofrimentos de Cristo – em qualquer parte do mundo e em qualquer momento da
história –, tanto mais ele completa, a seu modo,
aquele sofrimento, mediante o qual Cristo operou a Redenção do mundo”29.
Neste mundo em que, ao lado de tantas bênçãos de Deus e de tantas almas
boas, se deixam sentir com força os ventos e tempestades do pecado, as almas
generosas que sofrem com amor, unidas ao Senhor, são como que “outros Cristos”,
que contrabalançam com a sua “Cruz” o peso dos crimes do mundo. Tornados eles
próprios uma só coisa com Cristo sofredor, são esses homens e mulheres bons –
os santos, os mártires, os inocentes, os doentes, as crianças, os “humilhados e
ofendidos”... – os que mantêm no mundo, como uma tocha acesa, a esperança da
salvação. Uma só mulher humilde que oferece, na sua cama de hospital, os seus
sofrimentos a Deus faz mais pelo bem do mundo do que muitos dos que o governam.
Estamos perante a dimensão mais alta a que a Cruz elevou as dores
humanas.
Que alegria podermos dizer com São Paulo: Estou
pregado à Cruz de Cristo. Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim!
(Gál 2, 19-20). Que alegria poder ter nos lábios e no coração as palavras de
Cristo: Eu vim para servir e dar a vida para a
redenção de muitos! (Mt 20, 28).
Com esta visão grandiosa da fé, entendem-se os ardores dos santos. “Não
peças perdão a Jesus apenas de tuas culpas – dizia mons. Escrivá –; não O ames
com o teu coração somente... Desagrava-O por todas as ofensas que Lhe têm
feito, que Lhe fazem e que Lhe hão de fazer...; ama-O com toda a força de todos
os corações de todos os homens que mais O tenham amado...” “Que importa
padecer, se se padece para consolar, para dar gosto a Deus Nosso Senhor, com
espírito de reparação, unido a Ele na Cruz..., numa palavra: se se padece por
Amor?”30
Agora já não nos parece estranha a sede de Cruz, de sofrimento, que
tinham os grandes santos; um desejo que não era doentio, mas uma “chama viva de
amor”, que os fazia ter ânsias de identificar-se com Jesus na Cruz.
É paradigmática a cena de São Francisco de Assis no Monte Alverne. Era a
manhã de 14 de setembro de 1224, festa da Exaltação da Santa Cruz. Retirado nas
solidões dos Apeninos, o Poverello
rezava ajoelhado diante da sua cela, antes de que raiasse a alva. Tinha as mãos
elevadas e os braços estendidos, e pedia: “Ó Senhor Jesus, há duas graças que
eu te pediria que me concedesses antes de morrer. A primeira é esta: que na
minha alma e no meu corpo, tanto quanto possível, eu possa sentir os
sofrimentos que tu, meu doce Jesus, tiveste que sofrer na tua cruel Paixão! E o
segundo favor que desejaria receber é o seguinte: que, tanto quanto possível,
possa sentir em meu corpo esse amor desmedido em que Tu ardias, Tu, o Filho de
Deus, e que te levou a querer sofrer tantas penas por nós, miseráveis
pecadores”.
A oração foi ouvida. Um serafim, que trazia em si a imagem de um
crucificado, imprimiu-lhe as chagas de Cristo nas mãos, nos pés e no lado.
Francisco, até no corpo, tornou-se visivelmente “outro Cristo”31.
Ninguém, porém, se uniu tão intimamente à Cruz de Cristo como a sua Mãe Santíssima
(cfr. Jo 19, 25). Ninguém mereceu, como Ela, o título de co-redentora. E
ninguém, mais do que Ela, pode ajudar-nos a abraçar com amor a Cruz de seu
Filho. “É uma Mãe com dois filhos frente a frente: Ele... e tu”32.
NÓS E A CRUZ
Segunda parte: o sacrifício
O SACRIFÍCIO VOLUNTÁRIO
Ainda nos resta abordar um aspecto importante da sabedoria da Cruz: o sacrifício voluntário.
Procuremos também agora esforçar-nos por ouvir o que Deus quer dizer-nos a este
respeito.
Comecemos por evocar o diálogo de Pedro com Jesus, que mencionávamos
páginas acima, vendo como o Apóstolo se insurgia contra o Mestre, que falava da
necessidade da Paixão. Víamos então a energia com que Cristo repelia a tentação
de fugir da Cruz. Pois bem, diz o Evangelho que, logo a seguir – como
conseqüência do “entrevero” com Pedro –, Jesus dirigiu o olhar aos outros
discípulos e lhes disse com firmeza: Se alguém
quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt
16, 24).
Uma segunda cena ajuda a compreender ainda mais essa primeira. Certa vez,
Jesus estava acompanhado de muito povo.
Era o tempo em que as multidões o seguiam com um entusiasmo em que a fé se
alternava com a emotividade superficial e o interesse. Cristo, que conhecia bem
os homens e os amava, quis gravar-lhes na alma a idéia clara de que, sem tomar
a Cruz, era impossível segui-lo pelo seu caminho, pois é caminho de amor. E
assim, voltando-se para os que o cercavam, alertou-os: Quem não carrega a sua cruz e me segue não pode ser meu
discípulo. E, para deixar essa afirmação bem vincada, ilustrou-a com
uma comparação: falou-lhes de um homem que, desejando construir uma torre,
errou nos cálculos e não previu os meios necessários para edificar. Aconteceu o
inevitável, fracassou, de modo que todos os que o viam se punham a zombar dele,
dizendo: Este homem principiou a edificar, mas não
pôde terminar! O Senhor esclareceu que assim aconteceria com aqueles
que quisessem segui-lo sem renúncia e sem Cruz (cfr. Lc 14, 25-30).
Reparemos que, nessas passagens do Evangelho, Jesus fala de algo que depende de nós. Algo que podemos fazer ou não – Se alguém quiser... –, algo que pertence,
portanto, à nossa livre iniciativa.
Sempre a Cruz deve ser tomada livremente: mesmo, como já víamos, a Cruz
do sofrimento que se abate sobre nós. Mas há um capítulo da sabedoria da Cruz que depende totalmente – com a
ajuda da graça – da nossa decisão, da nossa generosidade, e é justamente o dos sacrifícios voluntários. Se nós queremos,
sacrificamos um fim de semana para dar assistência aos pobres; se nós queremos,
deixamos de ir ao cinema para visitar um doente; se nós queremos, assumimos os
trabalhos mais pesados em casa. Mas ninguém nos impõe nada. Se não queremos,
não fazemos nada disso.
HOMEM VELHO E HOMEM NOVO
Sacrifícios voluntários? Mortificação? Penitência? Meter na nossa vida
mais “cruzes”, quando a vida já traz tantas sem que as procuremos? Por quê?
Vamos deixar que, mais uma vez, o Espírito Santo nos responda pela boca
de São Paulo.
Este Apóstolo serve-se com freqüência de uma comparação: a imagem dos dois homens que estão sempre brigando dentro de
nós: o homem velho e o homem novo. Poderíamos traduzir por “homem
modelado pelos parâmetros mundanos, pagãos” e “homem modelado – conforme a
imagem de Cristo – pela graça do Espírito Santo”.
Assim, escrevendo aos Efésios, o Apóstolo pede-lhes: Não persistais em viver como os pagãos, que andam à mercê
das suas idéias frívolas [...].
Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas
concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e
revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em justiça e santidade
verdadeiras (Ef 4, 17.22-24). É claro que lhes está propondo uma
luta árdua, mediante a qual deverão arrancar – quase como se arranca a pele – o
homem velho, para revestir-se do homem novo.
As mesmas idéias, mais sinteticamente expostas, encontramo-las na Carta
aos Colossenses: Vós vos despistes do homem velho
com os seus vícios, e vos revestistes do novo, que se vai restaurando constantemente
à imagem dAquele que o criou (Col 3, 9-10).
Um terceiro texto, dirigido aos Gálatas, completa os anteriores: Os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as
suas paixões e concupiscências (Gál 5, 24). Para entender o que quer
dizer, é preciso ter presente que, na mesma carta, havia explicado o que é a carne e as suas concupiscências
(palavra que literalmente significa maus desejos),
mostrando que por carne entende – como
é comum em textos bíblicos – o homem egoísta, afastado da graça de Deus e
mergulhado no materialismo, cujo deus é o ventre [...] e só tem prazer no que é terreno (Fil
3, 19).
Característica típica do homem velho é a de se deixar dominar pelos
desejos da carne, que – como explica
detalhadamente o Apóstolo – se chamam fornicação,
impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes,
ódio, ambição, discórdia, facções, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas
semelhantes (Gál 5, 19-21).
Esta é a carne que deve ser crucificada, ou seja, mortificada, dominada e
vencida com a renúncia, com a luta, com a Cruz.
MEIO DE PURIFICAÇÃO
A mortificação voluntária – que faz parte essencial da luta do cristão –
é um meio necessário de purificação. Santo Agostinho tem um pensamento muito
profundo a este respeito. Lembra que o homem foi criado à imagem e semelhança
de Deus, e que o pecado “deformou” essa imagem e apagou a semelhança. A graça
de Deus, recebida no Batismo, fez-nos renascer para uma vida nova. É tarefa
nossa colaborar com a graça para limpar os males que nos deformam; só assim ela
nos devolverá à “forma” primeira, que é a imagem do ser de Deus33.
Como é sugestiva esta idéia, para nos ajudar a compreender que a formação cristã não se limita ao conhecimento da
verdade, da doutrina – ler, estudar, aprender –, mas exige um trabalho de
purificação – de limpar, de extirpar, de endireitar, de podar o que procede do
egoísmo –, para podermos “arrancar a triste máscara que forjamos com as nossas
misérias”34, e estarmos em
condições de ir reproduzindo fielmente em nós os traços do nosso modelo, Jesus
Cristo.
Pensemos seriamente qual é o nosso homem
velho, quais são as nossas paixões e
concupiscências, para assim podermos descobrir as mortificações que
precisamos fazer a fim de arrancar de nós as máscaras deformantes. Não é muito
difícil adivinhar. Difícil é concretizar... e fazer.
Na realidade, todos notamos em nós mesmos defeitos que nos prejudicam,
hábitos, vícios de diversas espécies, que nos dominam; falhas de caráter que
atrapalham o nosso trabalho; atitudes desagradáveis ou omissões no nosso
relacionamento com os outros... Pois bem, é aí que deve entrar a nossa cruz, ou seja, os sacrifícios necessários
para corrigir tais defeitos.
FAZER PENITÊNCIA
Já vimos, ao tratar dos nossos sofrimentos, o imenso valor que os padecimentos
têm como meio de unir-nos à Cruz de Cristo, a fim de reparar – expiar – pelos
nossos pecados e pelos pecados de todo o mundo.
Também o sacrifício voluntário
pode ter – e muitas vezes deve ter – uma função reparadora, de penitência pelos
pecados.
O Catecismo da Igreja Católica,
ao falar dos tempos e dias de penitência, cita as práticas penitenciais que são
mais tradicionais na Igreja, porque o próprio Cristo se referiu a elas no
Sermão da Montanha (cfr. Mt 6, 1 e segs.), a saber: a oração, o jejum e a
esmola. E frisa de modo particular o valor que tem a mortificação – o jejum e
outras privações voluntárias –, como
meio de reparação dos pecados (cfr. ns. 1434 e 1438).
É muito próprio do espírito de um cristão determinar-se a cumprir algumas
dessas práticas penitenciais – além do jejum e da abstinência de carne
prescritos pela lei da Igreja – sobretudo em dias ou períodos especialmente
relacionados com a Paixão de Jesus, como são as sextas-feiras e o Tempo da
Quaresma.
Mas não deveríamos limitar-nos às obras de penitência em datas ou tempos
determinados. Todos os dias deveriam estar enriquecidos – polvilhados – por
algumas pequenas privações, oferecidas por amor e com alegria, como atos de
reparação pelos pecados próprios e alheios, e também como exercícios de
autodomínio que nos ajudassem a “converter-nos”: a ser mais senhores de nós
mesmos e, com a graça de Deus, a mudar.
Em maio do ano 2000, o Papa celebrou em Fátima a beatificação de Jacinta
e Francisco. Ao elevar os dois pastorinhos à glória dos altares, o Santo Padre
fez questão de realçar a generosidade com que ambos, a pedido de Nossa Senhora,
se entregaram à penitência “pelos pobres pecadores”. De Francisco, dizia o Papa
que “suportou os grandes sofrimentos da doença que o levou à morte sem nunca se
lamentar. Tudo lhe parecia pouco para consolar Jesus; morreu com um sorriso nos
lábios. Grande era, no pequeno Francisco, o desejo de reparar as ofensas dos
pecadores, esforçando-se por ser bom e oferecendo sacrifícios e oração. E
Jacinta, sua irmã, quase dois anos mais nova que ele, vivia animada dos mesmos
sentimentos”. Citava depois o Papa as palavras com que Jacinta se despediu de
Francisco, pouco antes de este morrer: “Dá muitas saudades minhas a Nosso
Senhor e a Nossa Senhora e diz-lhes que sofro tudo quanto Eles quiserem para
converter os pecadores”35.
Como é tocante essa lição dos pequeninos,
dos simples, que ouvem e entendem a voz
de Deus, por meio de Maria! (cfr. Lc 10, 21). Podemos ter a certeza de que a
perda do sentido da penitência, entre os cristãos, anda em paralelo com a perda
do sentido do pecado, porque se perdeu também o sentido do amor de Deus.
ABNEGAÇÃO
Há um derradeiro aspecto da cruz voluntária que ainda vamos considerar.
Estávamos meditando na condição que Cristo nos propõe para sermos seus
discípulos: Se alguém quiser vir após mim,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16, 24). Pois
bem, deve ser motivo de reflexão o fato de que essas breves palavras
programáticas sobre a Cruz comecem falando da abnegação: negue-se a si mesmo.
Várias vezes sublinhamos nestas páginas que o caminho de Cristo – o que
Ele nos convida a seguir, levando a Cruz – é um caminho de Amor. Tudo o que
Deus nos pede resume-se, de fato, no mandamento de amar
a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos (cfr. Mt
22, 37-40).
Caríssimos – insistia São João –, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e
todo o que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não
conhece a Deus, porque Deus é amor [...].
E nós temos de Deus este mandamento: o que ama a Deus ame também o seu irmão
(1 Jo 4, 7-8.21).
Nestas palavras, sentimos bater o próprio coração de Cristo. Parece-nos
ouvi-lo, na Última Ceia, a falar da sua próxima Paixão e a encarecer-nos: Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu
vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Jo
15, 12-13).
Dar a vida, dar-se aos outros. Isto é a
abnegação: renunciar à força centrípeta do egoísmo e abrir-se à força
centrífuga da caridade. Estamos aqui, talvez, no ponto mais alto da cruz voluntária, o do amor sacrificado e
generoso, que se esquece do eu, que
prescinde dos “direitos” que o egoísmo justiceiro anda sempre a exigir, e que
sabe viver todo voltado para os irmãos, disposto a sacrificar-se para fazê-los
felizes – na terra e depois no Céu –, sem cálculos nem cobranças.
Glosando a parábola do bom samaritano, figura-tipo da caridade cristã (Lc
10, 25-37), João Paulo II escrevia: “O bom samaritano da parábola de Cristo não
se limita à simples comoção e compaixão. Estas transformam-se para ele num
estímulo para ações que tendem a prestar ajuda ao homem ferido. Bom samaritano,
portanto, é afinal todo aquele que presta ajuda no
sofrimento, seja qual for a sua espécie; uma ajuda, quanto possível,
eficaz. Nela põe todo o seu coração, sem poupar nada, nem sequer os meios
materiais. Pode-se dizer mesmo que se dá a si próprio, o seu próprio eu, ao outro. Tocamos aqui um dos pontos-chave
de toda a antropologia cristã. O homem não pode encontrar a sua própria
plenitude a não ser no dom sincero de si mesmo. Bom samaritano é o homem capaz, exatamente, de um tal dom de si mesmo”36.
A abnegação cristã não se limita a fazer sacrifícios, mas é um espírito de sacrifício, habitual. Não são
abnegados os que fazem algumas mortificações e, ao mesmo tempo, se queixam da
dureza da vida, dizem que não têm tempo para pensar nos outros e choram as
renúncias que são obrigados a fazer. São abnegados os que se entregam ao
próximo com alegria, sem dar importância à sua dedicação. Este é o espírito de
Cristo. Essas almas, que refletem Cristo de um modo especial, vão espalhando
pelo mundo a fecundidade redentora da Cruz. A elas pode também aplicar-se o que
Jesus dizia de si mesmo no Domingo de Ramos: Em
verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo não se enterra e morre, fica
só; se morre, produz muito fruto (Jo 12, 24).
Como é grande o campo da abnegação cristã! Abnegação na família,
abnegação no trabalho; dedicação generosa aos doentes, aos anciãos, aos necessitados;
idealismo prático e atuante, que contribua para a solução dos problemas
educacionais, habitacionais, sociais... São tantas coisas! Não queiramos ficar
na teoria neste ponto – em nenhum ponto da vida cristã –, e concretizemos, da
forma que seja mais adequada às circunstâncias e capacidades de cada qual, os
modos práticos de entrar na aventura da abnegação.
Não seríamos cristãos se nos omitíssemos, se não nos movesse, como um
fogo interior, o desejo de servir a todos. Numa homilia sobre o Coração de Jesus,
o Bem-aventurado Josemaría Escrivá lançava esta mensagem vibrante: “Um homem,
uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se
esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do Coração de
Cristo. Os cristãos – conservando sempre a mais ampla liberdade à hora de
estudar e de aplicar as diversas soluções, e, portanto, com um lógico
pluralismo – devem identificar-se no mesmo empenho em servir à humanidade. De
outro modo, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus”37.
Se alguém quer servir-me –
dizia Cristo –, que me siga; e, onde eu estiver,
também ali estará o meu servidor (Jo 12, 26). Ele nos precedeu e nos
marca o caminho com os seus passos.
Epílogo
A CRUZ E A ALEGRIA CRISTÃ
Ao longo destas páginas, debruçamo-nos sobre o mistério da Cruz,
concentrando quase que exclusivamente nela o olhar da nossa alma, para assim
captar melhor o que a Cruz – mistério fundamental do cristianismo – significa.
Mas olhar para a Cruz não é olhar para todo
o panorama da vida cristã.
Por isso, antes de encerrarmos as nossa reflexões, parece necessário que,
depois de meditarmos sobre o que a Cruz é,
reflitamos brevemente sobre o que a Cruz não é.
Assim o quadro ficará mais completo. Não pensemos que, com isso, embaçaremos o
lustre da Cruz; pelo contrário, ao percebermos o que a Cruz não é, vê-la-emos brilhar com fulgores ainda
mais intensos.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que a Cruz – ainda que seja
imprescindível – não é a única via
existente para atingir a santidade cristã, a plenitude do amor. É uma grande
verdade que não há cristianismo nem santidade sem Cruz; mas é errado julgar que
os atos que não estão marcados pelo sofrimento ou pelo sacrifício árduo não têm
valor diante de Deus. O que dá valor sobrenatural, meritório, aos nossos atos é
a caridade, o amor a Deus e ao próximo. Por isso, muitas vezes
se tem repetido – e com toda a razão – que a menor das pequenas ações
domésticas de Nossa Senhora em Nazaré – tendo em conta que a sua alma imaculada
possuía um grau de amor elevadíssimo – tinha mais valor e merecia mais graça e
prêmio do que o martírio de muitos santos.
Se cumprimos com amor a Deus e com amor ao próximo o menor dos nossos
deveres, esse dever santifica-nos: “Queres de verdade ser santo? – pergunta
mons. Escrivá –. Cumpre o pequeno dever de cada momento; faz o que deves e está
no que fazes”. E, na mesma linha: “Um pequeno ato, feito por Amor, quanto não
vale!”38
São Paulo fala com alegria de que até os pequenos prazeres honestos do
comer e do beber podem ser um meio de santificação e de glória de Deus, quando
vividos em espírito de ação de graças ao Senhor: Quer
comais, quer bebais ou façais qualquer outra coisa –escreve – fazei tudo para a glória de Deus (1 Cor 10, 31).
Pelo contrário, os maiores sacrifícios, feitos sem amor, não valem nada: Ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não
tivesse caridade, de nada me valeria (1 Cor 13, 3).
É verdade que o espírito de desprendimento, a disposição alegre de tomar a Cruz, o esquecimento de nós mesmos,
devem estar sempre a postos na alma do cristão; mas não é menos verdade que
encontramos a Deus inúmeras vezes em tarefas, em tempos de oração, em
conversas, em momentos de amor e de amizade, em lazeres honestos, que nos dão
imenso prazer, e que, se estão de acordo com a Vontade de Deus e impregnados do
seu amor, nos santificam tanto como o sacrifício difícil feito com o mesmo
nível de amor. No meio dessas horas felizes, como condimento que lhes faz mais
delicioso o sabor, não falta, com certeza, a pequena mortificação amável, mas a
mortificação não é o que dá o caráter próprio a esses atos bons.
Em segundo lugar, é preciso afirmar que a Cruz não é o ponto final, nem
na vida de Cristo nem na vida do cristão. E aí está precisamente o seu segredo
e a sua grandeza.
Na vida de Cristo, a Cruz foi o caminho escolhido pela Santíssima
Trindade para chegar ao triunfo da Ressurreição, que é a verdadeira meta da
Redenção: a vitória do Redentor sobre o pecado, o demônio e a morte, que Jesus
Ressuscitado nos oferece – como Vida nova e imortal – a todos nós. A Cruz levou
Cristo ao cume do Amor, mas esse cume era como o monte que deve ser transposto
para se atingir o vale da felicidade que não morre. O mistério da Cruz é mistério pascal, de passagem:
passagem da morte para a Vida, do pecado para a graça, da tristeza
para a alegria que ninguém nos poderá tirar
(Jo 16, 22).
Cristo, triunfante e glorificado, ostentando com imensa alegria as chagas
vitoriosas da sua Paixão (cfr. Lc 24, 39), derrama finalmente sobre nós o
Espírito Santo, o Amor pessoal de Deus, que é o grande “fruto da Cruz”39, para que inunde as nossas almas com a sua
graça, com os seus sete dons e com a abundância dos seus frutos: amor, alegria, paz, paciência, bondade... (cfr.
Gál 5, 22).
É por tudo isto que os autênticos cristãos nunca encararam a Cruz com ar
tristonho ou com complexo de vítima. Nunca se obsessionaram neuroticamente com
o sofrimento. Nunca se queixaram da Cruz santa, que é o pórtico da alegria.
Gozaram ao sofrer, convencidos de que aquela dor não era um mal, mas a raiz de
uma alegria maior. Assim, souberam carregar “a Cruz às costas, com um sorriso
nos lábios, com uma luz na alma”40,
souberam abraçar a dor com alegria, dando graças ao Senhor por conceder-lhes o
privilégio de “participar da sua doce Cruz”41.
Sobre essa “arte cristã de sofrer com fé, esperança e amor” escrevi
algumas páginas em outra pequena obra sobre A
paciência42. Nela se
evoca o exemplo empolgante de vários homens e mulheres do nosso tempo que
sofreram com paz, com categoria, sem que se notasse, e com o coração totalmente
voltado para os outros. Permita-me o leitor remetê-lo para o que lá está
escrito.
Dentro dessa perspectiva, desejava terminar com umas palavras de mons.
Escrivá, que são como que um teste da sabedoria da
Cruz. Se nos acharmos perto do que nelas se contém, é sinal de que
começamos a adquirir, com o auxílio do Espírito Santo, essa divina sabedoria; se nos sentirmos longe, peçamos a
Deus e a Maria Santíssima que acendam essa luz da sabedoria
da Cruz dentro do nosso coração:
“Sinais inequívocos da verdadeira Cruz de Cristo: a serenidade, um
profundo sentimento de paz, um amor disposto a qualquer sacrifício, uma
eficácia grande, que brota do próprio Lado aberto de Jesus, e sempre – de modo
evidente – a alegria: uma alegria que procede de saber que, quem se entrega de
verdade, está junto da Cruz e, por conseguinte, junto de Nosso Senhor”43.
NOTAS
(1) Salvador Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Quadrante, São
Paulo, 1978, pág. 264; (2) Símbolo Niceno-Constantinopolitano; (3) ver, por
exemplo, Rom 4, 25; Gál 1, 4; Ef 1, 7; 1 Pe 3, 18; 1 Jo 1, 7; 1 Jo 2, 2; Apoc
1, 5, etc.; (4) São Tomás de Aquino, Exposição
sobre o Credo, Presença, Rio de Janeiro, 1975, pág. 44; (5) João
Paulo II, Carta apostólica Salvifici doloris,
11.02.1984, n. 17; (6) João Paulo II, Carta apostólica Novo millennio ineunte, 6.01.2001, n. 25; (7) ibid., n. 16; (8) Bem-aventurado Josemaría
Escrivá, Via Sacra, 4a. ed., Quadrante,
São Paulo, 2000, pág. 17; (9) São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, 10, 17; (10) Javier
Echevarría, Itinerarios de vida cristiana,
Planeta, Barcelona, 2001, págs. 172 e 174; (11) São Boaventura, Vitis mystica, 3,
11 (PL 184, 643); (12) João Paulo II, Alocução da
quarta-feira, 9.11.1988; (13) Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, n. 22; (14) Liturgia das Horas, dia 22 de junho, Ofício da
manhã, 2a. leitura; (15) citado em Perfil do
Fundador..., pág. 323; (16) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Caminho, 9a. ed., Quadrante, São Paulo, 2000,
ns. 691, 773, 758 e 217; (17) João Paulo II, Novo
millennio ineunte, ns. 25-27; (18) Bem-aventurado Josemaría Escrivá,
Santo Rosário, Quadrante, São Paulo,
1976, pág. 73; (19) Santa Teresa de Ávila, Caminho
de perfeição, 18, 1; (20) João Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, José Olympio, Rio de
Janeiro, 1962, pág. 71 e segs.; (21) Luis Rosales, La
casa encendida, Ed. La encina y el mar, Madrid, 1949, pág. 86; (22) Perfil do Fundador..., pág. 416; (23)
Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Sulco,
Quadrante, São Paulo, 1987, n. 235; (24) Via Sacra,
págs. 29-30; (25) cfr. Caminho, n. 756;
(26) Via Sacra, pág. 46; (27)
Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Amigos de Deus,
2a. ed., Quadrante, São Paulo, 2001, n. 310; (28) Salvifici
doloris, n. 19; (29) ibid.,
n. 24; (30) Caminho, ns. 402 e 182;
(31) Fioretti de São Francisco, 3a.
consideração, e Vita prima de Tomás de
Celano; (32) Caminho, n. 506; (33) cfr.
Santo Agostinho, Sermão 125, 4 (PL 38,
962); (34) cfr. Via Sacra, pág. 33-34;
(35) João Paulo II, Homilia da Beatificação,
Fátima, 13.05.2000; (36) Salvifici doloris,
n. 28; (37) Josemaría Escrivá, É Cristo que passa,
Quadrante, São Paulo, 1975, n. 167; (38) Caminho,
ns. 815 e 814; (39) É Cristo que passa,
n. 96; (40) Via Sacra, pág. 18; (41) Caminho, n. 658; (42) Francisco Faus, A paciência, Quadrante, São Paulo, 1995; (43)
Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Forja,
Quadrante, São Paulo, 1987, n. 772.
ÍNDICE
A LOUCURA DA CRUZ...... ....................... 3
Um companheiro inseparável...... ....................... 3
A dor que sorri.......... ....................... 4
O que Jó aprendeu.... ....................... 5
“Tira as sandálias”........ ....................... 8
O DIABO E A CRUZ............. ....................... 10
Uma cena desconcertante ....................... 10
A sombra do diabo.............. ....................... 12
O jogo do diabo não acabou............ ....................... 13
Felicidade e prazer...... ....................... 14
As duas sabedorias....... ....................... 18
DEUS E A CRUZ...... ....................... 19
Por que a Cruz?........... ....................... 19
Um mistério de salvação.......... ....................... 20
A Cruz atinge as raízes do mal............. ....................... 22
Um mistério de amor............... ....................... 24
Mistério de amor sem fim.................. ....................... 26
Olhar para Cristo...... ....................... 28
O sofrimento transfigurado... ....................... 29
NÓS E A CRUZ. Primeira parte: o
sofrimento.................... ....................... 32
Seguir os passos de Cristo.............. ....................... 32
A dor que é fonte de paz.................. ....................... 34
“Entender” e “saber”... ....................... 35
A dor que faz amadurecer..... ....................... 37
A dor que nos purifica....................... ....................... 39
A dor que nos “chama”.......... ....................... 41
A cruz que ensina a amar............... ....................... 42
A cruz que faz “co-redimir”........... ....................... 44
NÓS E A CRUZ. Segunda parte: o
sacrifício. ....................... 48
O sacrifício voluntário........ ....................... 48
Homem velho e homem novo............... ....................... 49
Meio de purificação.. ....................... 51
Fazer penitência........ ....................... 52
Abnegação................. ....................... 54
Epílogo: A CRUZ E A ALEGRIA CRISTÃ......... ....................... 57