FRANCISCO
FAUS
O HOMEM BOM
QUADRANTE
São Paulo
1990
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1990 QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais
Capa
José C. Prado
Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, entre outros, os títulos O valor das dificuldades, O homem
bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens, Maria, a mãe de
Jesus, A voz da consciência e A paz na família.
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SER BOM
HOMENS BONS
Uma das
impressões mais gratas e indeléveis da vida é ter conhecido um homem bom.
Quando evocamos a figura de pessoas que nos marcaram pela sua bondade, sentimos
um misto de admiração e agradecimento. Encontramo-las na vida, talvez tenhamos
tido a fortuna de conviver com elas e, sempre que as recordamos, brota-nos de
dentro o impulso de pensar ou de comentar: “Esse, sim, era um homem bom!”
Mas se nos
perguntam por que dizemos de certa pessoa que é “boa”, possivelmente nos será
difícil expressá-lo em poucas palavras. Talvez só consigamos descrever alguns
traços dessa bondade que tanto nos toca, dizendo: é alguém que trata bem a todo
o mundo, tem um coração grande, é compreensivo, prestativo, solícito..., seus
sentimentos são puros e generosos... Ficaríamos, porém, com a impressão de não
termos sabido exprimir cabalmente o que sentimos, da mesma maneira que não
poderíamos explicar a luz do sol limitando-nos a descrever a incidência de
alguns dos seus raios na folha verde, no azul de uma janela ou no rosto de uma
criança.
Em todo o
caso, deixaríamos clara uma coisa, e é que consideramos boa uma pessoa que,
dotada de especiais qualidades morais, exerceu sobre nós uma influência
benfazeja. Pois acontece que a bondade é captada sobretudo pelos seus efeitos.
Talvez não saibamos dizer com exatidão o que é, mas certamente sabemos
que uma pessoa boa nos faz bem.
Com efeito, a
bondade, quando existe, nota-se pela sua irradiação. Este é um ponto essencial
para captarmos o que é e o que significa.
Sempre que há
alguma irradiação – tanto nos seres físicos como nos espirituais –, é porque há
“algo” que projeta o seu influxo. Do nada, nada irradia. Só a matéria
incandescente é fonte de claridade e de calor. Da mesma forma, a ação benfazeja
de um coração sobre o nosso só pode proceder de uma qualidade interior
desse coração. O próprio Cristo fala-nos da bondade como de um tesouro
interior do qual podem ser extraídas riquezas que beneficiam os outros: O
homem bom tira boas coisas do seu bom tesouro; e o mau homem tira más coisas do
seu mau tesouro (Mt 12, 35).
O que é,
porém, esse tesouro? Para início de reflexão, e antes de procurarmos uma
resposta, muito nos poderá ajudar delimitarmos previamente as diferenças que
separam a bondade aparente – falsa bondade – da bondade real.
A BONDADE APARENTE
Todos
conhecemos pessoas que estão cercadas de uma auréola de bondade. Têm fama de
bons. Parentes e conhecidos costumam referir-se a elas dizendo: “É tão bom!”...
Mas, não raro, começam a frase que assim os qualifica com um adjetivo: “Coitado,
é tão bom!...”, e acompanham o comentário com um sorriso de condescendência.
Logo adivinhamos o que se esconde por trás do adjetivo e do sorriso: uma “bondade”
que está unida à falta de firmeza de espírito e de força de caráter. Uma
bondade mole e superficial.
Não é que
essa “bondade” seja uma “pose” ou uma atitude hipócrita. Não se trata, no caso,
de uma pessoa que finja sentir o que não sente. Trata-se de homens ou mulheres
que têm bom coração e uma natural inclinação para facilitar a alegria e o bem-estar
dos outros. Mas a sua bondade é frágil, inconsistente. Não é autêntica porque
se apóia sobre dois pilares falsos: um temperamento complacente e um
sentimentalismo brando.
Essas pessoas
“bonachonas” – só “bonachonas”, não “boas” – fogem instintivamente de qualquer
tipo de conflitos ou estridências. Detestam cordialmente brigas e desavenças.
Gostam de agradar a todo o mundo e, por isso, tendem a concordar com tudo, a
ceder em tudo. A sua maior aspiração consiste em estar em paz com todos e gozar
do apreço geral. Sempre nos darão razão – mesmo que não a tenhamos –, contanto
que com isso nos sintamos satisfeitos e não nos criem, nem lhes criemos,
perturbações.
O “bondoso
superficial” parece compreensivo, mas é apenas tolerante. Não é que “compreenda”,
isto é, que entenda profunda e amorosamente os outros, para assim ajudá-los.
Simplesmente, concorda com tudo para ganhar, com a sua condescendência, a
estima alheia.
O “bondoso
superficial”, o “bonachão”, quer ser amável, mas não ama. Não passa de um
fraco, que não sabe dizer “não”. Por isso, os que com ele se relacionam, sabem
que, no fundo, não têm um amigo, nem um pai ou uma mãe que os amem na plena
acepção da palavra; têm somente um cúmplice muito conveniente.
A criança
mimada, que diz “papai é mau” sempre que este a contraria, não se cansa de
dizer que a avó é “muito boazinha”, porque lhe consente todos os caprichos.
É claro que
tais bonachões não são bons. E não o são precisamente porque não nos
fazem bem. A bondade, ou comunica um bem – um valor que aumenta a
nossa qualidade moral –, ou não é bondade.
AS TRAIÇÕES SENTIMENTAIS
Os falsos
bons, na realidade, passam a vida alimentando com ramos odoríferos a caldeira
do nosso egoísmo, sem reparar que, querendo deixar-nos felizes com a sua
brandura, nos fazem deslizar cada vez mais para o abismo da nossa infelicidade.
É um fato que só o amor e a verdade nos realizam, e o egoísmo nos destrói.
Por sua vez,
o bondoso sentimental é ele próprio um egoísta. A sua máxima aspiração é “ficar
bem”, “ser agradável”, “ser simpático”. E, em troca de granjear o nosso apreço,
não hesita em abençoar a mentira e acobertar o mal.
O filho ou um
amigo estão à beira de desmanchar o casamento por motivos fúteis? Jamais
passará pela mente do “bonachão” estender-lhes a mão com sacrifício, ajudá-los
a reagir, passar um mau bocado para tentar que reconsiderem o mau passo que
estão prestes a dar e enfrentem o dever. Preferirá observar tudo “sem
interferir”, e achará por bem comentar docemente: “Deixa, ele tem o direito de
ser feliz”. Uma vez consumada a catástrofe, que pode ter conseqüências
irreversíveis – especialmente para os inocentes, para os filhos –, o nosso
homem “bom” limitar-se-á a sacudir a cabeça e a comentar: “Vamos torcer para
que dê tudo certo”.
É o mesmo
que, enganando miseravelmente a sua consciência, deixará passivamente que a
filha se envolva com amizades bem pouco recomendáveis, porque não quer atritos
e – além do mais – é muito incômodo carregar a etiqueta de “pai antiquado e
tirânico”. Por isso, não será nem tirano – no que fará bem – nem pai – no que
fará pessimamente. E quando estourarem as conseqüências lamentáveis da sua
omissão, chorará lágrimas mansas e se consolará dizendo: “A juventude atual é
difícil, é diferente da juventude dos meus tempos”. Mas a filha já estará
moralmente aniquilada.
Os bons
sentimentais e vazios são os protagonistas constantes do que poderíamos chamar
a “anti-parábola” do bom samaritano.
Na parábola
evangélica relatada por São Lucas (Lc 10, 25-37), o bom samaritano encontra
estendido na estrada um judeu que acaba de ser assaltado por ladrões e que está
ferido e meio morto. Que fazer? O judeu é seu inimigo – pois, como é sabido,
judeus e samaritanos se odiavam –, e portanto o problema não parece ser da sua
conta. Vencendo, contudo, essas barreiras, decide-se a atendê-lo. E faz tudo
para assisti-lo e curá-lo. Primeiro, limpa-lhe as feridas, suavizando-as com
óleo e purificando-as com vinho; depois, carrega-o na sua montaria e instala-o
numa estalagem, adiantando o dinheiro necessário para que tratem dele. As suas
ocupações obrigam-no a afastar-se por umas horas, mas logo volta à hospedaria
para certificar-se de que não faltou ao enfermo nenhuma assistência. Cuidou
dele em tudo, resume Cristo. Por isso, o bom samaritano fica no Evangelho
como a imagem perfeita da bondade movida pelo amor.
Pois bem.
Imaginemos – caricaturizando a cena – o que teria feito um samaritano “bonachão”.
Não é difícil descrever a “anti-parábola”, pensando em tantos homens “bons” que
infelizmente andam pelo mundo. Chega ao pé do ferido e sente-se impressionado. “Coitado!”,
exclama, e acrescenta: “Neste mundo acontece cada coisa!” Acocora-se junto
dele, dirige-lhe um olhar terno e limita-se a “consolá-lo”: “Dói muito? Vai
ver, não há de ser nada”. Nem cogita de intervir no caso: se pegar nele para
cuidá-lo, pode “machucá-lo” ou pode “comprometer-se”. Limita-se, por isso, a
dar-lhe uma afetuosa palmadinha, a colocar-lhe um pano bem almofadado debaixo
da cabeça e a afastar-se comovido com os seus próprios sentimentos, ao mesmo tempo
que murmura baixinho: “Acho que assim vai sentir-se melhor”. Naturalmente o
ferido, envolto em tanta “bondade”, morrerá poucas horas depois. É possível que
o “bondoso” deixe ainda alguma esmolinha para o enterro.
Ironias à
parte, qualquer pessoa lúcida é capaz de compreender que isto é o que fazem
conosco os bonachões de que estamos falando.
A BONDADE REAL
Retomemos uma
idéia anterior. Bom, de verdade, é somente aquele que nos faz bem, e o bem
é acima de tudo o valor moral e espiritual de uma pessoa. Portanto, bom mesmo é
somente aquele que nos ajuda a ser melhores.
Quando já
vivemos um bom pedaço da vida e olhamos para trás, contemplamos um vasto
panorama de vicissitudes diversas, de erros e acertos, de perigos que nos
ameaçaram, de dúvidas que nos paralisaram, de alegrias e tristezas. Mas, no
meio dessas lembranças, todos nós podemos ver brilhar uns pontos de luz que
jamais esqueceremos: pessoas que, no momento em que mais precisávamos, nos
fizeram bem: “Fulano – dizemos – ajudou-me muito”, “significou muito para mim”;
“graças a Sicrano, consegui superar um problema grave (ou uma crise ou um
estado de ânimo) que poderia ter-me arrasado”...
Mesmo sem
darmos por isso e sem dizê-lo explicitamente, estamos falando de “homens bons”.
Inconscientemente, possuímos a convicção de que foram bons, para nós, aqueles
que nos despertaram para ideais mais nobres, que nos deram a mão para levar-nos
a encontrar um sentido mais alto da vida, que iluminaram as nossas escuridões
interiores fazendo-nos compreender aquilo por que vale a pena viver.
Em suma,
foram “bons” os que nos elevaram a um maior nível de dignidade moral e
nos ajudaram a ser melhores, mesmo que para isso tivessem precisado, em algum
momento, de fazer-nos sofrer. Contribuíram, em suma, para que descobríssemos e
abraçássemos o bem, e não se contentaram com deixar que nos “sentíssemos
bem”...
Se, para
tanto, foi necessário que nos aplicassem uma enérgica e paciente “cirurgia”,
não duvidaram em fazê-lo, mesmo sabendo que, de início, não os
compreenderíamos. Souberam ter a coragem – pensemos, por exemplo, nos pais e
educadores – de dizer-nos serenamente “não” e de manter essa sua posição, em
defesa do nosso bem, ainda que nós a interpretássemos como teimosia prepotente
e irracional. Passado o tempo, compreendemos e agradecemos o que essa energia
amorosa significou para nós.
O homem bom
recusa-se a tomar como princípio de comportamento o infeliz ditado segundo o
qual “aquele que diz as verdades perde as amizades”. Pratica a lealdade sincera
quando o nosso bem está em jogo. Certamente, não confunde a sinceridade com a
franqueza rude, que se limita a lançar-nos em rosto os nossos erros e defeitos
em tom áspero e acusatório. Mas arrisca-se de bom grado a ser incompreendido, a
ser tachado de moralista e de intrometido, quando percebe que precisa falar-nos
claramente, caridosamente mas sem ambigüidades, e não hesita em praticar aquela
excelente obra de misericórdia que consiste em “corrigir o que erra”, a fim de
levá-lo a encontrar a retidão do caminho moral.
Calar-se,
deixando o barco correr... e afundar-se é, sem dúvida, mais cômodo. Alhear-se,
ou até mostrar-se conivente com os erros alheios, atrai benevolências e
simpatias. Mas é uma forma covarde de omissão e uma triste colaboração com o
mal.
ESBOÇO DO HOMEM BOM
Homem bom é,
pois, aquele que exerce sobre nós uma influência benfazeja, uma influência que
tem como efeito elevar-nos, ajudar-nos a alcançar uma maior altura
moral.
Por isso, o
homem bom tem, principalmente, uma qualidade: o dom de despertar-nos do sono
espiritual, da letargia moral, da mediocridade e da acomodação. É alguém que
nos impele a “olhar para cima” e nos ajuda – sobretudo com o seu exemplo – a
ver a bondade como uma meta acessível.
O ambiente
que nos cerca leva-nos facilmente a ser medíocres. Os idealistas são poucos, e
não raro parecem ingênuos ou tolos, se os compararmos com muitos dos que vemos
triunfar ou, pelo menos, singrar na vida: os egoístas, os espertos e os
aproveitadores. Com efeito, aspirar a pautar a vida pela honestidade, pela fidelidade,
pelo mérito, pelo desprendimento ou pela sinceridade – para falar apenas de
algumas facetas do ideal moral – pode ser algo de muito belo na teoria, mas dá
a impressão de ser muito pouco útil na prática, pouco eficaz na luta pela vida.
Na “selva” do mundo, parecem apagar-se as fronteiras que separam o “bom” do “bobo”.
Daí que, lá
no fundo, muitos prefiram ser “como todo o mundo”. E se um idealismo maior lhes
bate às portas da alma, afastam-no com desconfiança: não vamos complicar a vida
– dizem –, não vamos ser tolos, é mais garantido ficar na “média”, como todos
fazem; os Ícaros que pretendem voar muito alto com asas de cera acabam
despencando ao chão.
Até que, numa
hora qualquer da vida, deparamos com um homem bom. O primeiro choque que
experimentamos ao tomar contacto com ele é o desconcerto. Começamos a
vislumbrar nessa pessoa algo de inexplicável – pois foge aos padrões habituais –
e, ao mesmo tempo, de estranhamente atraente.
Percebemos
que é alguém que pensa de maneira diferente, vive de maneira diferente.
Acredita em valores mais altos, abraça-os com serena convicção e não vacila em
pautar por eles a sua vida. Prescinde tranqüilamente do que a maioria considera
imprescindível para ser feliz: o egoísmo interesseiro, o comodismo, o culto do
prazer e do bem-estar, o jogo de pequenos e grandes enganos para obter
vantagens... Abraça com firmeza a honestidade, a dedicação desinteressada, o
sacrifício, o amor serviçal, a renúncia voluntária, para fazer felizes os
outros... Parece estar a um milímetro da utopia, da loucura ou da estupidez. E,
no entanto, deixa-nos a impressão indestrutível de ser infinitamente mais
alegre, mais realizado e vitalmente mais rico do que a massa anódina sobre a
qual, mesmo sem o pretender, ele se eleva.
É por isso
que o homem bom nos obriga a olhar “para cima” e também “por cima” dos nossos
esquemas mentais e das nossas opções rotineiras. É como que uma bandeira que
incita a entrar por caminhos novos, caminhos que lá no fundo da alma nós
desejaríamos trilhar para curar o coração cansado de sábias espertezas e de
prudentes mediocridades. E, com o seu exemplo, vem a dizer-nos que esses
caminhos são possíveis e mostra-nos o roteiro a seguir.
A limpa
autenticidade do homem bom faz-nos descobrir o norte, o verdadeiro norte da
vida, e para ele nos atrai. Dele irradia, sem palavras, um apelo que nos
sugere: vale a pena viver assim e é possível viver assim; se nós o
conseguíssemos, alcançaríamos a plenitude de paz e felicidade que sempre
sonhamos e ainda não conquistamos.
BONDADE E COERÊNCIA
Mas o homem
bom não se limita a despertar-nos para a bondade. Faz-nos acreditar nela.
Todos sabemos
por experiência que tudo quanto tem “cheiro de falsidade”, de hipocrisia,
inspira desconfiança; e, pelo contrário, tudo o que é autêntico desperta
credibilidade.
A verdadeira
bondade infunde confiança precisamente porque está marcada de modo simples, sem
ostentações, pelo selo da verdade. Neste caso, da coerência. Um homem
realmente bom possui uma harmonia habitual entre palavra e vida, entre interior
e exterior, entre vida privada e vida profissional ou social. Não tem duas
caras, não tem duas vidas, não é duplo. É sempre o mesmo.
O hipócrita
bem-falante pode enfeitar-se de belas frases, gestos elevados e propostas
sublimes. Mas todos se apercebem de que tudo isso não passa de um balão
colorido, acobertando um imenso vazio. É uma pura encenação, é uma triste
farsa. Cristo chamaria a tudo isso o brilho da cal branca sobre o sepulcro de
um morto (cfr. Mt 23, 27).
O homem bom,
pelo contrário, se fala de valores e de ideais, é porque os vive: as suas
sugestões, os seus conselhos, as suas correções – quando se trata de corrigir –
têm o frescor fecundo das águas vivas que brotam do manancial da alma. São
sangue do seu sangue. Por isso movem, tocam, incentivam, atraem. Transmitem o
calor da autenticidade. E despertam o desejo de imitação.
Nunca deixa
de nos atingir positivamente, e de nos incitar a melhorar, o exemplo ou a
palavra de um homem reto e coerente. Todos nos sentimos instintivamente
dispostos a levar a sério a opinião, o juízo ou o conselho de uma pessoa que
mantém tranqüilamente a mesma altura moral e o mesmo grau de bondade em
qualquer ambiente. Quer seja no lar, na rua, no escritório ou na roda de
amigos, é sempre idêntico a si mesmo: aberto, dedicado, paciente, solícito,
construtivo, alegre, cheio de fé. Não tem virtudes de ocasião ou qualidades de
feira. Não é o camaleão que se adapta aos diversos ambientes com o afã de “ficar
bem”. Possui um quilate moral que atravessa, sem distorcer-se, todas as
vicissitudes e situações.
Seria bom que
os pais pensassem nisto, pois a sua falta de coerência costuma destruir as mais
belas falas. E os filhos têm um radar sensibilíssimo para captar o “fundo falso”
de todos os sermões dos pais que dizem e não fazem (cfr. Mt 23, 3).
VITÓRIA SOBRE A
MESQUINHEZ
Devemos
acrescentar ainda mais alguns traços a essas qualidades que desenham o retrato
do homem bom. É evidente que ser bom não significa ser impecável. Quando o
jovem rico do Evangelho se atirou aos pés de Cristo, perguntando-lhe com os
olhos a brilhar: Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?,
Jesus respondeu-lhe: Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão só Deus
(Mc 10, 17-18).
Somente Deus
possui a perfeição sem defeito, em plenitude. Os homens somos todos falíveis, e
os nossos melhores esforços e qualidades vão sempre acompanhados pelo
contraponto dos erros, pecados e misérias. Seria, pois, uma ilusão imaginar que
o homem de uma só peça que acabamos de retratar não tivesse fissuras nem brechas.
Mas, dentro
deste quadro da inevitável debilidade humana, o homem verdadeiramente bom
possui uma qualidade marcante: nunca o vemos dominado por fraquezas
mesquinhas ou baixas. E este é um ponto importante.
O homem bom
pode ter – e realmente tem – momentos de ira, de cansaço, de impaciência ou de
preguiça. Mas não é escravo de sentimentos pequenos: no seu coração, nunca
lançam raízes as paixões baixas do calculismo – não regateia, querendo baratear
a sua doação –, da inveja, do melindre, da suscetibilidade, do ressentimento ou
da vingança. É um homem fraco e pecador – como todos os homens –, mas ao mesmo
tempo é um coração livre da triste teia de aranha que amesquinha muitas almas:
o egoísmo e seu irmão gêmeo, o amor-próprio doentio. Tem um coração maior que
essas misérias.
Este é outro
dos motivos por que a sua bondade irradia, com um calor atraente. A mesquinhez
ensombrece e degrada a bondade. Quando admiramos alguém, e inesperadamente
descobrimos que está dominado por alguma dessas pequenas paixões que acabamos
de mencionar, sentimos uma profunda decepção. É como se a luz divina, que até
então iluminava nele ideais de grandeza, de repente se tivesse empanado.
Nobre pela
sua coerência e livre de mesquinhez, o homem bom se nos revela assim em toda a
sua riqueza espiritual. Só ele é capaz de harmonizar traços morais que, na
maioria dos homens, apenas se encontram de forma parcial ou conflitante.
A verdadeira
bondade sabe conjugar estavelmente a energia na atuação e a compreensão com as
pessoas; o entusiasmo pelos ideais, trabalhos e objetivos, e o desprendimento;
a firmeza de critério e a prudente flexibilidade; a equanimidade e o ardor; a
serenidade e a paixão; a grandeza de alma, que não se conforma com a
mediocridade, e a humildade de coração; a capacidade de ser, ao mesmo tempo, um
grande despertador de inquietações – alguém que nos sacode a inércia e o
comodismo – e um transmissor de paz.
Qualidades
que parecem contrárias, e até incompatíveis, convivem em equilíbrio na alma do
homem bom. São como as cores diversas, que se fundem numa única luz. Por isso,
o homem bom deixa-nos sempre a impressão de ser um homem “completo”, em que as
virtudes atingem a medida certa e compõem um conjunto de rara beleza e
equilíbrio. É isso que as torna sugestivas e atraentes e incita à imitação.
AS FONTES DA BONDADE
Contudo,
seria um engano pueril imaginar que esse quadro de virtudes é um dom inato,
como um privilégio que a fortuna reservasse apenas a alguns eleitos. Ninguém
nasce bom. O homem “naturalmente bom” de Rousseau é simplesmente um mito, que a
vida, a cada passo, se encarrega de desmentir.
Certamente
todos nós possuímos tendências temperamentais que nos inclinam mais facilmente
para determinadas atitudes positivas: há homens naturalmente calmos, outros que
são temperamentalmente mais afáveis e prestativos, outros ainda que sentem uma
especial facilidade para transmitir-nos bom humor... Mas não há ninguém que
possa atingir o conjunto das virtudes que constituem a bondade se se deixa
levar apenas pelas suas inclinações naturais. Ao lado de tendências positivas,
em todo o homem coexiste um molho de tendências negativas. Não é em vão que
todos trazemos na alma as marcas hereditárias do pecado original, que nos
inclinam para o mal.
Já dizia
Tertuliano, o escritor africano do século II, que “o cristão não nasce, faz-se”.
A bondade não brota espontaneamente, como uma planta silvestre, mas forja-se na
alma como o ferro trabalhado na fornalha.
Santo
Agostinho, evocando reminiscências de infância, registrava que o espontâneo, no
homem – desde os inícios da vida –, é o egoísmo: um egoísmo que às vezes
aparece escancarado e cru, e outras mascarado de bons sentimentos e de brandura
emocional. Já o considerávamos antes, e é oportuno tê-lo em conta de novo para
compreendermos melhor de onde é que surge a bondade.
Qual é,
enfim, a forja da bondade? Desde já podemos adiantar a resposta: a bondade é
sempre resultante da graça de Deus e da luta, do esforço do homem. É nestes
dois pontos que devem ser procuradas as suas fontes.
Num dos primeiros
perfis biográficos de Mons. Josemaría Escrivá, recolhem-se palavras do
jornalista italiano Giuseppe Corigliano que, num artigo publicado em Il
Giorno de Milão, refletia sobre a bondade desse homem de Deus, sobre “a sua
grande compreensão para com todas as situações humanas, a sua grande capacidade
de amar e aquele garbo e simpatia que tornavam agradabilíssimo o seu trato.
Conhecendo-o melhor – concluía –, intuía-se que aquela grande capacidade de
tratar tão intimamente todas as pessoas era fruto da sua grande intimidade com
Deus. Mais do que com palavras, ensinava com os fatos que quem possui uma fé
autêntica é mais humano, conserva maior capacidade para compreender a vida e as
coisas belas e justas deste mundo” (Salvador Bernal, Perfil do Fundador do
Opus Dei, Quadrante, São Paulo, pág. 194).
Lembrávamos
antes que o encontro com um homem realmente bom produz em nós, já de início, um
sentimento de surpresa. Ficamos intrigados, tentando achar resposta para uma
série de perguntas que a sua bondade suscita: de onde lhe vem essa paciência e
afabilidade, unida a uma firme coerência de ideais? De onde tira as forças para
não se deixar abalar, desanimar ou corromper pelo ambiente que o cerca? Qual a
razão da alegria com que pratica a renúncia e se sacrifica pelos outros com um
sorriso? Que força interior o move?
A explicação
desses enigmas sintetiza-se numa só palavra: Deus. Só Deus é bom (Mc 10,
18), e os homens são bons na medida em que vivem com Deus e de Deus. Por outras
palavras, a bondade é comunicada à alma pela união com Deus através da fé e do
amor. Quando um homem crê, e faz da fé princípio de vida, quando vai ganhando
uma amorosa intimidade com Deus, quando se abre à graça divina, esse homem se “diviniza”,
vai-se tornando semelhante a Deus (cfr. 1 Jo 3, 2). E então atrai precisamente
por isso, porque – mesmo carregando com inevitáveis imperfeições – é uma “transparência
de Deus”.
Conta-se, na
vida de São João Maria Vianney, o Cura d'Ars, que certa feita um homem
descrente se uniu aos peregrinos que acorriam à cidadezinha de Ars, para ver e
ouvir o santo sacerdote. Movia-o a curiosidade, e estava com a idéia
preconcebida de desmascarar o prestígio daquele que se lhe afigurava um
embaidor de beatas. Teve oportunidade de contemplar de perto o santo, e o simples
fato de vê-lo, ouvi-lo e cruzar os seus olhos com os do pobre pároco
revolveu-lhe profundamente a alma. Quando lhe perguntaram a sua opinião sobre o
“palerma” que fora observar como se fosse uma curiosidade de circo, só soube
responder, com a voz embargada: “Vi Deus num homem”.
Este é o
primeiro e principal segredo da bondade. Poderíamos dizer que o homem bom é
como um metal, fundido, purificado e modelado na forja de Deus. A graça divina
é o fogo dessa fornalha. Mas a graça exige correspondência. De nada serviria se
faltasse o esforço, o “martelar” sincero do homem por modificar os seus
pensamentos, sentimentos e ações, e a luta por reformá-los, com decisão e
empenho, de acordo com as exigências do amor de Deus.
Não há
bondade sem luta. Contando sempre, e em primeiro lugar, com o auxílio da graça,
só se torna bom aquele que – por assim dizer – começa por ser “mau” consigo
próprio, isto é, por combater decididamente, um a um, todos os desvios –
hábitos, defeitos – que o egoísmo tende a enraizar no coração. É preciso
insistir neste ponto: não existe bondade se não há uma árdua peleja interior,
uma constante mortificação, um “não” enérgico ao egoísmo. Como lapidarmente diz
Caminho, “onde não há mortificação, não há virtude”, não há bondade
(Josemaría Escrivá, Caminho, n. 180).
E é evidente,
por outro lado, que esse combate não se restringe ao interior do homem. Não são
só as paixões egoístas que hostilizam os ideais da bondade, pois é preciso
enfrentar também a pressão do ambiente, da mentalidade e dos costumes sociais
que – como uma enxurrada envolvente – se opõem a cada passo aos ideais da
bondade e às virtudes cristãs. Por isso, o homem bom tem necessariamente que
ser um forte, dotado de firme coragem para se manter fiel aos seus valores,
mesmo que estes choquem com o ambiente e suscitem incompreensão.
Somente como
resultado dessa luta fiel é que surge, do pobre barro humano, o que São Paulo
chama a criatura nova (Ef 4, 24), que se vai configurando conforme a
imagem de quem o criou (Col 3, 10). Quem se esforça por ser bom, acaba
realizando em si mesmo – modelado pela graça de Deus – a mais pura definição do
homem: imagem e semelhança de Deus (Gen 1, 26). E, por isso mesmo, acaba
refletindo na sua vida, como num espelho, a mais simples e bela definição de Deus:
Deus é amor (1 Jo 4, 8).
BONDADE E
AMOR
ABRIR-SE AOS OUTROS
Ninguém é
bom, ninguém é bondoso para si mesmo. A bondade dirige-se sempre aos outros:
somos bons para alguém. Homem bom é aquele que está, de modo habitual e
permanente, amorosamente aberto aos outros. Precisamente porque é bom – e, por
isso, quer “fazer o bem” –, vive voltado para o próximo, dá-lhe valor e
concede-lhe prioridade nos seus interesses. A bondade é sempre calor de
coração, que envolve os seres humanos com uma doçura cheia de força. Vamos
dedicar as próximas páginas a considerar mais de perto a bondade no seu influxo
benfazejo.
Para o homem
bom, os outros não são nunca estranhos. Não os enxerga nunca como
inimigos que ameaçam o recinto fechado do seu egoísmo, provocando
interferências e criando incômodos. Nenhuma pessoa é alheia ao mundo do seu “eu”.
Os outros, sejam eles quem for, tenham os defeitos que tiverem, fazem parte do
seu universo de afetos e interesses. Por isso não o aborrecem nem o
surpreendem, pois tem o coração mais inclinado a amar do que a amar-se a si
mesmo.
É próprio do
egoísmo ver o próximo com uma ponta de reserva: o “outro” é, para o egoísta, um
possível “inimigo” de que tem que defender-se ou, pelo menos, precaver-se. O
egoísta tem o coração inteiramente ocupado pelo “eu”, denso e pesado como o
chumbo. Admitir “outros” dentro de si significa ter de aceitar uma sobrecarga.
Daí que esteja sempre com receio de que lhe perturbem os esquemas, de que lhe
roubem o tempo, de que lhe tirem a tranqüilidade, de que lhe exijam renúncias;
e sofre por ter que aturar defeitos aborrecidos e limitações cansativas. O
egoísta é mal-humorado e impaciente. Incapaz de dar, só sabe receber.
Bem
expressiva é, a este respeito, a alegoria do mata-borrão e da fonte.
Os egoístas assemelham-se ao mata-borrão: só sabem absorver, dos outros, o que
favorece os seus interesses, o que lhes traz vantagens ou lhes causa agrado.
Acontece, porém, que essa absorção egoísta, em vez de enriquecê-los, os
destrói. O mata-borrão ensopado fica inservível, desmancha-se todo, e o seu
destino final é a lata do lixo.
Outros
homens, pelo contrário, podem ser comparados a uma fonte. O manancial dá-se
incansavelmente, ignorando o que seja reter ou sugar. O esbanjamento generoso
das suas águas não só não o empobrece, como o transforma num foco contínuo de
fecundidade. À sua volta, a terra árida transforma-se num jardim e as plantas
ressequidas experimentam um estremecer de vida. Para a fonte, viver é fazer
viver.
Pois bem, o
coração do homem bom, tal como a fonte, vive a criar vida e frutos em todos os
que o cercam. Não pensa que lhe tiram o que é seu – a sua paz, a sua
tranqüilidade, o seu tempo, as suas energias –, porque o seu amor só sabe
dizer, como o pai do filho pródigo: Tudo o que é meu é teu (Lc 15, 31).
Tudo o que é dele está aberto aos outros, e é mais “dele” quanto mais é
participado pelos outros.
BENIGNIDADE
Livre das
sombras do egoísmo, o homem bom possui uma qualidade cativante, que é uma das
suas mais expressivas características: é benigno com todos.
A benignidade
é, antes de mais nada, um especial modo de ver os outros. Para
expressá-lo de maneira simples, poderíamos dizer que é benigno aquele que
enxerga o próximo “com bons olhos”, e isto significa que possui uma inclinação
habitual para fixar a sua atenção no “lado bom” das pessoas. Dentro do seu
coração, está convencido de que não há nenhuma criatura que não tenha valor.
Percebe amorosamente que em cada ser humano, de um modo ou de outro,
encontram-se as sementes, o latejar do bem. Pois todo o homem, por mais
deficiente que seja, conserva – mesmo por entre as mais densas sombras do
pecado – a “imagem de Deus”, uma “imagem” que pode e deve ser amada.
“Dentro do
avarento mais egoísta – dizia Paul Claudel –, no interior da pior prostituta e
do mais indecente bêbado há uma alma imortal, santamente ocupada em respirar e
que, não podendo fazê-lo de dia, ao menos no repouso do sono pratica a sua
adoração noturna”. No interior do mais degradado pecador – poderíamos
acrescentar – há um santo à espera de que o despertem. E só poderá acordá-lo o
amor, o respeito e a confiança de um coração bom.
A BONDADE NÃO DESPREZA
NINGUÉM
Uma atitude
que se situa do lado contrário da benignidade é o desprezo. Quando
Cristo quis desmascarar a “bondade” hipócrita dos fariseus, começou por dizer
que havia uns homens que confiavam em si mesmos, como se fossem justos, e
desprezavam os outros (Lc 18, 9).
O fariseu
despreza precisamente porque se considera justo, porque é orgulhoso. Ao
julgar-se perfeito e gabar-se das suas pretensas perfeições, considera
inferiores aqueles que, em seu conceito, não as possuem: “Não sou como os
outros homens”, diz, inchado de autocomplacência.
É próprio do
orgulhoso manifestar uma irritada intolerância com os defeitos do próximo. Tal é
o caso do homem que se aborrece porque a mulher, o colega ou os filhos são
desordenados, ou distraídos e lerdos, ou pouco inteligentes, inoportunos,
teimosos, rebeldes... Admirando-se a si mesmo como a um “deus”, julga
intolerável que os demais não sejam “à sua imagem e semelhança”. Por isso, está
continuamente a lançar-lhes em rosto, de modo humilhante, os defeitos que é
incapaz de compreender: “Você nunca faz nada direito”, “parece mentira que não
tenha um pingo de sensatez”, “não há quem o agüente”...
Com essa
incapacidade para a compreensão, é natural que o orgulhoso se canse, e
esse cansaço em face dos demais é outra forma – não menos dolorosa – de
menosprezo. Frases como “já chega”, “não dá mais”, “desisto de tentar”,
aplicadas ao próximo, indicam que a bondade fracassou dentro do coração de quem
as pronuncia. A “decepção” é a morte da bondade.
Mas, vejamos
com calma. Por que nos sentimos decepcionados com alguém? Será, porventura,
porque o amamos? Não, certamente. É porque nos amamos demasiado a nós mesmos,
porque nos adoramos como a um pequeno ídolo ridículo, e por isso exigimos dos
outros as qualidades que nos satisfazem e que “servem” a nossa satisfação.
Há, por
exemplo, pais que se sentem decepcionados com os seus filhos porque não
conseguiram moldá-los como argila, de acordo com o modelo que idealizaram para
a sua satisfação pessoal. Tinham feito, como um cineasta, o “roteiro” da vida
do “filho ideal”, prevendo todas as etapas e calculando todos os detalhes. E
eis que os filhos, usando da sua liberdade – e, às vezes, secundando o plano
que Deus preparou para eles – rasgam o “roteiro” do pai (vai seguir a mesma
carreira que eu, vai trabalhar comigo, vai ser rico e importante, etc.) e
traçam o seu próprio caminho. Nessa altura, o pai sente que foram cortados os
fios com que pretendia comandar os filhos como marionetes, e mergulha na
decepção. Mesmo as mais belas opções de vida feitas pelos filhos, se estão à
margem do “roteiro” paterno – por exemplo, dedicar-se inteiramente a Deus,
escolher uma profissão menos brilhante mas mais aberta ao serviço do próximo,
abraçar ideais de pesquisa científica ou de arte –, parecem-lhe tolices,
idealismos estúpidos que vão estragar-lhes a vida. Na realidade, estão
estragando apenas os sonhos egoístas do pai.
Também nos
cansamos e decepcionamos facilmente com os outros porque não corrigem os seus
defeitos – defeitos reais, falhas objetivas – com a rapidez que nós
desejaríamos. Uma e outra vez reincidem nas mesmas faltas, continuam com as
mesmas reações, mantêm inalteradas as arestas do seu caráter. Então,
desanimados, só sabemos recriminar, repetindo como um disco rachado: ele fala
demais, esquece tudo, chega atrasado, não me escuta, gasta sem controle, etc.,
etc. E, ao pensarmos nesses defeitos sempre reiterados, sentimo-nos com o
direito de dizer: “Isso cansa”. Daí a desistir de compreender e ajudar há só um
passo, o passo que o “cansado” acaba dando quando se rende à decepção e
conclui: “Não tem conserto”. Extinguiu-se então a confiança e instalou-se no
coração o desprezo. Nas próximas páginas consideraremos como a confiança
inabalável nos outros é um dos traços mais belos da bondade.
ATENÇÃO AMOROSA
Não
desprezar. Aqui temos o que poderíamos chamar o “primeiro mandamento” da
benignidade. Valorizar e confiar, esta é a versão positiva desse mandamento.
Uma das
manifestações mais comoventes da bondade de Cristo é a sua infinita capacidade
de prestar uma atenção amorosa e confiante a todos, mesmo aos que parecem mais
pervertidos e irrecuperáveis. É uma atitude que vemos a cada passo nos relatos
evangélicos, ao contemplarmos o modo acolhedor e esperançado com que Cristo
encara os pecadores, os miseráveis, todos aqueles que aparecem como o rebotalho
imprestável do mundo.
Há,
concretamente, uma passagem do Evangelho em que essa atitude se revela com
grande transparência. São Lucas pinta a cena com os traços de um drama em que
intervêm dois personagens, Cristo e um fariseu chamado Simão. Ambos contemplam
o mesmo fato: a irrupção inesperada de uma mulher pecadora na casa do fariseu,
onde Jesus estava à mesa juntamente com outros convidados. E eis que uma
mulher, que era pecadora na cidade, quando soube que Ele estava à mesa em casa
do fariseu, levou um vaso de alabastro cheio de bálsamo. Estando a seus pés,
detrás dEle, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas, enxugava-os com os
cabelos da sua cabeça, beijava-os e ungia-os com bálsamo (Lc 7, 37-38).
Aquela pobre mulher, tocada na alma pela divina bondade de Cristo, não sabe o
que fazer para expressar a sua dor, o seu arrependimento.
Dois pares de
olhos fixam-se especialmente nela: os do fariseu Simão e os de Cristo. Ambos
observam a mesma cena, a mesma pessoa, os mesmos gestos. Mas vêem coisas
inteiramente diferentes.
O fariseu
fixa na pecadora o olhar do desprezo: Vendo isto, o fariseu que o tinha
convidado disse consigo: Se este fosse profeta, com certeza saberia quem e qual
é a mulher que o toca, e que é pecadora. Simão só vê o “lado mau”.
Cristo, pelo
contrário, dirige à pecadora o olhar do amor benigno. Mansamente, volta-se para
o fariseu e diz-lhe: Simão, tenho uma coisa a dizer-te... E o que Cristo
vai dizer-lhe, com um laivo de tristeza, é que Simão ainda não aprendeu a
enxergar com bondade, ainda não aprendeu a apreciar o valor dos outros com uma “atenção
amorosa”.
Um credor – começa
Cristo – tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários, o outro
cinqüenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou a ambos a dívida. Qual deles,
pois, mais o amará? O que equivale a dizer: Simão, onde tu vês um
atrevimento despudorado, eu vejo amor. Esta pobre criatura chora a pena do
arrependimento e a alegria do perdão.
E prossegue: Vês
esta mulher?... – sim, é necessário, é importante conseguir “ver” os outros
–, vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; e esta
com as suas lágrimas banhou os meus pés e enxugou-os com os seus cabelos. Não
me deste o beijo da paz, mas esta, desde que entrou, não cessou de beijar os
meus pés. Não ungiste a minha cabeça com bálsamo, mas esta ungiu com bálsamo os
meus pés. Pelo que te digo: São-lhe perdoados os seus muitos pecados porque
muito amou (cfr. Lc 7, 40-47).
Como se
percebe bem aqui o modo de olhar de Jesus! Mais do que ninguém, Cristo
era capaz de penetrar no abismo de mal que o pecado cavara naquela alma. E mais
do que ninguém, por ser Ele Deus – Deus feito homem –, podia sentir-se atingido
pelo pecado, pois este é, acima de tudo, ofensa a Deus.
Nada disso,
porém, passa para o primeiro plano no olhar de Cristo. Na escuridão do pecado
que envolve a alma daquela mulher, não detém a vista no que o ofende; só vê
brilhar – como a luz que cintila numa noite escura – a bondade que começa a
desabrochar naquela alma dolorida. Apenas vê o “lado bom”, a raiz de bondade
que está a despertar e que Ele pode e quer ajudar a crescer.
O fariseu,
sem dúvida, teria expulsado asperamente a pecadora, e com isso certamente a
teria ferido, teria abafado a sua esperança, tê-la-ia acorrentado, talvez para
sempre, ao seu mal. Cristo estende-lhe a mão e a salva: A tua fé te salvou;
vai em paz (Lc 7, 50).
Na atitude de
Cristo encontramos matéria abundante para meditar.
O ESPELHO DOS NOSSOS
DEFEITOS
Estamos vendo
que a falta de bondade se manifesta, entre outras coisas, pela reação que os
defeitos alheios provocam em nós: umas vezes, de impaciência; outras, de
desprezo ou cansaço. E já percebemos que tais reações não são propriamente “provocadas”
pelos defeitos dos outros, mas são “ativadas” pelo nosso egoísmo ou pelo nosso
orgulho.
Talvez
compreendamos melhor o que se passa conosco se percebermos que, devido ao nosso
egoísmo e à nossa autosuficiência, a primeira coisa que notamos nos outros é a
sombra que os seus defeitos projetam sobre o espelho dos nossos próprios
defeitos. Por outras palavras, os defeitos alheios incomodam-nos precisamente
porque ferem um defeito nosso. Alguns exemplos podem esclarecer-nos.
Não é raro
que um marido se sinta tremendamente aborrecido quando, ao chegar a casa
cansado no fim do expediente, a mulher se dedica a martelar-lhe os ouvidos com
uma longa cantilena de reclamações e lamentos: o elenco das contrariedades do
dia. A reação espontânea do marido é perder o bom humor: “Por que não me deixa
em paz? Será que não compreende que tenho direito a um pouco de tranqüilidade
após um dia de trabalho estafante?”
Aparentemente,
este marido tem razão. E certamente a esposa faria bem se guardasse para si as
suas queixas e se ocupasse em tornar mais amável o convívio familiar. Mas
também é verdade que a reação de impaciência e desgosto do marido não nasceu do
amor: a ladainha enfadonha da mulher projetou-lhe uma sombra sobre o seu
comodismo, feriu o seu comodismo, e por isso o perturbou. Fosse um homem de
coração generoso, e a fraqueza da mulher se projetaria sobre o espelho do amor
compreensivo, e nesse caso a reação seria outra.
Poderíamos
falar também da impaciência do pai que recebe o boletim do colégio do filho
enfeitado de vermelhos. É natural que esse mau desempenho nos estudos preocupe
o pai e até que o deixe indignado. É lógico que tenha uma conversa menos suave
com o filho. Mas, ao mesmo tempo, seria muito bom que analisasse o seu coração
e se perguntasse: estou reagindo só por amor ao filho, pelo seu bem, ou porque
me humilha que o meu garoto seja dos últimos da classe, e isso projeta uma
sombra no espelho da minha vaidade? Pode muito bem acontecer que o sentimento
predominante seja este último, e então a impaciência é a reação de um defeito
pessoal atingido.
O mesmo
poderíamos dizer quando notamos que possuímos uma grande facilidade para “ver”
que os nossos colegas são antipáticos, pouco inteligentes, maçantes e
desleais..., quando, na realidade, o que “não vemos” é que estamos deixando-nos
dominar pela inveja, pois o que nos aborrece é que, apesar de tantas
deficiências que observamos neles, estão-se saindo melhor do que nós e tendo
maior sucesso no seu trabalho.
Já dizia o
Padre Vieira que “os olhos vêem pelo coração; e assim como quem vê por vidros
de diversas cores, todas as coisas lhe parecem daquela cor, assim as vistas se
tingem dos mesmos humores de que estão bem ou mal afetos os corações” (Sermão
da quinta Quarta-feira, 1669).
Quando o
coração é limpo e bom, enxerga as coisas limpas e boas do mundo, especialmente
as coisas limpas e boas dos outros. Se está manchado, projeta a sua sujidade em
tudo.
Se fôssemos
mais humildes e esquecidos de nós mesmos, ao percebermos que as fraquezas e os
erros dos outros fazem saltar como uma mola os nossos próprios defeitos,
começaríamos por tentar limpar esses nossos defeitos. Um pequeno inseto pousado
sobre uma ferida aberta incomoda muito. Mas se curarmos essa ferida, a presença
do inseto sobre a pele sadia será quase imperceptível.
Meditando
nestes aspectos, Santo Agostinho sugeria um sistema excelente: “Procurai
adquirir as virtudes que julgais faltarem aos vossos irmãos, e já não vereis os
seus defeitos, porque vós mesmos não os tereis” (Enarrat. in Psalmis,
30, 2, 7).
Vale a pena
tentar essa experiência. Suponhamos, por exemplo, que estamos a conviver com
uma pessoa ríspida. Fala bruscamente, agride com comentários, critica tudo. Isso
“provoca-nos” e impele-nos a retrucar com a mesma moeda: quase sem repararmos,
também nós nos tornamos agressivos e azedos. Esforcemo-nos por dar uma virada.
Tentemos, como ensina São Paulo, vencer o mal com o bem (Rom 12, 21).
Iniciemos decididamente uma campanha de paciência, amabilidade e mansidão. É
muito provável que aconteçam duas coisas: primeiro, que a pessoa que nos “provoca”
fique desarmada perante a nossa afabilidade, e mude; segundo, que nós mesmos,
com a alma limpa de preocupações egoístas, venhamos a descobrir que aquela
rispidez “incompreensível” outra coisa não era senão a amargura de alguém que
não sentia reconhecido e valorizado o seu trabalho; ou então era o queixume
surdo de quem tinha ânsias de um pouco mais de atenção que ninguém lhe dava.
Uma vez feita essa constatação, já não veremos mais um defeito que aborrece,
mas uma carência que, com carinho, procuraremos aliviar. Passaremos a olhar o
problema com o calor aconchegante da bondade.
Como dizia
alguém, “somente nos irritam os nossos defeitos”. As agulhadas e impertinências
dos outros são “cutucões” sobre os nossos defeitos, que Deus permite para que
os vejamos melhor e nos decidamos a vencê-los. Se arrancarmos os nossos
defeitos, as “pedras” do nosso campo – da nossa alma –, não sentiremos mais os “pontapés”
dos outros, porque não terão onde tropeçar. Se todos nós compreendêssemos estas
verdades simples, haveria mais paz nas famílias e, em geral, no convívio
humano, e muitas desavenças crônicas abririam passagem à harmonia.
DESCULPAR E ESPERAR
É impossível
existir bondade sem compreensão. E é impossível existir verdadeira compreensão
sem a disposição de desculpar.
Todas as
vezes que julgamos uma pessoa e concluímos, como quem dita uma sentença: “Ela é
assim”, “é insuportável”, “é maçante”, “é preguiçoso”, etc., estamos a condená-la.
Ao fazer tais juízos, colocamos nos outros uma etiqueta, como se faz num frasco
ou num inseto colecionado, e os fechamos nessa definição. Dizer de uma pessoa: “Ela
é assim” equivale a perder a esperança de que venha a mudar. Como se
partíssemos da base de que vai ser assim para sempre e de que o máximo de
bondade que lhe podemos dedicar é apenas sermos pacientes, suportando-a tal
como é.
Mas essa
apreciação é falsa, está viciada na raiz, porque todo o ser humano tem na alma “sementes
de bondade”, latentes mas reais, que podem ser desenvolvidas. Nenhuma pessoa
consiste apenas nos defeitos que denota exteriormente. Todas têm infinitas
possibilidades de bem que – com a graça de Deus, o seu esforço e a nossa ajuda –
um dia podem vir a ser belas realidades. Por isso, Cristo nos manda não
condenar ninguém (cfr. Lc 6, 37), como se já estivesse “acabado”.
O contrário
de condenar é desculpar e esperar. O coração do homem bom está sempre inclinado
a desculpar. Ao julgar os outros, evita usar o verbo “ser” – Fulano é
assim –, e prefere empregar o verbo “ter”: essa pessoa, que – como todos os
filhos de Deus – é potencialmente santa, agora, por uma série de
circunstâncias, tem tal ou qual defeito, mas isso não quer dizer que
sempre deva tê-lo. É muito provável que uma série de dificuldades a levem a
comportar-se assim. É justo tê-las em conta. Talvez seja grosseira porque não
recebeu uma educação esmerada, ou arrogante porque foi humilhada e sente
necessidade de se afirmar, ou impaciente porque lhe dói o fígado... Sempre há
uma desculpa, afetuosa, que os “bons olhos” da bondade detectam, uma desculpa
com fundamento objetivo, real, que impede que julguemos esta ou aquela pessoa
com dureza e, ainda mais, que a desclassifiquemos.
Certamente os
outros têm defeitos, como nós os temos, mas felizmente não estão acorrentados
por eles como um sentenciado a prisão perpétua. Está nas nossas mãos – está nas
mãos da nossa bondade – desamarrar-lhes esses grilhões. Esta é uma das mais delicadas
tarefas do amor benigno: não deixar ninguém de lado por impossível, antes
dar-lhe a mão, ajudá-lo incansavelmente – com infinita compreensão e paciência –
a soltar um a um os elos dos defeitos que compõem essas suas correntes.
Naturalmente,
isto pressupõe que saibamos confiar – como víamos – na capacidade de
bondade das pessoas, e portanto na sua possibilidade de mudar. Já foi dito
alguma vez que perder a confiança em alguém é matá-lo. Também é verdadeira a
afirmação contrária: confiar em alguém é dar-lhe a vida.
É claro que
essa confiança não se confunde com a credulidade ingênua, que fecha os olhos e
julga que, afinal, todo o mundo é bom. A verdadeira confiança é outra coisa. O
homem bom não é cego nem insensível aos valores. Não deixa de ver o mal, em
toda a sua dimensão perniciosa, e chama erro ao erro, e pecado ao pecado. Mas,
ao mesmo tempo, acredita com todas as suas forças que aquelas “sementes de
bondade” que dormem em cada coração humano podem ser ativadas, podem ser
cultivadas. Por isso, arregaça as mangas e, sem reclamar dos espinhos dos
outros, trabalha para que neles desabrochem as rosas.
A BONDADE CULTIVA O BEM
O homem bom faz
bem aos outros somente com a sua presença, pela força atraente das
virtudes. Mas o seu influxo benéfico não se limita a isso. Acabamos de ver que
tem a disposição de trabalhar, de fazer alguma coisa para que o bem desabroche
nos outros. Vive, para dizê-lo em poucas palavras, a serviço do bem dos outros.
Não há dúvida
de que este é um belo ideal de vida. Quem não almeja passar pelo mundo
deixando, como Cristo, uma esteira de bondade, fazendo o bem (At 10,
38)? “Que a tua vida – lê-se em Caminho – não seja uma vida estéril. –
Sê útil. – Deixa rasto. – Ilumina com o resplendor da tua fé e do teu amor” (n.
1). Estas palavras são todo um empolgante programa de bondade.
A este
propósito, lembro-me de um livro que me causou impressão. Intitulava-se “Viveu
para ninguém”, e era o romance de um homem medíocre, vulgar, que passou pelo
mundo sem deixar rasto algum. Dele se poderia dizer, como um triste epitáfio,
que teria dado na mesma se nunca tivesse existido. Seria penoso que um tal
epitáfio se pudesse aplicar a nós.
Pois bem, é
hora de nos perguntarmos sinceramente o que nós deixamos de bom nos corações e
nas vidas dos que vivem e trabalham conosco. Como estamos contribuindo para o
seu bem?
Comecemos por
convencer-nos de que a primeira ajuda que devemos prestar-lhes consiste em não
lhes criar dificuldades. Porque, infelizmente, com freqüência somos mais
obstáculo do que auxílio. E o pior é que não nos apercebemos disso. Se nos
dissessem: “A sua esposa, o seu filho, o seu colega, o seu pai, têm tais e tais
problemas, tais e tais defeitos, e você é a causa deles”, levaríamos uma
surpresa. “Como assim?”, retrucaríamos. “Eu, que tenho que sofrer esses
defeitos, ainda por cima sou culpado deles?” Pois sim, muitas vezes o somos.
Tomemos por
exemplo um honesto pai de família, trabalhador abnegado, daqueles que “só vivem
para a família”. Trabalha em dois empregos e volta cansado ao lar. Ao mesmo
tempo, tem um temperamento fechado, não é homem de muitas palavras. Os
familiares vêem-no soturno e calado, e não se atrevem a interferir no seu
aparente mau humor. Caso lhe perguntem: “Está aborrecido? Acontece-lhe alguma
coisa?”, responderá, com olhar de surpresa, que não lhe acontece nada. Talvez
acrescente: “Sou assim mesmo, é o meu jeito”.
Ora, acontece
que esse “jeito” é uma barreira. Bloqueia o diálogo com a esposa e os filhos. A
mulher, sentindo-se cada vez mais isolada, sem poder compartilhar as suas
fadigas com o marido, irá ficando cada vez mais nervosa e multiplicará as
faltas de paciência com as crianças. O marido lamentará que os nervos da mulher
estejam criando um ambiente pesado no lar. Mas nem lhe passará pela cabeça que
foi ele quem o provocou, com a sua cômoda abstenção. Se tivesse aprendido a
chegar ao lar sorrindo, acolhendo, interessando-se pelos problemas da mulher e
dos filhos, teria criado condições para um diálogo amável. Teria facilitado um
clima cordial, em que os nervos dos outros se dissolveriam. E haveria paz.
De modo
análogo, podemos pensar no chefe de um escritório que reclama da falta de
iniciativa de um dos seus subordinados: acha que é um homem sem garra no
trabalho, que lhe falta entusiasmo e realiza as suas tarefas de modo rotineiro
e como que a contragosto. Certamente, este não é o estado de ânimo ideal para
um trabalho dinâmico e criativo. Mas de quem é a culpa? Pode muito bem suceder
que semelhante inibição e falta de eficiência do empregado tenha sido provocada
por esse mesmo superior, que nunca soube incentivá-lo, nem teve paciência para
ensiná-lo, nem lhe ofereceu o estímulo de uma palavra positiva, que fizesse o
outro sentir-se valorizado. Só soube cobrar e criticar. A culpa, sem dúvida
nenhuma, é do chefe.
Isto é
dificultar o bem dos outros com os nossos defeitos e as nossas omissões. Aí não
há bondade, porque não lhes fazemos bem.
MODOS DE AMAR
Conta-se de
um velho almirante da reserva que, quando queria pintar a fachada da sua casa –
vivia numa cidade onde era costume pintá-las pela primavera –, mandava o pintor
à casa do vizinho que morava em frente, para lhe perguntar de que cor gostaria
que a pintasse. O bom velhinho explicava esse seu modo de proceder dizendo: “Afinal,
ele, o vizinho, é quem ficará vendo a fachada todos os dias; é natural que eu a
pinte ao gosto dele”. É uma delicada transparência do coração do homem bom, que
vive sempre voltado para o bem e para a alegria dos outros, e nisso encontra a
sua maior satisfação.
Isto faz
pensar nas nossas atitudes e, concretamente, na facilidade com que incorremos
num erro de perspectiva: com a melhor das boas vontades, dedicamo-nos a amar os
outros “ao nosso modo”, mas esquecemo-nos de amá-los “ao modo deles”, o que
seria muito melhor.
Entendamo-nos.
Não basta dizer, quando nos preocupamos em ajudar os outros: “Faço isto pelo
seu bem”. É necessário ter uma fina intuição para fazer “isto” do “modo” que
contribua mais eficazmente para o seu bem.
Um pai que
corrige o filho, imediata e energicamente, todas as vezes que depara com uma
desobediência ou uma irresponsabilidade, pode estar intimamente convencido de
que atua “apenas e tão somente” pelo bem desse filho. E, caso o garoto se lhe
torne revoltado, mentiroso e desleal, sentir-se-á profundamente magoado, ao
mesmo tempo que se lamenta: “Depois de tantos desvelos, de tanta dedicação para
educá-lo...”
Esse pai, por
mais que se sinta magoado e recrimine a ingratidão do filho, não está com a
razão. E não está precisamente porque não foi capaz de amá-lo “ao modo dele”,
isto é, procurando o “modo” mais fecundo de lhe fazer o bem.
Com isto, já
estamos esclarecendo que, quando dizemos “ao modo dele”, não pensamos que o
amor paterno deva acomodar-se a todos os caprichos e vontades do filho. Se
fizesse isso, esse pai cairia naquela “bondosidade mole” que mais destrói do
que edifica. A expressão “ao modo dele” significa, neste caso, o esforço da
mente e do coração por acertar com a maneira realmente eficaz de ajudar o filho
a ser melhor.
Podemos dar
por certo que esse mesmo pai, se tivesse atuado com mais paciência e,
sobretudo, se tivesse dedicado mais tempo a fazer-se amigo do filho,
conseguiria que as suas correções fossem construtivas. É muito fácil “cair em
cima” e dizer “eu tenho razão”. Já foi lembrado por alguém que, por ter razão,
até agora ninguém foi para o céu. É muito mais profícuo guardar a razão, ao
menos provisoriamente, no bolso, e pensar seriamente: “Como posso mesmo
ajudá-lo a melhorar?”
Não tenhamos
dúvida de que o pai em foco ajudaria imenso se gastasse mais algum tempo no fim
do dia, e nos fins de semana, a sair, jogar bola, discutir música e conversar
com o filho, tornando-se assim o seu melhor amigo. Nesse clima de amizade
confiante, poderia orientá-lo e corrigi-lo, quando fosse o caso, com palavras cheias
de credibilidade, já que o filho perceberia que, se o pai o contraria, não é
por ser um maníaco perfeccionista nem por estar irritado, mas porque gosta dele
e o quer ajudar. É a isto que chamamos amar “ao modo” dos outros. Uma arte
extremamente necessária e certamente nada fácil. Só o amor generoso é capaz de
aprendê-la.
A PEDRA PRECIOSA
Mons.
Escrivá, um sacerdote que irradiou bondade, despertando milhares de corações
para o bem, costumava dizer que cada pessoa, cada alma, deve ser tratada como uma
pedra preciosa.
Não existem
duas pedras preciosas idênticas, que possam ser lapidadas da mesma maneira. O
bom lapidador estuda-as uma a uma, e daí tira conclusões sobre o modo de
extrair o máximo de perfeição e beleza de cada uma delas.
Assim deve
ser com as almas. O estudo atento do lapidador é, neste caso, a afetuosa
atenção que prestamos a cada pessoa, esforçando-nos por compreender o seu modo
de ser, o porquê das suas arestas e pontos frágeis, as linhas em que melhor
pode ser “trabalhada”. E o modo de tratá-la, de ajudá-la, decorrerá dessa
prévia compreensão.
Para tanto,
não é necessário possuir conhecimentos muito especializados de psicologia.
Basta a psicologia do afeto, que proporciona uma profunda acuidade aos olhos. O
amor de uma mãe não precisa de manuais de psicologia para intuir, de modo
certeiro, o que está acontecendo com o filho. Basta o carinho, o interesse e a
vontade de se dar.
Não
esqueçamos, por outro lado, que todo o bom lapidador é paciente, o que
significa que tem a consciência de que, para transformar um diamante bruto num
esplêndido brilhante, vai precisar de longo tempo, de trabalho minucioso, e que
só pouco a pouco irá progredindo no seu lavor.
Eis aqui
outra das manifestações da autêntica bondade. Assim como a bondade mole se compõe
de superficiais pinceladas de amabilidade, a verdadeira bondade traduz-se numa
dedicação infatigável. Dá-se sem pausa, espera sem cansaço e não desiste
jamais. Persiste incansavelmente, sem abrandar a generosidade da entrega, até
ver despontar finalmente os frutos; e aguarda confiante – permita-se-nos
repeti-lo – que as “sementes de bondade” dos outros acabem por germinar. A
doação de um homem bom nunca é estéril.
O TESOURO VERDADEIRO
Com as
reflexões anteriores, procuramos desenhar um quadro da bondade atuante. Agora,
olhando com perspectiva essa pintura, é necessário concluir que, dentre os
traços do quadro, talvez esteja faltando ressaltar o principal.
A razão é
simples. Todas as cores que se juntam para compor a luz da bondade apontam para
uma única finalidade, várias vezes recordada ao longo destas páginas: fazer o
bem. Por isso, o que é realmente decisivo é ter uma idéia clara sobre o
verdadeiro conceito de bem. De nada adiantaria empenharmo-nos
generosamente em fazer o bem aos outros, se, no final das contas, terminássemos
por descobrir que, pretendendo ajudá-los, involuntariamente lhes fizemos mal
ou, o que vem a dar na mesma, lhes proporcionamos bens fictícios e omitimos o
bem real. Daí a grande importância de não perdermos nunca de vista qual é o
verdadeiro bem do homem, o único bem, sem o qual nenhum dos outros
merece esse nome.
A resposta a
essa pergunta sobre o bem já foi dada por Cristo: Que aproveita ao homem
ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma? Ou que poderá dar o homem
em troca da sua alma? (Mt 16, 26).
Estas
palavras brilham como um lampejo no meio da escuridão. Nenhum “bem” vale a pena
se a alma estiver privada da Vida da graça de Deus. Com efeito, sem a graça
divina, uma alma está morta e, então, as melhores qualidades e “bens” de que
possa dispor não passam de flores vistosas enfeitando um cadáver. Estando
ausente a vida, “de que aproveitam” as flores?
Deveriam
pensar mais nisto todos os que amam, todos aqueles que, por terem a fé cristã,
são capazes de compreender a perspectiva de Cristo. Sim, deveríamos entender
que “querer bem” outra coisa não é que “querer o bem” do próximo, e que não há
bem algum quando falta Deus. “A quem tem Deus – dizia Santa Teresa de Ávila –
nada lhe falta”. A quem não o tem, podemos acrescentar, nada lhe aproveita.
É excelente,
sem dúvida, o empenho dos pais em que os filhos tenham saúde, cultura,
bem-estar, capacitação profissional que lhes permita enfrentar com segurança o
futuro. Mas é um empenho muito mais excelente e vital – por ser decisivo,
questão de vida ou morte – esforçarem-se com a sua oração, o seu exemplo e uma
orientação prudente e contínua, para que os filhos conheçam as verdades da fé
cristã – a doutrina salvadora de Cristo – e aprendam a praticá-las. Podem ter a
certeza de que as virtudes cristãs de um filho vão fazer-lhe, ao longo do dia,
um bem infinitamente maior do que todos os diplomas ou contas bancárias
que lhes possam proporcionar. Mil vezes mais vale a fé do que a saúde, a união
com Deus do que o sucesso. Só as virtudes cristãs são os tesouros
verdadeiros de que Cristo falava (Mt 6, 19-20). E só esses tesouros
proporcionam àqueles que amamos a “realização” – o bem e a plenitude –, quer
nesta terra, quer na eternidade.
Sem esta
convicção, todos os ideais de bondade se dissolvem como um sonho ilusório.
Sempre deveria ecoar em nossos ouvidos, como um roteiro de bondade, o segredo
que Cristo confidenciou a Marta: Tu te inquietas e te perturbas por muitas
coisas; no entanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada (Lc 10, 41-42). A “melhor parte” é estarmos junto
de Cristo, atentos às suas palavras, fazendo da Vontade de Deus a luz e o norte
da vida. Aí está o verdadeiro bem do homem.
* * *
Começávamos
estas páginas constatando que uma das impressões mais gratas e indeléveis da
vida é ter conhecido um homem bom. Ao encerrá-las com estes últimos
pensamentos, talvez seja o momento de tomarmos consciência de que esse homem
bom, deveríamos sê-lo cada um de nós. Afinal, foi para isso que Deus nos
pôs no mundo, e a nós nos cabe – com a sua ajuda – trabalhar por consegui-lo.
Não duvidemos
de que, quando o curso desta nossa vida terrena se encerrar, uma das nossas
maiores alegrias será olhar para trás e ver que a nossa passagem pelo mundo não
foi inútil. Valerá a pena termos vivido se, nessa hora definitiva, pudermos
dizer que, pela misericórdia divina e apesar das nossas misérias, tivemos a
graça de ser um reflexo da bondade de Deus nos corações dos homens.
ÍNDICE
SER BOM.............. ....................... 3
Homens bons................. ................. 3
A bondade
aparente.... ................. 4
As traições
sentimentais................. ................. 6
A bondade
real........... ................. 9
Esboço do
homem bom.......... ................. 11
Bondade e
coerência.. ................. 13
Vitória sobre
a mesquinhez ................. 15
As fontes da
bondade.... ................. 17
BONDADE E AMOR....................... ....................... 22
Abrir-se aos
outros....... ................. 22
Benignidade. ................. 24
A bondade não
despreza ninguém..... ................. 25
Atenção
amorosa.... ................. 27
O espelho dos
nossos defeitos..... ................. 30
Desculpar e
esperar...... ................. 34
A bondade
cultiva o bem.......... ................. 36
Modos de amar......... ................. 39
A pedra
preciosa.... ................. 41
O tesouro
verdadeiro. ................. 42