A TIBIEZA E OS DONS DO ESPÍRITO SANTO

(Esquema de reflexões espirituais para seminaristas, 2006)

 

I. Introdução

 

1.1 Na Carta Novo millennio ineunte, n. 29, quando João Paulo II se pergunta sobre o "programa" para o novo milênio, responde que "não se trata de inventar um programa novo. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para nele viver a vida trinitária e, com ele, transformar a história até a sua plenitude na Jerusalém celeste".

 

1.2 "Nele viver a vida trinitária". Isto é a santidade, que a mesma Carta apresenta como prioridade absoluta. Recorda o cap. V da Lumen gentium (Vocação universal à santidade), e comenta qwue "seria um contra-senso contentar-se com uma vida medíocre [tíbia], pautada numa ética minimalista e numa religiosidade superficial [...]. Os caminhos da santidade são variados e apropriados à vocação de cada um. [Mas] é hora de propor de novo a todos, com convicção, essa "medida alta" da vida cristã ordinária... (n. 31).

 

1.3 "Apropriados à vocação de cada um". Neste sentido, a Ex. Ap, Pastores dabo vobis, no n. 20, citando o Decr. Presbyterorum Ordinis, n. 12, recorda-se que "...pelo sacramento da Ordem, os presbíteros são configurados a Cristo sacerdote como ministros da Cabeça... [e, por isso,] especialmente obrigados a buscar a perfeição". E, no. n. 38, lembra-nos que o Espírito Santo é "o grande protagonista da nossa vida espiritual".

 

1.4  A vida espiritual ("a vida no Espírito"), que amadurece até à santidade, consiste, em síntese, na ação do Espírito Santo na alma, que nos vai identificando com Cristo, – "critificando", para usar uma expressão da patrística – , que nos faz viver a vida e o amor dos filhos de Deus Pai (Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho que clama: "Abá, Pai!" [Gál 4, 6];  todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus [Rom 8, 14]. Vida de filhos que, no sacerdote, pelo sacramento da Ordem, consiste numa identificação e configuração especial com o Filho, que o torna apto a agir "in persona Christi capitis".

 

1.5 Se o amor, a caridade, que o Espírito Santo derrama nos nossos corações (cf. Rom 5, 5) é, para todos os cristãos, o vínculo da perfeição (Col 3, 14), de tal modo que se não tiver caridade não sou nada..., nada me aproveita (cf. 1 Cor 13, 2-3), no caso do sacerdote, a caridade – essência da santidade –  se reveste das características próprias do Coração de Cristo-Cabeça e Pastor, de Cristo-Mediador e Redentor, é "caridade pastoral".

 

1.6 A Ex. Ap.Pastores dabo vobis, n. 23, afirma, num texto básico: "O princípio interior, a virtude que orienta e anima a vida espiritual do presbítero, enquanto configurado a Cristo Cabeça e Pastor, é a caridade pastoral, participação da própria caridade pastoral de Cristo Jesus, dom gratuito do Espírito Santo, e ao mesmo tempo tarefa e apelo a uma resposta livre e responsável do sacerdote.

 

            "O conteúdo essencial da caridade pastoral é o dom de si; o total dom de si mesmo à Igreja..., à imagem do dom de Cristo" A caridade pastoral é "particularmente exigente para todos nós". Não cabe a tibieza, a mediocridade.

 

II. Santidade: o crescimento do Amor, da caridade

 

            2.1 Sempre nos chama a atenção a força com que Jesus, no Apocalipse, diz Tenho contra ti que arrefeceste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, de onde caíste (Ap 2, 4-5). A caridade jamais acabará (1 Cor 13, 8), diz são Paulo, num duplo sentido: porque nunca pode parar de crescer (nosso homem interior renova-se de dia para dia: 2 Cor 4, 16), e porque continuará, em plenitude, na visão beatífica, na união com a Trindade.

 

            2.2 Esse crescimento exige, para resumi-lo em um roteiro "clássico", avançar pela via "purificativa", pela via "iluminativa" e pela "via unitiva", que não são três fases cronologicamente sucessivas, mas simultâneas, com diversos matizes conforme a etapa da vida espiritual. Pois bem, o itinerário desse avanço, pelas três vias, é, fundamentalmente – conforme a doutrina dos maiores mestres da Teologia Espiritual –, obra dos dons do Espírito Santo.

 

 

III. Docilidade ao Espírito Santo e aos seus dons

 

 

            3.1 É muito esclarecedor o que escrevia Leão XIII na sua encíclica sobre o Espírito Santo (Divinum illud munus, 09.05.1897): "O justo que vive da vida da graça e que age mediante as virtudes [...] tem absoluta necessidade dos sete dons do Espírito Santo. Mediante esses dons, o espírito do homem fica elevado e apto para obedecer com mais facilidade e prontidão às inspirações e impulsos do Espírito Santo. Igualmente esses dons são de tamanha eficácia, que conduzem o homem ao mais alto grau de santidade [...]. Dado  que esses dons são tão excelsos e manifestam tão claramente a bondade do Espírito Santo para com as nossas almas, eles nos obrigam a manifestar (ao Espírito Santo) o maior esforço de piedade e submissão (ou seja, invocá-Lo, e corresponder-Lhe com dociliodade).

 

3.2 São pontos pacíficos, na Teologia espiritual, que:

 

a) A alma só deslancha rumo à santidade quando se vai tornando cada vez mais dócil ao Espírito Santo. Os dons, diz Garrigou Lagrande (Las tres edades..., I, cap. III) "dispõem  o homem a obedecer com prontidão ao Espírito Santo, como as velas dispõem o navio a seguir o impulso dos ventos favoráveis. Os santos são, neste sentido, como grandes veleiros, cujas velas desfraldadas recebem docilmente o impulso dos ventos (imagem inspirada em João 3, 8: O Espírito sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim é também todo aquele que nasceu do Espírito).

 

b) O verdadeiro progresso na santidade só se dá quando há um predomínio dos dons sobre as virtudes naturais e infusas. Não há só virtudes vividas com esforço, secundando a graça – como quando se impele um barco com os remos – ; mas há uma entrega, um amor, uma generosidade, que deixa que o Espírito Santo possa nos conduzir sem opor-lhe resistência, antes correspondendo fielmente: Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus [...]. E, se somos filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo (Rom 8, 14.17)

 

 

IV. Atitude perante os dons do Espírito Santo: santidade ou tibieza

 

            4.1  Aquele que se deixa conduzir avança para a santidade. Aquele que é indócil às inspirações do Espírito Santo e obstrui a ação dos seus dons, esse vai caindo na tibieza, na "mediocridade espiritual", que é o avesso da santidade. Ora, sacerdote que não luta por adquirir a santidade – falando bem claro – , além de frustrar a sua vocação, trai Deus e trai os fiéis. Daí a importância de fazer um exame sobre isso.

 

            4.2 Vamos fazer esse exame considerando cada um dos sete dons, e focalizando: 1) Os bens que cada dom proporcionam à alma dócil; 2) os males que a resistência ou desprezo desses dons produzem na alma, tendo em conta que a tibieza, nas almas dos que estão dedicados a Deus e ao próximo, mede-se sobretudo pelos frutos maus procedentes da obstrução dos dons.

 

            4.3. Vejamos, pois, a seguir, cada um dos dons, apoiando-nos na doutrina de S. Tomás, exposta por Garrigou-Lagrange e Royo Marín:

 

                                                              ***

 

            I) O dom de sabedoria, que é o mais alto dos dons, inseparável da caridade:

 

a) quando o secundamos docilmente, nos faz maravilhar-nos e saborear – numa sintonia alegre e sobrenatural – as grandezas de Deus, as belezas de Deus, as bondades de Deus, os abismos de luz dos mistérios de Deus, as maravilhas da Graça divina e as exigências santas do Amor. Faz, por assim dizer, mergulhar na intimidade com a Trindade, presente na alma (a "habitação da Trindade"), ver com os olhos de Deus, como Mariua (O meu espírito exulta de alegria), julgar com a mente de Deus, amar com o "coração" de Deus. Dele vem a alegria e o ardor da oração, a loucura de amor pela Eucaristia, o desejo de "ver o rosto de Cristo"...

 

            b) quando o obstruímos: quando esse dom é expulso da alma, por nossa culpa, as verdades sobre Deus e as reveladas por Deus e expostas pelo Magistério da Igreja se nos tornam insípidas e tediosas, assim como os mais deliciosos manjares se tornam repugnantes ao paladar estragado.

Como dizia o Servo de Deus Álvaro del Portillo: "Que tristeza causa uma alma tíbia! Uma alma que teve labaredas de amor de Deus, de zelo pelas almas; um coração que experimentou as alegrias da entrega generosa e que começa a perder fogo, calor, pouco a pouco, até terminar na mais lamentável indiferença perante tudo o que não satisfaz o seu próprio egoísmo carnal ou espiritual."

Talvez o sintoma mais claro da resistência ao dom de Sabedoria seja a acídia, que é o "topo" da tibieza, e que o Catecismo da Igreja Católica descreve assim: "uma forma de depressão devida ao relaxamento da ascese, à diminuição da vigilância, à negligência do coração" (n. 2094), de modo que "chega a recusar até a alegria que vem de Deus e a ter horror ao bem divino" (n. 2094).

 

 

II) O dom de entendimento (ou de inteligência):

 

a) quando o secundamos docilmente: faz com que a nossa inteligência capte – com uma penetrante intuição e em profundidade – o esplendor luminoso das verdades reveladas por Deus (a Sagrada Escritura e a Tradição); e também o de todas as outras luzes  – a começar pelas da reta razão – que sinalizam o caminho da Verdade e do Bem, de modo que o Reino de Deus possa instaurar-se na nossa alma e no mundo em que vivemos.

 

            b) quando o obstruímos: quando deixamos de ser dóceis a esse dom, a nossa inteligência, mesmo que tenha tido muita luz, fecha-se, e cada vez vai entendendo menos e deturpando mais a Verdade e o Bem.

O coração do tíbio, tendo olhos, não vê e tendo ouvidos, não ouve. Julga ver melhor do que ninguém, quando, na realidade, como diz Cristo no Apocalipse, a sua tragédia consiste em que não sabe que é infeliz, miserável, pobre, cego e nu.

O tíbio faz compatíveis o conhecimento da doutrina da fé, e até as mais altas especulações da filosofia, da teologia e da história, com as vaidades intelectuais tolas e erros vulgares. Acontece com ele o que dizia são Paulo: A ciência incha, mas o amor edifica (1 Cor 8, 4). Mesmo que eu conhecesse todos os mistérios  e toda a ciência...,

se não tiver amor, não sou nada (cf. 1 Cor 13, 2). E: O homem animal não capta as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras. Nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar (1 Cor 2, 14). O tíbio cai no orgulho intelectual, que julga saber das coisas de Deus mais do que a Santa Igreja, mais do que o próprio Deus.

               Em suma, abafando o dom de entendimento, o tíbio perde o sentido sobrenatural, a visão sobrenatural, e fica com uma "visão plana, pegada à terra, de duas dimensões", perdendo "a terceira dimensão: a altura. E, com ela, o relevo, o peso e o volume" (Caminho, n. 279).

 

            III) O dom de ciência:

 

Quando o secundamos docilmente: Com ele o Espírito Santo nos faz julgar retamente as coisas criadas em ordem ao fim sobrenatural, na perspectiva de Deus. É o dom que nos faz apreciar, na terra, o que vale e o que não vale, o que é relativo e o que é absoluto, o que tem valor de fim e o que é um simples meio, o que é caduco e o que perdura por toda a eternidade, o que pode ser mudado e o que é um valor imutável.

 

            Quando o obstruímos: Hoje, a "cultura" e a "ideologia" dominantes facilitam uma forte obstrução desse dom. Há uma grave e generalizada deturpação dos valores, procedente do agnosticismo e o relativismo do mundo materializado. O que vale é dinheiro, prazer, glória mundana. Esqueceu-se o que Jesus dizia: Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma (Mat 16, 26).

E são João: Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai. O mundo passa com as suas concupiscências, mas quem cumpre a vontade de Deus permanece eternamente (1 Jo 2, 15 e 17).

Hoje, mais do que em outras épocas, nos faz muita falta esse dom, porque até o sacerdote está exposto a enganar-se com as opiniões que dominam o ambiente, a mídia quase toda, as universidades (incluindo as Católicas, muitas vezes), uma verdadeira nuvem de erros que nos bombardeia sem cessar (e, muitas vezes, sem o percebermos).

            A tibieza, neste mundo que – se formos fiéis – nos vê como estranhos, ou nos hostiliza como inimigos da "modernidade", facilmente nos pode fazer cair na tentação de "fazer média", de "rebaixar a verdade", de dizer "não tem importância" (coisas de moral conjugal, moral sexual, bioética, etc.).

 

 

IV)  O  dom de fortaleza:

 

            Quando o secundamos docilmente: torna-nos firmes e perseverantes, com uma energia inquebrantável, para praticar as virtudes, até mesmo as heróicas, e nos faz corajosos para enfrentar as dificuldades e perigos (mesmo o martírio, ato supremo da fortaleza), e rijos e pacientes para abraçar os sacrifícios e padecimentos que Deus nos pede para alcançar a santidade e o Céu. Dá-nos a generosidade e a alegria da Cruz.

            Sabemos que, por nós mesmos, nada podemos: Sem mim, nada podeis fazer (Jo 15, 5), nem sequer podemos dizer "Jesus é o Senhor", a não ser sob a ação do  Espírito Santo

(1 Cor 12, 3). Mas também sabemos que Tudo posso naquele que me conforte (Fil 4, 13), e que podemos exclamar com segurança: Se Deus é por nós, quem será contra nó? Basta que empreguemos os meios que nos unem à Videira: vigiar e orar (cf. Mc 14, 38), ou seja, a luta ascética, a mortificação, a oração e, sobretudo, os sacramentos, em primeiro lugar a Eucaristia: Aquele que comer as minha carne viverá por mim (Jo 6, 57), e a Reconciliação.

 

            Quando o obstruimos: Obstruímos, abafamos o dom de fortaleza, quando fugimos das amáveis e claras exigências de Cristo:   Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me[...] Quem quiser salvar a sua vida a perderá; e quem perder a sua vida por causa de mim a encontrará (Mt 16, 24-25).  – Portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem não pode ser o meu discípulo (Lc 14, 33). – Se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só; mas, se morre, produz muito fruto (Jo 12, 24)

            Anulamos o dom de fortaleza quando enchemos a consciência de desculpas e mentiras, para não sermos tão generosos e firmes como Deus quer. Quando enchemos a consciência de teorias pseudo-intelectuais que abençoam a omissão e a mediania; de interpretações atenuadas da Palavra de Deus,

            Então, vamos vivendo na moleza e na mentira de uma santidade sempre proposta como meta e nunca seriamente desejada e pedida a Deus, nem tentada com esforço; de uma entrega enxergada como ideal, mas nunca efetivada; de uma imitação de Cristo proclamada como ideal de vida, mas vista depois como "exagero", na prática (sem assumir nunca a "radicalidade evangélica" de que falava João Paulo II).

            É preciso levar a sério palavras como estas, de são Josemaria:– Onde não há mortificação, não há virtude (Caminho, n. 180). –  Se não te mortificas nunca serás alma de oração (Caminho, n. 172). –  Terás tanto de santidade quanto tiveres de mortificação por Amor (Forja, n. 1025).

            E precisamos não descurar a paciência, que muitas vezes é a maior fortaleza.

 

 

V) O dom de Conselho:

 

            Quando o secundamos docilmente: nos ajuda a discernir, com uma prudência sobrenatural e consciência reta, clareada pelas luzes do Espírito Santo, os caminhos concretos  que devemos empreender e manter fielmente nesta vida; bem como cada um dos passos particulares que –  dentro da nossa vocação, da nossa missão, das nossas responsabilidades (para nós, as responsabilidades pastorais, sobretudo) – deveremos escolher e pôr em prática, ou rejeitar. E também  aquilo que devamos aconselhar aos outros – tanto em particular, como a grupos coletivos (direção espiritual, aulas, pregações) –, para o seu bem sobrenatural e humano. É um dom essencial para os pastores da Igreja.

 

            Quando o obstruimos: Vamos pensar especialmente nos pastores da Igreja. Obstruímos, anulamos esse dom do Espírito Santo quando nós (padres, religiosos, religiosas, etc.), abandonamos as almas na tibieza, contentando-nos com ajudá-las a ter uma vida cristã superficial e a fazer apenas com que se mexam em algo (ativismo).

Somos maus pastores, somos os mercenários da parábola, se – por covardia ou desejo de sermos estimados – aconselhamos às ovelhas as coisas que lhes são fáceis e  agradáveis,   as coisas que elas gostariam de ouvir, porque a nada comprometem, nem obrigam a mudar o comportamento moral.

Seríamos maus pastores se praticássemos um carinho brando, uma tolerância mole que ilude (e que nada tem a ver com o "plano formativo gradativo, pedagógico") , se evitássemos, por medo, ensinar toda a Verdade ou corrigir os que andam errados, com a desculpa de não "fazê-los sofrer" ou de que "assim se afastariam". Faríamos, então o contrário de Cristo: lembrar da repreensão dura a Pedro, pelo bem de Pedro: Afasta-te de mim, Satanás! Tu és para mim um escândalo; teus pensamentos não são de Deus, mas dos homens (Mt 16, 23).

A esses maus pastores falava São Paulo, quando dizia: Porque há muitos por aí,

de quem repetidas vezes vos tenho falado e agora o digo chorando, que se portam como inimigos da Cruz de Cristo, cujo destino é a perdição (Fil 3, 18). São os maus pastores que chamam de lavagem de cérebro os cuidados formativos e espirituais sérios, constantes, graduais e pedagógicos, que se dão, sem superficialidades irresponsáveis e de acordo com a doutrina do Magistério e as normas da Igreja.

 

VI) O dom  de Temor de Deus:

 

Quando o secundamos docilmente: nos abre os olhos à infinita grandeza e bondade de Deus Uno e Trino, de tal modo que vemos com uma luz poderosa que, "na terra– como dizia são Josemaría – ,só há um mal que devemos temer e, com a graça divina, evitar: o pecado" (Caminho, n. 386).

Leva-nos a ter espírito de adoração, capaz de extasiar-se perante a beleza infinita de Deus e de seu Amor, e, por isso mesmo, capaz também de experimentar verdadeiro temor filial de pecar e de ficarmos afastados dEle.

 

Quando o obstruimos: Se esse temor filial começasse a arrefecer, se instalaria inexorávelmente na alma a tibieza, e a nossa consciência se iria deteriorando pouco a pouco, tomada de cegueira e endurecimento, e poderia até chegar a perder quase de todo a sensibilidade moral em relação ao pecado.

 

Então, os pecados veniais (de raiva, inveja, , sensualidade, preguiça, irritação, murmuração, gula, vaidade, egoísmo...) nos deixariam cada vez mais indiferentes e seríamos arrastados a cair no pecado mortal com facilidade, adquirindo aos poucos uma insensibilidade de consciência cada vez maior, até chegarmos à cauterização total ou quase total da consciência moral. Estado lamentável que começa sempre por pequenas concessões habituais a muitos pecados leves, que vão abrindo "rachaduras" muigto perigosas na alma.

 

Como dizia D. Álvaro del Portillo: "Com um olhar apagado para o beme outro mais penetrante para o que afaga o eu, a vontade tíbia acumula na alma detritos e podridão de egoísmo e de soberba...Surge, então, a ânsia de compensações mundanas, a irritabilidade ante a menor exigência ou sacrifício, as queixas por motivos banais, as conversas frívolas ou centradas em nós mesmos... E aparecem as faltas de mortificação e sobriedade, os sentidos são despertados por assaltos violentos, esfria a caridade e se perde a vibração apostólica para falar com garra aos outros de Deus".

 

Essa tibieza nos afasta também –  como é lógico –  do espírito de contrição, da prática da confissão e dos exercícios de penitência, que chegam a assustar ou a escandalizar até mesmo aos pastores que deveriam praticá-los e aconselhá-los.

 

 

VII) O dom de piedade:

 

            Quando o secundamos docilmente: nos infunde um amor filial para com Deus, e nos faz viver como filhos muito amados (cf. Ef 5,1), que se relacionam com o Pai com ternura e confiança de filhos – Abá, Pai! (Gal 4, 6) –, que vivem uma profunda fé na Providência, fé que maytém a paz nas vicissitudes da vocação e da vida, e leva – como dizia são Josemaria – "ao abandono sereno e alegre à divina Vontade".

            Esse dom nos move a um espírito de oração afetuoso e sincero, a amar as práticas de piedade e as devoções sólidas, a adquirir uma "loucura de amor" pela Eucaristia, a ter um amor terno e filial por Maria, e a buscar a presença de Deus em tudo. Sempre põe diante dos olhos o modelo de "Filho", que é Jesus Cristo, para que o imitemos.

Esse dom, nos infunde também um amor fraterno por todos os que são filhos do mesmo Pai Deus, que é inseparável do nosso amor a Deus. Nós temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame também a seu irmão (1 Jo 4, 21).

 

            Quando o obstruimos: a piedade se deteriora, até cair no formalismo, no desleixo e na inconstância na oração e nas demais práticas espirituais, no tédio pelos momentos de adoração e meditação silenciosa; no egoísmo e na simples "lei do gosto" na escolha das leituras doutrinais e espirituais, na indelicadeza crescente em tudo quanto se refere à Eucaristia, etc. E, aos padres, a tibieza leva-os a fazer da Eucaristia o palco da sua projeção vaidosa, deslocando Cristo para trás e se colocando no centro das atenções, dos aplausos e das "adorações" do povo.

            Perde-se também o sentido vivo da Providência, e, então, as tribulações são vistas só como atrapalhações, sofrimentos inúteis ou injustiças, sem enxergar a mão providente de Deus que os envia ou permite para a nossa santificação e para tornar-nos mais "outros Cristos". Surgem dúvidas de vocação, o sacerdote se dedica a atividades que são "prêmios de consolação" ou "substitutivos baratos" da vocação. E o coração, vazio de piedade, cai facilmente na tentação das compensações, por meio de afetos e simpatias mundanos, e, afinal, caindo em cheio no amor carnal desordenado.

            E, passando para o segundo aspecto do dom de piedade – que é a fraternidade dos filhos de Deus – , a tibieza nos cega e incapacita para a compreensão e a desculpa para com nossos irmãos  superiores, para o perdão dos que nos ofendem, perseguem ou caluniam, e vai levando-nos, cada vez com mais força, a guardar ressentimentos, que chegam a ser verdadeiros venenos da alma.

É importante perceber um problema muito sério e muito real. A doença da tibieza, abafando o amor filial e o amor fraterno, conduz inevitavelmente ao fracasso dos ideais de santidade, dos ideais da vocação. Mas o nosso coração orgulhoso não aceita o fracasso! E, por isso, revolta-se. Então, a soberba faz com que, em vez de "voltar-se" contra si mesmo, mediante a humildade e a contrição, sabendo pedir perdão a Deus e retificar, o tíbio "por fracasso" despeje essa revolta sobre os outros, culpando-os (mesmo que nada tenham a ver com seus problemas) pelo seu próprio fracasso não digerido. É o caso lamentável das pessoas que vemos irritadiças, duras, críticas ao extremo, com uma mistura de rancor, arrogância, e desprezo pelos outros. Não é raro que isso estoure em forma de desejos de vingança e da compulsão de diuvulgar murmurações e calúnias, recorrendo mesmo à colaboração e à cumplicidade dos inimigos de Cristo e da Igreja.