O
escritor francês Ernest Hello compara o mundo à estalagem de Belém, que na
noite de Natal fechou as suas portas à Sagrada Família: porque não havia
lugar para eles na hospedaria, como registra laconicamente São Lucas (Lc 2,
7).
Não
havia lugar para eles. Para todos os outros, sempre se achava um canto
ou se abria um espaço. Na “estalagem do mundo” há vaga para todas as mentiras,
ainda que sejam contraditórias entre si; existe um respeitoso cantinho para
todos os falsos deuses, mesmo que sejam inimigos. Só não há lugar para a
Verdade, para Cristo.
É
claro que Hello não fala aqui do mundo como obra de Deus – que reflete a beleza
e a bondade do seu Criador, e por isso deve ser amado –, mas no sentido que
freqüentemente o Novo Testamento dá à palavra mundo. Com este nome,
designa-se tudo aquilo que, no mundo, se opõe a Deus, e concretamente a massa
de homens e mulheres que se erigiram a si mesmos em seu próprio deus,
subtraindo-se ao domínio santo do Deus único. Trata-se daquela grande parte da
humanidade que tem como ídolos – como os únicos deuses pelos quais se deixa
dominar e aos quais serve – os do egoísmo: o poder e a glória, o dinheiro e a
vaidade, o interesse e o prazer. O mundo é o reino do pecado.
Falando
desse mundo, São João, o Apóstolo do amor extasiado e da fé invencível,
diz categoricamente: Sabemos que o mundo todo jaz sob o poder do Maligno
(1 Jo 5, 19). E, no seu Evangelho, deixa estampada a “definição” que Cristo dá
do demônio: É mentiroso e pai da mentira (Jo 8,44).
Como
conseqüência lógica, esse mundo dominado pelo “pai da mentira” vive
mergulhado na mentira, que é a sua respiração e o seu clima.
Voltemos
agora a Hello, e deixemos-lhe a palavra. Vale a pena ouvi-lo longamente. O que ele
escreve é tão sincero, tão extraordinariamente verídico, que parece a cada
passo descobrir-nos o que no fundo todos já víamos, sem acabarmos de o
perceber.
Antes
da vinda de Cristo, no Panteon, na “hospedaria do mundo”, convivia uma multidão
de ídolos, inimigos entre si. Contudo, dentro da estalagem, “eles se espremiam
sem se combater, apertavam-se sem se machucar e acotovelavam-se sem se
incomodar. A razão disso é que estavam de acordo entre eles. Mas quando nasceu
o Sol, procedente de Belém, a gritaria foi geral. Os ídolos, que dormiam em sua
paz, acordaram para travar combate: todos eles reconheceram o inimigo comum
[Cristo], e foi possível então perceber por que não se haviam combatido uns aos
outros. O segredo da sua calma estava na sua cumplicidade”.
“Eis
alguém – continua Hello – que adora um boi, e outro que adora uma couve. Esses
dois homens não brigarão. Sem inconveniente algum, o adorador do boi adorará
também um pouquinho a couve, para agradar; e o adorador da couve não recusará
ao boi algumas genuflexões. Um misterioso acordo parece pairar sobre a imensa
mentira e dizer aos homens que, se essa mentira é multiforme, não há motivo
para preocupar-se por tão pouco: pois trata-se sempre da mesma mentira.
A idolatria pode mudar de aspecto e de caráter; mas ela tranqüiliza o idólatra
porque, através de todos os objetos adorados, mostra sempre a mesma face: Sou
eu mesma!”
Sobre
o comum denominador da falsidade, as mentiras do mundo se entendem. O
ecumenismo mais fácil é o ecumenismo das mentiras. Só ficam sobressaltadas e
empunham as armas quando a Verdade bate à sua porta. Então Herodes persegue o
Menino, então a opinião do mundo se arrepia e experimenta a necessidade
de atacá-Lo por todos os meios, de desprestigiá-Lo – a Ele e à sua Igreja – com
todas as calúnias, de achincalhá-Lo com toda a fúria. Um exemplo disso foi a
reação de alguns setores da opinião pública do mundo contra as
Encíclicas O esplendor da Verdade e Fé e razão de João Paulo II.
Mas
Ernest Hello não terminou ainda, e é importante escutá-lo até o final. O mundo,
dir-nos-á, não tem na sua hospedaria lugar algum para Cristo, mas de vez em
quando sente a necessidade de admitir na estalagem alguns fragmentos da
Verdade, para dar com eles maior prestígio às suas mentiras. Mais de uma vez,
com efeito, cristãos de boa fé se têm admirado de que certos meios de
comunicação social, conhecidos por suas posições anticatólicas, acolham com
destaque e até glosem elogiosamente algum pronunciamento do Papa ou algum
critério moral tipicamente cristão. Hello tem algo a dizer a esse respeito:
“Quando
o mundo diz a verdade, julga estar exprimindo uma opinião como qualquer outra;
e quer que essa verdade esteja rodeada de mentiras e conviva harmoniosamente
com elas. Quer que a verdade fique desonrada por infames companhias e, quando
já a sujou a ponto de não ser mais possível reconhecê-la, então a tolera,
porque já se tornou uma mentira. E essa mentira é preciosa, porque acoberta as
outras, dá-lhes prestígio, toma-as sob a sua proteção, tira-lhes o que teriam
de excessivamente violento, cru, ostensivo. Essa verdade transformada em
mentira pelo tom, pelo contorno, pelo contexto, essa verdade acaba por
confundir o bem e o mal, e a gente do mundo então fica contente.
“Nada
engana com uma força e uma autoridade tão terrível como a verdade mal dita. Ela
dá aos erros que a envolvem um peso que tais erros jamais teriam por si mesmos.
Prestigia-os. A mistura de verdade e de erro produz, na boca do mundo, efeitos
desastrosos. Dá à verdade a aparência de erro, ao erro a aparência da verdade.
Faz com que o erro participe do respeito que é devido à verdade” 1.
Hello
escrevia em fins do século XIX. As suas palavras têm uma atualidade
estarrecedora nos fins do século XX e começos do XXI. A cada dia são maiores as
misturas com que se compõem religiões, filosofias, superstições, cultos
exóticos, “valores culturais” e místicas esotéricas ou mágicas. Todos eles procuram
aureolar-se com algumas parcelas das verdades cristãs. Sincretismos, variegadas
“sofias”, holismos, espiritualismos, inaugurações de eras novas em novas
constelações..., todos procurando prestigiar-se com pitadas de Cristianismo
deturpado.
O
sortimento de mentiras misturadas com cacos de verdade não tem fim. A ninguém
se oculta que o “mercado das religiões” está mais fartamente abastecido que
nunca. Nas suas prateleiras, cada qual pode encontrar alguma religião, mística
ou filosofia de vida a seu gosto, a que melhor combine as tolerâncias,
as fantasias, as consolações metapsíquicas, as facilidades e as tranqüilizações
baratas com o desejo do consumidor. Porque o que interessa ao mundo não
é a verdade, mas a aparência de verdade que aconchegue do modo mais
sutil e eficiente as paixões do egoísmo, que justifique e canonize a
bandalheira, que proporcione “elevação mística” à crua miséria humana, sem
obediência ao Deus vivo nem sacrifício amoroso.
A
mentira do mundo é também, especialmente na atualidade, uma imensa falsificação
dos conceitos sobre os valores da vida, que se pretende impor
agressivamente como lei obrigatória. Essa tergiversação da verdade sobre o bem
pessoal e social reivindica o direito de ser a única aceitável, e avança no
ambiente com a força de uma enxurrada. Muitos meios de comunicação,
professores, sociólogos, psicólogos, etc., a despejam em lares, escolas e
consultórios. E um bom número se deixa arrastar por ela.
Em
janeiro de 1994, um importante jornal diário, não sem uma certa dose de
regozijo, dedicou duas reportagens, ilustradas com fotografias, ao drama
da égua Luna.
Era
uma vez – ficou-se sabendo – uma formosa égua quarto-de-milha de crinas brancas
e olhos azuis. Eis senão quando um plebeu pangaré, ironicamente chamado
Príncipe, conseguiu um encontro furtivo com a puro-sangue, dele resultando o
epicentro do drama: um potrinho sem classe estava a caminho.
Quando
se soube que o dono da égua decidira abortar o indesejado potrinho sangue-sujo,
desfraldaram-se imediatamente as nobres bandeiras da defesa da vida animal. “A
União em Defesa do Cavalo e do Jegue – lê-se no jornal – pretende entrar hoje
com medida cautelar contra o proprietário de Luna para tentar impedir o aborto
do potro”. A presidente dessa entidade, que também preside à S.O.S Bicho,
“anunciou que vai basear a ação judicial no artigo 64 da lei das contravenções
penais, que proíbe submeter animais a tratamento cruel”.
Por
sua vez, o presidente da União Internacional Protetora dos Animais afirmou que,
do ponto de vista da ética veterinária, o aborto só pode ser feito se for para
salvar a égua ou o filhote2.
Em
todos os casos, o termo empregado em defesa do potrinho foi a dura palavra
“aborto”. Ninguém usou, por exemplo, o eufemismo “interrupção da gravidez”, que
parece reservar-se somente aos seres humanos.
Seres
humanos? Vejamos. No mesmo jornal, e no mesmo dia em que se publicava uma das
reportagens sobre o drama da égua, eram reproduzidas palavras de uma conhecida
figura política lamentando que os prazos e modos de tramitação da revisão
constitucional dificultassem a legitimação do aborto na Carta Magna3. O deputado em
questão achou por bem, nessa ocasião, informar o público de que o feto, antes
de ter completado sete meses, não podia ser considerado propriamente “ser
humano”. Naturalmente, os motivos justificativos do aborto – pelo menos até os
três ou quatro meses – pertenceriam à “consciência” ou à vontade da mãe, sem as
restrições exigidas para proteger a vida animal.
Após
ler as duas notícias, uma profunda sensação de mal-estar invadia o leitor
medianamente sensato. Era patente que estávamos, mais uma vez, diante da
Mentira, da maiúscula e mais absurda mentira. E, no entanto, muitos, com
certeza, devem ter achado tudo perfeitamente natural. A mentira do mundo
consegue deformar de tal modo as consciências, que se acha lógico punir
severamente quem tiver em casa – com os maiores cuidados –uma coleirinha,
enquanto se brada apoio total à chacina de milhões de seres humanos indefesos,
dentro do ventre materno.
Não
era desses, certamente, um meu amigo que, por aqueles dias, triste e
bem-humorado ao mesmo tempo, me dizia: – “Preciso urgentemente que me ajude a
recuperar a minha identidade. Nasci com menos de sete meses e, portanto,
segundo o tal deputado, não vim ao mundo como «ser humano». Por outro lado,
nenhum S.O.S. Bicho se ocupou jamais de um «potrinho» gerado por um homem e uma
mulher, o que é o meu caso. Por favor, diga-me! Quem sou? Se não posso ser
considerado «humano» e não entro no catálogo dos «bichos», então não existo,
estou inteiramente desprotegido neste estranho mundo, onde prender uma capivara
é crime inafiançável, ao passo que matar um bebê é uma conquista dos direitos
humanos”.
Poderíamos
passar agora para a televisão. Na tela colorida, a figura bem maquiada e
esticada a botox de uma conhecida psicóloga, num horário próprio para
crianças, informa-nos com expressão angelical que há três classes de
sexualidade: a homossexual, a heterossexual e a bissexual. Assim, tudo no mesmo
nível, ou melhor, dando prioridade ao homossexualismo. A heterossexualidade –
isto é, a normal (pelo menos entre os bichos) – era mencionada só no meio, de
passagem, como se fosse coisa um tanto vergonhosa.
Mais
uma vez nos vemos envolvidos, como por um nevoeiro denso, pela mentira do
mundo. Ora, essa e outras tantas falsidades são propaladas a toda a hora e
de mil maneiras – em conferências, artigos, shows musicais, telenovelas, etc.
–, como uma enxurrada de esgoto que arrasa os valores límpidos, os que elevam o
indivíduo, defendem os valores insubstituíveis da família e tornam digna e justa
a vida social. Muitos estão cansados de ver por toda a parte, no meio de um
festival de hipocrisia, a defesa apenas do direito ao falso, ao perverso, ao
sujo e ao anormal.
Especialmente
penoso é ver mergulhar na mentira do mundo um bom número daqueles e
daquelas que, por vocação, têm a missão de difundir a verdade cristã. É
lamentável vê-los cair – como diria Maritain – de joelhos ante a grande farsa
do mundo, ansiosos por serem modernos, atualizados e aceitos.
Prostram-se diante do mundo, para que este lhes afague a cabeça como a um
cachorrinho. Então, acolhidos benevolamente pelo mundo, sentem-se
felizes.
Esses
pobres iludidos, em vez de iluminarem o mundo com a Verdade, deturpam-na para
“adaptá-la” ao Grande Circo do Mundo: quer se trate do dernier cri do
mais novo ramo da psiquiatria pansexualista, quer da dialética marxista – onde
ainda estiver na crista da onda –, quer de estranhas teorias sobre verdades
substancialmente mutantes conforme a “inculturação” e a cosmo-ecologia, no
momento em que essas idéias, sempre manipuladas como ferramentas pelas
ideologias, estão nas vitrines da moda. Assiste-se então ao deplorável
espetáculo de pessoas chamadas por Deus para serem portadoras da Luz,
rebaixando-se para dizer ao mundo as mentiras que o mundo está farto de
dizer-se a si mesmo.
Não
se deixar envolver pela Grande Mentira – a dos falsos valores, a da propaganda,
a das modas, a do que “hoje em dia” todo o mundo pensa e faz – é um imenso
desafio para os cristãos, que devem estar bem conscientes de que precisam de
muita firmeza na fé e de muita fortaleza de caráter para serem autênticos, para
serem eles mesmos, para serem “diferentes”, e não se deixarem envolver pelas
aliciantes falsificações do mundo.
(Adaptado de um trecho do livro de F. Faus: A língua)
1 Hello, Textes choisis, ed.
Egloff, Fribourg, 1945, pág. 161 e segs.
2 Cf. O Estado de S.Paulo,
14-I-1994, pág. A14.
3 Trata-se do mesmo deputado que,
em 9 de julho de 2008, liderou, pela enésima vez, uma nova tentativa de aprovar
um projeto de lei que legalizaria o aborto até os 90 dias de gravidez e
obrigaria a saúde pública a praticá-lo. Felizmente, a Comissão de Constituição
e Justiça da Câmara dos Deputados rejeitou, como anticonstitucional, o projeto,
por ampla maioria. Só quatro deputados, liderados pelo que o texto menciona –
que já quis se candidatar à Presidência da República – votaram a favor.