Francisco Faus
Como nos contos, vamos começar dizendo: “Era uma vez...”,
ou, se preferir, “Once upon a time...”. Sim, era uma vez um grupo de atiradores
esportivos, que, durante anos, faziam todos os domingos exercícios de tiro na
clareira de um descampado, escolhido, no meio da mata, por razões de segurança,
bem longe de qualquer estrada, lavoura, caminho ou local habitado. Os alvos
eram colocados junto de um renque de espessas moitas, situadas no fundo do
campo de tiro.
Certo dia – como nos contos –, um dos atiradores alertou:
– Escutem! Pareceu-me ouvir, perto das moitas, algumas vozes
de crianças.
Pararam os atiradores, e ficaram de ouvido atento. Um deles
adiantou-se até os alvos, afastou um pouco algumas moitas e voltou dizendo que
não vira nem ouvira nada.
Recomeçando os exercícios, outro dos esportistas avisou:
–
Eu ouvi, ouvi mesmo. São vozinhas fracas, parecem de crianças... Não serão
garotos em excursão, ou, quem sabe, um grupo de escoteiros, de “lobinhos”,
fazendo sua incursão na floresta?... Eu tenho um filho “lobinho”...
Novamente parou tudo, houve exploração atrás das moitas da
borda do campo sem nada constatar, e tudo recomeçou até que, pela terceira vez,
o primeiro atirador de ouvido fino insistiu em que voltara a ouvir as vozes,
afirmando que já não tinha dúvida.
Cansados de tanto ir e vir, os companheiros irritaram-se com
o apreensivo e concluíram, fartos de alarmes, que alguns colegas padeciam de
alucinações ou precisavam de ir ao otorrino. Com isso, o exercício de tiro
prosseguiu, até que... Até que se ouviu um grito agudo, agônico, acompanhado de
outros clamores e choros desesperados. Não havia mais dúvida. Quando foram ver,
penetrando um pouco mais no matagal (coisa que antes não haviam feito), puderam
ver no chão um garoto atingido no peito por bala, que veio a falecer instantes
depois.
Como tudo isso é “conto”, imaginemos que os atiradores,
acusados de homicídio culposo, fossem levados a julgamento, e lá alegassem que
não tinham culpa, porque achavam que não havia ninguém por perto, e, por isso,
o acidente fora uma fatalidade.
No interrogatório, porém, o promotor foi incisivo:
–
Mas, será possível que, após três avisos dados por colegas, não admitissem nem
sequer a suspeita, pelo menos a suspeita? Que não tivessem “nenhuma dúvida” de
que eventualmente pudesse lá haver crianças? Podem afirmar honestamente que
tinham “ certeza absoluta”, inconteste, sendo que vidas humanas podiam estar em
jogo?
Os réus acabaram reconhecendo que pairava certamente alguma
dúvida, apenas dúvida, mas que acharam que não era razão suficiente para
deixarem de atirar...
Imaginemos – não esqueça que estamos contando um “conto” – que o juiz, ou o
Tribunal, com base nisso, absolvesse os acusados, e declarasse ser lícito que
continuassem a praticar os exercícios de tiro, mesmo quando houvesse uma
suspeita “leve” de risco de vida para seres humanos. Não acha que seria muito
natural que, quer os bons juristas, quer os que tivessem noções básicas de
ética ou, pelo menos, um sentido de humanidade; ou, em geral, todos os cidadãos
sensatos (pais e mães de família) se revoltassem contra tal decisão judicial,
qualificando-a, com razão, de gravemente injusta, pois nada justifica – nem lei ou sentença
alguma pode amparar – um
ato de que possa decorrer, de modo não imprevisível, a morte de um inocente.
Pois bem, sobre o pano de fundo do conto, ouçamos agora a
voz de um jurista muito conhecido e respeitado. Fala acerca do debate das
células-tronco embrionárias e diz:
«No caso concreto, o
problema básico é saber se um embrião é ou não um ser [humano] vivo. Se
houvesse consenso da unanimidade, ou pelo menos da unanimidade moral dos
cientistas, sobre a matéria, pela afirmativa ou pela negativa, a decisão seria
clara e imperiosa. Se é certo que há vida no embrião, ela não pode ser violada
sem ferir o Direito Natural e sem lesar nossa Carta Magna. Se está correto que
não há, nada impede que se utilizem os embriões, tanto mais que serão usados
para preservar outras vidas humanas. Ora, esse é justamente o ponto em que os
cientistas não estão de acordo. Há os que entendem de uma forma; outros de
outra, contrária. Os cientistas estão francamente divididos a respeito. Não
havendo consenso na Ciência, pelo menos no seu atual estágio de
desenvolvimento, prevalece a certeza de que pode haver vida. E, sendo a
vida um direito fundamental do ser humano, prevalece, a meu ver, a idéia de
que, podendo haver vida, a legislação deve protegê-la».
Assim escreveu, no seu blog, o Prof. Damásio de Jesus,
Diretor-Geral da FDDJ, Presidente e Professor do Complexo Jurídico Damásio de
Jesus.
Fica patente, nessa exposição, que o problema que é
apresentado ante os que devem julgar é uma questão jurídica, que só pode(e
deve) basear-se em certezas “científicas” (independentemente de que haja também
razões de outra ordem, à margem de raciocínios científicos e jurídicos,
extremamente ponderáveis). Ora, é evidente que, hoje, não há as tais certezas
jurídicas, baseadas em sólidas e decisivas conclusões científicas. Subsiste a
“duvida”. Como não está cientificamente definido o que há atrás dessa “moita”
dos embriões, não se podem pôr em risco possíveis vidas humanas.
Será, por isso, lícito, jurídica e eticamente, autorizar que
se “atire”, havendo uma dúvida maior que a dos atiradores do conto?
Em sã consciência, e em sã lógica, parece que não. Muito
embora todos saibamos que, infelizmente, o mundo é como é; e que é mais fácil e
menos comprometido, para que tem que arcar com uma decisão dessa repercussão na
opinião pública, proteger-se atrás da moita do politicamente correto e do
clamor mais forte da mídia.
A moita dos atiradores do conto punha em risco as crianças.
Essa outra moita, pelo contrário, protege os que têm o poder decisório do
perigo de ser mal vistos pelas câmeras de tv e as colunas da imprensa.