Pode-se viver sem a “verdade”?
O que é a verdade? Existe mesmo a verdade, uma
verdade segura que possa ser alicerce firme para a nossa conduta, referencial
claro que nos oriente, luz diáfana que nos esclareça nas dúvidas da vida nos
cumule de paz? Que não nos deixe perdidos dando voltas dentro do nevoeiro da
consciência?
Vamos começar esta reflexão sobre a verdade e a vida
formulando previamente outras perguntas: Qual é o sentido da vida humana? Quais
são os valores que lhe dão autenticidade e grandeza? O que leva o homem a ser
feliz, e o que o ilude com as miragens de satisfações efêmeras e traiçoeiras? O
que constrói a personalidade de um filho de Deus e o que a destrói?
É importante pôr em pauta esses temas, porque –
especialmente hoje –são decisivas. Da boa ou má resposta que dermos a elas
depende o futuro da humanidade, a começar pelo futuro da juventude que hoje se
abre à vida. Não é de estranhar, por isso, que João Paulo II se tenha empenhado
infatigavelmente em dar doutrina clara, idéias claras (luz de Deus!) sobre as
questões morais em que mais se desorienta e claudica o católico atual, sujeito
à vertigem de erros que gritam muito forte.
Hoje são colocados diariamente sobre um pedestal,
glorificados pelo materialismo laicista e incentivados pela mídia,
comportamentos morais que destroem a dignidade do homem e da mulher, criados à
imagem de Deus; que aviltam a grandeza do amor, e a do sexo, e a do casamento,
e a da família, e a do caráter sagrado da vida e da morte... Hoje todos falam
dessas questões, essencialmente éticas, e, portanto, todos têm que tomar uma
posição – um juízo de valor – a respeito delas. Conforme for essa posição,
assim será o que as pessoas vão "passar" aos filhos e, em geral, à
juventude...
É importante não nos enganarmos, fazendo de conta que tudo
está bem conosco, e perguntar-nos a sério: – Qual é a luz, qual é o referencial
– como um farol potente à beira-mar, como a estrela que guia os navegantes – ao
qual me reporto para emitir um parecer correto sobre esses temas candentes?
Basta pensar no aborto, na clonagem, na eliminação do feto anencefálico, na
fecundação in vitro, nas pesquisas com células-tronco embrionárias, nas
manipulações genéticas, no uso de métodos artificiais (muitos deles abortivos)
de contracepção, e no divórcio, nas relações pré-matrimoniais, na "pílula
do dia seguinte", etc.
Antes de prosseguir, já me parece ouvir algum leitor
precipitado, gritando: – Só pelo modo de levantar essas questões, dá para
perceber que o senhor é "conservador" (insulto, hoje, o pior possível),
incapaz de acompanhar a evolução da ciência e dos costumes.
Caso realmente alguém pense assim, vou limitar-me a
fazer-lhe a pergunta básica de toda a filosofia e de toda a ciência: – Por
que?
Sim. Por que acha isso? Quais são os seus parâmetros para
dizer que uma atitude é certa ou errada, autêntica ou superada? Por outras
palavras: quem e o quê definem o bem e o mal, o certo e o errado de atitudes e
comportamentos? Com que critérios deve ser definido o bem e o mal?
Liberdade e verdade
Sem meter-me em amplas filosofias, que ultrapassariam o
escopo deste comentário, vou começar dizendo que só podem ser dadas duas
respostas às perguntas que fazíamos acima. Vou repeti-las:– Quem é que
define o bem e o mal, o certo e o errado? Com que critérios o bem e o mal deve
ser definido?
A primeira resposta diz que o referencial, o oráculo sobre o
bem e o mal, a agulha magnética da bússola do comportamento, é a
"liberdade". Parte-se da base de que não há valores absolutos nem
verdades permanentes. Deus, caso exista, estaria ausente, desinteressado do
mundo e não contaria para nada. Por isso, cada qual teria que escolher
livremente o que achar certo ou errado e agir de acordo com a sua opinião
(chamada, erradamente, de consciência pessoal1). Rejeitam-se
quaisquer princípios ou normas morais objetivos, absolutos e universalmente
válidos. Se alguém achar, subjetivamente, certo um comportamento e não for
contra a lei vigente no país (não importa se a lei é justa ou injusta), a sua
conduta será boa e a consciência deverá ficar tranqüila. A "norma
moral", em todos os casos, será o resultado da "sincera" opinião
pessoal e, sobretudo, do "consenso" das opiniões da maioria
numa determinada época, simples opiniões, condicionadas por determinadas
circunstâncias históricas. Poucos anos depois, a opinião poderá ser
diferente. Mais adiante, a "norma" moral boa virá a ser inclusive a
contrária.
Já se vê que essa moral de "consenso" (que é a
moral típica dos laicistas) só tem como referenciais, por um lado, o
consenso social (o que vai sendo socialmente aceito, sendo que a
sociedade permissiva tende a ser cada vez mais concessiva com o mal); por outro
lado, a ideologia dominante na mídia, ou seja, o que jornais, revistas,
tv, etc, apregoam como comportamento "normal", moderno, avançado,
como, por exemplo, a legitimação do aborto, da prática e propaganda do
homossexualismo, a religião subjetiva, sem dogmas nem verdades, etc.; e, em
terceiro lugar, as decisões majoritárias dos órgãos legislativos
(Congresso, Parlamento, etc.). Só um ingênuo desconhece que essas opiniões
"majoritárias" quase sempre começam sendo forjadas pela ação
aguerrida de grupos de pressão e lobbies econômicos de "minorias".
Essa propaganda das "minorias", encampada por órgãos poderosos da
mídia e políticos, devidamente "engraxados" pelo dólar, influencia
fortemente o pensamento de uma massa ingênua e intelectualmente
"rasa", e acaba por pressionar (política e economicamente) os
organismos legislativos.
Já reparou que uma moral de "consenso", como
a que hoje se afirma que é a única válida (execrando os que pretendem defender
"princípios" intocáveis, como o direito à vida), leva a verdadeiras
aberrações (casamento homossexual, aborto quase ilimitado, eliminação de fetos
e até de crianças já nascidas com algum defeito, etc.). Essa moral, sem
afastar-se um milímetro da sua lógica intrínseca, pode achar, daqui por alguns
anos (quando a sociedade tiver, como terá, predominância de velhos),
perfeitamente "moral" e "legal" matar crianças sadias de
dois, três ou mais anos (sempre que a morte delas seja "doce" e não
haja parentes que vão sofrer), para pesquisa, e para desmanche e transplante de
órgãos e tecidos em velhos doentes que querem sobreviver a custa do
infanticídio. Bastará para tanto que, com falácias, dólares, marketing e
passeatas se forje um "consenso", e se argumente (como hoje se faz
com o uso de embriões), que o sacrifício de um só trará benefícios a dezenas,
talvez a centenas de outros.
Em face dessa situação, que se pode dizer, por
exemplo, dos pais que pensam que, no mundo moderno, pais não devem
"doutrinar" (ensinar) os filhos, pois isso atentaria contra sua
liberdade; que pensam que é preciso deixar que eles – sem ter-lhes dado noções
para julgar sobre a verdade – "escolham" com liberdade a sua moral,
seus próprios critérios e condutas? O que se pode e deve dizer é que esses pais
são cúmplices atuais ou potenciais de todas essas outras possíveis aberrações
A essa filosofia de vida, que é a do subjetivismo
e do relativismo que, ao não reconhecer nada como definitivo, só tem
como medida última o próprio eu com seus gostos e que, com a aparência
da liberdade, converte-se para cada um numa prisão, fazendo com que cada indivíduo
se encontre fechado no seu próprio eu. Em um horizonte relativista assim
não é possível uma autêntica educação. Sem a luz da verdade, antes ou depois
toda pessoa fica condenada a duvidar da bondade da sua própria vida e das
relações que a constituem, da validade do seu compromisso para construir com os
demais algo em comum"2 moral, referia-se Bento XVI, falando da
educação dos filhos no âmbito da família: "Um obstáculo particularmente insidioso
na obra educativa é hoje a massiva presença em nossa sociedade e em nossa
cultura desse tipo de
Com grande lucidez, Bento XVI mostra que
o subjetivismo relativista, sem valores nem verdades indiscutíveis, fecha a
pessoa no egoísmo, tornando-a prisioneira dos seus caprichos e prazeres, e, por
isso mesmo, asfixiando-lhe a liberdade e a capacidade de amar. A falsa
liberdade, que faz de si mesma a lei (e à qual os egoístas chamam – como víamos
– "a minha consciência”), é a que diz "quero porque quero"
(porque me apetece e pronto); ao passo que verdadeira liberdade é a que diz
"quero porque é bom, quero porque compreendi que é verdadeiro, quero
porque agora sei que isso é o que a sabedoria e a bondade de Deus quer".
Foi para isso, para achar e escolher a verdade e, dentro dela, o bem, que Deus
nos deu a liberdade.
Veja como se expressa a esse respeito
João Paulo II: "A liberdade foi dada ao homem pelo Criador simultaneamente
como dom e como tarefa; com efeito, por meio da liberdade, o homem é
chamado a acolher e a realizar o bem na sua verdade, escolhendo e exercendo o
bem verdadeiro na vida pessoal e familiar [...]. A liberdade é autêntica
na medida em que realiza o bem na verdade, só então ela é um bem. Se
a liberdade deixa de estar ligada à verdade e começa a fazer-se depender de
si mesma ["faço o que quero e porque quero" – dizíamos],
colocam-se as premissas de nefastas conseqüências morais, cujas dimensões são
às vezes incalculáveis"3
Toda a admirável encíclica Veritatis
Splendor (O esplendor da verdade)4, de João Paulo II é
uma reflexão profunda sobre as relações entre a liberdade e a verdade. Interessa-nos
agora lembrar que esse documento começa comentando a passagem evangélica do
diálogo do jovem rico com Jesus (Mt 19,16-22): Mestre, que devo fazer de bom
para alcançar a vida eterna? Jesus responde: Por que me interrogas sobre
o que é bom? Um só é bom [Deus]. Mas, se queres entrar na vida eterna, cumpre
os mandamentos. O jovem pergunta quais são eles, e Jesus esclarece-o
mencionando explicitamente os Dez Mandamentos. Como o rapaz diz tê-los cumprido
desde a infância, Jesus olha para ele com afeto e lhe diz: – Se queres ser
perfeito, desprende-te das coisas puramente materiais e; depois, vem e
segue-me.
Dizíamos acima que há duas respostas sobre o por que
das qualificações morais: "isto é o bem, isto é o mal". Uma é a
liberdade egoísta e arbitrária. A outra, é a Vontade de Deus, a lei de Deus,
seus mandamentos. Na mesma encíclica, lemos: "Deus, que é o único bom,
conhece perfeitamente o que é bom para o homem e, devido ao seu mesmo amor o
propõe nos mandamentos".
Sim. Há um referencial claro, que é o esplendor
da verdade de Deus: em matéria moral, os mandamentos da Lei de Deus,
proclamados no Sinai, mandamentos que "nos ensinam a verdadeira humanidade
do homem" e "enunciam as exigências do amor de Deus e do
próximo"5; mandamentos que resumem a Lei divina
natural, válida para todos os povos e todas as crenças, e que foram elevados
até o máximo nível do amor pelos ensinamentos e o exemplo de Cristo6. Deus não nos
deixou ás escuras. Depois da vinda do nosso Salvador, Jesus Cristo, já não
andamos mais às apalpadelas (cf. At 17,27), porque temos a luz da
vida (Jo 8, 12).
Com toda a segurança, pois, podemos dizer com o Salmo: Lâmpada
para os meus passos é a tua palavra, e luz no meu caminho (Sl 119,105).
(Adaptação
de um texto do livro de F.Faus: A força do exemplo)
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1 Cf. F. Faus: A voz da consciência,
Ed. Quadrante, São Paulo 1996
2 Homilia na abertura do Congresso Eclesial
da diocese de Roma sobre a Família, no dia 07.05.2005
3 Cf. João Paulo II: Memória e
identidade, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2005, págs. 54-55
4 O esplendor da Verdade, de 06.08.1993.
5 Catecismo da Igreja Católica, nn. 2067 e 2070.
6 Cf. O Sermão da montanha, em Mateus,
5, 1-48.