As dificuldades
fazem cair ou subir
Todas
as dificuldades pode ser, para nós, pedras de tropeço, becos sem saída onde
paramos, caímos e nos machucamos; ou degraus que, com esforço, nos fazem
subir. O que são para nós as dificuldades? Pedras, becos ou degraus?
É
um fato evidente que não cresce aquele que fica marcando o passo num ritmo
espiritual parado, de simples manutenção das suas virtudes e qualidades.
“Já está bom assim”...
Não
são poucos os homens com essa mentalidade, parados, que – como o equilibrista –
se mantêm na corda bamba de uma “certa bondade”, mas não avançam um só passo.
Os anos vão passando, eles continuam a ser bons, mas estão (aparentemente)
sempre na mesma. Digo “aparentemente”, porque a alma nunca pode “ficar na
mesma”. Há um velho adágio cristão, cheio de sabedoria e experiência, que
afirma que, na vida espiritual, “não avançar é retroceder”.
Todos
conhecemos casos surpreendentes de retrocessos. Trata-se de pessoas que, tendo
oferecido durante longo tempo uma imagem de honestidade e bondade, de repente
nos chocam com uma virada completamente inesperada. Um pai que, sem motivo
aparente, larga a família; um profissional íntegro que um dia amanhece
incrivelmente envolvido num desfalque; uma pessoa religiosa, católica
praticante e atuante, que subitamente mergulha numa crise e abandona a fé...
Nestes
casos, tudo parece indicar que houve um afundamento repentino e inexplicável.
Mas a experiência da vida nos diz que, na maior parte das vezes, não foi assim.
O que aconteceu foi que essas pessoas se conformaram com um espírito de “simples
manutenção”, com ir levando as coisas sem um impulso de crescimento. Já fazia
anos, talvez, que se arrastavam numa rotina sem vida, e essa rotina – como água
fina que penetra pelas rachaduras de uma casa – foi desgastando a bondade e
esvaziando as virtudes. Tal como na vida do corpo, a falta de renovação trouxe
a necrose.
Este
processo de deterioração provocado pela rotina observa-se, com muita
freqüência, na gênese de boa parte dos problemas familiares. Podemos pensar
numa família estável, bem constituída, em que pais e filhos se mantêm unidos
pelos laços do carinho. É claro que, por melhor que seja o ambiente familiar,
não faltam as dificuldades. Talvez sejam apenas as corriqueiras, mas, por serem
muitas vezes repetidas, podem ir empanando insensivelmente o afeto, recobrindo
de ferrugem invisível as boas vontades e as boas disposições. Então, à medida
que o tempo passa, os atritos podem tornar-se mais freqüentes, a impaciência –
provocada por minúcias insignificantes – mais áspera e repetida, e o mau humor
ir ganhando terreno no relacionamento familiar. Certamente, não deixará de
haver momentos em que os defeitos de um ou de outro se acentuem, e então a
irritação poderá tornar-se explosiva. Bem sabemos como uma reação brusca – um
comentário ríspido, um surto de ira, uma crítica ferina – costuma provocar
outra reação mais brusca ainda, e assim acaba-se dando origem a uma reação em
cadeia de mágoas, acusações, decepções e desentendimentos capaz de desandar
para um desfecho catastrófico.
A recusa de crescer
Caso
nos perguntemos o que houve num processo deste tipo, possivelmente a primeira
resposta que nos venha ao pensamento seja: houve dificuldades, uma chuva de
pequenas dificuldades, uma poeira desgastante e insuportável de dificuldades.
No
entanto, a resposta verdadeira é outra. O que houve foi uma recusa do dever
moral de crescer. Na realidade, cada pequena dificuldade estava pedindo um
pouco mais: um pouco mais de paciência, um pouco mais de generosidade, um
pouco mais de abnegação e esquecimento próprio, um pouco mais de humildade...
Cada dificuldade era um apelo para se crescer em algum aspecto de uma virtude,
mas o coração estava acomodado e não foi capaz de dar esse algo mais.
Cada
dificuldade, grande ou pequena, indica, por assim dizer, o tipo de crescimento
espiritual que Deus espera de nós. Quando lutamos por superá-la, isto é, por
estar à altura daquilo que a dificuldade nos exige – esse “pouco mais” de que
falamos –, estamos dando um passo à frente e subimos até um nível de maturidade
adequado que nos deixa em condições não só de evitar o desgaste, mas de nos
tornarmos melhores.
Cristão
normal – aquele que tem energias para viver moralmente bem – é aquele que
consegue dar, ajudado por Deus, a resposta certa, com um novo ato de virtude, a
cada nova situação que aparece: resposta de fé, ou de amor, ou de fortaleza, ou
de sacrifício.
Se,
em vez disso, permanece na manutenção rotineira dos seus hábitos, recusando-se
a dar mais de si quando as circunstâncias lhe pedem maior virtude, ficará como
que achatado e sem forças. Irá ficando “por baixo” dessas circunstâncias,
moralmente defasado e, por isso mesmo, incapaz de dar uma resposta à altura do
que é preciso. É natural que acabe sucumbindo. Aqui se encontra, em resumo, a
explicação de muitos inexplicáveis.
Duas fraquezas
É
importante que nos apercebamos de que existem no homem duas espécies de
fraqueza, muito diferentes entre si: uma é a fraqueza natural – que poderíamos
chamar sadia –, e que é própria das limitações de todo o ser humano (a fraqueza
que também os santos experimentam); e outra é a fraqueza doentia, que resulta
da apatia moral, da falta de ideais ou de luta por alcançá-los. Esta fraqueza
doentia é a que deixa o homem desarmado perante os valores morais. As mesmas
dificuldades que para o homem moralmente sadio são corriqueiras, que não passam
de pequenas lutas diárias que se aceitam com naturalidade, para o doentio são
intoleráveis, da mesma forma que o alimento são é insuportável para o estômago
enfermo.
O
“efeito” das dificuldades depende da atitude que adotarmos diante delas. A
atitude certa, no caso, é a de aceitá-las sem protesto nem surpresa, como um
incentivo e um belo desafio. “Cresce perante os obstáculos”, diz Caminho (n.
12). Esta pequena frase resume tudo o que agora procuramos comentar. É preciso
não só contar com as dificuldades, mas aceitá-las de bom grado e até amá-las,
uma vez que elas nos ajudam a construir, degrau a degrau, a escada que nos
eleva até à maturidade moral.
Esta
é a atitude do esportista, do pesquisador, do homem que se lança a uma nova
iniciativa profissional. Ao começar a sua tarefa, está num ponto de partida e
sabe que tem diante de si, a aguardá-lo, inúmeras dificuldades. Desde o início,
tem consciência de que não se está propondo coisas fáceis e sem valor. Não está
a fazer exercícios de repouso na rede. Está começando a lutar, tem um objetivo
grande e empolgante – vencer um torneio, fazer uma descoberta científica,
arrancar do nada um empreendimento –, e com gosto arregaça as mangas. Se há
dificuldades, e necessariamente tem que havê-las, elas serão um estímulo
diário, um motivo de criatividade e de melhor desempenho. Tudo isto, que é tão
evidente nos ideais puramente humanos, às vezes parece obscurecer-se quando se
trata do maior ideal, da maior grandeza do homem: a sua autêntica realização
que é a realização espiritual e moral, a perfeição do homem enquanto homem e
filho de Deus.
Quem
tem grandeza moral nem sequer espera pelas dificuldades. Adianta-se e vai ao
encontro delas. É a grandeza moral que o faz propor-se metas espiritualmente
altas e árduas, recusando como verdadeira morte a instalação medíocre numa
bondade morna.
Deste
modo, o homem que se propôs a meta alta de viver o amor a sério, vai alentando
no seu íntimo o desejo eficaz de se entregar cada dia mais a Deus e aos homens.
Tudo o que faz lhe parece pouco. No fundo da alma, ecoa-lhe como uma música
empolgante a palavra “mais”. Movido por esse afã, procura motivos e ocasiões de
sacrificar-se, de renunciar a pequenos egoísmos, de servir e alegrar a vida dos
outros. E então, quando se lhe apresentam as dificuldades, elas o encontram já
a caminho da doação: são como o bastão que o atleta apanha com força, já em
tensão de velocidade, na corrida de revezamento. O homem generoso não é
surpreendido pelos obstáculos, pois não estaciona na bondade fácil, mas está em
carreira acelerada para a bondade difícil.
A bondade difícil
Seria
muito interessante que cada um de nós se perguntasse qual é a sua bondade
difícil. Com um pouco de sinceridade, não demoraríamos a descobri-la. Para
uns, é a abnegação, para outros a compreensão, para outros a intensidade e
perfeição no trabalho, para outros a serena paciência... Para cada um, aquelas
virtudes que, nos maus momentos, nos sentimos inclinados a julgar como
impossíveis: “Eu não fui feito para isto, isto comigo não dá, nunca vou
conseguir”.
Pois
bem, essas bondades difíceis devem ser exatamente as nossas metas,
voluntariamente abraçadas, no esforço de aperfeiçoamento moral. É nesses
“obstáculos” que devemos “crescer”.
Triste
coisa seria que nos contentássemos com as virtudes que brotam espontaneamente
do nosso temperamento e dos nossos hábitos. Ficaríamos fadados ao raquitismo
espiritual e nos fecharíamos numa mediocridade cristalizada e sem remédio. O
“homem de manutenção”, de que falávamos, não tem propriamente virtudes firmes,
tem antes o que poderíamos chamar “os defeitos das virtudes”, isto é, as
manifestações desfibradas de algumas qualidades excessivamente atreladas ao seu
modo de ser – tranqüilo, bonachão, ordeiro –, ou às suas manias – “gosto” de
fazer isto ou aquilo –, ou aos seus hábitos inerciais. As virtudes boas são
mesmo as difíceis. A estas é que o homem digno deste nome deve aspirar.
Depois
de se propor essa meta, virá uma segunda parte. Como atingi-la? O que equivale
a perguntar-se como enfrentar o lado difícil da bondade e crescer nele. Quando
se “quer”, sempre existe um “como”. Os que nunca concretizam os modos práticos
de melhorar são os que aspiram aos seus ideais sem sinceridade. Por serem
incapazes de dizer “quero”, dizem apenas “quereria”, mas nem eles nem ninguém
sabe como é que vão querer.
Sempre
há algum modo de fincar o dente numa aspiração difícil. Sempre há pelo menos um
modo de começar. “Concretiza – lê-se em Caminho –. Que os teus
propósitos não sejam fogos de artifício, que brilham um instante para deixar,
como realidade amarga, uma vareta de foguete, negra e inútil, que se joga fora
com desprezo”(n. 247).
É
claro que, para isto, é preciso saber dar o primeiro passo rumo à meta que nos propomos,
e não arredar pé depois, mesmo que custe e custe muito. Com espírito esportivo,
devemos tentar uma vez e outra, tendo a coragem e a humildade de “começar e
recomeçar”, e tendo ao mesmo tempo a fortaleza de ser pacientes conosco
próprios, porque a ascensão da montanha da grandeza moral é sempre lenta. Como
numa construção, “para edificar é preciso sofrer (...). As mãos dos pedreiros
ferem-se na aspereza da argamassa e, por muito manejarem a colher, tornam-se
calosas e as suas unhas descuidadas. A pedra é resistente e pesada. Só obedece
à força de marteladas. É teimosa e cheia de arestas pontiagudas e cortantes...
Não seria possível construir sem martelo e sem ruído, sem violência nem golpes,
por meio de um simples desejo? Todos os que têm medo da realidade esbanjaram
assim o seu tempo em fantasias. Meu Deus, fazei-me amar o trabalho rude”
(Pierre Charles: A oração de toda a hora).
[adaptado do livro de F. Faus: “O valor das dificuldades”,
Quadrante 1989]