O que é ter caráter?
É um fato
patente que hoje se observa em muitas pessoas – adolescentes, jovens e velhos –
uma espécie de incapacidade de dominar os defeitos do seu
temperamento, as suas tendências, inclinações e instintos desordenados, bem
como os maus hábitos já contraídos. Isso lhes prejudica a perfeição do
trabalho, o relacionamento com os outros, a capacidade de amar, a prática
serena e profunda da religião..., e, afinal, a eficácia, a paz e a alegria. É
notável como tais pessoas se mostram incapazes de autodomínio e perseverança,
ou seja, de domínio da vontade e, portanto, de caráter, desse caráter
bem formado que constitui a verdadeira personalidade.
Em muitos
ambientes atuais, julga-se que ter caráter é ser “independente” de todos e de
tudo, também de qualquer norma moral. Quer-se uma absoluta liberdade para que
cada qual crie, estabeleça e defenda os “seus valores” (não “os valores”,
porque não se acredita em valores absolutos e universais: tudo é relativo).
Todos percebemos, infelizmente, qual é o resultado disso. Desastroso.
Substitui-se a vontade pelos sentimentos e pelos gostos. Faz-se só o que se
sente e o que se gosta, não o que é bom, porque, para essas pobres
criaturas sem caráter só é bom o que “me dá prazer”, o que eu “gosto de fazer,
...o egoísmo; só isso seria “autêntico”.
Ora,
sentimentos, gostos e prazer: nenhuma dessas três coisas é mão para o volante
da vida. Deixe-se guiar por elas (desprezando a formação do caráter e as
virtudes) e contribuirá para fazer da sociedade atual um imenso redemoinho de
egoísmo, que devora as pessoas, as afunda no seu funil assassino e as cospe
depois, deprimidas e inúteis, para fora. Quando só existem “apetites” e
“ambições”, não existe um caráter que possa ser firme ou alicerçar qualquer
coisa.
A vontade – que
está na raiz do caráter – é uma potência, uma energia da alma, que pode estar
abafada ou liberada. Na situação concreta das nossas vidas, ninguém tem a
vontade suficientemente “livre”. Tem que travar-se, em cada um de nós, uma
batalha para conseguir desatrelar a vontade das fraquezas, egoísmos, miragens,
paixões, maus hábitos e enganos, e torná-la no que deve ser: a grande força
serena, a “executiva” racional da conduta humana.
Isso exige uma
luta, seriamente orientada e apoiada no auxílio da oração, dirigida a
conquistar as virtudes humanas, que são os pilares do caráter.
Com muita
precisão, o Catecismo da Igreja Católica explica: "As virtudes
humanas são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais
da inteligência e da vontade que regulam nossos atos, ordenando nossas paixões
e guiando-nos segundo a razão e a fé. Propiciam, assim, facilidade, domínio e
alegria para levar uma vida moralmente boa. Pessoa virtuosa é aquela que
livremente pratica o bem" (n. 1804). Todas as virtudes humanas, que são
muitas, giram à volta das quatro virtudes cardeais: – o que significa
"virtudes-eixo" –, da prudência, justiça, fortaleza e temperança
(nn. 1805-1809).
Ossos de vidro
e asa quebrada
Um homem ou uma
mulher ganham personalidade e consistência de caráter na medida em que adquirem
essas virtudes humanas. Elas – diz o Catecismo – "com o auxílio de
Deus, forjam o caráter e facilitam a prática do bem" (n. 1810).
Sem virtudes
humanas solidamente adquiridas, as pessoas – pensemos especialmente nos
adolescentes e jovens – crescem como uma criança doente do mal dos "ossos
de vidro", que tivesse tido a desgraça de cair nas mãos de pais
irresponsáveis. Poderia estar sendo alimentada com capricho, vestida com o bom
e o melhor, educada com os melhores mestres. Mas, se os pais não cuidam de
amparar e "escorar", com as soluções médicas e tecnicamente mais
eficazes, a fragilidade do filho, virá uma fratura atrás da outra e, afinal, a
incapacitação ou a morte
Há pais que
parecem criar filhos para que, muito cedo, acabem reduzidos a cacos. Dão-lhes
(assim o julgam) o melhor possível em tudo, menos na formação humana e moral.
Não cultivam neles, desde a primeira infância, virtudes sérias, com o incentivo
do seu exemplo constante e com o acompanhamento de um "adestramento"
prático,boa vontade e de bons sentimentos, ainda que não tenham
virtudes (nem fortaleza, nem constância, nem desprendimento, nem altruísmo, nem
responsabilidade...), e, assim, os deixam abandonados aos seus caprichos,
molezas e desordens, com "ossos de vidro" na alma, desde que tirem
notas boas ou aceitáveis, não apanhem doenças nem vícios maiores com os seus
desregramentos, e não criem encrencas por aí... paciente, pedagogicamente
acertado, incansável. Contentam-se com ver que são "bons meninos",
cheios de
A boa vontade e
os bons sentimentos, sem virtudes, são como um pássaro de asa quebrada. Uma das
estórias mais lindas de Guimarães Rosa fala de um casal de garças alvíssimas,
que apareciam, ano após ano, junto do riachinho Sirimim. Uma delas, atacada por
um bicho do mato, foi achada um bom dia, enroscada em folhagens e cipós, com
uma asa estraçalhada. "Durou dois dias. Morreu muito branca. Murchou"
1 Eu não gostaria que esse fosse o
epitáfio do filho de ninguém. Mas muitos pais, com o seu desleixo e a sua
inconsciência, o estão preparando.
Os dois testes
das virtudes
As nossas
virtudes precisam sempre de duas condições ou, melhor, têm que passar por dois
testes de autenticidade: o teste da "prova" e o teste da
"unidade de vida". Vou explicar a seguir.
De uma maneira
surpreendente, o apóstolo São Tiago começa a sua Carta, que é palavra de Deus
incluída no Novo Testamento, dizendo: "Considerai uma grande alegria, meus
irmãos, quando tiverdes de passar por diversas provações". Na
realidade, nós desejaríamos que as provações fossem as menos possíveis. Mas São
Tiago não pensa assim, porque sabe que as dificuldades que nos põem a prova e
nos fazem sofrer podem derrubar-nos, mas – e isso é o que interessa – podem
também ser o meio de temperar, de consolidar e fortalecer as nossas virtudes.
E, por isso, acrescenta que a prova "produz em vós a constância; e a
constância deve levar a uma obra perfeita " (Tiag 1, 2-4).
São Paulo é do
mesmo parecer: "Sabemos que a tribulação gera a constância, a constância
leva a uma virtude provada e a virtude provada desabrocha em esperança"
(Rom 5, 3-4) 2.
Há coisa mais
maravilhosa do que uma mãe sempre serena, com uma serenidade sorridente e
ativa, que atravessa problemas financeiros, tribulações de saúde, preocupações
com o marido e os filhos, sem mostrar abalo, infundindo sempre neles paz,
segurança e uma visão esperançosa do futuro? Todos nós conhecemos e admiramos
mães assim, forjadas na dificuldade como ouro testado no fogo (I Pedr 1,
7); generosas sem alarde, heróicas, cuja lembrança nos arranca lágrimas dos
olhos. Vimo-las, por vezes, chegar ao extremo, à hora da morte, após longa e
sofrida doença, derramando a mesma serenidade de sempre sobre os corações dos
seus, esquecidas de si mesmas, consolando e animando a todos, e deixando atrás
de si uma esteira de luz. Isto é que é "esplendor da virtude"! Isto é
que são virtudes "provadas"!
Não há virtudes
fáceis. Não são verdadeiras as virtudes que aparecem nos momentos fáceis e
desaparecem nos difíceis.Mas também não há virtudes "especializadas",
só para certos ambientes, e determinadas ocasiões. Aí temos que enfrentar-nos
com o segundo teste, o da unidade de vida. Infelizmente, não é raro que
muitos cristãos, quando estão com os amigos, os colegas de clube e as relações
profissionais, pratiquem admiravelmente as virtudes da convivência. São amáveis,
conversadores bem-humorados, prestativos, disponíveis. Chegam, porém, em casa,
e parece que o mesmo homem virou "lobisomem": seco, taciturno,
antipático, mal-humorado, reclamando de tudo, isolado no seu jornal, na tv ou
na Internet, incapaz de uma palavra ou de um gesto de carinho cálido. Que
aconteceu? Que as "virtudes" exibidas em ambientes sociais eram isso,
sociais, fachada inautêntica.
Pequena
reflexão sobre as virtudes cardeais
Penso
que, como simples amostra – dirigida agora especificamente aos pais – ,
podem-nos ajudar algumas pinceladas sobre as quatro virtudes cardeais. Serão
rápidas, impressionistas, e mostrarão apenas umas poucas moedas do tesouro
riquíssimo que guarda cada uma delas 3.
Prudência.
Como ajuda e enche de segurança ter um pai que seja alegre, sensato e
reflexivo. Que não improvise. Que não dê decepções a toda a hora. Que não mude
de planos sem mais nem menos. Que não dê sustos por ter-se esquecido de
controlar as contas bancárias, ou os prazos disso ou daquilo, que não precise
ouvir aquelas palavras do Paraíso de Dante: "Siate, cristiani, a
muovervi più gravi: non siate come penna ad ogni vento..."
("Cristãos, caminhai com mais ponderação: não sejais qual pena movida por
qualquer vento...") 4.
Justiça.
Como faz bem aos filhos ter um pai e uma mãe que cumprem o que prometem. Que
não se desdizem, porque fica mais difícil aquele passeio com os filhos e estão
cansados e são comodistas. Que não tratam os filhos como números, com ordens
genéricas, iguais para todos, como se o lar fosse um depósito de robôs, mas,
como pede a justiça, tratam desigualmente os filhos desiguais, logicamente não
por diferenças motivadas por mimos ou preferências injustas. Que, se fazem uma
repreensão justa e prometem um pequeno ou médio castigo (castigo grande quase
nunca se justifica), não amolecem, mas cumprem, sem deixar de cercar o filho punido
da certeza de que é muito amado e só se quer o seu bem.
E também fazem
bem aos filhos outras "justiças" menores do cotidiano. Por exemplo,
saber que os pais não se aproveitam nunca de um troco errado (devolvem ao caixa
a diferença), nem dão jeitos para enganar e deixar de pagar uma entrada, que
qualquer pessoa honesta paga.
Fortaleza.
Bastaria lembrar da mãe que admirávamos há pouco. Mas é também um exemplo
maravilhoso viver num clima familiar em que não se ouvem queixas nem
reclamações, nem gemidos. Em que ninguém se julga mártir ou vítima. Em que o
pai, exausto, é capaz de ficar brincando com os filhos, interessando-se pelas
suas pequenas problemáticas ou pelos seu sonhos e alegrias, e tudo isso,
sabendo oferecer a todos um sorriso carinhoso, no meio da pena ou do
esgotamento. Pais que sempre projetam a bela luz da paciência e da constância.
Temperança.
Que grande exemplo dão os pais que nunca são vistos, nem dentro nem fora de
casa, nem nos dias de trabalho nem aos domingos e feriados, abusando da comida
e da bebida. Que não se iludem, achando que vão enganar os filhos dizendo-lhes
que se trata só de um "aperitivo" ou uma "cervejinha", de
que precisam muito porque andam fatigados e faz bem para a saúde (quando os
filhos os vêem claramente "altos", com a voz gosmenta e as pernas
bambeando por excesso de álcool). Pelo contrário, como toca o coração ver uma
mãe que habitualmente "gosta" do pedaço de carne que tem mais nervos
e gorduras, ou ver o pai que "gosta" do cinema que a mãe adora...,
mesmo em dias em que seu time joga.
E a temperança
na questão de TV e de Internet? Acham que os filhos são tolos? Em matéria de
informática, quase sempre dão um solene "chapéu" nos pais, e
descobrem muito facilmente (pois ainda não aprenderam a viver a virtude da
discrição e a controlar a curiosidade) a quantidade de sites inconvenientes
que o pai visitou, como se fosse um adolescente com obsessão sexual neurótica.
E em matéria de
humildade, que São Tomás de Aquino situa dentro do âmbito da temperança? Como
se nota a falta de humildade e como faz mal! Por isso, é tão formativo que os
filhos percebam que os pais não se deixam arrastar por mesquinharias de
susceptibilidade, por mágoas persistentes, por rancores e incapacidade de
perdoar. Que nunca vejam os pais virando o rosto para ninguém, nem dominados
por espírito de revide e vingança, nem falando com ódio do cunhado que fez isso
ou da tia que fez aquilo...
Virtudes
humanas! São tantas as que deveríamos cultivar! Cultivar e ensinar é um
empreendimento árduo, mas é decisivo, e, por isso, deve ser enfrentado e levado
a termo incansavelmente, com a graça de Deus.
(Adaptação de trechos dos livros de F. Faus: Autodomínio e A
força do exemplo)
1 João Guimarães Rosa: Ave,
Palavra, Liv. José Olympio, Rio de Janeiro 1070, págs. 270-274
2 Cfr. F. Faus; O valor das
dificuldades, Ed. Quadrante, São Paulo, 1989
3 Cfr. Catecismo da Igreja
Católica, nn. 1803 a 1811 e seu Compêndio, nn. 377 a 383
4 Dante Alighieri: Commedia, Paradiso, V, 73-74.