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Jubileu de Ouro sacerdotal
No dia 28 de março de 1975, São Josemaria Escrivá ia comemorar o seu
Jubileu de Ouro sacerdotal. Naquele ano, a data coincidiu com a Sexta-feira
Santa: a liturgia não permitia celebrar Missa nesse dia. Celebrou-a, com imenso
fervor, na véspera, dia 27, Quinta-feira Santa.
Naquela manhã de Quinta-feira, fazendo a sua meditação matutina no oratório de
Pentecostes, na sede central do Opus Dei, São Josemaria deu vazão, diante do
Santíssimo Sacramento, aos sentimentos de seu coração: uma oração em voz alta – com
inflexão serena, pausada, comovida –, dando graças
a Deus pelos seus cinqüenta anos de sacerdócio.
«Ajudem-me – dizia aos que estavam junto dele no mesmo
oratório – a dar graças a Nosso Senhor por este
cúmulo imenso, enorme, de favores, de providências, de carinho..., de pauladas!
– que também são carinho e providência [...] Um olhar
para trás... Um panorama imenso: tantas dores, tantas alegrias. E agora, tudo
alegrias, tudo alegrias... Porque temos a experiência de que a dor é o martelar
do Artista, que quer fazer de cada um de nós, dessa massa informe que nós
somos, um crucifixo, um Cristo, o alter Christus que temos de ser».
Em todos os eventos e circunstâncias da sua vida, justamente por ter a alma
ancorada num profundo sentido da filiação divina (fundamento do espírito do
Opus Dei), São Josemaria via a mão amorosa de Deus-Pai, do Senhor, que é meu
Pastor, e nada me faltará (Cf. Sl 23). Desde que era muito jovem,
tinha praticado o que depois aconselharia aos outros: «Habitua-te a elevar o
coração a Deus em ação de graças muitas vezes ao dia... Dá-Lhe graças por tudo,
porque tudo é bom» (Caminho, n. 268).
Como
uma criança que balbucia
Naquela véspera do Jubileu de Ouro sacerdotal, São Josemaria só queria
agradecer, e sentia a necessidade de fazer dessa ação de graças um ato de
profunda humildade: uma “humilhação” que não o deprimia, antes lhe deixava a
alma extasiada por ver a fidelidade e a bondade amorosa de Deus para com ele:
«Tu és quem és – dizia ao Senhor –, a
Suma bondade. Eu sou quem sou: o último trapo sujo deste mundo podre. E, no
entanto, Tu me olhas..., e me procuras..., e me amas... Senhor: que eu te
procure, que te olhe, que te ame».
Após meio século de sacerdócio, via-se a si mesmo como nada, apenas como uma
criança, que ainda tem de aprender a andar pelos caminhos de Deus. Era um modo
humilde e bonito – infância espiritual! – de
compreender que, na procura da santidade, sempre há uma longa estrada a
percorrer, sem que jamais, seja qual for a nossa idade, possamos julgar-nos
satisfeitos como o que já alcançamos, nem, em sentido contrário, “entregar os
pontos”, desanimados pelo que não conseguimos.
«Passados cinqüenta anos – dizia –,
sinto-me como uma criança que balbucia: estou começando, recomeçando, como na
minha luta interior de cada jornada. E assim, até o fim dos dias que me restem:
sempre recomeçando. O Senhor assim o quer, para que em nenhum de nós haja
motivos de soberba nem de néscia vaidade. Temos de viver pendentes dEle, dos
seus lábios: com o ouvido atento, com a vontade tensa, disposta a seguir as
divinas inspirações»[1].
Começar
e recomeçar
«Sempre recomeçando»... Esta é uma das grandes lições desse sacerdote santo. Na
sua vida interior e nos seus ensinamentos sacerdotais, conjugavam-se,
harmonizavam-se e fundiam-se em perfeita harmonia três atitudes profundamente
sobrenaturais:
– Em primeiro lugar, a certeza de que é Deus, e não
nós, quem nos santifica. «Espera tudo de Jesus; tu nada tens, nada vales, nada
podes. –Ele agirá, se nEle te abandonares» (Caminho, n. 731).
«Toda a nossa fortaleza é emprestada» (Caminho, n. 728). Daí a necessidade,
intensamente sentida, de orar sem interrupção e de se abeirar
constantemente das fontes da Graça, especialmente dos Sacramentos da Penitência
e da Eucaristia.
– Em segundo lugar, a convicção de que Deus, o divino
Espírito Santo, princípio e manancial de todas as graças, nos pede um esforço
leal e perseverante de correspondência aos dons que Ele nos concede. «Ser fiel
a Deus exige luta. E luta corpo a corpo, homem a homem –
homem velho e homem de Deus –, detalhe a detalhe, sem
claudicar» (Sulco, n. 126). «Enquanto há luta, luta ascética, há vida
interior. Isto é o que nos pede o Senhor: a vontade de querer amá-lo com obras,
nas coisas pequenas de cada dia» (Via Sacra, III, n.2).
– E, em terceiro lugar, essas convicções se completavam
com a idéia clara de que, aos olhos de Deus, a verdadeira vitória nas lutas
espirituais consiste em “ter amado”, mesmo que não vejamos nenhum resultado
tangível do empenho colocado na procura da santidade e do apostolado.
«Fracassaste! – Nós nunca fracassamos. –Puseste por completo a tua confiança em
Deus. Não omitiste, depois, nenhum meio humano [nenhum esforço].
Convence-te desta verdade: o teu êxito –
agora e nisso – era fracassar. – Dá graça ao Senhor e...
torna a começar» (Caminho, n. 404).
Esse espírito de luta, generosa e humilde, resumia-o freqüentemente São
Josemaria numa breve frase: «A tua vida interior deve ser isso precisamente:
começar... e recomeçar» (Caminho, n. 292). «O poder de Deus –
acrescentava, glosando esse pensamento –
manifesta-se na nossa fraqueza e incita-nos a lutar, a combater os nossos
defeitos, mesmo que saibamos que nunca obteremos uma vitória completa durante o
nosso peregrinar terreno. A vida cristã é um constante começar e recomeçar, um
renovar-se cada dia» (É Cristo que passa, n. 114).
Por isso, inspirando-se em São Paulo, não cessava de incentivar o “espírito
esportivo” na luta espiritual. Ao mesmo tempo que dizia «Tudo espero de Ti, meu
Jesus: converte-me», infundia ânimo para darmos a Deus a nossa pobre
contribuição; sabemos que será “pouca”, mas procuraremos que seja “toda”. «A
luta ascética não é algo de negativo nem, portanto, odioso, mas afirmação
alegre. É um esporte. O bom esportista [...] treina durante muito tempo, com
confiança e serenidade: tenta uma vez e outra, e, ainda que a princípio não
triunfe, insiste tenazmente, até ultrapassar o obstáculo» (Forja, nn.
169 e 170).
«A santidade está na luta – voltava a repisar –, em
saber que temos defeitos e em tratar heroicamente de evitá-los. – A santidade –
insisto – está em vencer esses defeitos..., mas
morreremos com defeitos: senão, seríamos uns soberbos» (Forja, n. 312).
Se lutarmos assim, apesar das nossas quedas e fraquezas, Deus vencerá em nós.
«Desse modo [quando somos sinceros na luta], não já apesar da nossa miséria,
mas de certo modo através da nossa miséria, da nossa vida de homens feitos de
carne e de barro, Cristo se manifesta: no esforço por sermos melhores, por
realizarmos um amor que aspira a ser puro, por dominarmos o egoísmo, por nos
entregarmos plenamente aos outros, convertendo a nossa existência num serviço
constante» (É Cristo que passa, n. 114).
Se soubermos perseverar nesse empenho de luta humilde e confiante, poderemos
ter a certeza de que não nos faltará a presença materna de Maria Santíssima,
que manterá em nós a chama de um amor que não se apaga, porque sabe viver
«sempre recomeçando». «Antes, sozinho, não podias... –Agora, recorreste à
Senhora, e, com Ela, que fácil!» (Caminho, n. 513).
Pe. Francisco
Faus
[1] Os
textos citados dessa oração de 27/03/1975 podem ser encontrados no livro Perfil
do Fundador do Opus Dei, de Salvador Bernal, Ed. Quadrante, São Paulo 1978,
pp. 415 ss.