Como vemos os outros
Ver os outros com amor
Quando São Paulo
descreve as principais manifestações do amor ao próximo, da caridade, diz: A
caridade é paciente, a caridade é benigna... (1 Cor 13,4). Vamos meditar
nessa segunda qualidade: a benignidade.
A benignidade é,
antes de mais nada, um especial modo de ver os outros. Para expressá-lo
de maneira simples, poderíamos dizer que é benigno aquele que enxerga o próximo
“com bons olhos”, e isto significa que possui uma inclinação habitual para
fixar a sua atenção no “lado bom” das pessoas. Dentro do seu coração, está
convencido de que não há nenhuma criatura que não tenha valor. Percebe
amorosamente que em cada ser humano, de um modo ou de outro, encontram-se as
sementes, o latejar do bem. Pois todo o homem, por mais deficiente que seja,
conserva – mesmo por entre as mais densas sombras do pecado – a “imagem de
Deus”, uma “imagem” que pode e deve ser amada.
“Dentro do avarento mais egoísta – dizia Paul Claudel –, no interior da
pior prostituta e do mais indecente bêbado há uma alma imortal, santamente
ocupada em respirar e que, não podendo fazê-lo de dia, ao menos no repouso do
sono pratica a sua adoração noturna”. No interior do mais degradado pecador –
poderíamos acrescentar – há um santo à espera de que o despertem. E só poderá
acordá-lo o amor, o respeito e a confiança de um coração bom.
A bondade não despreza ninguém
Uma atitude que se
situa do lado contrário da benignidade é o desprezo. Quando Cristo quis
desmascarar a “bondade” hipócrita dos fariseus, começou por dizer que havia
uns homens que confiavam em si mesmos, como se fossem justos, e desprezavam os
outros (Lc 18,9).
O fariseu despreza
precisamente porque se considera justo, porque é orgulhoso. Ao julgar-se
perfeito e gabar-se das suas pretensas perfeições, considera inferiores aqueles
que, em seu conceito, não as possuem: “Não sou como os outros homens”, diz,
inchado de autocomplacência.
É próprio do
orgulhoso manifestar uma irritada intolerância com os defeitos do próximo. Tal
é o caso do homem que se aborrece porque a mulher, o colega ou os filhos são
desordenados, ou distraídos e lerdos, ou pouco inteligentes, inoportunos,
teimosos, rebeldes... Admirando-se a si mesmo como a um “deus”, julga
intolerável que os demais não sejam “à sua imagem e semelhança”. Por isso, está
continuamente a lançar-lhes em rosto, de modo humilhante, os defeitos que é
incapaz de compreender: “Você nunca faz nada direito”, “parece mentira que não
tenha um pingo de sensatez”, “não há quem o agüente”...
Com essa
incapacidade para a compreensão, é natural que o orgulhoso se canse, e
esse cansaço em face dos demais é outra forma – não menos dolorosa – de
menosprezo. Frases como “já chega”, “não dá mais”, “desisto de tentar”,
aplicadas ao próximo, indicam que a caridade fracassou dentro do coração de
quem as pronuncia. A “decepção” é a morte da benignidade.
Por
que nos sentimos decepcionados?
Mas, vejamos com
calma. Por que nos sentimos decepcionados com alguém? Será, porventura, porque
o amamos? Não, certamente. É porque nos amamos demasiado a nós mesmos, porque
nos adoramos como a um pequeno ídolo ridículo, e por isso exigimos dos outros
as qualidades que nos satisfazem e que “servem” a nossa satisfação.
Há, por exemplo,
pais que se sentem decepcionados com os seus filhos porque não conseguiram
moldá-los como argila, de acordo com o modelo que idealizaram para a sua
satisfação pessoal. Tinham feito, como um cineasta, o “roteiro” da vida do
“filho ideal”, prevendo todas as etapas e calculando todos os detalhes. E eis
que os filhos, usando da sua liberdade – e, às vezes, secundando o plano que
Deus preparou para eles – rasgam o “roteiro” do pai (vai seguir a mesma
carreira que eu, vai trabalhar comigo, vai ser rico e importante, etc.) e
traçam o seu próprio caminho. Nessa altura, o pai sente que foram cortados os
fios com que pretendia comandar os filhos como marionetes, e mergulha na
decepção. Mesmo as mais belas opções de vida feitas pelos filhos, se estão à
margem do “roteiro” paterno – por exemplo, dedicar-se inteiramente a Deus,
escolher uma profissão menos brilhante mas mais aberta ao serviço do próximo,
abraçar ideais de pesquisa científica ou de arte –, parecem-lhe tolices,
idealismos estúpidos que vão estragar-lhes a vida. Na realidade, estão
estragando apenas os sonhos egoístas do pai.
Também nos cansamos
e decepcionamos facilmente com os outros porque não corrigem os seus defeitos –
defeitos reais, falhas objetivas – com a rapidez que nós desejaríamos. Uma e
outra vez reincidem nas mesmas faltas, continuam com as mesmas reações, mantêm
inalteradas as arestas do seu caráter. Então, desanimados, só sabemos
recriminar, repetindo como um disco rachado: ele fala demais, esquece tudo,
chega atrasado, não me escuta, gasta sem controle, etc., etc. E, ao pensarmos
nesses defeitos sempre reiterados, sentimo-nos com o direito de dizer: “Isso
cansa”. Daí a desistir de compreender e ajudar há só um passo, o passo que o
“cansado” acaba dando quando se rende à decepção e conclui: “Não tem conserto”.
Extinguiu-se então a confiança e instalou-se no coração o desprezo.
Atenção amorosa
Não desprezar. Aqui
temos o que poderíamos chamar o “primeiro mandamento” da benignidade. Valorizar
e confiar, esta é a versão positiva desse mandamento.
Uma das
manifestações mais comoventes da bondade de Cristo é a sua infinita capacidade
de prestar uma atenção amorosa e confiante a todos, mesmo aos que parecem mais
pervertidos e irrecuperáveis. É uma atitude que vemos a cada passo nos relatos
evangélicos, ao contemplarmos o modo acolhedor e esperançado com que Cristo
encara os pecadores, os miseráveis, todos aqueles que aparecem como o rebotalho
imprestável do mundo.
Há, concretamente,
uma passagem do Evangelho em que essa atitude se revela com grande
transparência. São Lucas pinta a cena com os traços de um drama em que intervêm
dois personagens, Cristo e um fariseu chamado Simão. Ambos contemplam o mesmo
fato: a irrupção inesperada de uma mulher pecadora na casa do fariseu, onde
Jesus estava à mesa juntamente com outros convidados. E eis que uma mulher,
que era pecadora na cidade, quando soube que Ele estava à mesa em casa do
fariseu, levou um vaso de alabastro cheio de bálsamo. Estando a seus pés,
detrás dEle, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas, enxugava-os com os
cabelos da sua cabeça, beijava-os e ungia-os com bálsamo (Lc 7, 37-38).
Aquela pobre mulher, tocada na alma pela divina bondade de Cristo, não sabe o
que fazer para expressar a sua dor, o seu arrependimento.
Dois pares de olhos
fixam-se especialmente nela: os do fariseu Simão e os de Cristo. Ambos observam
a mesma cena, a mesma pessoa, os mesmos gestos. Mas vêem coisas inteiramente
diferentes.
O fariseu fixa na
pecadora o olhar do desprezo: Vendo isto, o fariseu que o tinha convidado
disse consigo: Se este fosse profeta, com certeza saberia quem e qual é a
mulher que o toca, e que é pecadora. Simão só vê o “lado mau”.
Cristo, pelo
contrário, dirige à pecadora o olhar do amor benigno. Mansamente, volta-se para
o fariseu e diz-lhe: Simão, tenho uma coisa a dizer-te... E o que Cristo
vai dizer-lhe, com um laivo de tristeza, é que Simão ainda não aprendeu a
enxergar com bondade, ainda não aprendeu a apreciar o valor dos outros com uma
“atenção amorosa”.
Um credor – começa Cristo – tinha dois
devedores: um devia-lhe quinhentos denários, o outro cinqüenta. Não tendo eles
com que pagar, perdoou a ambos a dívida. Qual deles, pois, mais o amará? O
que equivale a dizer: Simão, onde tu vês um atrevimento despudorado, eu vejo
amor. Esta pobre criatura chora a pena do arrependimento e a alegria do perdão.
E prossegue: Vês
esta mulher?... – sim, é necessário, é importante conseguir “ver” os outros
–, vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; e
esta com as suas lágrimas banhou os meus pés e enxugou-os com os seus cabelos.
Não me deste o beijo da paz, mas esta, desde que entrou, não cessou de beijar
os meus pés. Não ungiste a minha cabeça com bálsamo, mas esta ungiu com bálsamo
os meus pés. Pelo que te digo: São-lhe perdoados os seus muitos pecados porque
muito amou (cfr. Lc 7, 40-47).
Como se percebe bem
aqui o modo de olhar de Jesus! Mais do que ninguém, Cristo era capaz de
penetrar no abismo de mal que o pecado cavara naquela alma. E mais do que
ninguém, por ser Ele Deus – Deus feito homem –, podia sentir-se atingido pelo
pecado, pois este é, acima de tudo, ofensa a Deus.
Nada disso, porém,
passa para o primeiro plano no olhar de Cristo. Na escuridão do pecado que
envolve a alma daquela mulher, não detém a vista no que o ofende; só vê brilhar
– como a luz que cintila numa noite escura – a bondade que começa a desabrochar
naquela alma dolorida. Apenas vê o “lado bom”, a raiz de bondade que está a
despertar e que Ele pode e quer ajudar a crescer.
O fariseu, sem
dúvida, teria expulsado asperamente a pecadora, e com isso certamente a teria
ferido, teria abafado a sua esperança, tê-la-ia acorrentado, talvez para
sempre, ao seu mal. Cristo estende-lhe a mão e a salva: A tua fé te salvou;
vai em paz (Lc 7, 50).
Na atitude de Cristo
encontramos matéria abundante para meditar.
O espelho dos nossos defeitos
Estamos vendo que a
falta de benignidade, de bondade, se manifesta, entre outras coisas, pela
reação que os defeitos alheios provocam em nós: umas vezes, de impaciência;
outras, de desprezo ou cansaço. E já percebemos que tais reações não são propriamente
“provocadas” pelos defeitos dos outros, mas são “ativadas” pelo nosso egoísmo
ou pelo nosso orgulho.
Talvez compreendamos
melhor o que se passa conosco se percebermos que, devido ao nosso egoísmo e à
nossa autosuficiência, a primeira coisa que notamos nos outros é a sombra que
os seus defeitos projetam sobre o espelho dos nossos próprios defeitos. Por
outras palavras, os defeitos alheios incomodam-nos precisamente porque ferem um
defeito nosso. Alguns exemplos podem esclarecer-nos.
Não é raro que um
marido se sinta tremendamente aborrecido quando, ao chegar a casa cansado no
fim do expediente, a mulher se dedica a martelar-lhe os ouvidos com uma longa
cantilena de reclamações e lamentos: o elenco das contrariedades do dia. A
reação espontânea do marido é perder o bom humor: “Por que não me deixa em paz?
Será que não compreende que tenho direito a um pouco de tranqüilidade após um
dia de trabalho estafante?”
Aparentemente, este
marido tem razão. E certamente a esposa faria bem se guardasse para si as suas
queixas e se ocupasse em tornar mais amável o convívio familiar. Mas também é
verdade que a reação de impaciência e desgosto do marido não nasceu do amor: a
ladainha enfadonha da mulher projetou uma sombra sobre o seu comodismo, feriu o
seu comodismo, e por isso o perturbou. Fosse um homem de coração generoso, e a
fraqueza da mulher se projetaria sobre o espelho do amor compreensivo, e nesse
caso a reação seria outra.
Poderíamos falar
também da impaciência do pai que recebe o boletim do colégio do filho enfeitado
de vermelhos. É natural que esse mau desempenho nos estudos preocupe o pai e
até que o deixe indignado. É lógico que tenha uma conversa menos suave com o
filho. Mas, ao mesmo tempo, seria muito bom que analisasse o seu coração e se
perguntasse: estou reagindo só por amor ao filho, pelo seu bem, ou porque me
humilha que o meu garoto seja dos últimos da classe, e isso projeta uma sombra
no espelho da minha vaidade? Pode muito bem acontecer que o sentimento
predominante seja este último, e então a impaciência é a reação de um defeito
pessoal atingido.
O mesmo poderíamos
dizer quando notamos que possuímos uma grande facilidade para “ver” que os
nossos colegas são antipáticos, pouco inteligentes, maçantes e desleais...,
quando, na realidade, o que “não vemos” é que estamos deixando-nos dominar pela
inveja, pois o que nos aborrece é que, apesar de tantas deficiências que
observamos neles, estão-se saindo melhor do que nós e tendo maior sucesso no
seu trabalho.
O
coração bom enxerga coisas boas
Já dizia o Padre
Vieira que “os olhos vêem pelo coração; e assim como quem vê por vidros de
diversas cores, todas as coisas lhe parecem daquela cor, assim as vistas se
tingem dos mesmos humores de que estão bem ou mal afetos os corações” (Sermão
da quinta Quarta-feira, 1669).
Quando o coração é
limpo e bom, enxerga as coisas limpas e boas do mundo, especialmente as coisas
limpas e boas dos outros. Se está manchado, projeta a sua sujidade em tudo.
Se fôssemos mais
humildes e esquecidos de nós mesmos, ao percebermos que as fraquezas e os erros
dos outros fazem saltar como uma mola os nossos próprios defeitos, começaríamos
por tentar limpar esses nossos defeitos. Um pequeno inseto pousado sobre uma
ferida aberta incomoda muito. Mas se curarmos essa ferida, a presença do inseto
sobre a pele sadia será quase imperceptível.
Meditando nestes
aspectos, Santo Agostinho sugeria um sistema excelente: “Procurai adquirir as
virtudes que julgais faltarem aos vossos irmãos, e já não vereis os seus
defeitos, porque vós mesmos não os tereis” (Enarrationes in Psalmis, 30,
2, 7).
Vale a pena tentar
essa experiência. Suponhamos, por exemplo, que estamos a conviver com uma
pessoa ríspida. Fala bruscamente, agride com comentários, critica tudo. Isso
“provoca-nos” e impele-nos a retrucar com a mesma moeda: quase sem repararmos,
também nós nos tornamos agressivos e azedos. Esforcemo-nos por dar uma virada.
Tentemos, como ensina São Paulo, vencer o mal com o bem (Rm 12,21).
Iniciemos decididamente uma campanha de paciência, amabilidade e mansidão. É
muito provável que aconteçam duas coisas: primeiro, que a pessoa que nos
“provoca” fique desarmada perante a nossa afabilidade, e mude; segundo, que nós
mesmos, com a alma limpa de preocupações egoístas, venhamos a descobrir que
aquela rispidez “incompreensível” outra coisa não era senão a amargura de
alguém que não sentia reconhecido e valorizado o seu trabalho; ou então era o
queixume surdo de quem tinha ânsias de um pouco mais de atenção que ninguém lhe
dava. Uma vez feita essa constatação, já não veremos mais um defeito que
aborrece, mas uma carência que, com carinho, procuraremos aliviar. Passaremos a
olhar o problema com o calor aconchegante da bondade.
Como dizia
alguém, “somente nos irritam os nossos defeitos”. As agulhadas e
impertinências dos outros são “cutucões” sobre os nossos defeitos, que Deus
permite para que os vejamos melhor e nos decidamos a vencê-los. Se arrancarmos
os nossos defeitos, as “pedras” do nosso campo – da nossa alma –, não
sentiremos mais os “pontapés” dos outros, porque não terão onde tropeçar. Se
todos nós compreedêssemos estas verdades simples, haveria mais paz nas famílias
e, em geral, no convívio humano, e muitas desavenças crônicas abririam passagem
à harmonia e cresceria o amor.
(Adaptação
de um trecho do livro de F. Faus: O homem bom)