Edith Stein - Filha de Israel
Por Renê
Courtois
"Um
exemplo eloquente da extraordinária renovação interior é a experiência
espiritual de Edith Stein. Uma jovem em busca da verdade, graças à ação
silenciosa da graça, chegou a ser santa e mártir: é Teresa Benedita da Cruz,
que hoje, do Céu, nos repete a todos as palavras que marcaram a sua existência:
Quanto a mim, livre-me Deus de Gloriar-me senão na cruz de Jesus Cristo senhor
nosso (cf. Gál 6, 14)". João Paulo II, homilia de canonização de Edith Stein.
FINDAVA
O INVERNO DE 1945
A
pequena cidade de Echt, no Limburgo holandês, encolhida de frio, ansiava pela
primavera próxima para curar suas feridas. Pouca gente nas ruas. Trânsito quase
nenhum nesta manhã de libertação.
Um
automóvel militar que atravessava a cidade atraiu a atenção dos habitantes.
Tinha sido reconhecido o Padre Superior do Carmelo de Geleen, acompanhado do
Rev. Padre van Bréda, professor da Universidade de Louvain.
O
carro parou diante de um montão de ruínas, o antigo Carmelo, destruído pelos
bombardeios. Os habitantes ficaram surpresos de ver êstes dois eclesiásticos
descerem, abrirem caminho penosamente nos escombros, e iniciar a procura de
papéis esparsos e enlameados.
Quando
tiveram certeza de não encontrar mais nenhum fragmento de papel, reuniram com
grande cuidado o fruto de seu trabalho e partiram.
Que
interêsse poderia ter êste resto de papéis? Tratava-se de folhas manuscritas de
uma importante obra de filosofia, abandonada na sua cela por uma carmelita,
bruscamente deportada para o Leste em agosto de 1942. "L´être fini et
l´être éternel" (A criatura mortal e o Ser eterno) assim se chamava esta
obra filosófica, a mais importante da vida da irmã Thérèse-Bénédicte de la
Croix.
Este
nome religioso era o de Edith Stein. Judia convertida, discípula preferida do
grande filósofo Edmundo Husserl, célebre no mundo intelectual alemão antes de
abraçar a religião, ela foi, segundo o testemunho de Dom Walzer, abade de
Beuron, uma das mulheres mais eminentes de nossa época.
Sua
vida e sua conversão são um admirável canto de fidelidade à luz da graça. Tudo
parecia separá-la do cristianismo seu meio natal, a educação judia que recebeu,
o estudo aos pés de um mestre eminente, cuja filosofia devia seduzir fortemente
sua grande inteligência, a perspectiva de uma carreira universitária que se
prenunciava das mais brilhantes. Passo a passo ela soube responder ao chamado
de Deus, triunfando sucessivamente de todos os obstáculos que a separavam
d´Ele.
FILHA
DE ISRAEL
12
de outubro de 1891. Havia festa na família Stein. A grande casa da rua
Saint-Michel, em Breslau, de aspecto geralmente severo, parecia sorrir neste
dia. As seis crianças do casal Stein se acrescentava uma menina, que se
chamaria Edith.
Para
termos uma idéia da atmosfera deste lar israelita, é necessário visualizar
certas águas fortes de Rembrandt, onde o artista nos transmitiu, com
fidelidade, a fisionomia dos interiores judeus do ghetto de Amsterdam.
Desde
seus primeiros passos, a pequena Edith estava enquadrada em um clima do Antigo Testamento.
Tudo lhe falava do Povo de Deus. As imagens da Bíblia nas paredes da casa, os
motivos gravados sobre as arcas de carvalho, as preces tradicionais recitadas
em hebreu, os ritos do Talmude fielmente observados e sobretudo o admirável
exemplo de uma mãe profundamente religiosa, mulher forte da Escritura Sagrada,
cuja extraordinária energia e zêlo infatigável vão se desenvolver sem descanso,
a partir da morte de seu esposo.
Edith
Stein tinha três anos quando seu pai morreu subitamente, em uma viagem de
negócios. Sem hesitação, a mãe chamou tudo a si: o importante comércio de
madeiras e a educação das sete crianças. Ela fez prosperar a ambos.
Zelosa
antes de tudo da educação de seus filhos, ela jamais deixou de conduzi-los à
sinagoga, nos dias de sabat. Ela conservou sempre aos olhos de seus filhos a
autoridade indiscutível, diante da qual se inclinavam com amor e respeito.
Edith Stein escreverá dela mais tarde:
"Ainda
crianças, podiamos ler, no exemplo de nossa mãe, a verdadeira maneira de nos
comportar. Quando ela dizia: Isto é um pecado, nós sabíamos que ela se referia
a algo de odioso e indigno".
Edith
era-lhe particularmente cara. Freqüentemente a mãe sonhava com um grande futuro
para sua filha predileta. Seu desejo deveria se realizar, mas de que maneira
tão diferente!
Graciosa
e delicada, Edith era tratada carinhosamente por seus irmãos e irmãos que viam
nela uma criança singularmente dotada.
De
um espírito muito receptivo, de inteligência viva e precoce, foi para ela uma
alegria entrar na escola primária, no outono de 1897. Assim começava uma vida
de estudos que ela não abandonaria mais até sua morte.
OS
CAMINHOS DA VERDADE
Escola
primária, ginásio, universidade: Edith Stein seguia o curso normal dos estudos,
na sua cidade natal de Breslau. Bem cedo revelou talento excepcional. Uma de
suas colegas de ginásio nos diz:
“Embora
várias alunas fossem bem dotadas, Edith Stein eclipsava a tôdas pela sua
inteligência e pelos seus conhecimentos. Aplicada, ela não mostrava nenhuma
inveja, e eu conservo sua lembrança como a de uma moça silenciosa, muito
interior e muito cativante... Fora de sua vida de estudos, ela tomava parte em
todas as nossas reuniões e jamais era uma desmancha-prazeres. Podíamos nos
dirigir a ela em todas as dificuldades. Sempre pronta a prestar um serviço e a
dar um conselho, seu julgamento era refletido e seguro.”
O
interêsse vivo que Edith mostrava por seus estudos não deixou de inquietar uma
mãe vigilante como a sua. Inquietação bem fundada, aliás. Os estudos de
filosofia prejudicavam a piedade da moça. Sempre acompanhando sua mãe à
sinagoga, seu espírito se abria a outros horizontes. Pouco a pouco, ela se
desligava de toda crença profunda em um Deus pessoal. Nós não devemos,
entretanto, aceitar sem reservas, o que ela disse um dia: que permaneceu atéia
até vinte e um anos. Como se ela não tivesse também escrito: "A sêde da
verdade era a minha única prece".
Esta
lúcida paixão da verdade não era já uma homenagem inconsciente ao verdadeiro
Deus?
Deixando
Breslau, ela irá seguir em Gottingen os notáveis ensinamentos do grande
pensador Edmundo Husserl. Em Gottingen deu livre curso a sua paixão dos estudos
e se mostrou de imediato como uma das adeptas mais brilhantes da fenomenologia
husserliana. Esta nova escola filosófica, com a sua volta à objetividade, sua
lógica precisa, sua aspiração à pureza integral das coisas, respondia bem ao
temperamento da jovem judia.
Cedo
ela se tornou uma das figuras de primeiro plano de um pequeno grupo de
discípulos de Husserl, alguns dos quais adquiriram mais tarde fama mundial,
como Dietrich von Hildebrand, Hans Lipps, o russo Alexandre Koyré, o canadense
John Bell, o francês Jean Hering, etc. O professor Adolphe Reinach, israelita
como Husserl e vários de seus alunos, reunia-os na sua casa. Os debates, por
vêzes apaixonados, prolongavam-se até altas horas da noite. Nesta época, passa
por Gottingen o professor Max Scheler. Uma série de conferências religiosas que
proferiu tiverem profunda repercussão. Todo um movimento de conversões se
delineou. Dietrich von Hildebrand entrou na Ordem Terceira de S. Francisco.
Koyré e sua mulher se aproximaram fortemente da Igreja católica. Adolphe
Reinach abraçou o cristianismo durante a guerra de 1914-1918. Só Edith Stein
permanecia inabalável. No seu quarto de estudante, os livros se empilhavam.
Mais inflexível que nunca, ela se encarniçava na procura de seu único ideal: a
verdade na ciência. Mas, sempre aberta à vida, dos outros, ela permanecia a
companheira encantadora e devotada a quem todos podiam recorrer.
Agosto
de 1914. A guerra. Nem por um instante, Edith Stein hesitou para interromper
seus caros estudos e engajar-se na Cruz Vermelha. Durante dois anos devotou-se
ao serviço dos feridos, no hospital militar de Mahrisch-Wisskirchen. Nesse meio
tempo, em 1916, o professor Husserl acabava de ser nomeado para a Universidade
de Fribourg-en-Brisgau. Considerando Edith Stein como sua discípula predileta,
convidou-a para assistente particular. Encarregada de classificar e organizar
os manuscritos do mestre, ela adquiriu desta maneira um conhecimento muito
profundo de sua doutrina. Em 1917, doutorou-se com a maior distinção,
defendendo um tese sobre o problema da imanência.
Seu
desejo de encontrar a Deus era cada vez mais forte. Seu culto intransigente da
verdade encaminhava-a pouco a pouco para a claridade total. Um estudo publicado
pouco depois da guerra sobre a Alma das plantas, A Alma dos animais, A Alma dos
Homens, revelava um singular aprofundamento e talvez até uma conversão
interior.
Magnífico
exemplo de um itinerário rigorosamente filosófico que, em vez de afastar a alma
de Deus como alguns o pensam, leva-a infalivelmente para Ele
A
HORA DE DEUS
No
outono de 1921, Edith Stein passou alguns dias de férias na casa de seus amigos
íntimos, os Conrad Martins, na sua encantadora propriedade rural de Bergzabern,
na Baviera. Gostosamente a estudante vinha repousar. Na ausência de seus
amigos, ela usava intensamente a biblioteca da casa. Era lá, neste domínio dos
livros a que era particularmente afeiçoada, que a Providência deveria
alcançá-la no dia escolhido. Escutemos o que diz Edith Stein:
"Um
dia escolhi ao acaso uma obra bastante imponente. Intitulava-se: "Vida de
Santa Teresa, escrita por Santa Teresa". Eu comecei a ler. Repentinamente
senti-me tão cativada, que não interrompi mais a leitura até o fim. Quando
fechei o livro, pensei comigo mesma: esta é a verdade!"
Fora,
a aurora começava a surgir. Edith Stein tinha. passado a noite inteira lendo.
Bruscamente, irrompia a luz de Deus na sua alma.
A
sua primeira providência, nesta manhã, foi ir à cidade comprar um catecismo
católico e um livro de missa. Começou imediatamente a estudá-los com todo o
cuidado, e rapidamente assimilou-os. Em seguida resolve assistir à missa
paroquial em Bergzabern.
Pela
primeira vez penetrava em uma igreja católica. Vejamos suas impressões:
"Nada me pareceu estranho: graças ao estudo que havia feito, podia
compreender as cerimonias até aos detalhes. Um padre venerável subindo ao altar
celebrou o Santo Sacrifício com profundo fervor. Terminada a missa, esperei que
o celebrante terminasse a sua ação de graças.”
“Seguindo-o
ao presbitério pedi-lhe o batismo. Atônito, respondeu-me que a recepção na
Igreja Católica exigia uma preparação. Ele desejava saber durante quanto tempo
eu tinha recebido instrução e quem ma havia dado. Como resposta eu lhe disse:
por favor, padre, interrogue-me!"
O
padre começou então o seu exame. As respostas foram perfeitas. Toda a doutrina
católica foi passada em revista. Cheio de admiração, o cura não pode mais
recusar o batismo.
A 1
de janeiro de 1922, Edith Stein foi batizada, escolhendo o prenome de Teresa.
Comungando neste mesmo dia, permaneceu dai em diante fiel à prática da comunhão
quotidiana.
A 2
de fevereiro seguinte, recebe das mãos do bispo de Spire, Monsenhor Sebastião,
o sacramento da confirmação.
Sobre
a luz radiosa destes dias de graça, pairava uma sombra: sua mãe.
Desde
a primeira infância, Edith Stein tinha se unido a esta mãe admirável, cujos
sentimentos mais íntimos ela partilhava. O trabalho mais urgente não
interrompia a sua correspondência semanal. Qual seria a reação desta mãe
crente, israelita exemplar, ao saber da decisão de sua filha? Poderia ver na
conversão de Edith ao catolicismo outra coisa além de uma suprema infidelidade?
Não expulsaria a filha de casa?
Edith
desejava dar-lhe, ela mesma, a noticia. Partiu para Breslau. Encontro patético
da mãe e da neófita! Caindo de joelhos diante dela Edith confessou:
"Mamãe,
eu sou católica!" Não houve nada. Mas pela primeira vez em sua vida, Edith
Stein viu sua mãe chorar. A uma notícia tal, a velha forte sentiu que as forças
a abandonavam. E não obstante, apesar da profunda vala que as separaria daí em
diante, a mãe e a filha sentiram que os seus corações permaneciam profundamente
unidos.
Eis
como uma amiga da família descreveu a nova situação: "Estou convencida,
dizia ela, que a transformação que se operou em Edith e que irradiava de todo o
seu ser como uma força sobrenatural, desarmou pouco a pouco madame Stein.
Mulher de uma piedade profunda, ela sentia, sem compreender, a santidade que
emanava de sua filha e, apesar de sua dor, reconhecia claramente a
impossibilidade de lutar contra o mistério da graça. Desde o começo nós
tínhamos todos notado que Edith tinha mudado. E antes como depois da conversão,
ela permanecia profundamente unida aos seus, e fazia o impossível para nada
modificar nas relações familiares."
A
pedido de sua velha mãe, Edith Stein permaneceu seis meses com a família. Por
piedade filial, continuava a acompanhá-la à sinagoga. Longe de renegar o Antigo
Testamento, considerava-o agora como o lento caminho para o Evangelho, que êle
representava no plano de Deus. Seu recolhimento profundo arrancou de sua mãe a
reflexão: "Eu nunca vi ninguém rezar como Edith."
O
CHAMADO DO SILÊNCIO
A
conversão tinha operado em Edith Stein uma evolução profunda. Ela agora
procurava o seu lugar no campo do Senhor. Renunciando às suas funções na
Universidade de Friburgo, foi para Spiro, onde se colocou sob a direção do
cônego Schwind. A graça trabalhava em sua alma. Pouco a pouco, uma atração
profunda a conduziu ao sacrifício total. O claustro a solicitava. Entretanto,
seus dirigentes dissuadiam-na vivamente, considerando que seus dons
excepcionais indicavam-na para a vida ativa no mundo.
Assim,
ela viu seu desejo realizar-se pela metade, quando se lhe permitiu o retiro à
calma de um liceu de religiosas dominicanas, para ensinar a moças. Ao mesmo
tempo, obteve a permissão de partilhar completamente da vida da comunidade de
religiosas. Grande lição para tantos espíritos superficiais! Na hora mesma em
que esta mulher extraordinàriamente dotada, podia aspirar às mais famosas
cátedras das universidades européias, fechava-se no silêncio de um horizonte
aparentemente sem brilho. Mas aí encontrava Deus e a Verdade que durante tanto
tempo havia procurado por caminhos ásperos. Que mais poderia desejar?
Eis
o testemunho que nos dão dela:
"Durante
longas horas rezava. Quando as Irmãs chegavam à capela, às quatro ou cinco
horas da manhã, a "doutora", já estava ajoelhada no seu lugar. Nunca
ela procurava sobressair; pelo contrário, apagava-se em tudo. E apesar disso,
desde o primeiro contato todos se sentiam subjugados pela grande santidade que
irradiava suavemente de sua pessoa."
Suas
funções de professora a encantavam. Ela encontrava nelas a possibilidade de
abrir os jovens espíritos às riquezas de seu próprio mundo interior, de
fortificar a sua fé e de os encaminhar a uma vida verdadeiramente cristã. Ela
possuía uma idéia verdadeiramente elevada de sua missão de ensino, como nos
mostra esta confidência feita a uma religiosa:
"O
importante, é que os que ensinam possuam verdadeiramente o espírito de Cristo,
e O encarnem em si mesmos. Mas além disso, um outro dever lhes é afeto:
conhecer bem a vida que levarão mais tarde aqueles que lhes são confiados. A
geração jovem dos nossos dias atravessou muitas crises. Ela não saberia nos
compreender. A nós portanto, cabe tentar compreendê-los. Assim poderemos,
talvez, fazer-lhes um pouco de bem."
Os
antigos alunos de Edith Stein são unânimes na inesquecível lembrança que
guardam de sua professora. De um punhado de testemunhas, escolhemos apenas um
depoimento. É de uma das mais jovens alunas de Edith Stein. "Eu estava no
Instituto Santa Madalena havia apenas um ano. Tinha 17 anos. A Senhorita Stein
nos ensinava a literatura alemã. Para dizer a verdade, ela nos ensinava tudo.
Nós eramos ainda muito jovens, mas jamais esqueceremos o encanto de sua
personalidade. Todos os dias, podiamos vê-la ajoelhada à nossa frente, durante
a Santa Missa. Assim nos mostrava o que podia ser uma fé profunda,
perfeitamente harmonizada com uma atitude antiga na vida. Para nós que
estávamos na idade da indecisão, ela era um exemplo pela sua conduta simples.
Nunca encontrei falha alguma em suas decisões, sem dúvida porque ela era uma
pessoa suave, calma, que se dirigia a nós mais por sua maneira pessoal de agir
do que por palavras. Em suas críticas, a bondade se aliava à justiça. Nós
sempre a vimos serena e fina. De espírito esclarecido, soube nos conduzir, pela
primeira vez, a uma sessão teatral. Coisa bastante rara na época, para meninas
de colégio. Representava-se Hamlet. Nós vimos a peça pelos olhos delas, tão bem
nos tinha introduzido no universo de Shakespeare. E que coração aberto a todas as
belezas do mundo! Assim ficará ela para sempre gravada em nossa memória "
SEU
RENOME SE ESTENDE
Levada
por um desejo de um conhecimento mais profundo de sua fé, Edith Stein tinha
retomado seu trabalho filosófico durante suas horas vagas. Pela primeira vez
abordava a obra de S. Tomás de Aquino.
Entretanto,
permanecia profundamente ligada ao mestre eminente que tinha dirigido os seus
primeiros passos nos caminhos do espírito. Assim é que foi para ela uma alegria
oferecer-lhe, em 1929, um trabalho erudito, intitulado: A fenomenologia de
Husserl e a Filosofia de S. Tomás de Aquino.
Aliás,
o mundo católico tinha a sua atenção voltada para ela, apesar de sua
semi-reclusão. De quando em quando, era solicitada para conferências
filosóficas, pedagógicas e religiosas. Ela as pronunciava em cidades próximas
Heidelberg,
Friburgo, Colônia, etc. A forte impressão que deixava, levou longe o seu
renome, e logo teve que falar em Viena, em Zurich, em Praga.
Sua
própria celebridade poderia constituir um perigo para ela. Mas Deus a conduzia.
Depois de cada conferência, tinha pressa de voltar a sua amada solidão de Spire
e mergulhar nas obras de S. Tomás.
Assim
passavam os anos. Desde 1928, Edith Stein seguia os ofícios da Semana Santa na
célebre abadia de Beuron. Este mosteiro viria a se tornar para ela uma pátria
espiritual. O abade de Beuron, Dom Rafael Walzer, já era o seu diretor
espiritual. Eis o julgamento que êle nos deixou sobre ela: "Raramente
encontrei uma alma que reunisse tantas e tão altas qualidades. E com uma
simplicidade e naturalidade extremas. Ela tinha permanecido inteiramente
mulher, com uma sensibilidade fina e maternal. Mostrava-se simples com os
simples, cultivada com os intelectuais, inquieta com aqueles que se
inquietavam.” O prelado conseguiu convencê-la que as suas funções atuais de
professora do Instituto Santa Madalena de Spire não correspondiam ao seu valor
intelectual e que seu dever era de levar avante o seu trabalho científico.
Rendendo-se à evidência ela reconheceu que em, Spire não poderia se dedicar a
uma obra filosófica de importância. Assim, decidiu deixar Spire em março de
1931, e se fixar na sua casa de Breslau.
O
grande trabalho filosófico que iniciava era a tradução para o alemão das
Quaestiones disputatas de Veritate de S. Tomás. A tradução, primeira em língua
alemã, da importante obra do Doutor Angelical, apareceu em 1932, e impressionou
os meios científicos pelo seu vocabulário filosófico moderno e elegante clareza
de estilo.
Sua
reputação já a tinha precedido em Breslau. Cedo ela se tornou o centro de
atração de um numeroso grupo de jovens intelectuais, judeus em sua maioria,
interessados na fé católica. Muitos se converteram, e Edith Stein foi a
madrinha. Na sua família, ela teve a felicidade de ver sua irmã Rosa reunir-se
a ela no catolicismo. Mas sua velha mãe, octogenária, permanecia
inabalavelmente refratária ao catolicismo.
Vários
estabelecimentos de ensino superior tendo feito apelos à eminente filósofa, ela
aceitou enfim uma cadeira de pedagogia na universidade de Munster, na
Westphalia. De imediato, conquistou a estima de todos. Uma brilhante carreira
universitária parecia se abrir novamente diante dela.
Mas,
Deus tem seus caminhos, que não são os nossos. Ele tinha escolhido, no seio de
seu povo, esta alma privilegiada, Ele a queria totalmente para Si.
A
SOMBRA DA CRUZ
O
ano de 1933 se iniciava sob inquietantes presságios: a chegada brutal do
nacional socialismo fazia prever perseguições próximas contra os judeus.
Uma
tarde, durante a quaresma, Edith Stein teve pela primeira vez uma noticia
destas ameaças. Desde esta hora, a dolorosa apreensão de tantos sofrimentos
reservados a sua raça não deveria deixá-la mais. No começo de abril, de
passagem em Colônia, ela assistiu a uma Hora Santa na capela do Carmelo
Lindenthal. Nesta tarde houve entre o Mestre e sua discípula, um compromisso
secreto que deveria orientar daí em diante todo o seu destino. Deixemos a
palavra a Edith Stein: "Eu me dirigia ao Senhor, nos diz ela, e Lhe dizia
que sabia bem que sua Cruz pesaria daí por diante sobre o povo de Israel.
Estava pronta a percorrer este caminho. Que o Senhor me indicasse apenas o que
devia fazer. Quando terminou o ofício, eu tinha a certeza interior de ter sido
atendida. Mas não sabia ainda qual seria a minha Cruz."
Ela
o saberia bem cedo. De retorno a Munster, a 9 de abril seguinte, recebeu o
aviso de que todo ensino e toda publicação estavam interditos aos não arianos.
Ela compreendeu que sua carreira universitária estava terminada. Vários
convites lhe foram feitos do estrangeiro, especialmente da América do Sul. Mas
sua decisão era irrevogável. Há doze anos aspirava com toda a sua alma a vida
contemplativa. Não tinha soado a hora de realizar enfim o seu desejo íntimo?
Não se lhe poderia mais objetar com a necessidade de sua ação no mundo, uma vez
que toda atividade pública lhe era interdita.
O
abade de Beuron aquiesceu finalmente ao seu pedido. Imediatamente, Edith Stein
deu os passos necessários para sua admissão no carmelo de Colônia. Ela deixou
Munster, em julho de 1937, e passou um mês em Colônia. Enfim, partiu para
Breslau, para se despedir definitivamente dos seus.
Lá,
tudo se ignorava de sua decisão. Sua irmã Rosa, a quem ela se confiou em
primeiro lugar, ficou surpreendida, mas compreendeu e calou. Pouco a pouco ela
se abriu com seus irmãos e irmãs, pedindo-lhes que nada revelassem a sua mãe.
Como outrora, passava seus dias de espera na intimidade desta mãe venerada.
Idosa, com 84 anos, sentava-se a sua mesa de trabalho e lhe confiava tudo que
tinha no coração. Jamais inquiriu dos projetos futuros de sua filha. Por sua
vez, Edith não desejava apressar a hora da dura revelação.
O
momento, porém, devia chegar. Devemos consignar aqui a emocionante descrição
que Edith nos deixou: "No primeiro domingo de setembro, eu estava só em
casa com mamãe. Ela estava sentada, tricotando perto da janela. Eu estava ao pé
dela. De repente, ela me fêz a pergunta tanto tempo esperada:
- O
que vais fazer em Colônia, com as religiosas?
-
Viver com elas! - respondi
“Mamãe
não parou de tricotar. Seu novelo de lã se desenrolou. Com as mãos trêmulas,
procurou ajeitá-lo. Eu ajudei, enquanto a nossa conversa continuava. Desde este
momento a paz tinha terminado. Sobre a casa, pairava uma pesada pressão. De
tempos em tempos mamãe me fazia uma pergunta ou outra. Seguia-se um silêncio.
Meus irmãos pensavam como minha mãe, mas não desejavam aumentar seu sofrimento.
Um de seus genros, contudo, mostrou-lhe que a minha decisão consumaria a minha
ruptura com o povo judeu justamente quando se aproximavam terríveis provações.
Como esta alusão a minha infidelidade deve ter feito sofrer minha mãe!”
“Ela
que aceitava com o coração tão leve a Cruz que se abatia sobre sua raça, e que
desejava carregar diante de Deus! A separação me foi tão cruel, que ninguém poderia
me dizer com certeza, se tal ou qual maneira de agir teria sido a melhor. Eu
tinha que dar este passo nos mistérios da fé. Muitas vezes, durante estes dias,
pensei: "Qual de nós duas, mamãe ou eu, não saberá mais resistir?"
“Mas
nós ambas agüentamos até o último dia.”
A
12 de outubro, aniversário de Edith e, ao mesmo tempo, festa judia dos
Tabernáculos a jovem acompanhou, uma vez mais, sua mãe à sinagoga. Durante o
longo trajeto de volta que sua velha mãe queria fazer a pé, a fim de abrir o
coração com a filha, ela lhe perguntou:
“-
O sermão não foi belo?
-
Certamente mamãe!
-
Então também se pode ser piedosa entre os judeus?
-
Por certo, se não se aprendeu a conhecer outra coisa.” Ela teve então esta
dolorosa reflexão:
“-
Porque então aprendeste a conhecer outra coisa? Eu não quero reprovar nada a
Jesus. Ele pode ter sido uma criatura muito bondosa. Mas por que ele quis se
fazer Deus?”
“Neste
dia havia muita gente em nossa casa. Um após outro nossos hóspedes se
despediram. Por fim eu fiquei só, com mamãe. Com as mãos no rosto, ela começou
a chorar. Eu me coloquei atrás de sua cadeira e abracei docemente esta
venerável cabeça brança. Assim ficamos longo tempo, até que ela quis se deitar.
Nesta noite, não fechamos os olhos nem por um momento."
O
CARMELO
No
dia seguinte pela manhã Edith Stein partiu para Colônia, e, dois dias depois
encontrava-se diante desta clausura que há tanto tempo desejava transpor.
A
15 de outubro de 1933, com 42 anos de idade, Edith Stein terminava o estranho
itinerário que a conduzira "de Husserl ao Carmelo". Daí em diante,
começava uma nova estrada. A estrada da irmã Teresa-Benedita da Cruz. Este foi
o nome religioso que tornou, a 15 de abril de 1934, ao receber o hábito. No dia
seguinte a esta cerimônia, o provincial dos Carmelitas pediu-lhe que retomasse
daí por diante, em seu tempo livre, seu trabalho científico de filosofia.
Assim
logo se encontrou em sua cela, entre seus livros. Aí comporia a principal obra
de sua vida: L´ être fini et l´être éternel, uma expicação da filosofia
moderna, de Descartes a Heidegger. Esta obra em dois volumes não pode ser
publicada na época, por causa dos decretos que impediam toda literatura não
ariana.
Apesar
do isolamento do claustro, ela continuava em comunicação com a sua família.
Cada semana, por uma permissão especial, enviava uma carta a sua mãe. Por muito
tempo suas cartas não tiveram resposta. Afinal, recebeu uma carta, testemunha
do amor materno enfim vencedor. A partir deste momento, as cartas de sua irmã
Rosa traziam-lhe de cada vez algumas palavras de sua mãe. Durante o verão de
1936, mulher admirável, com 87 anos de idade, caiu doente e seu estado piorou
rapidamente. A 14 de setembro, na festa de Exaltação da Santa Cruz, fazia-se no
Carmelo a cerimonia de renovação dos votos. Quando chegou a vez da irmã Tereza
da Cruz, ela teve de súbito a clara intuição: “Minha mãe está ao meu lado”. No
mesmo dia, um telegrama trouxe a noticia do falecimento. Sua mãe tinha expirado
na hora da renovação de seus votos.
Durante
o Advento de 1936, Edith Stein teve a alegria de acolher sua irmã Rosa que
recebeu afinal o batismo, tanto tempo retardado para não ferir ainda mais a
velha mãe.
O
céu cobria de nuvens cada vez mais sombrias. A perseguição nazista, longe de
diminuir, redobrava de violência. Era uma pérfida campanha contra a religião de
um modo geral, e contra as ordens religiosas em particular. A irmã Teresa temia
que a sua presença expusesse o Carmelo de Colônia a represálias. Assim, a sua
partida para a Holanda foi decidida.
Durante
a noite de S. Silvestre, em 1938, ela passou clandestinamente a fronteira e
dirigiu-se ao Carmelo de Echt, no Limburgo Holandês. Rapidamente adaptou-se. Às
seis línguas que já dominava, acrescenton o flamengo. Prosseguindo seus
trabalhos intelectuais, acabou seu estudo sobre S. João da Cruz: A Ciência da
Cruz.
Nesta
época, sua irmã Rosa veio encontrá-la no Carmelo de Echt, como carmelita de
terceiro grau.
O
HOLOCAUSTO
10
de maio de 1940. Em meio ao fragor das explosões e ao rugir dos motores, a
possante máquina de guerra nazista se põe em marcha. A Holanda é rapidamente
ocupada. As perseguições anti-semitas desenvolvem-se com violência.
Um
perigo imediato pesa, de novo, sobre a irmã Teresa da Cruz. Por isto, é
decidida uma nova evasão para a Suíça, para o Carmelo Le Pâquier, perto de
Friburgo.
Era
o começo de 1942. As formalidades burocráticas se alongavam. Uma convocação da
Gestapo já chamara a religiosa a Maestricht e depois a Amsterdam. A sua
presença não tinha escapado à sinistra polícia. As ameaças se faziam cada vez
mais temíveis. Felizmente, tudo estava pronto para a partida... Mas não eram
estes os desígnios de Deus.
A 2
de agosto de 1942, a comunidade de Echt tinha se dirigido ao coro, como de
costume, para a oração matinal. Bateram na porta do convento. Dois oficiais
apareceram e solicitaram a presença das irmãs Stein. Estas, supondo que lhes
traziam o passaporte para a Suíça, deixaram a capela.
Ao
entrar no parlatório, empalideceram. Os SS as esperavam. Tiveram ordem de se
aprontar para deixar o Carmelo em dez minutos.
Edith
Stein voltou ao coro, ajoelhou-se uma última vez diante do Santíssimo
Sacramento e deixou a comunidade, com estas palavras: “Por favor, irmãs, rezem
por nós.”
Os
enérgicos protestos da Madre Superiora não tiveram nenhum efeito. Rapidamente
as duas religiosas reuniram o que lhes permitiram levar: uma coberta, uma
caneca, uma colher e algumas provisões.
Na
rua, onde uma multidão se tinha reunido para protestar, estava um grupo dos SS.
Fizeram entrar as duas irmãs em uma viatura que partiu para um destino
desconhecido.
Em
Echt, onde a angústia reinava, recebeu-se um telegrama do campo de concentração
de Amersfort. Edith Stein pedia algumas vestes quentes e seu breviário.
As
irmãs enviaram rapidamente a sua encomenda, por intermédio de jovens holandeses
que puderam entrar em comunicação com as duas religiosas. Eles as encontraram
muito calmas, sem a menor queixa, mas na incerteza total de seu futuro. Uma
carta recebida pouco depois, anunciava a sua partida iminente para leste. Veio
ainda uma palavra, última confidência que brilhou como uma última chama na
noite: "A ciência da Cruz não se pode adquirir sem que ela nos pese
realmente sobre os ombros. Desde o primeiro instante eu estava convencida, e a
mim mesma me dizia: Ave crux, spes unica..."
O
silêncio total se seguiu. Soube-se que a 6 de agosto, primeira 5a. feira do
mês, um comboio de judeus, quase todos convertidos, tinha partido em direção da
Polônia.
O
último traço conhecido desta eminente religiosa é um pequeno bilhete a lápis
remetido por mão desconhecida a uma irmã de Friburgo: "A caminho da
Polônia. Lembranças da Irmã Teresa Benedita da Cruz."
E,
após, a noite. Ignoramos onde terminou o seu calvário. Não se sabe em que lugar
este olhar profundo que tinha perscrutado sempre os enigmas do homem e do
universo, encontrou afinal a luz sem sombras.
Alguns
disseram, com certo fundamento ao que parece, que foi nas câmaras de gás do
sinistro campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Mas nada foi confirmado
oficialmente. Por que então perseguir questões sem utilidade?
“Nós
não a procuramos mais na terra, escreviam as Carmelitas de Colônia, mas perto
de Deus que aceitou seu sacrifício e dará a recompensa ao povo pelo qual ela
sofreu e morreu.”
A
notícia de sua morte, numerosos testemunhos de admiração e de veneração
chegaram de todos os lugares da Alemanha. Por sugestão do professor Grabmann, o
círculo cada vez mais numeroso de seus amigos, antigos alunos e admiradores,
fez votos de que, por sua beatificação e canonização ela se transformasse em
exemplo luminoso do conhecimento e do amor de Deus.
Sua clareza
não cessa de se estender aos meios intelectuais e universitários. Como escreveu
o jesuíta alemão Frans Hillig: “É preciso que, graças aos jovens cristãos de
todos os países da Europa, o exemplo desta vida seja arrancado ao passado para
que continue neles cada vez mais vivo e atuante”.
Renê Courtois
Sacerdote Jesuíta
Fonte: Convertidos do Século XX, Livraria Agir
Editora, Rio de Janeiro, 1960
Tradução: Hoche Luiz Pulchério
Link: http://www.quadrante.com.br/