Francisco de Assis
Por Stanislas Fumet
São
Francisco nasceu em 1182 na cidade de Assis (Itália), no seio de uma família
abastada. Viveu e pregou infatigavelmente a pobreza e o amor de Deus a todos os
homens. Fundou a Ordem dos Frades Menores (franciscanos); com Santa Clara, as
Damas Pobres (clarissas); e a Ordem Terceira, para os leigos. Morreu em 4 de
outubro de 1226.
O
Poverello ganhou a alcunha à força de tornar visível no corpo a prática da
pobreza espiritual. Desde o princípio da conversão, ou melhor, para sermos mais
exatos, já antes de pensar em se converter, o que faz a originalidade de
Francisco é a atração que sente pelos mendigos; o que há de mais elevado na sua
alma é atraído pelos leprosos, tão repugnantes aos olhos da carne, mesmo na
época em que, só a idéia da dor, como ele confessa, o aborrecia. Toda a
cristandade gosta de recordar os primeiros gestos públicos de Francisco:
preparava-se ele para ir com um nobre de Assis ao encontro do exército
pontifício que estava na Apúlia. Esperava ser armado cavaleiro e, com esta
intenção, arranja uma equipagem magnífica. No dia da partida, montado no seu
cavalo, irradiando da cabeça aos pés, Francisco, tem a desgraça de encontrar um
cavaleiro autêntico – cuja extrema pobreza o enche de compaixão. Ele, que ainda
não é cavaleiro, não suporta tal injustiça. Entrega ao outro a capa e a túnica
que levava e todo o seu equipamento de grande senhor.
Nessa
mesma noite Francisco tem este sonho: alguém o chama pelo nome, lhe pega na mão
e o conduz a um maravilhoso palácio, ornado com toda a espécie de armas.
É
lá que vive uma moça deslumbrante que encanta Francisco. Mas o palácio torna-se
mais maravilhoso à medida que ele o vai percorrendo. De quem é tudo isto? “Teu
e dos que te seguirem”, respondeu o guia. E depressa se dá o encontro com a
encantadora jovem. E assim, ao acordar, Francisco não esconde aos que o
interrogam que está para se tornar um grande príncipe. Os companheiros de folia
começam, então, a supô-lo apaixonado. “É verdade, diz, penso em casar-me. E vós
nunca vistes noiva tão bela e tão nobre como a minha!”
O
cavaleiro enamorado visitava os pobres da cidade e levava-lhes presentes. Nesse
tempo, o mais elegante e o mais perdulário jovem de Assis só via na riqueza
ocasião de distribuir, e nas posses ocasião de dar.
Na
peregrinação para Roma, ainda fará mais. Indignado da mesquinhez dos cristãos
na porta de São Pedro, quer saber o que rende um dia de esmolas e de que modo
em Roma se tratam os pobres. Compra, para isso, roupas a um miserável qualquer,
veste-as e, durante um dia inteiro, torna-se mendigo com os outros mendigos. É
asperamente tratado como os outros, molestado como eles. Desde essa altura,
sabendo o que custa ser pobre, sente-se mais próximo da Dama dos seus
pensamentos.
Mas
um leproso ainda é mais que pobre. Um leproso é pobre até na carne. Não está
apenas reduzido aos seus limites carnais, é devorado na própria nudez. O
leproso é o horror de Francisco. Encontrando um na beira da estrada, depois de
uma volta a cavalo, salta para o chão, dá-lhe algum dinheiro e acompanha a
esmola com um sorriso; depois, cheio de audácia, beija-lhe a mão e, louco, não
fica por aí: abraça-o completamente. Alegria da Noiva no palácio da alma.
Cristo
fá-lo seu confidente. Dirige-se através da expressão mímica de um crucifixo
patético a este jovem delicado, folgazão, amigo de gozar. Pede-lhe no santuário
de São Damião, como em sonhos, que repare a igreja que cai em ruínas. O alegre
trovador não hesita. Põe imediatamente mãos à obra. São Damião é uma autêntica
leprosa. E, com o tempo, torna-se incontestável que esta pequena igreja leprosa
é apenas o símbolo da grande Igreja de Deus. E com efeito, diz-se que o próprio
papa Inocêncio III viu, em sonhos, Francisco de Assis erguê-la e ampará-la com
todas as forças sobre-humanas. Tendo-lhe falado o crucifixo, não se sentirá
Francisco crucificado em espírito? Ah! Que aventura! E é sempre a pobreza que
vai beneficiar: Francisco... não vamos dizer que rouba o próximo, mas... tira
dos armazéns do pai um lote de fazendas que vai vender a Foligno. Vende,
também, o cavalo, que lhe pertence inteiramente. Depois entrega ao padre que
guarda a igreja de São Damião toda a quantia que cobrou para que se iniciem as
obras. O guardião, inquieto, recusa o dinheiro, mas Francisco Bernardone, sem
se comover, lança a bolsa pela janela.
Nada
é tão conhecido na vida de São Francisco como a série de acontecimentos que
antecederam a sua vocação: as lutas com o pai, o refúgio numa gruta, o regresso
a Assis, a maldição paterna, as troças dos habitantes da cidade, a crescente
cólera do pai, que o espanca e o mantém prisioneiro, depois a transformação que
se dá na vida do jovem, a partida de casa, a restituição do dinheiro e das
roupas, a denudação magnífica ante o bispo e a perfeita libertação franciscana,
o risco absoluto do Poverello.
Foi
assim que se tornou o “arauto do grande Rei”, que anunciou as conquistas do
Todo-Poderoso, de quem recebemos tudo e que está acima de tudo, porque este
tudo vem depois dele, porque Ele não é nada do que é concebível e mensurável e
porque nenhum atributo diz tanto dele como o amor indefinível. O arauto do
grande Rei fazia-se mendigo de pedras. Propunha a todos que colaborassem na sua
ação reparadora; prometia recompensas proporcionadas ao número de pedras que
lhe fornecessem para reconstruir São Damião.
Francisco
continua a beijar os leprosos; o célebre guloso regala-se com uma horrorosa
caldeirada feita com os restos das tigelas que a boa gente de Assis despejou na
gamela que ele estendia à sua caridade. O corpo revoltava-se, a alma
maravilhava-se, o espírito exultava no Senhor, – e a Noiva do seu coração
infinito vibrava de alegria no palácio do Absoluto onde habita o grande Rei.
Reconstruiu outras igrejas e particularmente Santa Maria da Porciúncula, que
tanto lhe convinha não só por ser pequena e isolada, no meio dos bosques, mas
também por a dizerem freqüentada pelos anjos, e São Francisco não podia
encontrar personagens que melhor o compreendessem que essas criaturas
invisíveis e sempre tão ativas. Tendo de se ocupar dos homens, com certeza
nunca os anjos tiveram maior consolação e mais profunda alegria do que ao
servirem Maria, Nossa Senhora.
A
Porciúncula, ou Santa Maria dos Anjos, o mais pobre dos santuários, ia
tornar-se o berço da Ordem Franciscana, o presépio, talvez, de um mundo novo.
Foi lá que Francisco, ao assistir à Missa, teve o sentimento da literalidade do
Evangelho quando Jesus envia os discípulos, através do espaço, pelos caminhos
do tempo, com a recomendação: Ide e pregai, anunciando que o Reino está
próximo. Não queirais possuir ouro nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas
cinturas, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem
bordão, etc.... Foi uma revelação para o neófito que gritava de alegria: “Eis,
enfim, o que tenho procurado!”
In
continenti, tirou os sapatos, lançou fora o bordão e desfez-se da segunda
túnica. Mandou fazer um fato em forma de cruz que é o escapulário franciscano,
tirou o cinto para o substituir pela corda que todos os frades usarão à volta
dos rins. E, pelo que consta, conseguiu em Assis o primeiro recrutamento, para
a honra da sua Dama, a Pobreza. A pequena fraternidade ia-se agregando
miraculosamente em torno da graciosa Dama dos sonhos de Francisco Bernardone,
enquanto choviam sobre ele os escárnios e as injúrias da indignada população de
Assis. [...] O bispo Guido, amigo de Francisco, preveniu-o contra os exageros.
“Não se pode viver sem meios de subsistência! Quem vos diz que não irá morrer
de fome uma irmandade como a que estais a formar?” “Se tivermos bens, responde
Francisco, necessitaremos de armas para nos defendermos; e haverá histórias sem
fim com todos os processos! Como poderíamos, depois, conservar o coração livre
para amar a Deus?” O risco de não ter de comer e de estar privado de teto para
se abrigar não lhe desagrada. E, além disso, há a Porciúncula, que é um pequeno
lar todo de Deus. Quando pregarem nas imediações, ajudarão os pobres e dormirão
como eles, sob os alpendres, sob o pórtico hospitaleiro das igrejas. “Depressa
seremos oito companheiros. É verdade que os habitantes das cidades e das
aldeias nos receberão, por vezes, como malfeitores, mas não somos nós todos
malfeitores? Neste caso, por que razão nos queixaríamos?... ”
Quem
será menos digno que Francisco! E quanto tempo perdeu nas dissipações da
juventude! Foi-lhe dito na oração que tudo lhe fora perdoado e que agora se
tratava de continuar a sua obra, sabendo que a irmandade da Pobreza se
transformaria numa grande força que cobriria a terra inteira. Esta graça,
recebida no decurso de uma viagem ao vale de Rieti, exatamente acima de
Poggio-Bustone, animou-o tanto que quis contá-la aos companheiros de viagem. “O
Senhor, disse-lhes, revelou-me que nos estenderemos até aos confins da terra”.
Fala como o Evangelho. Tinha visto entrar na sua Ordem homens de todas as
nacionalidades: franceses, espanhóis, alemães, ingleses, irmãos que se
exprimiam em todas as línguas. Em Roma, perante o papa Inocêncio III, não
receia empregar uma comparação para fazer aprovar a Regra: “Vivia uma mulher no
deserto; era muito pobre mas extremamente bela. Um rei amou-a, desposou-a e
deu-lhe formosos filhos. Mais tarde, depois de o rei se ter ido embora, a mãe
disse aos filhos quem os tinha gerado. Que lhes importava, afinal, serem tão
pobres se a própria miséria era uma miséria de filhos de rei? Foram, então, ao
encontro do rei seu pai, que os reconheceu pelo muito que se pareciam com ele e
os fez seus herdeiros...” Inocêncio III aprovou a regra da pobre mulher do
deserto, mas a título provisório. As qualidades da regra ressaltarão, com o
tempo. Era a regra primitiva, a regra do perfeito risco.
Foi
considerada inaplicável. No entanto, não era intenção de Francisco propor aos
seus filhos algo de difícil. E foi aqui que começou o mal-entendido. Com
Francisco trata-se de se ser feliz, de se estar na paz do Criador, em harmonia
com a Criação. Mesmo quando se praticam ações reparadoras é como se
reerguêssemos uma igreja, ou a Igreja de Deus. É construção na alegria, serviço
benévolo; é misericórdia e não sacrifício. Os homens não têm o coração moldado
como o dele: bem quereriam seguir à letra a regra de Francisco, mas não podem.
Todo o drama franciscano está contido nisto. Francisco tem de modificar a regra
primitiva; em 1221, escreve uma segunda versão, a que foi entregue ao Irmão
Elias, que logo a perdeu. Sem desanimar, o fundador retira-se de novo para as
montanhas para ditar uma terceira ao Irmão Leão, mas, no fundo, é sempre a
mesma, a regra que os discípulos não querem. Não é contra a forma, é contra a
essência da regra que se revoltam. Mas Francisco não pode ceder no essencial. O
cardeal Ugolino, o futuro Papa Gregório IX, a quem Francisco apresenta esta
regra sob uma forma que julga definitiva, não receia amputá-la aos olhos do
Poverello, seu amigo, e se, mutilada, fica mais sólida, mais séria, mais
adaptada à terra como toda a regra que se preza, poderemos imaginar o que teve
de suportar o coração de Francisco diante desta cristalização que parecia tirar
à sua obra todo o fervor divino.
Francisco
aceitou da Santa Sé a supressão do artigo (outrora aprovado por Inocêncio III)
que estipulava: “Quando os Irmãos forem através do mundo, não levem nada
consigo, nem sacos, nem alforjes, nem pão, nem dinheiro, nem bordão, etc...”
Houve outras supressões ditadas pela prudência romana, tão cautelosa na nossa
submissão ao amor; por exemplo, a do capítulo que exortava os Irmãos a
verificarem, nas aldeias onde passassem, se o Santíssimo Sacramento estava
guardado em lugares convenientes e tabernáculos decentes para, no caso
negativo, informarem o pároco. Francisco não tinha pensado nos conflitos que
tais advertências fatalmente provocariam entre religiosos e seculares.
O
que se conservou da regra primitiva foi a obrigação de praticar, apesar de
tudo, a pobreza absoluta: pobreza que se traduzirá, materialmente, por trajos
de preferência miseráveis e, espiritualmente, pela renúncia a fazer juízos
sobre o próximo. Que forma tão requintada de pobreza! São obrigados a
trabalhar, mas com a condição de o trabalho não destruir o espírito de oração;
de o trabalho não cobrir a alma com os arreios das preocupações, de não
embaraçar a sua nudez, de não a revestir contra a luz de Deus. Os Irmãos não
possuirão nem as casas, que separam, nem terras, que nos fixam. Passarão pelo
mundo como peregrinos, sem ganhar raízes; como estrangeiros, tendo consciência
que estão no mundo sem estar, que não estão na sua casa mas na casa de Deus,
que está em toda a parte A regra, assim entendida, não perdeu, portanto, o seu
vigor espiritual. Mas o que o pobre Francisco teve de suprimir era o que tinha
de mais concreto: o hic et nunc sensível, num símbolo que, para Francisco, não
é um intermédio espiritual entre o visível e o invisível, mas o lugar autêntico
em que o invisível se torna visível. O cordeiro não representa Jesus Cristo:
não o mostra, dá-o a tocar. Há que fazer compreender este milagre perpétuo a
homens que têm necessidade de o pensar e de o demonstrar antes de o poder
viver! Se há um erro no “sistema” do Poverello, não é culpa dele; é culpa nossa.
O cardeal Ugolino, que admirava Francisco, devia sorrir ao ler certos textos; e
não era por os não apreciar que os cancelava. Era cardeal e conhecia o mundo,
as suas infernais faculdades de resistência. O generoso Francisco tinha, também
ele, já uma idéia – experimentara-a bastantes vezes –, mas não era a mesma
coisa: Francisco estava disposto a arrancar a essa resistência um acréscimo da
alegria a que os espíritos mal informados persistem em chamar dor.
Mas
não deixa de ser verdade, parece, que Francisco nunca sofreu tanto como por
causa dessa criança enjeitada, filha da alma de Jesus Cristo, a sua regra, que
assim desnaturavam a seus olhos. Já não podia defender os interesses de Cristo
se se ligavam com o seu amor-próprio. Não podia ir contra o Pai, nem contra o
Papa, nem contra a Igreja, ele que procurava a pobreza na obediência, a
submissão absoluta “Pobre homem, porque estás tão triste? “, pergunta-lhe um
dia o Senhor, que o vê afligir-se pelo estado moral dos Irmãos. E Jesus
consola-o: “Não te perturbes; trabalha para a salvação!”
***
A
Ordem de São Francisco tinha-se desenvolvido. E só quando saía já da primeira
infância, no momento da puberdade, é que o fundador se alarmou. Seria uma
tentação?
No
princípio, em 1212, quando falhara a missão de Francisco e dos companheiros no
meio dos infiéis, quando o Poverello, tendo embarcado uma primeira vez em
Ancona, para a Síria, na intenção de se dirigir à Terra Santa e na esperança
de, aí, converter os muçulmanos, fora impedido pela tempestade de prosseguir
para além das costas dálmatas, onde o barco encalhara, vivia, com os Irmãos,
uma aventura deliciosa, livre de tudo, menos de amar, como no céu; a pregação
de Francisco tinha-se limitado a evangelizar alguns marinheiros, mas as almas
são maiores que o mundo. Os princípios da Ordem de São Francisco não foram só
caracterizados por fiascos! Pelo contrário, a pesca tinha sido tão
extraordinária que Francisco poderia dizer que só retinha o peixe grosso. Tendo
consigo almas muito santas, confiantes e ardentes, realizava o que alguns
teriam chamado o seu sonho e que era o único imperativo do seu amor.
Também
em 1215, Francisco, assistindo ao Concílio de Latrão, ouvira Inocêncio III
evocar magnificamente os grandes desejos do seu coração: a reforma da Igreja e
a conquista da Terra Santa pelos cristãos. E eis que, num discurso, o Soberano
Pontífice se não contentava em proclamar a nova cruzada, mas declarava também
que nunca mais concederia às Irmandades de penitentes outras regras além das
tradicionais em vigor! São Francisco exultou da sua estar já aprovada. Mais
ainda: o Papa concedeu-lhe a extensão do “privilégio” da pobreza absoluta às
Irmãs de São Damião, agrupadas em volta de Clara de Assis. Em Latrão, o
Soberano Pontífice, num sermão grandioso, explica o simbolismo do Thau que,
segundo a Escritura diz, obtém misericórdia para os que o tiverem gravado na
testa. Este Thau, dizia o Pontífice, é a marca de uma vida penitente e renovada
em Cristo. “É a última letra do alfabeto hebráico, continuava o Papa: representa
a forma da cruz tal como era antes de Pôncio Pilatos ter fixado a inscrição.
Traz este sinal gravado na testa quem submete todas as ações ao poder da Cruz!”
Última letra do alfabeto hebraico: só isto basta a Francisco, que fará desse
sinal a sua assinatura, o seu selo e o símbolo da vocação dos Irmãos menores.
Até
aqui, Francisco tinha somado muitas vitórias. Todas se resumem no encontro com
Domingos, o qual, em sonhos, tinha visto Maria que o designava, ao lado de um
outro homem, desconhecido para ele, para levarem ao mundo a mensagem da
Misericórdia divina. Domingos, num primeiro encontro, depois de lhe ter contado
o sonho, abraçou-o e disse-lhe: “És o meu companheiro; lançar-nos-emos
juntos...”
Tinha
cometido a loucura de desejar para a Porciúncula uma indulgência, plenária,
quotidiana e absolutamente gratuita. “Meu Senhor, declarou ao Papa Honório III,
não lhe dirijo este pedido por mim mesmo, mas de parte de Aquele que me enviou,
Jesus Cristo”. O Papa, muito surpreendido, concedeu-lhe imediatamente esse
inverossímil favor – que, no espírito de Francisco, não supunha a mínima
restrição, porque estava à altura da sua alma –, repetindo-lhe duas vezes: “É
minha vontade que tenhas o que desejas”. Estava-se em 1216.
Desde
1212, tinha conquistado – ou os anjos pela sua oração – a mais inteligente e
mais sensível jovem da Úmbria, que reconhecia a mão de Deus nas flores, e ouvia
os seus apelos e censuras na música: essa pequena Clara que amava os pobres
como era amada por eles e que Francisco, se bem que fosse uma mulher, quer
dizer, uma “esposa de Cristo”, sempre fitou nos olhos. Clara sentia-se noiva de
Deus, e se Francisco ganhou o seu coração, foi porque “agia coma amigo do
Noivo”. Clara tinha-se refugiado na Porciúncula, onde se lhe juntou sua irmã
Inês. Da Porciúncula passaram para São Damião, onde a pequena comunidade, que
tinha por regra o espírito de pobreza absoluta e o abandono ilimitado à
Providência, se tornou o berço da Ordem das Clarissas.
Tinha
escrito a Carta a todos os Cristãos. E cristãos leigos, e toda a espécie de
pessoas casadas, tinham ouvido as suas exortações. Sem deixarem a vida secular,
muitos se agregaram à pobreza de espírito, desde a encantadora Jaqueline –
mulher de Rolando de Settesoli e a quem São Francisco chamava ou “seu Irmão
Jacqueline” ou “cântico do nosso irmão Sol” – que esbanjava a sua fortuna ao
serviço dos pobres, até ao político convertido Luchezio e a sua esposa, os
quais, tendo distribuído tudo o que tinham, tomaram o hábito sem cor dos
penitentes e transformaram a sua casa em asilo para os pobres. Amaram-se um ao
outro tão perfeitamente através deste amor de Deus e do próximo, que a buona
donna, que tinha pedido a Deus para não sobreviver ao seu marido, foi ouvida a
ponto de morrer primeiro, e Luchezio, doente, depois de lhe fechar os olhos,
tornou a deitar-se e morreu também. Eis como foram os primeiros penitentes
franciscanos, os primeiros Terceiros.
Mas
tendo sido reunido pela Ordem um Capítulo Geral em 1217, e depois, em 1219 o
Capítulo do Pentecostes, que agrupou cinco mil Irmãos e foi presidido pelo
cardeal Ugolino, o qual ia em breve cimentar esta fluida casa do Espírito Santo
que São Francisco tinha feito descer do céu, eis que o Poverello embarca para o
Oriente com os Cruzados, numa viagem que, desta vez, teve êxito. Acompanhado de
vários dos seus Irmãos, chega a Acre, no momento do cerco de Damieta. É
recebido pelo Sultão do Egito, com o qual trava tão boas relações que São
Francisco espera convertê-lo à religião cristã; daí alcança a Palestina, e
sente o coração dilacerado pelos espetáculos que vê à sua volta: os soldados
cristãos pensam mais na satisfação da carne que na salvação dos infiéis.
No
regresso, Francisco encontrará a sua obra irreconhecível. A Santa Sé, na sua
ausência, tinha dirigido aos Irmãos canas de obediência que os punham sob a
proteção dos bispos nas províncias para onde fossem enviados. As Damas Pobres
seriam então engaioladas pelas novas constituições do cardeal Ugolino, a título
de medidas de prudência que São Francisco e Santa Clara teriam naturalmente
reprovado, por corresponderem tão pouco a essa sublime liberdade dos filhos de
Deus que fazia vibrar o coração e iluminar o espírito.
Sendo
já numerosos os Irmãos, os seus chefes desejavam agora uma estabilidade que
Francisco lhes não tinha prometido. A onda tinha engrossado tanto que parecia
caso de se imporem os diques de uma Constituição definitiva. Os decretos
pontifícios, as constituições Ugolinas, tudo isto levantava graves obstáculos
ao espírito. Mas esses obstáculos encontrou-os Francisco materialmente erguidos
em Bolonha. Tinham construído um grande edifício e a intenção do Provincial de
Lombardia, doutor em Direito pela Universidade de Bolonha, era fazer um
convento de estudo. Para Francisco era a perfeita traição. Julgaram-no morto no
Oriente, e aproveitaram-se disso para adotar – um pouco à maneira dos Judeus
que não viram Moisés descer do Sinai – os métodos ordinários, os que o espírito
de Francisco sempre tinha combatido e que os vigários, à vontade na ausência do
santo, imediatamente fizeram reabilitar.
Francisco,
por esta época, sentia-se fatigado no corpo, desolado na alma. Estremeceu de
indignação quando viu erigido o símbolo da sua derrota, esse novo convento de
Bolonha. Recusou-se a entrar nele e pôs-se imediatamente a caminho de Roma,
para solicitar uma audiência do Papa Honório. Depois refletiu. E, vencido,
pediu ao Papa que lhe “desse” para a sua Ordem o cardeal de Ostia, Ugolino.
Com
este golpe, o cardeal ficou protetor da Ordem e Francisco abdicava da sua pobre
vontade nas mãos desse terrível amigo que sem dúvida compreendia melhor que ele
o que Deus queria de Francisco. O fundador reconheceu-o como seu conselheiro e
seu “Senhor apostólico”.
Foi
este um despojamento cuja gravidade nunca poderemos apreciar suficientemente.
Mas lembremo-nos de que esta dor tinha sido prevista por São Francisco de Assis
no próprio ano dos grandes sucessos franciscanos, 1219. Francisco, na estrada
que liga a Porciúncula a Assis, interpelara de repente o Irmão Leão, que ia na
sua dianteira, e dissera:
–
“Irmão Leão, escreve e fixa bem o que eu te vou dizer: ainda que nesta região
os frades menores dêem um grande exemplo de edificação e santidade, não é isto
o que constitui a alegria perfeita”. Depois calara-se. E ao caminhar, o seu
discurso tornava-se cada vez mais misterioso. “Não é no dom dos milagres, nem
no dom das línguas, nem nas ciências, nem no conhecimento das sagradas
Escrituras, não, nem tampouco numa pregação que converte os corações e faz
brilhar Deus; não é em nada disso que reside a alegria perfeita”. Silêncio. E o
irmão Leão, intrigado, talvez impaciente, porque não está a ver – e ninguém,
nem o mais sábio e o mais intuitivo teria podido ver onde o santo queria
chegar-ordenou-lhe, por fim, que se explicasse. E a resposta desconcertante
está na memória de muitos: “Tomai nota, Irmão Leão, porque este é o meu
evangelho: quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, encharcados pela chuva e
transidos de frio, como estamos, todos cobertos de lama e a morrer de fome, se,
quando batermos à porta, o porteiro, encolerizado, nos perguntar: “Quem sois?”
e, se depois de respondermos: “Somos dois dos vossos Irmãos”, ele nos disser:
“Mentis, porque vós não passais de uns inúteis que vagabundeais pelo mundo,
roubando a esmola reservada aos pobres. Ide-vos embora! Toca a andar!”; se ele
recusar abrir-nos a porta, e nos deixar de fora até à noite, expostos à neve,
ao vento e à chuva, ao frio e à fome; então, se suportarmos pacientemente este
desprezo, esta crueldade, esta expulsão, sem nos revoltarmos, sem murmurar
contra o autor de tudo isto, se, pelo contrário, pensarmos com humildade e
caridade que o porteiro, que nos conhece bem, nos fala assim porque Deus lho
permite, vê, Irmão Leão, que esta seria a alegria perfeita”. E concluía: “Se o
suportarmos com alegria e resignação, meditando nos sofrimentos de Cristo,
pensando que deveríamos padecer estas vicissitudes por amor dEle, escreve,
Irmão Leão, que verdadeiramente é nisto que consiste a perfeita alegria”.
***
O
drama de Francisco está em que a sua posição não era do maior número. E, no
entanto, é a mais lógica, a mais próxima da visão que o próprio Deus pode ter
de toda a criatura estirada no nada, sob a realidade, que vive, por assim
dizer, do seu Espírito e que existe devido ao movimento do seu Coração.
E
assim, nada opondo a esta vontade divina, renunciando aos seus próprios
interesses, quaisquer que fossem, inclusivamente à preocupação de dominar ou
mesmo de conhecer, renunciando à sua sabedoria, renunciando a esse controle que
residiria na parte espiritual do eu – e a regra, admitia o santo, devia
desembaraçar-se desse eu, tanto quanto fome humanamente possível –, e assim,
fica Francisco reduzido ao estado de puxo mendigo. É o mendigo da natureza.
Está de tal maneira enamorado que já não sabe se a natureza que conserva é
unicamente sua. Em todo o caso, não a quer possuir. Se a tem é a título de
pedinte, é porque a mendiga. E, porque – louco! – pode mendigar a natureza,
mendiga toda a natureza. Mendiga o pão de toda a natureza ao nosso Pai. Mendiga
a sua natureza e a natureza de tudo e de todos à Natureza primeira, à Natureza
de Deus, que é incomunicável. Ousa-o porque não vê razão alguma – tem ainda ele
alguma razão? – para o não fazer. E Deus, na consumação da santidade do
Poverello o – não o pobre, mas o pequeno pobre –, responderá a este mendigo
pondo a sua Natureza perto da dele, tão perto que gravará na carne de Francisco
as marcas da nossa redenção, os cruéis sinais que, antes de Francisco,
mostrava, nas mãos, nos pés, no lado, o corpo trespassado do Homem das dores,
em que a natureza Divina se tinha unido à natureza humana. Era assim que se
reconhecia o Redentor. E verão Aquele a quem trespassaram. E quando virem
Francisco, depois do mistério da montanha, verão Cristo.
Não
nos admiremos pois que Francisco tenha chegado a uma concepção da vida
religiosa que é indefensável quando se não é Francisco, quando se não adere com
ele, como ele, com toda a alma e com toda a carne, à vontade do próprio Deus,
se fica ainda uma distância entre a mão do homem e a mão de Deus, entre o
coração de um e o Coração do outro.
O
que Francisco, autêntico mendigo, não compreende é que a natureza, tanto a sua
como a das coisas criadas, se interponha à maneira de cortina entre a vontade
de Deus e a boa vontade humana. Esta ignorância é nele tão forte que destrói o
obstáculo. Então torna-se o inimigo, por vezes exasperado, de todo o
conhecimento. Porque este não é para ele o mesmo que é para esse outro pobre
que se chama São Tomás de Aquino, mas bem o contrário, situando-se a mesma
vocação de ambos em planos diferentes. O que para São Tomás é um meio de se
desprender de si reside na própria inteligência. Para São Francisco
empobrecemo-nos corporalmente e transformamo-nos em Cristo na mesma carne. Não
há necessidade de breviário. O teu breviário: cinza na cabeça. É preciso seguir
Francisco no seu amor ao Menino Jesus e vê-lo em Greccio, no dia de Natal,
entreter os Irmãos com o Menino de Belém: quis “contemplar com os olhos do
corpo as privações da sua infância e ver como estava deitado sobre a palha numa
manjedoura de animais, com o burro e o boi junto dele”. Quando em espírito se
inclina para o presépio, vê de fato o presépio e, deitada lá dentro, uma
criança que desperta. De tal maneira que o estábulo construído em Greccio para
esta festa se tornou depois da Missa, na convicção do povo, em novo Belém.
Francisco
é tão simples que quase não distingue intelectualmente. “Simples e imbecil”,
diz ele. Em verdade, pensaríamos que confunde tudo, na grande luz de Deus, onde
as perspectivas, como no quadro do tempo, ainda não estão em evidência, onde
tudo desaparece de si para parecer Deus.
Então,
quando nos perguntam se Francisco era sensível às belezas da natureza, julgamos
poder responder que a pergunta, tal como está posta, quase não tem sentido. Não
há qualquer medida verdadeira que seja comum ao sentimento dos poetas e ao de
Francisco de Assis, que, se é poeta, não é absolutamente como eles. A criatura
deve poder falar de Deus aos poetas, mas só numa linguagem indireta. A São
Francisco de Assis, a criatura não fala de Deus, é ela que lho entrega. Não é
por ser bela a natureza que o rodeia que Francisco a canta, é porque Deus que a
criou e que a conserva, é bom e digno de amor e é este bem divino que a faz
bela. Este saltimbanco de Deus, quando canta, está mais perto das aves que dos
poetas. E foi, sem dúvida, por isso que as aves foram, para ele, irmãs tão
atenciosas. E o lobo de Gubbio entendeu-o. O nosso irmão sol e a nossa irmã
lua, a nossa irmã água como a nossa irmã morte, tê-lo-iam compreendido
igualmente, na própria existência fora de todo o pensamento – exceto do
Pensamento divino onde eles são.
Quanto
mais o peso da dor como as suavidades da alegria perfeita o fazem retirar-se em
Deus, mais livremente Francisco se aproxima da natureza. Ao segui-lo, no fim da
sua vida, somos mergulhados numa atmosfera – tão sensivelmente espiritual que,
apesar do que estes termos possam ter de absurdo e de contraditório, temos a
sensação de escapar às leis vulgares. Para o santo, dirá São João da Cruz, já
não há caminho nem lei...
Já
não há caminho sobre Alvernia, nem lei para este corpo estático. Em 1224, um
pouco antes da festa da Assunção, Francisco dirigiu-se ao monte Alvernia, que
era um lugar selvagem, quase deserto, adornado somente com algumas árvores, e
onde se encontrava uma ermida que um nobre de nome Orlando punha à disposição
dos frades menores. Subiu para lá em companhia de Leão, Masseu, Angelo, Rufino,
Silvestre e do Iluminado. Aí, Francisco, em lugar mais afastado, arranjou uma
cabana sob uma faia e ficou combinado que unicamente o Irmão Leão, “a ovelhinha
do bom Deus”, lhe iria levar todos os dias um pouco de pão e de água; os outros
deveriam rezar por ele, afastados a certa distância. Francisco, um dia,
reconheceu nas fendas da montanha, sob os seus olhos, os sinais desse
estremecimento que tinha agitado o mundo no momento em que Nosso Senhor
entregara o espírito. As montanhas tinham-se aberto, e aquela conservava ainda
os vestígios. A partir de então, o Alvernia tornou-se para ele um lugar
sagrado.
Francisco
quis enterrar-se in interiore deserti. Durante a Quaresma de São Miguel, que
começa depois da Assunção, resolveu escolher para refúgio um banco de rocha,
separado da montanha por um abismo. Fez-se uma pequena ponte sobre a brecha e
construiu-se, para uso de Francisco, uma cela de vimes. Ninguém mais estava
autorizado a atravessar a pequena ponte além do Irmão Leão que lhe continuava a
levar o pão e a água; além disso, seria ainda admitido todas as noites na cela,
para recitar Matinas. Mas só teria direito a passar a ponte depois de ter
pronunciado estas palavras: Domine, labia mea aperies [“Senhor, abrirás os meus
lábios”]. Se a voz de Francisco não respondesse a este apelo, o Irmão Leão
deveria retroceder.
Foi
neste rochedo que Francisco conheceu as terríveis provações de Gethsemani. Por
toda a parte o cercavam tormentos sem nome na alma e no corpo. Um dia confessou
ao Irmão Leão: “Se os Irmãos pudessem somente chegar a saber como são numerosas
e árduas as provas e angústias a que os demônios me submetem, não haveria um só
que se não sentisse movido de compaixão e ternura por mim!” E, no entanto,
alegrias inefáveis atravessavam as noites da alma e tiravam-lhe de repente todo
o peso. Foi assim que um anjo resplandecente lhe apareceu para o confortar e
que, tocando viola, lhe fez ouvir uma melodia tão arrebatadora que Francisco
desmaiou. No seu isolamento, um falcão tomou-se seu amigo e este amigo, com o
seu vôo, acordava-o à meia-noite para a hora das Matinas.
Todas
as noites o Irmão Leão fazia o seu ofício. Ao chegar em frente da pontezinha
gritava: Domine, labia mea aperies. Uma vez, Francisco não respondeu. O Irmão
Leão teve medo. Atravessou a prancha, apesar da recomendação do santo. Não o
encontrou na cela, mas foi dar com ele num bosque muito próximo e viu-o de
joelhos em oração, à luz da lua. Francisco com a face voltada para o céu e com
os braços em cruz, dizia: “Quem sois vós, meu dulcíssimo Salvador? E que sou eu
mais que um miserável verme da terra e um vosso servo inútil?” Uma chama foi
então pousar sobre a cabeça de Francisco e por três vezes o Irmão Leão viu que
ele levantava o braço na mesmo direção. Depois disso a chama subiu ao céu.
Francisco recebeu neste fogo as três bolas de ouro que, explicou ele ao Irmão
Leão sem o repreender da sua ousadia, eram as virtudes franciscanas de pobreza,
castidade e obediência: Francisco tinha-as na sua alma.
Uma
manhã, pela festa da Santa Cruz, Francisco, que vivia há várias semanas a
Paixão de Nosso Senhor, estava de joelhos e teve uma visão que de início o
aterrorizou. Um serafim, que era também um homem, veio até ele. Tinha os braços
estendidos, os pés juntos e o corpo em cruz. Duas asas erguiam-se sobre a
cabeça, duas outras eram para voar e as duas últimas destas seis asas,
recobriam inteiramente o corpo. A beleza da face era incomparável, mas uma dor
infinita transparecia dessa beleza sobrenatural. Todo o espírito do misticismo
de São Francisco brilhava diante dele, enchendo-o da piedade dos santos. E esta
glória atravessou-o. Já não é o mesmo; Deus deixou retratar-se nele,
esculpir-se, tomou, por assim dizer, a sua carne para carne. Que pobreza sem
nome, a de Francisco, que tem umas mãos, uns pés, um lado que não está certo
que lhe pertençam! E estas angústias, os sofrimentos do Alvernia – que a sua
carne e a sua alma nunca mais deixaram de suportar durante os dois últimos anos
da sua vida terrena –, serão na verdade, autenticamente, as suas? No entanto,
nunca Francisco foi tão humano como a partir deste estranho acontecimento. Não
ousaria confiá-lo a seus irmãos, mas a caridade levou-o a revelar o seu
suplício. A partir do dia em que Francisco recebeu no seu corpo os estigmas da
Paixão do Senhor – o que lhe fez escrever o Louvor do Crucificado, que termina
com estes versos: “Bondade suprema, Senhor Deus Todo-Poderoso, grande e
admirável! Salvador cheio de ternura e misericórdia” – nunca mais deixou de
ser, como Deus, um homem cheio de ternura e misericórdia. Estranha metamorfose
a destes homens completos que são os santos e que se produz quase sempre no fim
da vida. Parecem mais perto do humano quando se desprendem da terra. É então
que são mais homens que os outros homens, à maneira de Cristo que era mais
perfeitamente homem que nenhum outro homem. Esta ternura e esta misericórdia
que Francisco experimentava para com todas as criaturas, estendia-se até à sua
própria pessoa.
Oh!
Mas não levará a piedade para consigo mesmo até ao ponto de renunciar, por
exemplo, à viagem que, mal desceu da montanha sagrada e entrou na Porciúncula,
se apressou a fazer para a evangelização do mundo, apesar dos sofrimentos que
não mais cessarão e de lhe ser extremamente difícil caminhar devido aos
estigmas. Não irá longe no seu burro, mas, no entanto, deixa Santa Maria dos
Anjos, apesar de os seus Irmãos terem feito tudo para o reter. Responde a rir
que é a sua honra de cavaleiro que está em jogo. Mas a doença vencerá a sua
coragem. E não irá além de São Damião, onde desce para encontrar, junto da Irmã
Clara, uma harmonia interior que os melhores dos seus irmãos lhe não saberiam
procurar. Talvez ninguém, como Clara, tenha tido no mundo dessa época a
faculdade de o compreender. Deus, também a ela a tinha visitado até ao fundo do
seu espírito, até à raiz do seu ser.
Francisco
devia partir do convento no dia seguinte. De noite, adoeceu de tal maneira que
foi preciso deixá-lo permanecer em São Damião. Aceitou aí uma cabana de vimes
como a que tinha tido na Porciúncula; mas os ratos, desagradáveis irmãos
noturno para um doente, quase lhe fizeram perder a paciência e já estava a
ponto de se irritar quando se estabeleceu entre Deus e Francisco uma
negociação, em que a felicidade estava em causa: em troca de algumas doenças
momentâneas, oferecia-se ao mais pobre dos santos um “tesouro imenso, dum preço
tal que, em comparação com ele, a terra inteira não teria valor algum”. E
Francisco entrou numa nova fase de alegria sobrenatural. Ao romper da aurora,
comunicou-o aos seus companheiros e, para testemunhar a graça que tinha
recebido e mostrar o segredo da unidade a que a sua alma e o seu espírito
tinham chegado, entoou pela primeira vez, no dialeto italiano e antes que fosse
escrito, o Cântico do nosso irmão Sol, em que, jubilosamente, louva o Altíssimo
e lhe agradece pormenorizadamente tudo o que Ele fez e que vem a ser irmão ou
irmã de cada um de nós: o sol, a lua, as estrelas, o ar, as nuvens, o céu puro,
as estações, a casta água, o fogo belo, alegre, poderoso e forte, a terra com
os seus frutos, flores e toda a verdura. Passado tempo, ao saber que ia morrer,
acrescentará alegremente: a morte.
Louvor
a vós, meu Senhor, pela nossa irmã a morte corporal.
Tudo
apresenta Deus, do mesmo modo, a um coração que nada opõe de si. As criaturas
são apenas o que dizem, o que cantam. Porque o ser delas não é mais que uma
capacidade de louvor que o santo põe à luz, como faria tocar uma música
suspensa que só estivesse à espera da sua ordem para preludiar o concerto
eterno.
Francisco
ama a música. Um dia, no palácio episcopal de Rieti, onde consente que o alberguem,
Francisco, que sofre atrozmente dos olhos e da cabeça, confia a um irmão músico
o prazer que teria em ouvir tocar viola. O irmão quê receia o “que dirão” trata
de o dissuadir. Apesar das suas dores, Francisco não insiste. Mas de noite
durante uma insônia todo o céu tocará para si.
Morrerá
na Porciúncula. Tornou-se tão humano, este divinizado, no apogeu do seu estado
sobrenatural, que tem desejos de criança e já os não receia. [...]
Francisco,
antes de voltar ao Pai, lembra-se de uns certos bolos que desejaria comer. Dias
antes da sua morte quer expedir um mensageiro a Roma, a Jacqueline para que
venha imediatamente a Assis com o necessário para o seu enterro: uma túnica
cinzenta, uma toalha, uma almofada, círios. Porque vai morrer. Quer também que lhe
traga esses bolos de amêndoa, açúcar e outra coisa que fazia para ele quando o
queria receber bem em sua casa. Ora, não tinha ainda partido o mensageiro
quando se ouve de repente aproximar-se um ruído impetuoso de carruagens,
guizos, trotear de cavalos, vozes. A atmosfera está agitada. Vem a saber-se que
é Jacqueline de Settesoli que chega, acompanhada dos filhos e de numeroso
pessoal doméstico. “Bendito seja Deus que nos enviou a nossa Irmã Jacqueline!”,
exclama Francisco alegremente. Abri a porta e mandai-a entrar, porque o que na
Regra se refere a mulheres não é para a Irmã Jacqueline! “E ela entra como um
raio de luz na cela onde está Francisco. Não é uma mulher, é o “Cântico do
nosso irmão Sol” em pessoa. E ela canta a Francisco que estava em oração quando
uma voz interior a informou daqueles desejos de Francisco. Trouxe tudo,
inclusive os bolos.
Francisco
morreu um pouco depois do dia São Miguel e convidou a natureza criada a
participar na sua assunção. Quis que cantassem várias vezes o Cântico do sol, o
que não agradou muito ao irmão Elias, que considerava este gênero de agonia
insuficientemente edificante. Ao cântico salmodiado por dois Irmãos, respondia
o santo invariavelmente com o salmo CXLI: Com a minha voz clamei ao Senhor...
Arrancai a minha alma da prisão!... “Saudou assim a morte: “Bem-vinda seja a
nossa irmã morte!” Pediu ao médico que proclamasse em alta voz a entrada desta
irmã na sua morada. E, diante dos seus irmãos, formulou o desejo: “Quando me
virdes perto do fim, colocai-me no chão... Quando morrer, deixai-me aí durante
o tempo necessário a um homem para fazer uma milha a pé sem se apressar”.
Foi
posto nu na terra nua. Depois, quis que lhe lessem o Evangelho da Paixão
segundo São João e pediu aos irmãos que lhe fizessem a caridade de o deporem
num lençol velho antes de lhe deitarem um pouco de cinza sobre o corpo em sinal
de mortalha e de enterramento – “e de cortesia para a nossa irmã morte”, como
disse.
O
serviço de sua Dona, a Pobreza, estava definitivamente consumado neste homem todo
perdido em Jesus, o seu divino Modelo. E a cristandade, em seu nome,
reflorescia como uma primavera.
Stanislas
Fumet
(1896-1983),
nascido em Lescar, nos Pireneus – “à margem da Igreja, senão fora dela” –,
fundou aos catorze anos a sua primeira revista político-literária. Editor,
ensaísta e poeta no entre-guerras, converteu-se ao catolicismo e tornou-se
adversário de todos os conformismos do tempo: socialismo, materialismo,
comunismo, “vanguardas” literárias, etc. Em 1937, fundou a revista Temps présent,
que dirigiu até ser fechada pelo governo dos alemães; criou a seguir em Lyon,
na França “livre”, a revista clandestina Cahiers du témoignage chrétien, na
qual escreveu até ser preso em 1943. Libertado sete meses depois, fez
reaparecer a Temps présent, na qual colaboravam os grandes intelectuais da
época: Maritain, Mauriac, Claudel... Depois da Segunda Guerra tornou-se uma das
principais figuras dos meios intelectuais e políticos.
Fonte:
http://www.quadrante.com.br/