Resgatando São Tomé
Por Francisco Faus
Uma meditação sobre São Tomé,
que, embora tenha ficado mais célebre pela sua falta de fé na Ressurreição, foi
um homem generoso que sabia amar a Deus
CORAÇÃO VALENTE
São Tomé é uma figura
que costuma ser apresentada como símbolo do ceticismo. Já há até uma frase
feita: “Ver para crer, como Tomé”. E, no entanto, Tomé é um dos personagens
mais comoventes do Evangelho. Vamos procurar compreender, nesta meditação, que,
em boa parte, Tomé é um injustiçado. Como é que era mesmo Tomé na realidade?
Que nos diz dele o Evangelho?
Para começar o
“resgate” de Tomé (que resgata os bons exemplos que nos dá), é preciso dizer
que, dele, sabemos uma coisa certa, e é que foi um dos idealistas que, deixando
todas as coisas, seguiram Jesus. Portanto, confiava em Jesus, acreditava nele –
senão, não teria largado tudo e apostado nele –; além disso, tinha-lhe amor,
pois ninguém se entrega nas mãos de uma pessoa que lhe é indiferente; e era
generoso.
Logicamente era
humano, e, portanto, tinha fraquezas como aliás todos os Apóstolos, como todos
nós. Mas, antes da Paixão de Jesus, o Evangelho mais nos mostra nele fortaleza
que fraqueza. Refiro-me àqueles momentos críticos – pouco antes da Paixão –, em
que Jesus já era perseguido de morte em Jerusalém e teve de retirar-se para
além do Jordão, juntamente com os Apóstolos, porque ainda não tinha chegado a
sua hora. O que lá aconteceu é tocante...
Naquele lugar
retirado, Jesus recebeu o recado de Marta e Maria, pedindo-lhe que fosse de
novo a Jerusalém (a Betânia, pertíssimo de Jerusalém), porque seu irmão Lázaro
estava muito doente: Senhor, aquele que amas está enfermo. Jesus, no entanto,
deixou-se ficar ali ainda dois dias. Mas, de repente, disse: Voltemos para a
Judéia. Isso assustou os discípulos: Mestre – disseram-lhe –, há pouco os
judeus te queriam apedrejar, e voltas para lá? Jesus não ligou, e disse-lhes
abertamente que Lázaro já tinha morrido, mas – acrescentou – vamos a ele. Todos
ficaram gelados, pensando que aquilo era pôr-se na boca do lobo...
Todos menos um! Tomé!
Só ele, cheio de coragem, foi capaz de dizer aos seus condiscípulos: Vamos
também nós, e morramos com ele! Estava disposto a morrer com Jesus, por Jesus.
Como vemos, no coração de Tomé não há nada de covardia, nem de dúvidas, nem de
vacilações.
CORAÇÃO SINCERO
E ainda há um outro
traço do caráter de Tomé que o Evangelho põe em relevo.Tomé era um homem que
era sincero e gostava da objetividade. Não era daquele tipo de homens que são
“objetivos” só para pôr dificuldades, tirar o corpo e dizer que não dá (“sou
realista”, dizem, e, na realidade, são pessimistas ou comodistas). Ele gostava
da objetividade para entender melhor as coisas e, assim, poder agir melhor e
resolver melhor os assuntos. Isso não diminuía nem um pouco a fé que tinha em
Jesus. Tomé unia a fé ao realismo, um binômio excelente em si mesmo..., mas que
pode desequilibrar-se, e então se torna perigoso (como logo veremos). É algo
que fica bem claro na Última Ceia.
Naquela noite da
Quinta-feira Santa, Jesus estava despedindo-se dos seus discípulos, e
consolava-os com infinita ternura dizendo-lhes: Não se perturbe o vosso
coração. Na casa de meu Pai há muitas moradas ...; vou preparar-vos um lugar.
Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo... E vós
conheceis o caminho para onde eu vou. Neste ponto interveio Tomé, com a sua
franqueza um pouco brusca, mas cheia de confiança em Jesus: Disse-lhe Tomé:
Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos saber o caminho? Jesus não
levou a mal essa pergunta nem a achou indelicada. Ao contrário, tomou pé dela
para dizer umas palavras que ficarão para sempre gravadas no coração do
cristão: Jesus respondeu-lhe: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém
vai ao Pai senão por mim”.
Mas houve um outro
momento crucial, em que esse realismo franco de Tomé... espanou. Foi após os
acontecimentos perturbadores da Paixão, quando Jesus já havia ressuscitado (e
daí vem a “má fama” de Tomé).
Lembremos o que
aconteceu. Na tarde do domingo de Páscoa, em que Jesus apareceu aos Apóstolos
no Cenáculo, Tomé – diz o Evangelho – não estava com eles. Ou seja, não viu
Jesus. Provavelmente, chegou bem mais tarde, naquela noite, ou então só voltou
à casa no dia seguinte. Podemos imaginar que chegou ao Cenáculo triste, com
olheiras de pouco dormir e o ricto amargo na boca de muito sofrer. Pois bem,
mal acabava de subir a escada até o segundo andar – a sala de cima –, quando os
outros que lá estavam se lhe atiraram em cima, agitadíssimos, dizendo: Vimos o
Senhor!
Pobre Tomé! Aquela
enxurrada de entusiasmo, totalmente inesperada, caiu-lhe como um golpe de malho
na cabeça. Deixou-o atordoado. Eu o imagino de olhos arregalados, assustado com
a estranha euforia dos outros, balbuciando: “Estão loucos! Vocês perderam o
juízo?” E o bom Tomé, o sofrido Tomé, o franco Tomé, de repente embirrou. A sua
tendência para o realismo e a objetividade saiu dos eixos, extrapolou em
casmurrice e desequilibrou-se: Mas ele replicou-lhes: Se não vir nas suas mãos
o sinal dos pregos, e não puser o meu dedo no lugar dos pregos, e não
introduzir a minha mão no seu lado, não acreditarei! Emburrou, e não havia modo
de fazê-lo sair atitude fechada.
O AMOR QUE FAZ DUVIDAR
Vemos nessa atitude só
um defeito? Será que não poderíamos pensar que era tão grande o carinho de Tomé
por Jesus, que não agüentava pensar sequer na possibilidade de que houvesse um
engano? Não tinha coragem para deixar que a sua esperança subisse a mil por
hora como um foguete, na crença de que Jesus vivia, para depois cair vertiginosamente
e espatifar-se no chão, na decepção. E se tudo não passasse de histeria dos
amigos? Não esqueçamos que, às vezes, a alegria dá medo. Temos tanto receio de
embarcar numa alegria grande que depois nos possa decepcionar! Por isso, quando
desejamos muito, muito mesmo, uma coisa que nos promete enorme alegria, temos a
tendência instintiva de começar a pensar nas coisas “ruins” que poderão
acontecer: vai surgir um imprevisto, vai falhar na última hora, vou chegar
atrasado, não vai dar certo...
Isso pode explicar a
reação negativa de Tomé. No entanto, é preciso reconhecer que houve mesmo uma
falha. De fato, Jesus teve de corrigi-lo... E, do erro dele, nosso Senhor quis
que nós aprendêssemos. Ele sempre tira o bem de tudo, mesmo do mal.
Em que consistiu seu erro?
Naquela hora decisiva, faltaram-lhe a fé e a esperança sobrenaturais. Tomé quis
ser tão realista, tão terra-a-terra – para se garantir –, que só ficou vendo o
que tinha debaixo dos pés e na ponta do nariz. Isto é o que acontece com todos
os que se chamam a si mesmos “realistas”, gente de “pé no chão”, “experientes”
e “conhecedores da vida”..., e se esquecem de que a coisa mais “realista” que
há no mundo é a presença viva de Deus, o seu poder e a sua ação amorosa... e
muitas vezes inesperada e desconcertante.
UM REALISMO QUE SE
TORNA PESSIMISMO
É interessante
observar que todos os pessimistas se chamam a si mesmos realistas e desprezam
os “sonhadores” (assim chamam aos que vivem da fé), como se fossem ingênuos ou
tolos. Felizmente, nós cremos no Deus da esperança, e por isso somos
necessariamente otimistas.
Cristo quer, sem
dúvida, que vivamos uma vida realista, mas contando com o “fator” mais real de
todos, que é Ele e a força assombrosa do seu amor e da fidelidade às suas
promessas. Assim o expressa, de maneira maravilhosa, a Carta aos Hebreus: A fé
é o fundamento das coisas que se esperam, é uma certeza a respeito do que não
se vê. Foi ela que fez a glória dos nossos antepassados. A falta desta fé no
amor e nas promessas de Deus traz consigo a falta da esperança que a fé deveria
gerar. Este foi o motivo da repreensão afetuosa que Jesus deu a Tomé. E deu-a
com razão, pois Tomé não soube pôr toda a sua fé nas promessas anteriores de
Cristo – voltarei a vós..., ao terceiro dia o Filho do homem ressuscitará... –;
e não deu crédito ao testemunho dos outros Apóstolos que, por ser unânime,
merecia confiança.
Mas a repreensão de
Jesus, como todas as suas palavras e atos, é uma grande luz para a nossa alma.
Vejamos o que diz o Evangelho:
Oito dias depois (da
aparição aos Apóstolos no dia da Páscoa), estavam os seus discípulos outra vez
no mesmo lugar e Tomé com eles. Estando trancadas as portas, veio Jesus, pôs-se
no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”... Podemos imaginar a cara de
espanto do nosso Tomé... O seu coração deve ter ficado acelerado, quase que a
estourar-lhe o peito, quando Jesus se dirigiu pessoalmente a ele. Depois, Jesus
disse a Tomé: “Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no
meu lado, e não sejas incrédulo, mas homem de fé! E, apanhando a mão de Tomé,
fez como estava dizendo.
A reação de Tomé,
caindo em lágrimas aos pés de Jesus, foi esplêndida: Respondeu-lhe Tomé: “Meu
Senhor e meu Deus!” Ele, que tinha duvidado, acabou fazendo o maior ato de fé
até então pronunciado por qualquer dos Apóstolos: um ato de fé absolutamente
explícita, luminosa, na divindade de Cristo: Meu Deus! E Jesus encerrou a
questão, pensando em nós, em todos os que haveríamos de ser os seus discípulos,
no decorrer dos séculos: Creste porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem
terem visto!
O LADO LUMINOSO DA
LIÇÃO DE TOMÉ
É como se, com as
palavras que dirigiu a Tomé, Cristo nos perguntasse: “Você crê mesmo em mim?”
“Você, por crer em mim, sabe esperar nas coisas que não se vêem, que só se
prevêem com a fé, sabe esperar nas coisas que Deus quer, mas que os “realistas”
chamam “impossíveis”? Vale a pena lembrar o que escreve São Paulo: Porque pela
esperança é que fomos salvos. Ora, ver o objeto da esperança já não é
esperança; porque o que alguém vê, como é que ainda o espera?[1]
Deus – por assim dizer
– “desafia-nos” a viver de esperança, a saber esperar do seu amor coisas
grandes que não vemos, coisas que nos parecem impossíveis, mas que Ele nos quer
dar. Mesmo diante das maiores dificuldades, todos podemos dizer com São João:
Nós conhecemos o amor de Deus, e acreditamos nele.
O “realismo” cristão
está feito de fé, de audácia e de magnanimidade. O nosso realismo é a
esperança. Aí está o segredo do otimismo do cristão. É preciso que, aquecidos
pela fé, pelo amor e pela esperança, saibamos apontar alto, apontar para coisas
grandes, para ambições santas, e confiar plenamente em Deus. A mulher de fé, o
homem de fé, confia sobretudo em dois pilares fortíssimos sobre os quais se
apóia a esperança cristã: a obediência a Deus (fazer o que sabemos que Deus nos
pede), e a oração (pedir com a fé com que um filho pede a um pai de cujo amor
não duvida). Apoiada na obediência e na oração, a nossa esperança ficará, como
diz o Livro da Sabedoria, cheia de imortalidade.
Há alguns exemplos, no
Evangelho, que ilustram tudo isto muito bem. Hoje vamos focalizar apenas um
deles, que é especialmente claro e tocante.
GENEROSIDADE E
ESPERANÇA
Todos nos lembramos,
provavelmente, da passagem do Evangelho que narra a primeira multiplicação dos
pães. E talvez tenhamos presente a figura encantadora daquele menino – de que
fala São João no capítulo sexto do seu Evangelho –, que colaborou com o
milagre.
Mais de cinco mil
pessoas estavam certa vez em um lugar afastado, ouvindo Jesus. Passou o tempo e
sentiram fome. Percebendo isso, o Senhor disse aos Apóstolos que lhes dessem de
comer. Mas como poderiam fazê-lo? Não havia nem pão nem dinheiro para
comprá-lo. De repente, André apareceu trazendo pela mão um garoto, que estava,
ao mesmo tempo, feliz e meio encabulado: “Eu posso dar – assim deve ter falado
o menino a André – cinco pães de cevada e dois peixes”. Ao vê-lo, Jesus sorriu,
pegou os pães e os peixinhos, e deu a entender a todos que tudo estava
resolvido. Mandou sentar na relva todo o mundo, pediu aos Apóstolos que
repartissem os cinco pães e os dois peixes e... comeram todos à vontade e ainda
sobraram doze cestos! Um milagre apoiado num “impossível”, numa oferenda
pequena, mas cheia de amor, de generosidade...
Não é clara a
mensagem? Cristo – com esse milagre – diz-nos: “Não desanime se acha que não
tem meios para resolver os problemas, para sair de uma situação de pecado, para
ajudar um filho ou um amigo, se acha que não tem capacidade para aliviar as
necessidades de tantas pessoas que carecem de tudo e sofrem; ou para fazer
apostolado; ou que não tem forças para adquirir determinadas virtudes. Tenha
confiança em mim, e faça da sua parte o que puder, ainda que seja pouquinho...;
mas que seja tudo o que pode mesmo, como o menino que deu tudo o que tinha. O resto – acrescenta Jesus – é comigo”.
Concluindo esta
meditação, não vemos que o maior e melhor realismo do mundo é ter fé e
confiança em Deus? As pessoas que agem “como se Deus não existisse, ou não
visse, ou não amasse” caem na e mais trágica falsificação da realidade. As
pessoas que ainda não perceberam que a oração é infinitamente mais forte que a
energia atômica e que o poder quase ilimitado do dinheiro, estão fora da
realidade. As pessoas que não percebem que a maior garantia de que receberão os
dons de Deus é obedecer a Deus – obedecendo ao seu Evangelho e à sua santa
Igreja – estão fora da objetividade. Não nos deixemos dominar nunca – ainda que
a nossa vida atravesse momentos muito difíceis – por uma visão acanhada e
míope. Peçamos a Tomé que nos ajude a ser os “realistas da esperança”, que com
certeza ele nos acudirá. Tem experiência...
[Adaptação do texto do capítulo quatro do livro de Francisco Faus:
Cristo, minha esperança, Quadrante 2003]
NOTA:
(1) Parece-me oportuno esclarecer que esse texto foi escrito em 2003,
quatro anos antes de que a Encíclica Spe salvi, de Bento XVI, fosse publicada.
Preferi não o adaptar a esse grande documento pontifício, mas conservar a
simplicidade do conteúdo original.
Fonte: http://www.quadrante.com.br/