São Paulo, o Conquistador
de Cristo
Por Daniel-Rops
A conversão de São Paulo é um acontecimento capital na
história do cristianismo e do mundo. A mesma intensidade que Saulo dedicava à
perseguição dos cristãos, Paulo dedicará à pregação do Evangelho entre as
nações.
Era num dia de verão, por volta do meio-dia. Escoltado
por um corpo de guardas que lhe deram, para o auxiliarem na sua tarefa, Saulo,
febril, inquieto, chegava à vista do oásis da Síria. Havia já uma longa semana
que deixara a Cidade Santa, uma semana que caminhava ao longo de uma pista na
areia, compreendidas nesse espaço de tempo as paradas obrigatórias para o
descanso sabático. Tinha pressa de chegar a Damasco, de cumprir a sua missão,
de cevar a sua ira. Nem o sol ardente, nem o traiçoeiro relento das noites,
tinham podido demorá-lo.
Duas
estradas conduziam de Jerusalém para Damasco. Uma atravessava de ponta a ponta
a Palestina, pela Samaria e Galiléia, até Cesaréia de Filipe; depois contornava
o Hermon e atirava-se em linha reta através das estepes. A outra, mais
reduzida, descia de Siquém para Citópolís, passava pela cidade grega de Hipos,
à beira do lago de Tiberíades, para, em seguida, tornar a subir em direção às
pastagens do Bachan e Traconítida, além das quais voltava a reunir-se com a primeira.
É preciso pensar que o itinerário pelas colinas da Palestina deveria ser de
preferir ao outro, o qual obrigaria a caminhar demoradamente no vale do Jordão,
onde, em julho e em Agosto, são freqüentes as temperaturas de 45°. Mas, mesmo
nos pontos altos, o verão é áspero e rude, pois tudo ali morre mais facilmente
que no inverno.
Havia,
pois, oito dias que Saulo marchava por sobre pedras e poeira, debaixo dum céu
de azul cru. As gramíneas secas na terra das encostas deixavam ver uma pele
áspera sobre um esqueleto de rochedos. Tudo se mostrava pardo, monotonamente
pardo: os espinheiros da estrada, as casas das aldeias, os calhaus dos ouadi
1 secos, e até, sob o abrigo tênue dos olivais, a lã dos carneiros,
cujo pêlo se confundia com o solo.
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(1) Ou oueds,
palavra árabe designando os cursos de água da África e da Síria e os rios
intermitentes do Saara (N. do T.).
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Enquanto
caminhava, Saulo moía e remoia a sua fúria. “Nunca ninguém – disse Pascal – faz
o mal tal cabalmente e tão alegremente, como quando o faz em plena
consciência”. Estaria, acaso, alegre, o moço fariseu que ia a Damasco, para
levar a cabo uma tão terrível missão? Mas, de que procedia conscienciosamente,
estava ele bem seguro. A firme convicção de estar no trilho da verdade,
misturava-se-lhe certamente no coração com o inquieto azedume da vingança e da
má disposição; que contas pessoais ajustaria com esse Messias, a cujos fiéis
movia perseguições? Poderia, ao menos, formular concretamente os seus motivos?
O que
fizera em Jerusalém contra os Nazarenos não lhe bastava ainda. Caçá-los,
denunciá-los, fazer prender alguns, aplicar a outros o castigo das varas,
compelir os menos fortes a apostatarem – ele próprio o confessou: ultrapassar
em violência todos os outros moços fariseus – não lhe parecia ainda suficiente
(cf. At 8, 3; 22, 4; 26, 10-11; Gál 1, 13; 1 Tim 1, 13). Grupos de fiéis da
nova doutrina constituíam-se fora da Palestina, nomeadamente nas comunidades
judaicas da Síria; assim ele se propôs ir descobri-los e puni-los.
O Sumo
Sacerdote a quem Saulo – “não respirando outra coisa senão ameaças e
morticínios” (At 9, 1-2) – expôs o seu projeto, acolheu-o, evidentemente, muito
bem. Quem era ele? Ainda Caifás, um dos mais tristes heróis do escandaloso processo
de Jesus, que à força de cautela e de reptação diplomática conseguira manter-se
no Pontificado dezoito anos e não foi destituído senão no ano 36? Ou algum dos
seus imediatos sucessores, Jônatas que não conservou a mitra além de seis
meses, ou Teófilo, eleito no começo de 37? Pouco importa. A ordem para a missão
foi assinada, ordenando-se às Sinagogas de Damasco que a Saulo se entregassem
os seus membros ligados a Jesus de Nazaré, para que, sob algemas, ele os
conduzisse a Sião.
A coisa
era ilegal, tanto em direito judaico como em direito romano. Sobre os membros
dos Sinédrios locais das comunidades da Diáspora, o Sumo Sacerdote não
tinha, em princípio, nenhum poder. Mas é inegável que era enorme o seu
prestígio, e que, de tal circunstância, sabia ele abusar à maravilha. Quanto
aos ocupantes romanos, esses não teriam, numa época normal, tolerado de nenhum
modo que um pequeno rabino saísse do território confiado ao Procurador da
Judéia para vir proceder a detenções em território da Síria, e isso nas barbas
dos respectivos magistrados. Mas – e é este um dos argumentos para datar os
fatos do ano 36, em que Pilatos, chamado a Roma, não tinha sido ainda
substituído – a autoridade de ocupação apenas se encontrava, então,
representada pelo administrador de Cesaréia e pelo poderoso mas remoto legado
da Síria, Vítélio, que, de resto, fazia uma política de bom entendimento com as
autoridades do Sinédrio. Atuando rapidamente, o golpe deveria ser certeiro.
Tudo
contribuía, pois, para a pressa de Saulo. A febre subia lhe à fronte, na
calmaria abrasadora da pista. Estava quase a atingir a meta. A sua esquerda, o
Hermon, “O Primogênito das Alturas”, erguia, por debaixo do céu duro, o cume
coberto de neve, esse cume em que Cristo transfigurado resplandeceu aos olhos
dos seus. À sua direita, as colinas do Hauran eriçavam-se, fulvas e azuis, para
as bandas da Ásia. Depressa apareceria o oásis, cinzento pelos plátanos, e
verde pelos palmares. O ar deveria ser opaco, imóvel, pesado, como costuma ser
nos desertos à hora do meio-dia.
De
repente, uma luz vinda do céu refulgiu em volta dele, ultrapassando em
intensidade a do sol. O viandante caiu por terra, ouvindo, então, uma voz que
lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Titubeou: “Quem és tu,
Senhor?” A voz replicou: “Sou Jesus de Nazaré, a quem tu persegues”. Aterrado e
a tremer, o fariseu murmurou ainda: “Senhor, que queres que faça?” E a voz,
inefável, respondeu: “Levanta-te. Entra na cidade, e lá saberás o que tens a
fazer, pois que te instituí meu servidor e testemunho”.
Prodigioso
acontecimento, de incalculável importância, sem o qual todo o futuro do
cristianismo teria mudado de feição... É preciso acreditar que ele impressionou
tanto o espírito dos coevos, quanto confunde o nosso, pois não é só uma vez, no
capítulo 9, mas duas vezes mais nos capítulos 22 e 26, que o livro dos Atos dos
Apóstolos o refere, e estes dois últimos, pela boca do próprio Saulo. Entre as
três narrações, a identidade quanto à base é absoluta; as diferenças não
existem senão nos pormenores: os companheiros de Saulo caíram também por terra?
que perceberam eles exatamente do fenômeno? uma luz ofuscante? uma voz que
proferia palavras incompreensíveis? É indiscutível a autenticidade do fato, que
por diferentes vezes o Apóstolo, nas suas cartas, confirmará ainda por
decisivas alusões (cf. 1 Cor 9, 1; 15, 3; Gál 1, 12-17). Na estrada de Damasco,
ao sol do meio dia, Saulo viu-se, na verdade, defrontado por Jesus, ouvindo que
o chamavam pelo nome.
Levantou-se
do chão e titubeou. Sem dúvida que deveria ter soltado um grito. Já não via
nada. Di-lo o texto dos Atos: Já não via nada “por causa dessa intensa luz”. Os
médicos que estudaram esta súbita cegueira concluíram que ela não podia
comparar-se com a motivada pelos golpes de sol saariano, a qual é de curta
duração, ao passo que a de Saulo se deveria ter mantido durante vários dias.
Compararam-na, porém, com a que se produz com o ofuscamento elétrico, e é
devida a um choque excessivo de luz sobre a retina, implicando queimaduras
superficiais da córnea e secreções de mucosidade purulenta; essa pode durar
bastante tempo. “Ninguém vê a face de Deus, sem morrer....” asseverava a
Bíblia: Saulo não morreu, por haver encontrado o Deus da vida; todavia, quem ia
retomar a rota, era na verdade um morto, um homem morto por si próprio.
Amparado pelos homens da escolta, Saulo entrou em Damasco, para ai esperar as
ordens prometidas.
Damasco
era então o que ainda agora é: o oásis maravilhoso que parece surgir do deserto
inóspito, como uma flor paradisíaca da Árvore da Vida. As suas nascentes
inesgotáveis haviam feito brotar uma vegetação variadíssima: plátanos, choupos,
faias e salgueiros demarcavam os ribeiros e os frescos regatos; à sombra das
palmeiras, as romãs, os damascos e os figos amadureciam em inúmeros cercados;
por toda a parte a rosa e o jasmim misturavam os seus perfumes adocicados ao
das tuberosas. O Ocidente e o Oriente, cruzando ali as suas estradas, tinham
feito da cidade um dos centros onde as caravanas se detinham ao dirigirem-se ao
Egito, à Mesopotâmia, à Pérsia, carregados de peles, de sedas, de sal ou de
metais preciosos. Nesta poderosa cidade, na qual dez raças diferentes eram
vizinhas, havia muito tempo que a colônia judaica era numerosa (Flávio Josefo
fala de 50.000 almas), colônia essa de prósperos lojistas e de artífices. Do
fundo da sua vermelha Petra, o rei, que mais ou menos dependia da cidade, o
príncipe árabe Aretas, protegia-a.
Transposta
a porta fortificada – que uma torre maciça guardava – o viajante encontrava-se
numa avenida com a extensão de 1.500 metros e a largura de 30, toda bordada de
pórticos de colunas coríntias, e cujo pavimento de lajedo se encontrava ladeado
por passeios. Chamavam-lhe a rua “Direita”, rua que existe ainda, continuando a
ser conhecido o seu antigo nome, ao lado do moderno Souq el Tawil –
“extenso bazar” 2. Morava aí um judeu chamado Judas, a quem fora,
sem dúvida nenhum, dada ordem para receber o enviado do Sumo Sacerdote. Podemos
imaginar Saulo, acocorado em qualquer recanto do pátio ou da loja, abstrato,
silencioso, recusando-se a comer e a beber, os olhos de cego abertos para a
noite do milagre, pobre cativo nas mãos daquele que tão bem o tinha vencido.
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(2)
Atualmente, o mercado chama-se Souq Medhat Pasha, em homenagem ao imperador
otomano Medhat Passa, que o reformou (N. do E.).
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Fora na
comunidade judaica que, por certo, se constituíra o primeiro núcleo de fiéis do
Nazareno. Tal núcleo não deveria ser insignificante, pois atraiu as atenções
desconfiadas dos chefes religiosos de Israel. Ananias era um dos seus membros a
quem os Atos classificam de “discípulo” (9, 10), isto é, um daqueles que Saulo
se propunha conduzir presos a Jerusalém. Era, diz ainda o livro (12, 18) um
“homem pio, segundo a Lei”, ou seja, um dos primeiros partidários de Jesus,
cujo tipo dominava ainda nessa Igreja muito primitiva, partidários esses que,
embora batizados segundo a nova fé, permaneciam muito presos às observâncias da
raça e à sinagoga, homens que se mostravam tanto mais judeus, quanto mais
atentos se sentiam à palavra de Cristo. Bom, prudente, moderado, justo de
coração e de vida, era por todos respeitado e considerado.
Ora
Ananias teve uma visão. O Senhor apareceu-lhe e chamou-o: “Ananias!” Conforme
se diz na Bíblia dos grandes anciãos em idênticas circunstâncias, respondeu:
“Eis-me aqui, Senhor!” O visitante continuou: “Parte, vai à rua Direita e
pergunta na casa de Judas por um homem chamado Saulo, que é natural de Tarso.
Encontrá-lo-ás em oração, pois que ele acaba de ter igualmente uma visão: viu
entrar um homem com o nome de Ananias, que lhe impôs as mãos para lhe restituir
a vista”. Atônito por receber uma tal ordem, o prudente ousou replicar:
“Senhor, ouvi dizer a várias pessoas que esse homem havia feito muito mal aos
teus santos, em Jerusalém. Ora se ele está cá, é porque recebeu mandado das
autoridades e do Sumo Sacerdote, a fim de prender os que invocam o teu nome”.
Mas a voz misteriosa contestou ainda: “Vai, porque este homem é para mim um
instrumento escolhido, que levará o meu nome diante das nações, dos reis e dos
filhos de Israel” (At 9, 10-15).
É
admirável o encontro desse homem que se sente ameaçado, não só na sua pessoa
mas também na sua fé e na sua esperança, e que deve ir levar a salvação àquele
mesmo de quem pode esperar tudo, e do pior. O paradoxo cristão encontra-se aí
inteiramente formulado, o paradoxo da caridade de Cristo, que São Paulo devia
compreender tão profundamente e exaltar de um modo sublime; no momento em que o
apelo decisivo ia soar para ele, era necessário que se sentisse melindrado.
“Amar os inimigos, e perdoar aos que nos ofendem”: a mais essencial de todas
adições do Evangelho, recebia-a Saulo pela própria voz do homem que momentos
antes era ainda sua vitima eventual.
Ananias
pôs-se, por conseguinte, a caminho. Entrou na casa de Judas e perguntou por
Saulo. Lá estava ele, sempre prostrado, sempre cego, sempre incapaz de explicar
o que se lhe desenrolava na alma, à qual, todavia, a visão levara a esperança.
“Saulo, meu irmão, o Senhor, esse mesmo Jesus que te apareceu no caminho,
enviou-me para que recobres a vista e fiques cheio do Espírito Santo”. Naquele
mesmo instante caíram dos olhos de Saulo umas como que escamas, e ele recuperou
a vista. Levantou-se; tomou alimentos; e as forças regressaram-lhe. Foi então
que se batizou.
De tal
modo se realizou aquilo que se tem chamado a conversão de São Paulo. Que
tenha havido nele secretas investidas da graça, secretas inclusivamente para
ele, que possam discernir-se determinados componentes que contribuíram para o
profundo abalo psicológico da estrada de Damasco, isso tem apenas uma
importância secundaria. A impressão que se colhe da leitura dos Atos, aquela
mesma da qual São Paulo será obstinadamente testemunha, durante a vida inteira,
é que um acontecimento fulminante o empolgou, quando ele se julgava ainda
imbuído de convicções judaicas, e o mudou literalmente, de um só golpe. A
transformação foi nele radical e completa. O que havia odiado, passou, da noite
para o dia, a adorar, e a causa que combateu com toda a violência, vai,
igualmente com toda a violência, servi-la de futuro. Num segundo e na pista do
deserto, Deus vencera o adversário e ligara-o a si, para todo o sempre.
Esse homem
que a Luz prostrou no leito da estrada, vencido mas exacerbado pela própria
derrota, na esperança mais profunda do seu coração, como não haveríamos de
considerá-lo com emoção, e até – é preciso dizê-lo – com certa espécie de
inveja? Saulo, Saulo de Tarso, mais pecador que todos nós, carrasco com as mãos
manchadas do sangue dos fiéis, e que teve a sorte inconcebível de se encontrar
em pessoa com Cristo, e de, pela sua própria voz, ser chamado pelo nome... Por
que motivo foi assim? Porque teria sido esse homem designado? Está-se aqui no
âmago do mistério paulino da graça, em que tudo é obscuro nos secretos
desígnios da Providência e em que tudo, porém, conduz ao fim que é a decisiva
Luz. É para tal fim, é para essa Luz que, no futuro, Saulo vai pender. Cristo,
que o venceu, vai mostrá-lo em todas as estradas do mundo, como seu cativo e
seu escravo. E ele, Saulo, não terá horas bastantes em toda a sua vida para
render o testemunho do Amor Àquele que o amara bastante para o ferir em pleno
coração.
Daniel-Rops
(pseudônimo literário de Henri Petiot) nasceu em Épinal, em 1901, e
faleceu em Chambéry, em 1965. Foi professor de História e diretor da revista
Ecclesia (Paris), e tornou-se mundialmente famoso sobretudo pelas obras de
historiografia que publicou: a coleção História Sagrada, que abrange os volumes
O povo bíblico (1943), Jesus no seu tempo (1945) e os onze tomos desta História
da Igreja de Cristo (1948-65). Também foi autor de diversos ensaios, obras de
literatura infantil e romances históricos, entre os quais destacamos Morte,
onde está a tua vitória? (1934) e A espada de fogo (1938). Foi eleito para a
Academia Francesa em 1955.
Fonte: “São
Paulo, o Conquistador de Cristo”, Tavares Martins, Porto, 1952, págs. 49-60
Tradução: Jaime Napoleão de Vasconcelos
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