São
Bernardo: uma testemunha do seu tempo perante Deus
Por Daniel-Rops
São Bernardo de Claraval
nasceu em Fontaines, França, no seio de uma família nobre, em 1090 e faleceu em
Claraval em vinte e um de agosto de 1153. Aos vinte e dois anos ingressou no mosteiro
cisterciense de Citeaux, seguido por todos os seus seis irmãos e mais trinta
jovens da nobreza que quiseram seguir o seu exemplo. Três anos depois Santo
Estevão enviaria o jovem Bernardo, o terceiro a deixar Citeaux, à frente de um
grupo de monges para fundar uma nova comunidade no Vale do Absinto, o Vale da
Amargura, na Diocese de Langres. Bernardo o chamará de Claire Vallée, o Claro
Vale, Clairvaux (Claraval), em 25 de julho de 1115, e os nomes de Bernardo e
Claraval não mais se separariam. O presente artigo é um trecho do capítulo
dedicado por Daniel-Rops ao Santo no terceiro volume da sua História da Igreja
de Cristo.
O DEFENSOR DA FÉ
São Bernardo defendeu a lei de Cristo não
somente no plano do comportamento moral, mas também no plano doutrinal, e com a
mesma energia. A sua atitude foi muitas vezes mal interpretada; chegaram até a
ver nele um arrebatado, um fanático, pronto a desencantar pretensos erros e a
combater ferozmente os que lhe pareciam defendê-los. Mas as testemunhas que
descrevem assim o abade de Claraval são suspeitas. Berengário de Poitiers, por
exemplo, diz dele que tinha “a alma cheia de rancor”, mas, sendo discípulo de
Abelardo, é possível que fosse ele próprio quem cedesse ao rancor...
Apresentaram-no também como um torturador
zeloso em atear fogueiras, um predecessor de Torquemada. É verdade que
concordou em que os hereges fossem entregues ao braço secular e queimados – o
que, é preciso dizê-lo, era a opinião mais difundida no seu tempo. Mas ele
próprio explicou a atitude que a Igreja deve assumir perante o erro: não deve
recorrer às armas sem mais nem menos, mas usar de todos os meios possíveis para
convencer os que erram. Se eles persistem no erro, isto é, se se tornam um
perigo público, então que se deixe “morrer os que preferem morrer a voltar para
Deus”.
Veremos o que foi nesta época a fermentação dos
erros, como se desenvolveram doutrinas confusas, de tendências neomaniqueístas,
sobretudo no Languedoc, com os albigenses. Alertado em 1143 pelo seu amigo
Evervin, preboste de Stanfeld, São Bernardo iniciou uma vigorosa polêmica
contra os partidários dessas doutrinas, principalmente Pedro de Bruys e
Henrique de Lausanne. Em 1145, acompanhou o legado Alberico ao Sul, pregou com
algum êxito e obrigou Henrique de Lausanne a fugir da discussão, impressionando
as multidões com o seu exemplo e os seus milagres, mas sem participar de
qualquer das violências insensatas que se desencadearam antes mesmo que a
propagação da heresia exigisse a dolorosa “cruzada dos albigenses”.
Bernardo, portanto, não só não foi um fanático,
como chegou até a mostrar, numa ocasião bem característica, que a defesa da
verdade cristã não poderia desvincular-se da defesa da caridade. Quando estava
em andamento a segunda Cruzada, um religioso da sua Ordem , chamado Rodolfo,
suscitou com a cumplicidade de certos nobres um movimento popular anti-semita,
que se espalhou por Colônia, Mogúncia, Worms, Spira e Estrasburgo. Informado do
que se passava, Bernardo deixou rapidamente Flandres, onde se encontrava
pregando a Guerra Santa, e correu ao Reno para impedir o massacre dos judeus.
Houve um caso, porém, em que ele pôde parecer
um fanático, e não somente um fanático, mas o típico monge “obscurantista” que
se opõe ao progresso: foi o célebre duelo contra Abelardo.
Não teria sentido apresentar São Bernardo como
um ignorante. Toda a sua obra testemunha uma imensa erudição, que não resiste
ao prazer de citar Estácio, Ovídio e Lucano ao correr da pena. Étienne Gilson
diz com toda a razão que São Bernardo “renunciou a tudo, menos à arte de bem
escrever”. A sua obra literária é de uma riqueza extraordinária, tanto em
quantidade – com não menos de trezentos e trinta e dois sermões e catorze
tratados, sem falar de uma correspondência de que possuímos ainda mais de
quinhentas cartas –, como em qualidade, em variedade e numa elegância por vezes
requintada. A sua Vida de São Malaquias, que nos ensina tantas coisas curiosas
sobre a Irlanda do século XII, o seu imenso Comentário ao Cântico dos Cânticos,
com noventa e seis sermões de uma fecundidade inesgotável, os seus tratados
dogmáticos tão seguros sobre o Conhecimento de Deus e sobre A graça e o
livre-arbítrio, as suas peças polêmicas tão mordazes, e o seu testamento
espiritual, o De consideratione, do qual tiramos atrás a sua definição dos
deveres dos Papas, são elementos extremamente diversos que nos dão a conhecer o
orador e o escritor. Aliás, longe de desprezar a inteligência e as suas
atividades, não dizia ele com bom humor: “Não convém que a Esposa do Verbo seja
estúpida”?
Acontece, porém, que, na ordem das faculdades
do conhecimento, São Bernardo deixava essas atividades da inteligência em
segundo plano. Para ele, não era nem pela dialética nem pela ciência que se
pode atingir o único objeto do conhecimento que merece ser atingido. Como o seu
amigo Guilherme de Saint-Thierry, pensava que “o amor humilde de um coração
puro vale mais do que a razão e as suas pesquisas sutis”. Antes de compreender
e explicar o dogma, é preciso vivê-lo... Esta é a essência do seu tratado sobre
o Conhecimento de Deus.
O princípio sobre o qual não transigia era,
pois, o de que a fé vivida é superior a todo o esforço da inteligência, e foi
para defendê-lo que entrou em conflito com Abelardo <1079-1142>.
Evocaremos mais adiante este homem extraordinário, uma das figuras mais
admiráveis do pensamento medieval. Mas do eremitério de Nogent-sur-Seine, onde
vivia com alguns discípulos, partiam idéias que dificilmente se conciliavam com
o princípio que acabamos de formular. Não que o grande filósofo fosse um ateu,
um livre-pensador, pois nessa época palavras como essas careciam de
significado. Tinha uma fé viva e falava de Cristo com uma ternura que o próprio
São Bernardo não teria desaprovado. Mas esse homem sentia-se devorado pela
paixão de pensar, como outros são devorados pelas paixões carnais. Dizia de si
mesmo que não podia ficar impassível perante um problema: era preciso
encontrar-lhe uma solução. Semelhante atitude, aplicada aos mistérios da fé,
arriscava-se a provocar catástrofes. Se se tivesse prestado ouvidos a esse
paladino da razão e do espírito crítico, que teria sobrado das afirmações
claras do dogma, dos princípios da fé? Apenas alguns temas para discussões
sutis, em que cada qual teria divagado a seu bel-prazer. Por uma evolução que
seria mais tarde a do racionalismo, ter-se-ia chegado a suprimir qualquer
distinção entre o que pertence à razão e o que a ultrapassa, entre o saber
humano e a Revelação.
Basta sabermos que era esse o fim visado pelos
ensinamentos de Abelardo – aliás, só mais ou menos conscientemente visado –,
para compreendermos os motivos que levaram São Bernardo a combatê-lo. Um dia, o
seu amigo Guilherme de Saint-Thierry remeteu-lhe a Teologia cristã de Abelardo,
dizendo-lhe simplesmente: “O vosso silêncio é um perigo”. A princípio, o abade
de Claraval tentou esquivar-se, argumentando que era muito pouco dialético para
enfrentar o melhor esgrimista da dialética. Mas em 1140, no meio de um grupo de
estudantes que a sua voz atraíra a Cister, encontrou um aluno de Abelardo e apercebeu-se
da influência nefasta do filósofo. O seu primeiro passo foi procurar agir
diretamente sobre o mestre, mas este, que estava no auge da fama, resistiu;
cortando as varas com que iriam bater-lhe, exigiu a convocação de um concílio
diante do qual defenderia as suas teses. O concílio teve lugar nesse mesmo ano
de 1140, em Sens, e São Bernardo compareceu a ele.
Os dois adversários viriam a tomar atitudes bem
diferentes. Um era intelectual, seguro de si, do seu pensamento e dos seus
métodos dialéticos; pulverizaria o monge borgonhês em dois tempos. O outro era
um espiritual, uma alma repleta de Deus, que não procurava a glória pessoal e
só queria dar testemunho da Palavra. Abelardo via no concílio uma espécie de
academia, diante da qual poderia entregar-se à esgrima das idéias; Bernardo
considerava-o um tribunal que devia julgar um suspeito. Por isso, o
cisterciense não permitiu que o seu adversário escolhesse o terreno e atacou-o
impetuosamente desde o primeiro momento. Afirmou que precisamente os assuntos
que Abelardo pretendia discutir não eram assuntos passíveis de discussão. A fé
ou se aceita ou se recusa; o dogma é um bloco e não pode ser desmanchado ao
gosto de cada um. Surpreendido por esse ataque, desconcertado, esmagado logo de
entrada sob uma saraivada de citações extraídas da Escritura, identificado
sucessivamente com Ário, Nestório e Pelágio, Abelardo sentiu que o terreno lhe
fugia debaixo dos pés e vacilou.
Nesse duelo, o homem do seu tempo, o cristão
medieval típico, era incontestavelmente São Bernardo. Representava a tendência
característica da época, segundo a qual o passado é o elemento exemplar e
decisivo em si, e a fé é o alfa e o ômega; já o seu adversário encarnava um
movimento audaciosa e, talvez, temerariamente progressista. É verdade que as
idéias de Abelardo viriam a desempenhar mais tarde um papel importante na
evolução do pensamento cristão; mas, hic et nunc, constituíam um perigo para
aquela sociedade cujo padrão era uma fé mais rígida. Há casos em que se pode
ser culpado simplesmente por estar excessivamente adiantado em relação ao
tempo.
Vencido, Abelardo tentou apelar do concílio
para o Papa, mas não teve tempo de chegar a Roma. Adoeceu em Cluny e a
condenação romana acabou de abatê-lo. Avisado do que se passava, São Bernardo
correu imediatamente para junto do adversário, a fim de que não levasse para o
túmulo a dor acerba dos golpes que recebera. Por intervenção de Pedro o
Venerável, os dois homens trocaram o ósculo da paz. Pouco depois, transferido
para o priorado de São Marcelo, junto de Châlon-sur-Saône, o antigo mestre do
Quartier latin era surpreendido “pelo visitante angélico, na santa oração e no
temor do Senhor”.
O HOMEM DE AÇÃO
Para dar a Cristo o seu pleno testemunho, São
Bernardo saíra, pois, da sua cela e lançara-se na batalha dos homens. Ao
proceder assim, pensava cumprir o seu dever. “Nunca me lamentarei”, escreveu
ele, “de ter interrompido uma meditação repousada, se vir germinar numa alma a
semente da Palavra”. Isto explica que esse contemplativo tenha sido paradoxalmente,
desde 1127 até à sua morte, sempre por montes e vales, uma “avezinha
desplumada, sempre exilada do seu ninho”, e que tenha desempenhado um papel de
primeiro plano em todos os grandes acontecimentos da sua época.
Não é que sentisse qualquer prazer nisso, nem
que procurasse ocasiões para figurar como vedete. Ao contrário, quando era
chamado a intervir, resistia, hesitava, esperava, refletia e queria saber com
detalhes por que tinham recorrido a ele. E se, por fim, aceitava, era para
obedecer às ordens de um superior, por caridade para com os seus irmãos e para
com a Igreja, ou por fidelidade à verdade e à justiça. Podia sentir-se
despedaçado entre o seu ideal monástico e a ação obsessiva a que se lançava,
mas sabia muito mais ao certo que, procedendo assim, era fiel àquilo que Deus
esperava dele e que obedecia à sua vocação. São Bernardo não foi um homem de
ação apesar de ser um místico, mas porque era um místico.
No jargão do nosso tempo, dir-se-ia que o
grande abade foi um homem “engajado”, comprometido, no sentido de que assumiu
riscos e enfrentou as mais perigosas barafundas. Mas esse “engajamento” que,
para tantos, esconde por trás de uma agitação estéril o vazio da alma, para ele
era conseqüência lógica desse outro compromisso, mais decisivo, que assumira
quando, aos vinte e um anos, batera à porta de Cister. E se chegou a ser, como
dizem, um “homem de Estado”, um homem político, toda a sua ação temporal se
resumiu em fazer triunfar os princípios da verdade e da eqüidade.
Seria impossível enumerar todos os casos em que
a intervenção de São Bernardo veio a ser decisiva. As ocasiões que teve de agir
podiam ser grandes ou pequenas, mas, a partir do momento em que os princípios
de Cristo eram violados, jamais pensava que estivesse perdendo o tempo. E,
quando entrava em ação, era verdadeiramente o homem de Deus, livre de qualquer
ressentimento, de qualquer preconceito pessoal <...>.
Dois grandes acontecimentos da época revelam
até que ponto chegava o prestígio do santo. O primeiro foi o cisma de Anacleto,
tristemente célebre. A forma como São Bernardo interveio é tão característica
do seu estilo e tão reveladora da sua influência que vale a pena contar o
episódio em pormenor.
O papa Honório II está à beira da morte. As
famílias Pierleone e Frangipani agitam-se no seio do Sacro Colégio. Arrastam o
moribundo até o mosteiro de São Gregório e expõem-no à multidão, que se agita.
O papa expira na noite de 13 para 14 de fevereiro de 1130, e seis cardeais, que
haviam permanecido no mosteiro, elegem Gregório de Sant´Angelo, partidário dos
Frangipani, que toma o nome de Inocêncio II. Outros cardeais confirmam a
escolha, mas o cardeal Pedro Pierleone, homem aliás notável e popular em Roma,
denuncia imediatamente a rapidez do processo, agrupa os seus amigos e faz-se
eleger sob o nome de Anacleto II. Os dois papas são sagrados em 23 de
fevereiro, um em Santa Maria Novella e o outro em São Pedro. Mas, como político
hábil que sabe distribuir ouro com arte consumada, Anacleto força o seu rival a
deixar Roma e Inocêncio vai para a França.
A Cristandade está com duas cabeças.
Canonicamente, o conflito é insolúvel, porque as duas eleições estão manchadas
de irregularidades. Os países dividem-se conforme os seus interesses. Luís VI
convoca um concílio para que delibere sobre os méritos dos dois pretendentes, e
manda chamar o abade de Claraval. Bernardo hesita, mas uma visão divina
convence-o a comparecer. Ei-lo, pois, árbitro da Igreja universal. Invoca
argumentos de três espécies a favor de Inocêncio II: é moralmente mais digno;
foi eleito pela parte “mais saudável” do Sacro Colégio, a maioria dos
cardeais-bispos, aos quais o decreto de Nicolau II confere, desde 1059, um
papel eminente na eleição do Pontífice; e foi sagrado pelo bispo de Óstia,
segundo a tradição. O concílio aceita a sentença e Luís VI proclama a sua
fidelidade a Inocêncio.
Mas de que serve essa decisão, se a Cristandade
permanece dividida? Bernardo quer ligar os outros Estados cristãos a Inocêncio
II. Encontra-se com o rei da Inglaterra, Henrique I Beauclerc, e vence as suas
reticências. Na Alemanha, paralelamente, São Norberto, então arcebispo de
Magdeburgo, traz Lotário <1070-1137, rei do Sacro Império Romano Germânico
de 1125-1137> para a boa causa: o papa e o rei da Germânia encontram-se em
Liège em março de 1131. O príncipe conduz o cavalo de Inocêncio e multiplica os
sinais de reverência; será para melhor preparar o terreno das reivindicações de
natureza demasiado política? Bernardo “opõe-se a isso como uma parede”, diz o
seu biógrafo, e Lotário promete reconduzir o papa a Roma. Entretanto, Inocêncio
passa por Claraval, onde partilha da humilde refeição dos monges. Em Reims,
Bernardo está ao lado do papa quando Aragão e Castela lhe prestam adesão.
Depois, intervém na Aquitânia, onde o duque Guilherme, arrastado pelo bispo
Gerardo de Angoulême, reconhecera Anacleto. O seu sucesso, porém, é efêmero;
Gerardo volta a estar por cima e obtém a sé de Bordeaux. Bernardo fustiga-o com
dura ironia e convence os seus sufragâneos a excomungá-lo.
Entretanto, Inocêncio chega à Itália, onde
Lotário enceta operações militares. Em janeiro de 1133, chama Bernardo para
reconciliar Gênova e Pisa, cujo entendimento é indispensável para neutralizar
Rogério II da Sicília que, desejoso de aumentar o seu poder, se declarara pragmaticamente
partidário de Anacleto. O cisterciense torna-se diplomata; prepara a paz, e o
povo de Gênova acolhe-o triunfalmente. Lotário, que se encontra a pouca
distância de Roma, fica sem dinheiro, e Bernardo pede subsídios ao rei da
Inglaterra e consegue-os. Por fim, em 30 de abril, Inocêncio entra na Cidade
Eterna e, em 4 de julho, coroa Lotário. Bernardo volta a toda a pressa para o
seu querido mosteiro, julgando ter concluído a sua tarefa.
Contudo, em setembro, privado do apoio do
exército imperial e assediado pelos soldados de Anacleto, que ocupam o castelo
de Sant´Angelo, Inocêncio tem que deixar Roma outra vez. Bernardo volta a
entrar em cena e, ao chegar às terras de Guilherme da Aquitânia, diz-lhe: “Só
existe uma Igreja: é a arca que contém a salvação do mundo; fora dela, por um
justo juízo de Deus, tudo deve perecer, como nas horas do Dilúvio”. Depois de
uma missa, a que teve de assistir fora da igreja, pois estava excomungado,
Guilherme reconcilia-se com Inocêncio. É o fim do cisma na França.
Mas a situação continua grave porque o antipapa
Anacleto acaba de coroar o normando Rogério II como rei da Sicília.
Paralelamente, Lotário, em conflito com os Hohenstaufen, vê-se impossibilitado
de empreender uma nova expedição ao sul dos Alpes. É preciso, portanto,
regularizar os assuntos alemães e Bernardo corre para lá. Em princípios de
1135, atravessa o Reno e aparece em Bamberg, onde o imperador recebe a
submissão dos seus inimigos. Depois, passando os Alpes em pleno inverno, desce
à Itália, em direção a Pisa, onde Inocêncio II convocou um concílio para
calcular os seus partidários. “São Bernardo”, diz um historiador da época, “foi
a alma do concílio”.
Anacleto é excomungado e as terras de Rogério
feridas de interdito. Delegados de Milão trazem a adesão da grande metrópole,
contanto que seja confirmada a deposição do orgulhoso arcebispo Anselmo. O
concílio concorda e manda Bernardo à Lombardia para prevenir qualquer
incidente. À sua passagem, a multidão agita-se, todos querem vê-lo, ouvi-lo,
tocá-lo e cortar um pedaço da sua túnica. Oferecem-lhe um arcebispado, mas ele
recusa. Por caminhos de montanha, escoltado por pastores, regressa a Claraval.
Terminou tudo? Ainda não. Trabalhava no Cântico
dos Cânticos, quando recebeu um novo apelo do papa e se dirigiu à Itália pela
terceira vez. O exército de Lotário conquistara quase toda a Península, mas
Anacleto ocupava firmemente certos bairros de Roma e Rogério era inexpugnável
na Sicília. Surgem conflitos entre o papa e o imperador a propósito da Apúlia e
do cargo de abade de Monte Cassino. Bernardo soluciona esses problemas e chega
até a governar a famosa abadia por algum tempo. Depois, em outubro de 1137,
como Lotário, decepcionado e doente, tivesse voltado para o Norte, Bernardo
concorda em negociar diretamente com Rogério. Está também muito mal de saúde;
ele próprio se compara ao “pálido espectro da morte”. No entanto, corre para
Salerno, a fim de encontrar-se com o rei da Sicília e com Pedro de Pisa, o
canonista, que apresenta a defesa de Anacleto. As exortações do santo em prol
da unidade da Igreja não convencem o rei, mas comovem o canonista, que vem
prostrar-se aos pés de Inocêncio.
Mas aproxima-se o fim. Lotário morre em 4 de
dezembro e Anacleto em 25 de janeiro de 1138. Alguns obstinados, entre os quais
o normando, fazem eleger um novo antipapa, Vítor IV. Este, porém, horroriza-se
com o seu sacrilégio e, uma noite, foge do palácio, procura Bernardo e implora
a clemência de Inocêncio II. Estava salvo, portanto, tudo aquilo que Bernardo
defendera. Pouco lhe importava que Rogério II, vitorioso sobre o exército
pontifício e tendo o papa à sua mercê, lhe extorquisse uma absolvição e o
reconhecimento da sua coroa. Bernardo só teria desejado que o pontífice
vencedor não abusasse do seu triunfo. Aconselhou moderação, mas não conseguiu
impedir as represálias que atingiram os partidários de Anacleto e o próprio
Pedro de Pisa. O seu último ato foi protestar com veemência, mas sem resultado.
Nessa luta de oito anos, em que esteve em jogo
nada menos do que a unidade da Igreja, Bernardo foi o grande combatente e o
verdadeiro vencedor. No entanto, no auge das honrarias e do triunfo, a que
aspirava o interlocutor dos monarcas, a figura central de tantas assembléias?
Única e exclusivamente à austera tranqüilidade da sua cela. “Volto a toda a
pressa”, escreve ele ao prior de Claraval, “e levo uma recompensa: a vitória de
Cristo e a paz da Igreja”.
Foi também a vitória de Cristo – e só ela – que
Bernardo teve em vista em outra ocasião em que a sua ação se tornou decisiva: a
segunda Cruzada. Não há quem não conheça a grandiosa cena: o monge de vestes
brancas que, do terraço de Vézelay, fala a uma multidão entusiasmada na Páscoa
de 1146, reacendendo a chama sagrada e lançando a Cristandade no segundo
episódio da batalha pelo Santo Sepulcro.
Havia já quase meio século que, depois de
tantos sofrimentos e à custa de tanto heroísmo, os barões de Godofredo de
Bulhões tinham tomado Jerusalém. Mas, depois do triunfo de 14 de julho de 1099,
tornara-se patente a fragilidade da conquista; o feudalismo levara para a Terra
Santa os seus hábitos de indisciplina. No final de 1144, Zenghi, governador
turco de Mossul, tendo-se tornado senhor de Alepo, tomava dos cristãos a cidade
de Edessa, posição avançada que vigiava o caminho para a Mesopotâmia; e no ano
seguinte, seu filho, Nur-ed-din, voltava a tomar Edessa, libertada por algum
tempo, e chacinava todos os seus habitantes. A Cristandade ficou transtornada
com os gritos de dor que lhe chegavam do Oriente.
O rei Luís VII sonhou então com uma grande
iniciativa que o levasse à celebridade. Uma primeira assembléia reunida em
Bourges mostrou-lhe, no entanto, que o entusiasmo da nobreza já não era como o
do século anterior. Avaliavam-se agora muito melhor os riscos e sabia-se o que
é que a aventura do Oriente representava em dinheiro e em sangue. Mas o que por
vezes faltava a Luís VII em prudência, sobrava-lhe em coragem. Marcou um
encontro com todos na colina de Vézelay e chamou São Bernardo.
O abade de Claraval era partidário da Cruzada,
sem dúvida, e, como sempre, por razões profundas, de ordem espiritual. No
entanto, era um homem demasiado ponderado para não adivinhar as dificuldades da
empresa. Quis contar com uma ordem do papa. Eugênio III – o antigo monge de
Claraval, que naquele momento enfrentava motins e intrigas romanas – demorou um
certo tempo a decidir-se, mas depois assinou a bula e Bernardo entrou em ação.
Pelos resultados, podemos imaginar o que foi o apelo do santo. As multidões,
sacudidas até à alma, reclamaram a honra de alistar-se sem mais delongas.
Faltou pano para as cruzes que cada um queria coser imediatamente nas próprias
vestes, e Bernardo teve que distribuir pedaços da sua túnica entre os que o
escutavam. Depois, prolongando a ação iniciada em Vézelay, começou a percorrer as
províncias para mobilizar o exército.
Visitou a Borgonha, Lorena e Flandres. Mandou
dizer ao conde da Bretanha: “Vamos, generoso soldado, cingi os vossos rins; não
abandoneis o vosso rei, o rei dos francos. Que digo? Não abandoneis o Rei dos
céus, pelo qual o rei dos francos empreende uma viagem tão laboriosa”.
Chegando às margens do Reno para conter os
massacres anti-semitas, aproveitou a ocasião e convidou Conrado III e os
alemães para a Cruzada. Em 27 de dezembro de 1146, conseguia que o soberano comandasse
o corpo germânico e entregava-lhe solenemente o estandarte sagrado. Ao mesmo
tempo, em Saint-Denis, Eugênio III entregava ao próprio Luís VII o bordão de
peregrino.
Que esta segunda Cruzada foi organizada com uma
leviandade espantosa e teve como resultado um fracasso é infelizmente a pura
verdade. Mas São Bernardo não teve nada que ver com os erros cometidos por Luís
VII e Conrado III. Sofreu muito com isso e, no De consideratione, sentiu a
necessidade de justificar o seu comportamento, acrescentando que o insucesso
não devia ser atribuído à Providência, mas aos erros dos cristãos. E concluiu
com estas palavras admiráveis: “Recebo de bom grado os ataques da maledicência
e os dardos envenenados da blasfêmia, para que não cheguem a Deus. Concordo em perder
a honra, desde que não se toque na glória divina”. A prova de que o seu
prestígio não foi atingido é que Suger, no momento em que a morte o
surpreendeu, amadurecia o projeto de uma Cruzada de desforra, cujo comando
efetivo queria confiar ao cisterciense. Nessa manifestação da Cristandade em
ação, São Bernardo foi, como em tudo, um elemento motor, um homem decisivo.
A imensidão da sua atividade deixa-nos
estupefactos, sobretudo se nos lembrarmos das condições em que viveu. As
viagens, naquele tempo, estavam muito longe de ser seguras e cômodas. Podemos
imaginar esse homem franzino, extenuado pelos jejuns, indo por etapas
intermináveis de Paris à Sicília, de Roma a Flandres e do Languedoc ao Reno? É
possível imaginá-lo atravessando os Alpes a cavalo, em pleno inverno? O seu
estado de saúde era sempre precário. Dormia mal e tinha o estômago tão avariado
que se via na necessidade de “reconfortá-lo sem cessar com um pouco de líquido,
pois o seu organismo continuava a rejeitar inexoravelmente todos os sólidos”.
Além disso, as mãos e os pés inchavam-lhe por menos que nada...
O ambiente moral em que desenvolveu a sua ação
não foi mais fácil. Não nos esqueçamos de que este santo, em cuja presença as
dificuldades pareciam esfumar-se, trabalhou no meio de uma humanidade em que
imperavam a astúcia, a violência, a ambição de poder e o interesse, tal como
nos nossos dias. Teve que vencer resistências e intrigas, mas de tudo saiu
vencedor.
Tudo isto prova não somente a sua santidade,
mas a sua genialidade. Ter até esse ponto o sentido dos homens e dos
acontecimentos; ser capaz de levar a bom termo tantas tarefas diferentes; saber
dirigir a imensa rede dos seus irmãos de hábito, de modo a estar sempre
devidamente informado e a conseguir que se cumprissem as suas instruções;
manter uma correspondência gigantesca com todas as figuras de proa na
Cristandade do Ocidente, sem nunca deixar de ser o homem de pensamento, de
oração e contemplação que conhecemos – eis o testemunho irrecusável de um valor
único. “Não conseguiremos avaliar a sua grandeza”, diz Pascal, “observando
apenas um dos extremos; é preciso olhar simultaneamente para os dois e abranger
o que se contém entre eles”.
Parte da admiração que se deve ao guia recai
sobre a sociedade que se deixou guiar. Uma vez que Bernardo era um homem
sobrenatural, considerava-se normal acatarem-se as suas ordens em questões que,
nos nossos dias, seriam ciosamente reservadas aos “especialistas”: política,
diplomacia, a própria economia. E, porque era um santo, que não dispunha de outras
armas além da sua palavra e podia ser detido à sua passagem pelo mais medíocre
fidalgote, os seus ditames e vereditos eram acolhidos pelos soberanos mais
altos. A sociedade dos nossos dias, que mais do que nunca considera a força
como a ultima ratio, bem poderia refletir sobre esta lição.
Daniel-Rops
Daniel-Rops (pseudônimo
literário de Henri Petiot) nasceu em Épinal, em 1901, e faleceu em Chambéry, em
1965. Foi professor de História e diretor da revista Ecclesia (Paris), e
tornou-se mundialmente famoso sobretudo pelas obras de historiografia que
publicou: a coleção História Sagrada, que abrange os volumes O povo bíblico
(1943), Jesus no seu tempo (1945) e os onze tomos desta História da Igreja de
Cristo (1948-65). Também foi autor de diversos ensaios, obras de literatura
infantil e romances históricos, entre os quais destacamos Morte, onde está a
tua vitória? (1934) e A espada de fogo (1938). Foi eleito para a Academia
Francesa em 1955.
Fonte: História da Igreja de
Cristo, Vol. III: A Igreja das catedrais e das cruzadas
Tradução: Quadrante
Link:
http://www.quadrante.com.br/