São Francisco

 

Por Giovanni Papini

 

Neste ensaio de 1922, o conhecido escritor italiano faz uma análise do que significou a humildade de São Francisco de Assis e de como ele conseguiu reformar a Igreja obedecendo desde o Papa até o último dos párocos.

 

I. O Cristianismo outra coisa não é senão a imitação de Cristo.

O verdadeiro cristão deve ser, o quanto pode, o máximo que pode, o copiador de Cristo, o plagiador de Cristo, a sombra de Cristo. Para ele, não há outro modo de viver a jornada terrestre como prenúncio da eternidade paradisíaca. Não temos outro dever além deste: pronunciar, de joelhos, os versículos do Evangelho e tomá-los como palavras de ordem todas as manhãs desta vida engolida, a cada instante, pela morte.

Deus desceu até nós e fez-se homem; o homem deve elevar-se até Ele e fazer-se Deus: fora deste percurso não há nada a não ser o espinheiro mesquinho das coisas e dos prazeres chamado de vida pelos bípedes porcos, e de nada pelos santos. Dii estis, proclamou o Espírito Santo pela boca de Asaf, poeta e profeta (Salmo 81, 2). E essa palavra, dirigida no Antigo Testamento aos juízes, pelo próprio Cristo foi estendida, no Novo, a todos aqueles a quem foi anunciada a Palavra de Deus. E, acrescenta o Filho, non potest solvi Scriptura (Jo 10, 34-35).

A divindade futura do homem é um dos mistérios mais luminosos em que apenas os anjos e os inspirados poderiam penetrar. Deus cria o homem à sua imagem e semelhança, e, portanto, quase divino, mas o Inimigo, sob a pele de um dos animais mais repugnantes, o seduz a fazer-se igual a Deus, fazendo-o descer da altura a que Deus o havia elevado. Para torná-lo capaz de reassumir essa sua posição original, é preciso um novo sedutor: o próprio Deus encarna-se na forma mais repugnante aos olhos do mundo – um pobre – a fim de convocar os homens à reconquista do Paraíso. Cristo é o reparador do mal produzido pela Serpente, e faz aos homens uma promessa similar àquela da velha Serpente do Jardim. Mas a semelhança é, quando se fixa o olhar mais profundamente, oposição. O demônio era o inimigo de Deus e ensinava, para se divinizar, o caminho da soberba e da ciência. Cristo é o filho de Deus, e ensina o caminho da humildade e do amor. “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste” (Mt 5, 48). Por aquela “lei dos contrários” que reinam no plano divino, não adquire tudo quem não se anula; não se pode obter o sumo bem senão partindo da alegre aceitação do mal; não se pode reinar senão depois de ter obedecido.

A Encarnação é o ato maior de humildade de Deus; a Redenção, a maior prova de amor. A imitação direta do Criador estaria acima das forças dos homens: Deus teve compaixão de nós e se manifestou na Segunda Pessoa, sob as vestes de um homem, para que fosse mais fácil, para nós, segui-lo e imitá-lo. A vida terrena de Cristo é como uma ponte lançada pela piedade divina para tornar mais suave nossa passagem da condenação à bem-aventurança. Ofereceu-nos um modelo vivo, apropriado aos nossos sentidos e à nossa vontade, para retornarmos do abismo da queda ao cume da transfiguração. E toda a vida do Cristianismo, com a pregação do Evangelho e o esplendor da Liturgia Romana, nada mais é do que um convite e um auxílio para imitar Cristo. Os livros que têm acompanhado a ascensão dos homens rumo à divindade – a começar pelo que traz como título precisamente “A Imitação de Cristo” até os “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio – não são outra coisa senão manuais para ensinar o cristão a imitar o Homem-Deus. Aqueles que melhor conseguiram se aproximar, ainda em vida, da divindade são os cristãos a que a Igreja denomina de santos, e um dos santos que mais consciência teve acerca do dever de tomar Cristo como modelo foi São Francisco de Assis.


II. Peço-te perdão, amigo leitor, por ter repetido, e mal, essas coisas que todos nós deveríamos saber porque são a substância e a essência do que têm dito, século após século, os grandes guias cristãos. Mas a ignorância dos desobedientes e a frieza dos praticantes mecanizados as escondem, e fazem-nos esquecer: até o abecedário, para muitíssimos, é novidade da última hora.

Não se pode compreender Francisco sem se voltar, como sempre, para Cristo. Isso porque, em Francisco se vê, de modo mais evidente, o segredo da santidade e a lei da necessária imitação.

Mais de mil anos haviam passado desde o sacrifício e o convite da Segunda Pessoa. O Evangelho havia sido anunciado a milhares de homens; toda cidade tinha seu bispo; em Roma sentava-se, de São Pedro em diante, o Procurador de Cristo; milhares e milhares de torres, de cúspides, de abóbadas, de campanários alçavam ao céu a ponta das cruzes, como se fossem lanças imóveis de um exército em oração; os túmulos dos santos eram gastos pelos joelhos e pelos beijos dos peregrinos. Contudo, Deus não estava contente. Muitos eram os cristãos só de fachada; a avareza e a ira nem sempre estavam mortas, nem mesmo nos corações dos que deviam extirpá-las de outros corações; e os santos, embora numerosos, eram ainda muito poucos, porque nem todos os batizados eram santos.

Deus teve piedade da nossa fraqueza, e até da nossa teimosia, e pensou em mandar à terra um outro Mediador; alguém que fosse mediador entre os homens e Cristo, como Cristo foi mediador entre os homens e Deus. Este novo Mediador deveria ser, ao contrário de Cristo, um verdadeiro homem, gerado por um homem, e apenas humano, com a missão de repetir, o quanto fosse possível à mera humanidade, o exemplo de Cristo, para que mais facilmente se pudesse, através dele, imitar Cristo, e, pela imitação de Cristo, reconciliar-se com Deus.

Cristo havia aparecido aos homens na forma de um homem, mas no homem Jesus estava presente, com a mesma realidade, o filho de Deus. Por mais que Deus se tivesse abaixado infinitamente à miséria das criaturas, ainda parecia muito alto e distante dos fracos, dos preguiçosos, dos tíbios. Então, Cristo, que jamais abandona os homens, que os ama com a perfeição do amor, mesmo se não O conhecem, fez nascer, sobre uma colina da Úmbria, próximo a um lago que Lhe recordava talvez a Sua Galiléia, o seu novo apóstolo Francisco. E o fez, tanto quanto é possível a um homem aproximar-se de Deus, semelhante a si. “Parece tarefa muito árdua imitar, vós que sois somente humanos, alguém que foi simultaneamente homem e Deus? E alguém que é homem como vós sois, um franzino homem da Itália, feioso na aparência, mortal como todos, submetido às vossas misérias, o qual vos mostrará que a vossa natureza, por mais que seja infeliz e inferior, é, contudo, capaz de conformar-se a um modelo divino?” A experiência de Francisco é encaminhamento para a experiência de Cristo: o que foi possível a um homem não deve ser impossível para ninguém.

E Francisco, de fato, repetiu na Itália, como pôde, as lições da Palestina; copiou a vida de Cristo como um estudante novato copia, com mão inábil e trêmula, a obra-prima do mestre. Não revelou novas verdades, mas anunciou novamente, com pregação de fatos, a verdade revelada doze séculos antes; não morreu na cruz, mas teve a graça inestimável de portar na sua carne os cinco estigmas de uma crucificação desejada. Francisco é uma paragem mediana entre os pecadores e Cristo, para que a retomada do céu a partir da lama se torne mais fácil. Assis está a meio caminho entre Gomorra e Jerusalém; o rochedo do Alverne – alusão ao Monte Alverne, local onde São Francisco recebeu os estigmas (N. do T.) – é um degrau escavado pelo amor no meio do Monte Calvário.

 

Há setecentos anos os Peregrinos do Absoluto não têm mais desculpa. São Francisco está à frente de Cristo, como uma senda em relação à Via Régia; como uma estampa de alguém vivo, feita à brasa; mas a sua vida, modelada pela vida do seu e de nosso Senhor, ensina-nos que a escada da santidade, fincada no lodo do pecado, conduz ao umbral do divino.


III. Tu conheces certamente a vida de São Francisco, e se não a conheces, procura-a nos Fioretti, no Speculum Perfectionis, nas Legenda trium sociorum, nas páginas de São Boaventura ou nas do amigo vivo de São Francisco, descido das nuvens da Dinamarca e do ateísmo para as luzes de Assis, na luminosa narrativa do poeta Johannes Joergensen. Eu gostaria apenas de recordar-te o sinal dominante, ou melhor, a causa primeira da santidade de Francisco.

Esforçando-se por imitar Cristo ao máximo, o santo de Assis não acreditava fazer nada além do estrito dever de todo cristão. Mas essa sua imitação teve a suprema recompensa dos estigmas precisamente porque ele se achava indigno de qualquer recompensa, porque redescobriu, com o instinto infalível da fé, o segredo eterno da perfeição: o desprezo de si mesmo. A palavra “humildade”, que é a exata, é freqüentemente desgastada pelo uso: chama-se “humilde” até aquele que não se coroa com suas próprias mãos ou que enrubesce diante de um elogio. A tradução autêntica da humildade dos santos é: nojo por si e pelo que se possui.

O Santo compreendeu que, para ter tudo, é preciso dar tudo; para alcançar o alto, é preciso persuadir-se de estar embaixo; para se aproximar da perfeição, é preciso reconhecer e confessar a própria infâmia; a fim de fazer lugar para a divindade, é necessário destruir o amor-próprio, por demais humano, raiz mestra da nossa natureza, princípio da satisfação e de todas as quedas.

São Francisco – precedido e seguido nisto por todos os santos – disse: Eu não sou nada. E Deus respondeu-lhe chamando-o ao cume do Paraíso, àquela vida que é verdadeira vida, àquela glória incomparável, que outra maior não há. Lê-se nos Fioretti, no capítulo X, a resposta de Francisco a frei Masseo, que se admirava porque todos andavam atrás deles: “Quereis saber por que a mim? Quereis saber por que todo mundo vem atrás de mim? Isto me vem daqueles olhos santíssimos de Deus, que em toda parte contemplam os bons e os maus: pois aqueles olhos santíssimos não viram dentre os pecadores nenhum mais vil, mais insuficiente, nenhum pecador maior do que eu; e para realizar esta obra maravilhosa que pretende fazer, não encontrou criatura mais abominável sobre a Terra; e por isso me elegeu, para confundir a nobreza, a soberba, a força, a beleza e a sabedoria do mundo...”

A forma mais heróica de humildade é a obediência – porque é a mais difícil, tanto mais difícil quanto maior é o talento, e Francisco obedeceu. Obedeceu a Deus quando o quis Seu; obedeceu aos Papas; obedeceu em tudo aos sacerdotes porque reconhecia neles, mesmo no mais indigno, os instrumentos designados para o milagre quotidiano. E efetivamente reformou a Igreja exatamente porque não se propôs, como os cismáticos cheios de orgulho, a reformá-la; porque começou a obedecer a todos os que têm autoridade dentro da Igreja, desde o pai universal de Roma até o último clérigo nos confins do mundo. Ele quis seguir, com simplicidade de coração, o antigo caminho já trilhado, e, por isso mesmo, inaugurou uma nova época na vida cristã. Este santo, um dos mais leais seguidores do Evangelho, não tem nada de ‘evangélico’ no sentido que tomam os excomungados ou afastados. Tudo aceitou: os mistérios mais árduos para a razão, assim como os sacrifícios mais duros para a carne, e ofereceu uma prova maravilhosa, ainda que não única, de que o suposto contraste entre o Evangelho e a Igreja, ao redor do qual divagam há séculos os hereges, é uma alucinação gerada pela jactância da soberba em delírio.

São Francisco soube unir, como tantos irmãos seus, a obediência ao Evangelho com a mais completa e humilde submissão à Igreja. É o santo dos pobres e dos carinhosos, mas é, ao mesmo tempo, o santo da regra e da disciplina: um Santo todo católico.


IV. Se houvesse algo no mundo que pudesse anuviar a santidade dos santos, eu diria, nestes dias, que é o destino e o jeito do filho de Pietro Bernadone (pai de São Francisco) tal como o descrevem aqueles menos afeitos a ouvi-lo e segui-lo.

Há meio século, e talvez mais, São Francisco é o único, da legião flamejante dos invasores do Paraíso, que encontrou graça diante dos olhos míopes dos cristãozinhos divididos e até de muitos blasfemos alegóricos a serviço do Demônio. A vida do “Pobre de Assis”, solertemente lapidada para dela retirar tudo o que há de sobrenatural, que enoja os delicadíssimos apêndices olfativos do “homens modernos”, é recebida com cordial condescendência entre os livros de que se podem convenientemente nutrir a senhora e o senhor que estão “à altura dos tempos”. Especialmente se esta vida for escrita por um calvinista, ou por um luterano, ou, ainda melhor, por um niilista festivo fantasiado de espiritual. Os que não crêem na existência de Cristo admitem, de boa vontade, a historicidade e, mesmo, retirando-lhe um tanto, a perfeição de Francisco; os reformadores tomaram-no, quase isolado de todos os heróis católicos, sob a benigna proteção de seu racionalismo; e os cristãos cegos como morcegos, nos quais o rato do esgoto quase sempre vence a águia do céu, olham Francisco como o santo predileto, o santo ideal, o santo perfeito, repreensão perpétua à sutileza dos teologismos e ao paganismo da Igreja. Os outros santos, estes arremedos de cristãos, ignoram-nos ou escutam-nos ao longe: São Bento, todo branco em cima da antiga montanha, é um nobre encarregado de uma fábrica de oração; São Domingos está vermelho pelo sangue dos hereges e pelas chamas das fogueiras; São Bernardo é uma voz que comanda e condena nas trevas da Idade Média; Santo Inácio é o lúgubre patriarca dos regicidas, e outros tantos disparates. Quanta ignorância visceral ocupa, nos nossos dias, as almas dos que gostariam de ser cristãos, mas não querem aceitar o Cristianismo perfeito, que inclui a obediência absoluta a Roma.

São Francisco, para esses, é o santo simples e acessível, o santo familiar e útil, o santo que desculpa tudo e todas as coisas, o santo que fala com os passarinhos e dá a mão aos lobos, o santo que não perde tempo com a dogmática e em seu lugar faz poesia; o santo, em suma, que, desfigurando-o à sua maneira, pode fazer o jogo desses heréticos diletantes que vagueiam em torno das flores da fé para se fazer passar por abelhas, quando são, na verdade, vespas que jamais produzirão mel.

Estes modernos amigos de São Francisco, os quais transformaram a figura dolorosa do Penitente da Porciúncula na imagem de um santinho penteadinho e sorridente, com um pombo no ombro, e converteram a chama que consome da sua misericórdia numa docilidade aguada para os gargarejos místicos dos letradinhos pálidos e anêmicos; e falsearam os sinais de sangue do estigmatizado como sendo tatuagens decorativas geradas pela imaginação; todos esses falsários da verdade franciscana deveriam enojar aqueles que amam em Francisco a humildade do imitador de Cristo e do dócil servo dos Bispos e Pontífices.

A estes cristãos simples que vão à Missa e se confessam, que rezam o Pai-Nosso e a Ave-Maria à noite e pela manhã, e não procuram na vida dos santos a bela literatura ou as delícias estéticas dos diletantes requintados ou as falsas justificações para os devaneios equivocados e indolentes; para estes cristãos simples que vislumbram no convertido de São Damião um santo companheiro dos santos e um homem irmão dos homens, o porta-estandarte de Cristo, e também o súdito de Roma, a eles se dirigem os Fioretti. Essa compilação, em linguagem ordinária, dos testemunhos e tradições a respeito de São Francisco não é apenas uma obra-prima da antiga prosa italiana e da literatura hagiográfica de todos os tempos, mas um livro de devoção, e como tal deve ser buscado e lido. Os professores empenham seu tempo – curto e precioso – à pesquisa das fontes, dos paralelos, das derivações, das formas gramaticais, dos coloridos dialéticos, das alusões históricas e geográficas, e afogam o cândido e límpido texto nos compartimentos estanques da filologia e da estilística. Nós, humildes seguidores de Cristo, buscamos Francisco, nos Fioretti, da maneira como a piedade de seus frades o viu. Há um certo tempo, os literatos tentam enquadrar este livreto milagroso na literatura; nós deixamos que o façam, na esperança de que algum desses bebedores de tinta e devoradores de pergaminho se aperceba, um dia, de que sob as palavras da lenda há um homem; que sob o homem há um espírito; que sob o espírito de Francisco há Cristo que chama, Cristo que pede, Cristo que quer e deseja também a eles, pobres almas cheias de dívidas, e, talvez, insolventes.

 

Giovanni Papini
(1881 - 1956) Um dos maiores autores italianos do século XX, escreveu contos, ensaios e biografias. Em cada um dos seus livros, podemos encontrar o seu bom humor aliado a uma simplicidade de olhar que permite captar coisas aparentemente óbvias, mas que passam desapercebidas à maioria das pessoas.

 

Tradução: Sofia Mentz Albrecht

Fonte: http://www.quadrante.com.br/