A paternidade do bispo para com os presbíteros

 

(Conferência do cardeal Cláudio Hummes no “Seminário de Atualização da Congregação para a Evangelização dos Povos”, voltado a bispos com menos de três anos de ordenação episcopal; Roma, Pontifício Colégio São Paulo Apóstolo, 13 de setembro de 2008)

 

Caríssimos e venerandos irmãos no Episcopado!

Agradeço de coração a Sua Eminência, o sr. cardeal Ivan Dias, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, pelo convite para lhes falar, neste seminário, sobre a “Paternidade dos bispos para com os presbíteros”. Cumprimento a todos vocês e, por intermédio de suas pessoas, dirijo minha pessoal e grata saudação a todos os sacerdotes de suas Igrejas particulares.

Nossos presbíteros precisam hoje de uma atenção toda especial e amorosa. Em muitos países, seu número diminui cada vez mais e sua média de idade subiu muito. Além disso, a sociedade atual, pós-moderna, secularista e laicista, relativista e indiferente em relação à religião, torna cada vez mais difícil e exigente o trabalho e a vida dos sacerdotes. É verdade que há ainda algumas regiões do mundo em que a religiosidade continua forte e grandemente disseminada, às vezes até com um número crescente de sacerdotes. Porém, nessas mesmas regiões, outros problemas graves desafiam com freqüência o ministério dos sacerdotes, como, por exemplo, a pobreza e a miséria material de grande parte do povo, a falta de recursos e condições necessárias para uma boa infra-estrutura pastoral e, não raro, o ativismo proselitista das seitas, muitas vezes profundamente anticatólicas. Não podemos nos esquecer, ainda, de que vem chegando a essas regiões, pouco a pouco, sobretudo por intermédio dos meios de comunicação e da mobilidade humana, e de um modo cada vez mais desconcertante, a atual cultura pós-moderna, mundialmente dominante.

Além de tudo, existem os problemas dos desvios e dos abusos sexuais, problemas tão sublinhados e por vezes até superdimensionados pela mídia, nos últimos anos, embora digam respeito a uma pequena parte do clero. O mais grave desses problemas, sem dúvida, é o da pedofilia, em primeiro lugar por suas vítimas, as crianças, que ficam traumatizadas e carregam feridas em sua personalidade pelo resto da vida. Mesmo que houvesse um único caso, isso já seria gravíssimo e profundamente preocupante para a Igreja. Infelizmente, não se trata somente de um ou outro caso isolado. Seja como for, devemos dizer em alto e bom som que os sacerdotes envolvidos nesses problemas mais graves são uma parte mínima do clero. Há ainda um certo número de sacerdotes que não respeita o celibato ou está envolvido com a homossexualidade. Esses também são problemas que os bispos têm de buscar sanar, segundo as orientações da Igreja. Mas a esmagadora maioria de nossos presbíteros é constituída de homens generosos e incansáveis na doação de sua vida e de todas as suas energias, com grande sacrifício humano, em favor do povo, especialmente a serviço dos pobres e dos marginalizados, daqueles que sofreram injustiças e dos desesperados. A esmagadora maioria, repito, apesar das fraquezas ordinárias e das limitações humanas, que todos possuímos, são sacerdotes fiéis a sua vocação e missão, fiéis e zelosos no desenvolvimento de seu ministério e na entrega total de seu ser ao Senhor e a seu Reino. Por isso, não obstante essa pequena parcela de presbíteros “problemáticos”, podemos e devemos ter orgulho de nossos sacerdotes e demonstrar a eles o orgulho que temos, como os admiramos e até veneramos e amamos realmente, com grande gratidão.

Nesse sentido, é realmente importante que os bispos sejam pais de seus sacerdotes. Comecemos por recordar que nossos presbíteros, graças à ordenação presbiteral, são nossos “necessários colaboradores e conselheiros no ministério e na função de instruir, santificar e governar o Povo de Deus”, como afirma a Presbyterorum ordinis (n. 7). Não nos podemos esquecer de que nossos sacerdotes nos foram doados em Cristo por Deus Pai, para o bem da Igreja e para a salvação de todos os homens, como “sábios colaboradores” (Lumen gentium, 28) e como “irmãos e amigos” (Presbyterorum ordinis, 7).

Lemos no Diretório para o ministério pastoral dos bispos (2004): “Vigário e grande Pastor das ovelhas (Hb 13,20), o bispo deve manifestar com sua vida e com seu ministério episcopal a paternidade de Deus, a bondade, a solicitude, a misericórdia, a doçura e a autoridade de Cristo, que veio para dar a vida e para fazer de todos os homens uma só família, reconciliada no amor do Pai” (DMPV, 1).

Eu gostaria de tocar apenas brevemente a questão do fundamento teológico da paternidade do bispo para com seus presbíteros. Trata-se fundamentalmente de uma communio sacramentalis. “O Senhor Jesus, no começo de sua missão, depois de ter orado ao Pai, constituiu doze Apóstolos para que ficassem com Ele e para os enviar a pregar o Reino de Deus e a expulsar os demônios [como diz Mc 3,14-15]. Os Doze foram escolhidos por Jesus como um colégio indivisível, tendo Pedro à cabeça, e foi precisamente assim que cumpriram sua missão, começando por Jerusalém (cf. Lc 24,46), e depois como testemunhas diretas de Sua ressurreição para todos os povos da terra (cf. Mc 16,20)” (DMPV, 9).

Os Doze, por sua vez, para que o ministério apostólico recebido de Cristo não se extinguisse com a morte deles, mas perdurasse através dos tempos, impuseram as mãos sobre colaboradores escolhidos e invocaram sobre eles o Espírito Santo, tornando-os, assim, participantes desse ministério. Em seguida, os sucessores dos Apóstolos, ou seja, os bispos, transmitiram também, da mesma forma, o ministério apostólico àqueles que os viriam a suceder através dos séculos, até os dias de hoje.

O documento Lumen gentium (LG), do Concílio Vaticano II, acrescenta: “[Os bispos] transmitiram legitimamente o múnus de seu ministério em grau diverso e a diversos sujeitos. Assim, o ministério eclesiástico, instituído por Deus, é exercido em ordens diversas por aqueles que desde a antiguidade são chamados bispos, presbíteros e diáconos. Os presbíteros, embora não possuam o fastígio do pontificado e dependam dos bispos no exercício do próprio poder, estão-lhes, porém, unidos na honra do sacerdócio e, por virtude do sacramento da ordem, são consagrados, à imagem de Cristo, sumo e eterno sacerdote (cf. Hb 5,1-10; 7,24; 9,11-28), para pregar o Evangelho, apascentar os fiéis e celebrar o culto divino, como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento” (LG, 28). Logo depois, a Lumen gentium diz que os presbíteros “constituem com seu bispo um único presbitério, com diversas funções” e que nas comunidades que lhes são confiadas, “tornam de algum modo presente o bispo, ao qual estão associados com ânimo fiel e generoso”. Por isso, “reconheçam os presbíteros o bispo verdadeiramente como pai, e obedeçam-lhe com reverência. O bispo, por seu lado, considere os sacerdotes, seus colaboradores, como filhos e amigos” (cf. LG, 28).

O documento conciliar Christus Dominus fala da paternidade do bispo, dizendo: “Todos os presbíteros, quer diocesanos quer religiosos, participam e exercem com o bispo o sacerdócio único de Cristo; estão, pois, constituídos cooperadores providentes da ordem episcopal. [...] Constituem, por isso, um só presbitério e uma só família, de que o bispo é o pai” (n. 28).

O Concílio aponta como fundamento da paternidade do bispo para com seus presbíteros uma communio sacramentalis, ou seja, o fundamento é o sacramento da ordem, que o bispo recebeu em sua plenitude, como sucessor dos apóstolos, tornando, depois, participantes desse seu sacerdócio, “em grau subordinado” (PO, 2), outros homens da comunidade, pela imposição das mãos e a invocação do Espírito Santo sobre eles. Estes são os presbíteros, dos quais o bispo é, portanto, de certa forma o pai. O bispo, dirigindo-se a seus presbíteros, pode exclamar com o apóstolo Paulo aos coríntios: “Fui eu que vos gerei” (1Cor 4,15).

Vemos, dessa forma, com maior profundidade, que nossa paternidade episcopal não é uma simples atitude virtuosa ou uma escolha nossa: é ao mesmo tempo dom sacramental e mistério da graça em Cristo. Segue-se disso que a paternidade episcopal está relacionada a todo o ministério episcopal, segundo suas três dimensões, que são ensinar, santificar e governar, dimensões estas que participam do triplo múnus – cultual, profético e real – do Sumo Sacerdócio de Cristo, único mediador das “insondáveis riquezas” (Ef 3,8) para nossa salvação.

O atributo “pai”, relacionado aos bispos, encontra-se já na patrística primitiva, especialmente a partir do século III. O mártir Santo Inácio de Antioquia, falando às comunidades cristãs primitivas sobre como o bispo participa de modo especial da paternidade divina, escreveu aos tralianos: “De modo semelhante, todos respeitem [...] o bispo, que é a imagem do Pai” (n. 3); aos cristãos de Magnésia, escreveu: “Soube que vossos santos presbíteros [...], sábios em Deus, são submissos a ele [ao bispo]; realmente, não a ele, mas ao Pai de Jesus Cristo, que é o Bispo de todos” (n. 3). À comunidade de Esmirna, escreveu: “Segui todos o bispo, como Jesus Cristo segue o Pai” (n. 8).

O bispo, no exercício de seu ministério de pai e pastor, em primeiro lugar perante seus sacerdotes, deve ser sempre como aquele que serve, tendo sob os olhos o exemplo de Jesus Cristo, que veio não para ser servido, mas para servir. O Senhor, quando lavou os pés de seus discípulos, disse a eles e a todos nós, bispos: “Dei-vos o exemplo” (Jo 13,15).

O já citado documento Christus Dominus, falando dos presbíteros, recomenda a seus bispos que, como pais, “mostrando-se prontos a ouvi-los e tratando-os com confiança, [...] preocupem-se com as condições espirituais, intelectuais e materiais dos mesmos, para que possam viver santa e piamente, e exercer com fidelidade e fruto o seu ministério” (n. 16).

Na medida do possível, o bispo deve abrir sua agenda a qualquer um dos sacerdotes, a cada qual individualmente, numa sincera busca de colaboração e crescimento humano e espiritual. Crescerá assim no bispo o interesse sincero por conhecer realmente a situação concreta do sacerdote. Começará a avaliar mais corretamente as diversas circunstâncias nas quais o sacerdote pode se encontrar: sua solidão, seu cansaço, seus sofrimentos, o desânimo, a confusão, ou, positivamente, seu zelo pastoral, suas atividades apostólicas, suas iniciativas, suas capacidades, suas aspirações e alegrias, além dos frutos de seu trabalho sacerdotal.

“Importa dar atenção ao perigo do hábito e do cansaço que os anos de trabalho ou as dificuldades inerentes ao ministério possam causar. [...] O Bispo estudará, caso a caso, a forma de recuperação espiritual, intelectual e física, que ajude a retomar o ministério com renovada energia” (DMPV, 81).

Isso pode acontecer quando o sacerdote se desgasta e se cansa por enfermidade ou por esgotamento moral. Às vezes, o sacerdote que se ocupa somente com sua autorrealização pode chegar a um estado de abandono e de tédio, e seu ministério, deixando de ser serviço, passa a ser carreirismo. Podem então despontar no presbítero a soberba, a indignação ou a arrogância.

O bispo deve enfrentar sempre com compreensão e benevolência essas dificuldades; melhor ainda, deve sair em socorro dos sacerdotes, em todas as dificuldades de ordem humana e espiritual que estes podem encontrar no exercício de seu ministério. Quando pudermos dizer que a dor e a alegria do sacerdote fazem parte do próprio patrimônio interior do bispo, não apenas este amará, mas, certamente, será também amado por seus sacerdotes. O bispo, então, poderá exclamar com São Paulo: “Quem é fraco, que eu também não seja fraco com ele? Quem é escandalizado, que eu não fique ardendo de indignação?” (2Cor 11,29).

Nesse sentido, gostaria de recordar que a compreensão, a misericórdia e o perdão são parte integrante da caridade de um bispo que é pai. Na relação com seus presbíteros, a misericórdia, de modo particular, deve ser considerada e vivida pelo bispo à luz de Cristo. Dessa forma, os sacerdotes nunca estarão sozinhos.

Quanto aos sacerdotes que às vezes, infelizmente, incorrem em grave culpa também perante a lei civil, no que concerne a seus deveres sacerdotais e humanos, o bispo deve em primeiro lugar ver, tomar providências e reconhecer as feridas e os direitos lesados das vítimas, em especial quando se trata de menores e crianças, como no caso da pedofilia e de outros abusos, que são crimes na lei canônica e na lei civil. Conhecemos a posição firme e lúcida de nosso amado papa Bento XVI a respeito dos padres pedófilos. Na Austrália, o Papa falou da “vergonha que todos sentimos depois dos abusos sexuais sobre menores cometidos por alguns sacerdotes e religiosos desta nação. Lamento verdadeira e profundamente as moléstias e sofrimentos que as vítimas suportaram e asseguro-lhes, como seu Pastor, que também eu compartilho o seu sofrimento. Esses agravos, que constituem tão grave traição da confiança, devem ser condenados de modo inequívoco. [...] As vítimas devem receber de vós compaixão e tratamento e os responsáveis desses males devem ser levados diante da justiça” (Homilia durante a celebração da eucaristia com bispos, seminaristas, noviços e noviças, 19 de julho de 2008). Já antes, em sua viagem aos Estados Unidos, Bento XVI havia dito: “Excluiremos rigorosamente os pedófilos do ministério sagrado: é absolutamente incompatível, e quem é realmente culpado de ser pedófilo não pode ser sacerdote. Nesse primeiro nível podemos fazer justiça e ajudar as vítimas, que são profundamente provadas. E estes são os dois aspectos da justiça: um é que os pedófilos não podem ser sacerdotes e o outro é ajudar as vítimas de todas as formas possíveis. Depois, há o nível pastoral. As vítimas terão necessidade de tratamento, de ajuda, de assistência e reconciliação. Este é um grande compromisso pastoral, e sei que os bispos e os sacerdotes, e todos os católicos nos Estados Unidos, farão o possível para ajudar, assistir, curar” (Entrevista de Bento XVI aos jornalistas durante o vôo para os EUA, 15 de abril de 2008).

Nesta altura, parece-me importante dizer uma palavra sobre o celibato sacerdotal. Jesus Cristo escolheu não se casar e viver a virgindade perfeita. Paulo VI, na encíclica Sacerdotalis caelibatus (1967), explica: “Cristo manteve-se toda a vida no estado de virgindade, o que significa sua dedicação total ao serviço de Deus e dos homens. Esse nexo profundo, em Cristo, entre virgindade e sacerdócio reflete-se também naqueles que têm a sorte de participar da dignidade e da missão do Mediador e Sacerdote eterno, e essa participação será tanto mais perfeita quanto o ministro sagrado estiver mais livre dos vínculos da carne e do sangue” (SC, 21). A mesma encíclica apresenta três razões para o celibato sacerdotal: seu significado cristológico, seu significado eclesiológico e seu significado escatológico.

Comecemos pelo significado cristológico. Cristo é novidade. Realiza uma nova criação. Seu sacerdócio é novo. Cristo renova todas as coisas. Jesus, o Filho unigênito do Pai, enviado ao mundo, “fez-se homem para que a humanidade, sujeita ao pecado e à morte, fosse regenerada e, por meio dum nascimento novo, entrasse no reino dos céus. Consagrando-se inteiramente à vontade do Pai, Jesus realizou, por meio de seu mistério pascal, essa nova criação, introduzindo no tempo e no mundo uma forma de vida, sublime e divina, que transforma a condição terrena da humanidade” (SC, 19).

O próprio matrimônio natural, abençoado por Deus desde a criação, mas depois ferido pelo pecado, foi renovado por Cristo, que “elevou-o à dignidade de sacramento e de sinal misterioso da sua união com a Igreja. [...] Cristo, Mediador dum Testamento mais excelente, abriu também novo caminho, em que a criatura humana, unindo-se total e diretamente ao Senhor e preocupada apenas com Ele e com as coisas que lhe dizem respeito, manifesta de maneira mais clara e completa a realidade profundamente inovadora do Novo Testamento” (SC, 20).

Essa novidade, esse novo caminho, é a vida em virgindade, que o próprio Jesus viveu, em harmonia com sua tarefa de mediador entre o céu e a terra, entre o Pai e o gênero humano. “Em plena harmonia com essa missão, Cristo manteve-se toda a vida no estado de virgindade, o que significa sua dedicação total ao serviço de Deus e dos homens” (SC, 21). Estar a serviço de Deus e dos homens significa viver um amor total e sem reservas, amor que marcou a vida de Jesus no meio de nós. Ou seja, virgindade por amor ao Reino de Deus.

Cristo, chamando seus sacerdotes a serem ministros da salvação, ou seja, da nova criação, chama-os a serem e viverem em novidade de vida, unidos e semelhantes a Ele, na forma mais perfeita possível. Disso se origina o dom do celibato, como conformação mais plena ao Senhor Jesus e profecia da nova criação. Dessa forma, chegamos ao significado escatológico do celibato, na medida em que é sinal e profecia do Reino definitivo de Deus na Parusia, quando todos nós ressuscitaremos da morte. Como ensina o Concílio Vaticano II, a Igreja “constitui o germe e o princípio deste Reino na terra” (LG, 5). A virgindade, vivida por amor ao Reino de Deus, constitui um sinal particular dos “últimos tempos”, de forma que o Senhor anunciou que “na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas são todos como os anjos no céu” (Mt 22,30). Num mundo como o nosso, mundo de espetáculos e de prazeres fáceis, profundamente fascinado pelas coisas terrenas, especialmente pelo progresso das ciências e das tecnologias – lembremos as ciências biológicas e biotecnológicas –, o anúncio de um além, ou seja, de um mundo futuro, de uma Parusia, como acontecimento definitivo de uma nova criação, é decisivo. Um anúncio assim livra da ambigüidade das aporias, da celeuma, das contradições em relação aos verdadeiros bens e aos novos conhecimentos científicos que o progresso humano traz consigo.

Enfim, o significado eclesiológico do celibato nos leva mais diretamente à atividade pastoral do sacerdote. A encíclica Sacerdotalis caelibatus afirma: “A virgindade consagrada dos sacerdotes manifesta, de fato, o amor virginal de Cristo para com a Igreja e a fecundidade virginal e sobrenatural dessa união” (SC, 26). O sacerdote, semelhante a Cristo e em Cristo, desposa misticamente a Igreja, com um amor exclusivo. Assim, dedicando-se totalmente às coisas de Cristo e de seu Corpo místico, o sacerdote adquire uma ampla liberdade espiritual para se entregar ao serviço amoroso e integral de todos os homens, sem distinção. “Assim, o sacerdote, na morte cotidiana de toda a sua pessoa, na renúncia ao amor legítimo de uma família própria, por amor de Jesus e do seu reino, encontrará a glória duma vida em Cristo pleníssima e fecunda, porque, como Ele e n’Ele, ama e se entrega a todos os filhos de Deus” (SC, 30).

A encíclica acrescenta ainda que o celibato aumenta a idoneidade do sacerdote mediante a escuta da palavra de Deus e a oração, e o torna capaz de pôr sobre o altar toda a sua vida, marcada pelo sacrifício. Aqui já estamos no âmbito da espiritualidade sacerdotal. Assim, a encíclica fala dos meios que permitem a fidelidade ao celibato. Entre outros, sublinha a importância da formação espiritual do sacerdote, chamado a ser “testemunha do Absoluto”. Nesse sentido, são fundamentais tanto os anos da formação remota, vivida em família, quanto, e sobretudo, os anos da formação no seminário, verdadeira escola de amor, em que, como comunidade apostólica, os jovens seminaristas devem manter uma relação de intimidade com Jesus, à espera do dom do Espírito Santo para o envio em missão. A espiritualidade do sacerdote, por conseguinte, é a de uma vida intimamente unida a Jesus numa relação de comunhão interior que deve tomar a forma de uma amizade. A vida do sacerdote, no fundo, é uma forma de viver que seria inconcebível sem Cristo. Justamente nisso consiste a força de seu testemunho: a virgindade para o Reino de Deus é um dado real que Cristo viveu e torna possível. Só será capaz de ser testemunha do Absoluto aquele que tem Cristo como amigo e Senhor e, assim, goza de sua comunhão. Por isso, a Sacerdotalis caelibatus diz: “Antes de mais nada, procure o sacerdote cultivar, com todo o amor que a divina graça lhe inspira, a intimidade com Cristo, tirando todo o proveito desse inexaurível e beatificante mistério. Procure igualmente adquirir conhecimento sempre mais profundo do mistério da Igreja, pois fora desse contexto o seu estado de vida correria o risco de parecer-lhe inconsistente e incôngruo” (SC, 75).

Além da formação e do amor a Cristo, um elemento essencial para viver o celibato é a paixão pelo Reino de Deus, que significa a capacidade de trabalhar com diligência e sem poupar esforços para que Cristo seja conhecido, amado e seguido. Acrescentamos que o sacerdote, para viver o celibato, deve ser um homem de oração, tanto comunitária quanto pessoal. A celebração diária da Eucaristia, a “lectio divina”, ou seja, a leitura orante da Bíblia, em especial dos Evangelhos, o Ofício Divino das Horas integral, a adoração eucarística, a confissão freqüente, a relação devota e afetuosa com Maria Santíssima, a oração do Rosário, os exercícios espirituais são alguns meios e sinais de um amor que, se faltasse, poderia vir a ser substituído por sucedâneos, às vezes vis, como a busca vaidosa de uma imagem pessoal exterior, da carreira, do dinheiro, da sexualidade.

A matéria do celibato sacerdotal é um campo em que a paternidade do bispo deve se empenhar de modo especial junto a seus presbíteros. É preciso sempre renovar no sacerdote a consciência das razões do celibato sacerdotal exigido pela Igreja latina, ou seja, seus significados cristológico, eclesiológico e escatológico. A Igreja ensina que o celibato é um dom, um carisma, que Deus concede a alguns de seus discípulos e discípulas, tanto pela vida consagrada quanto pela vida sacerdotal. A Igreja latina exige esse carisma dos candidatos ao sacerdócio. Em relação a eles, trata-se também de uma lei canônica, mas, em sua natureza profunda, devemos reconhecê-la como mais que uma obrigação canônica, como um dom de Deus. Um dom que o bispo deve ser capaz de discernir no candidato às ordens; do contrário, não o deve ordenar. Todavia, a experiência demonstra que existem sacerdotes que, depois de ordenados, tornam-se infiéis ao celibato. Isso talvez se dê porque nunca receberam esse carisma e, no tempo da formação no seminário, houve um erro de discernimento. Esses não deveriam ter sido ordenados.

Há também outros que, ao que tudo indica, receberam esse carisma, mas, durante a vida sacerdotal, por diversos motivos e circunstâncias, o perderam. A experiência demonstra também que a perda do carisma do celibato ocorre muitas vezes por falta de espiritualidade, o que leva a um enfraquecimento da fé, até que essa desaparece e, assim, o sacerdote perde o verdadeiro sentido do celibato por amor ao Reino de Deus. De outro lado, quando analisamos a atual sociedade pós-moderna e sua cultura, e outras culturas tradicionais em alguns países, devemos concluir que estas não favorecem a compreensão e a vivência do sentido profundo do celibato sacerdotal. Pelo contrário, são adversas, quando não o ridicularizam. Tudo isso mostra a grande necessidade de ajudar os presbíteros a entender o sentido de seu celibato e a vivê-lo no mundo atual. O bispo, portanto, deve acompanhar muito de perto seus presbíteros e oferecer a eles toda a ajuda possível nessa questão.

Neste Ano Paulino, convém recordar o exemplo da relação paterna de Paulo com Timóteo e Tito. Tal exemplo pode servir de inspiração na relação do bispo com seus presbíteros. Paulo, na Primeira Carta a Timóteo, chama-o “verdadeiro filho na fé” (1Tm 1,2) e lhe diz: “Esta é a instrução que te confio, Timóteo, meu filho, segundo as profecias pronunciadas outrora sobre ti: combate, firmado nelas, o bom combate, com fé e boa consciência” (1Tm 1,18-19). “Tu, que és um homem de Deus, [...] procura a justiça, a piedade, a fé, o amor, a firmeza, a mansidão. Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e pela qual fizeste tua nobre profissão de fé diante de muitas testemunhas” (1Tm 6,11-12). Na Segunda Carta, reaparece, cheio de emoção, o coração paterno de Paulo em relação a Timóteo, quando Paulo lhe diz: “Dou graças a Deus [...], quando me lembro de ti, dia e noite, nas minhas orações. Lembrando-me das tuas lágrimas, sinto grande desejo de rever-te, e assim ficar cheio de alegria. [...] Por este motivo, exorto-te a reavivar a chama do dom de Deus que recebeste pela imposição das minhas mãos. Pois Deus não nos deu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de amor e sobriedade. Não te envergonhes do testemunho de Nosso Senhor nem de mim, seu prisioneiro, mas sofre comigo pelo Evangelho, fortificado pelo poder de Deus” (2Tm 1,3-4.6-8).

Também a Tito, Paulo chama “meu legítimo filho” (Tt 1,4) e lhe recomenda fervorosamente: “O teu ensino seja conforme à sã doutrina” (Tt 2,1); “dize-lhes todas estas coisas. Exorta-os e repreende-os com toda a autoridade. Ninguém te despreze” (Tt 2,15).

Essas expressões paternais do apóstolo Paulo a respeito de Timóteo e Tito nos ajudam a ver nossos sacerdotes como verdadeiros filhos, que de nós esperam a lembrança cotidiana na oração, o exemplo, o estímulo, o apoio, a orientação segura e sábia, a compreensão, o amor concreto.

Caríssimos irmãos bispos, permitam-me acrescentar ainda, de modo sintético, alguns aspectos da vida e do ministério dos presbíteros que mereceriam uma atenção especial dos bispos. Em primeiro lugar, a espiritualidade dos presbíteros. Sua importância se baseia no fato de que a vocação e o ministério dos presbíteros só se tornam compreensíveis a partir da fé em Jesus Cristo e de Sua missão no mundo. Só no horizonte de Jesus Cristo encontramos a verdadeira luz para entender o presbítero. Trata-se de uma vocação e de um ministério nascidos de Jesus Cristo, e isso significa uma participação da própria missão salvadora de Cristo-Pastor. Assim, estamos aqui realmente diante do mistério de Deus e de Seu projeto de salvação da humanidade. Isso indica, desde o início, a necessária relação pessoal e ministerial do presbítero com Jesus Cristo, e sua conformação sempre renovada a Ele, o Bom Pastor, mediante a obra do Espírito. O sempre citado texto do Evangelho de Marcos sobre a vocação dos Doze indica claramente a questão. Lemos nessa passagem: “Jesus subiu à montanha, e chamou a si os que ele queria, e eles foram até ele. E constituiu Doze, para que ficassem com ele, para enviá-los a pregar, e terem autoridade para expulsar os demônios” (Mc 3,13-14). Assim, o presbítero, que foi feito participante do ministério apostólico, é chamado a ser um especial discípulo do Senhor: “Ficar com Ele”. Esse “ficar” é o nó do discipulado, como também da espiritualidade do presbítero.

Todos sabemos que sem uma profunda espiritualidade nenhum sacerdote será feliz em sua vocação e missão. Não encontrará um sentido suficiente para ir adiante em seu caminho. Quando consideramos, então, que os sacerdotes devem viver o celibato, entendemos ainda mais o quanto será necessária para isso uma espiritualidade profunda, sadia, sólida e adulta.

Um outro aspecto da vida e do ministério dos presbíteros, hoje cada vez mais sublinhado, é sua missionariedade. A Igreja hoje tem forte consciência da urgência missionária, não apenas no sentido da missão ad gentes, mas também de uma evangelização especificamente missionária nos países em que a Igreja está estabelecida há séculos. Trata-se de alcançar novamente, com a pregação do kerigma cristão, àqueles nossos batizados que por diversos motivos se afastaram da participação da vida da comunidade eclesial. Alcançá-los significa pôr-se de pé e ir até eles, procurando encontrá-los onde moram ou trabalham. Como disse o papa Bento XVI aos bispos brasileiros: “É necessário, portanto, encaminhar a atividade apostólica como uma verdadeira missão dentro do rebanho que constitui a Igreja Católica [...], promovendo uma evangelização metódica e capilar em vista de uma adesão pessoal e comunitária a Cristo. Trata-se efetivamente de não poupar esforços na busca dos católicos afastados e daqueles que pouco ou nada conhecem sobre Jesus Cristo. [...] Neste esforço evangelizador, a comunidade eclesial se destaca pelas iniciativas pastorais, ao enviar, sobretudo entre as casas das periferias urbanas e do interior, seus missionários, leigos ou religiosos, procurando dialogar com todos em espírito de compreensão e de delicada caridade. Mas, se as pessoas encontradas estão numa situação de pobreza, é preciso ajudá-las, como faziam as primeiras comunidades cristãs, praticando a solidariedade, para que se sintam amadas de verdade. O povo pobre das periferias urbanas ou do campo precisa sentir a proximidade da Igreja, seja no socorro das suas necessidades mais urgentes, seja também na defesa dos seus direitos e na promoção comum de uma sociedade fundamentada na justiça e na paz. Os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho, e um bispo, modelado segundo a imagem do Bom Pastor, deve estar particularmente atento a oferecer o divino bálsamo da fé, sem descuidar do ‘pão material’. Como pude evidenciar na Encíclica Deus caritas est, ‘a Igreja não pode descurar o serviço da caridade, tal como não pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra’ (n. 22)” (n. 3). Não podemos esquecer que só um bom discípulo será também um bom missionário.

Diante da urgência missionária atual, a Congregação para o Clero dedicará sua próxima Assembléia Plenária, em março do ano que vem, ao tema da missionariedade dos presbíteros.

Finalmente, eu insistiria na formação permanente dos presbíteros, que inclui também sua formação espiritual. A Igreja não se cansa de insistir na necessidade da formação permanente dos presbíteros. O Diretório para o ministério pastoral dos bispos (2004), da Congregação para os Bispos, diz: “O bispo educará os sacerdotes de qualquer idade e condição para o cumprimento do dever de formação permanente, e tomará as providências para organizá-la”; mais adiante, diz: “O bispo considerará como elemento integrante e primário da formação permanente do presbítero os exercícios espirituais anuais, organizados de tal forma que sejam para cada qual um tempo de encontro autêntico e pessoal com Deus e de revisão da vida pessoal e ministerial” (n. 83). A Pastores gregis (2003), de João Paulo II, afirma: “Este afeto privilegiado do bispo por seus sacerdotes manifesta-se sob a forma de acompanhamento paterno e fraterno das etapas fundamentais de sua vida sacerdotal, a partir dos primeiros passos no ministério pastoral. Fundamental é a formação permanente dos presbíteros, constituindo para todos uma espécie de ‘vocação na vocação’, porque, em suas dimensões diferentes e complementares, tende a ajudar o padre a ser e a comportar-se segundo o estilo de Jesus” (n. 47). Hoje, mais do que nunca, a formação permanente é necessária em todos os setores da sociedade, tanto mais no ministério sacerdotal, tão empenhado em transformar em Cristo todas as realidades humanas, em inculturar a fé e em evangelizar as diversas culturas. Conhecer a realidade a ser evangelizada exige uma atualização cultural e teológica constante.

Concluindo, quero parabenizar a Congregação para a Evangelização dos Povos pela iniciativa deste seminário de atualização, e agradeço a vocês, caríssimos irmãos bispos, pela paciência e atenção. Vocês são pais de seus sacerdotes. Eles os amam e os amarão ainda mais se experimentarem que são amados por vocês. Esse amor vem de Deus, é dom do Espírito Santo, e por isso deve ser pedido na oração e vivido na fé. Que Deus os abençoe e os torne felizes em seu importante e belo ministério episcopal. Muitas felicidades! Obrigado!

 

Roma, 13 de setembro de 2008.

 

Cardeal Cláudio Hummes

Arcebispo emérito de São Paulo

Prefeito da Congregação para o Clero